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“Decifra-me ou te devoro”,* * Na mitologia grega, essa frase era proferida pela Esfinge de Tebas aos que cruzavam o seu caminho, mas que só poderiam seguir se decifrassem um enigma. o enigma da uberização: análise do trabalho e da saúde

“Decipher me or be my prey”, the uberization riddle: a work and health analysis

Resumo:

Esta pesquisa buscou analisar a relação trabalho-saúde no bojo da uberização, tomando a perspectiva das próprias plataformas como objeto da crítica marxista. Constatou-se que essas empresas propagam a promessa do “ganhe dinheiro”, expressando uma série de fetichismos que está na base da construção da falácia da autogestão e do empreendedorismo. No que diz respeito à saúde, reproduzem, de forma caricata, velhos modelos de intervenção na saúde dos trabalhadores, repetindo a história como farsa.

Palavras-chaves:
Fetichismo; Saúde do trabalhador; Trabalho; Uberização

Abstract:

This research sought to analyze the work-health relationship in the context of uberization, taking the perspective of the platforms themselves as the object of Marxist critique. It was found that these companies propagate the promise of “make money”, expressing a series of fetishisms that underlie the construction of the fallacy of self-management and entrepreneurship. About health, they reproduce, in a cartoonish way, old models of intervention in workers’ health, repeating history as a farce.

Keywords:
Fetishism; Health of worker; Work; Uberization

Introdução

Nesta pesquisa, a enigmática frase “decifra-me ou te devoro” é recuperada como como símile analítico para um outro enigma, aquele constituído no trabalho uberizado. A frase marcante da Esfinge de Tebas é, em geral, utilizada para suscitar o debate do autoconhecimento individual, condição peremptória para manter qualquer um firme em sua caminhada, sob o risco de ser “devorado”, desde seu interior. Não obstante, ampliamos a análise, saindo do sujeito individual para o sujeito como classe, porquanto as falácias e as farsas produzidas pelo trabalho uberizado se colocam como um grande mistério diante da classe trabalhadora contemporânea.

Salientamos que a uberização é aqui entendida conforme Antunes (2019ANTUNES, R. Proletariado digital, serviços e valor. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida: o mosaico da exploração. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 15-23.), Filgueiras e Antunes (2019FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020.) e Abílio (2019ABÍLIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019.; 2020ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020.), a seguir sintetizada:

  1. Trata-se de forma precária de trabalho, tipicamente integrante da dinâmica de acumulação flexível de capital.

  2. Ao contrário de um trabalho reduzido a pequenas operações, o capital constata que reconectar a subjetividade do trabalhador a uma visão mais ampla do processo de trabalho abre a possibilidade de pôr a criatividade da classe trabalhadora a serviço do aprimoramento e da diversificação do processo (tornando-o mais produtivo).

  3. Para tanto, pilares jurídico-políticos do emprego estável, protegido socialmente, assumem a condição de amarras obsoletas ao pleno desenvolvimento das modernas relações, uma vez que o trabalhador teria, supostamente, ascendido a um novo papel, dinâmico, movendo-se entre a concepção, o controle e a execução. Estaríamos vivendo uma nova sociedade, pautada na liberdade de o indivíduo criar e empreender, sendo um agente livre para se relacionar com as grandes empresas, de diversas formas, como colaborador, prestador de serviço, assessor, consultor etc., a depender das demandas mutantes do mercado.

  4. Quando essa relação - juridicamente nova, mas economicamente marcada pelas velhas forças desiguais - passa a ser mediada e controlada pela Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), emerge a uberização, como face mais recente do processo de “evolução” da precarização do trabalho.

  5. O caso mais conhecido, com certo pioneirismo, é o da empresa Uber, com os motoristas de aplicativo (daí o nome uberização). Todavia, há uma série de outras empresas e serviços, a exemplo de entrega de refeições, frete de mercadorias, reparos domésticos etc.

O quanto a suposta liberdade de o indivíduo pensar, controlar e fazer se desenvolve sob preceitos previamente determinados ou moldados pelo capital e a maneira como as TICs sofisticam esse processo são questões a serem recuperadas em nossa análise, quando o conceito de uberização ganhará uma forma mais concreta, na medida em que trazemos nossas contribuições para o decifrar do enigma.

Além disso, concordamos com Uchôa-de-Oliveira (2020UCHÔA-DE-OLIVEIRA, F. M. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, e22, 2020.), quando afirma que novas formas de organizar o trabalho acarretam alterações na relação saúde-doença, o que no caso dos trabalhadores uberizados tem-se expressado em fadiga, estresse, problemas psicoemocionais, acidentes no trânsito, entre outros problemas. Em outras palavras, o enigma, caso não decifrado, desdobra-se tragicamente em adoecimento e morte dos trabalhadores.

Diante disso, debruçamo-nos sobre esse objeto de estudo, trazendo a saúde como nuance analítica, inclusive porque esse elemento particular suscita novos conflitos e, com isso, respostas por parte do próprio capital, por meio das empresas detentoras das plataformas de trabalho uberizado. Com o presente estudo, então, pretendemos analisar (para decifrar) a relação trabalho-saúde no bojo da uberização, tomando a perspectiva apresentada pelas próprias empresas como objeto de crítica.

1. Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, reflexivo-analítica, que parte de dados disponibilizados no site das empresas que possuem plataformas digitais/aplicativos (app) para o trabalho uberizado. Isso significa que partimos do que dizem essas empresas, analisando as nuances subjetivas nelas implicadas, mas sem se descolar da objetividade que lhes determina. Portanto, nosso corpus analítico se constitui em informações contidas nos sites de algumas empresas de ampla atuação no contexto brasileiro, coletadas em outubro de 2021.

São oito casos analisados: 99, 99food, Cabify, Ifood, Loggi, Rappi, Uber e Uber eats, com a ressalva de que a 99food atua nos serviços de delivery, sendo a ampliação da atuação da 99, originalmente atuante com viagens para os usuários que acionam o app. O mesmo caso se aplica a Uber eats (delivery) em relação a Uber (viagens). Por conseguinte, são seis grupos que compõem o conjunto analisado. Cabe ainda mencionar que a Cabify opera no âmbito das viagens de pessoas, Ifood e Rappi no delivery de alimentos e a Loggi no setor logístico, com frete de mercadorias.

Priorizaram-se as informações contidas na página inicial de cada empresa, no menu sobre segurança e nos seus Termos de Uso. As informações foram sistematicamente decompostas, apreendendo seus núcleos de sentido, a fim de serem discutidas de forma agrupada. A análise se baseou em categorias teóricas marxistas, no âmbito da crítica da economia política, em especial, crítica do trabalho tal qual ele se desenvolve no capitalismo.

De Marx (1988MARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988b. Livro primeiro, t. II.a, 1988b) trazemos a categoria do fetichismo para entender o que chamamos de falácia (uma retórica que imputa um falso raciocínio) da autogestão. A partir do fetichismo da mercadoria, o mais conhecido, trazemos à baila fetichismos corolários, por exemplo, o fetichismo do dinheiro, do salário e do próprio capital. Dos marxistas contemporâneos, trazemos a crítica à uberização, em especial ao gerenciamento algorítmico e à autonomia na subordinação, com autores como Abílio (2020ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020.) e Carelli (2017CARELLI, R. L. O caso Uber e o controle por programação: de carona para o século XIX. In: LEME, A. C. P.; RODRIGUES, B. A.; CHAVES JÚNIOR, J. E. R. (orgs.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano: a intermediação de mão de obra a partir das plataformas eletrônicas e seus efeitos jurídicos e sociais. São Paulo: LTr, 2017.).

Quando adentramos na particularidade da saúde, dialogamos com categorias do campo da Saúde do Trabalhador, especialmente aquelas da crítica que o Movimento Operário Italiano teceu à objetificação do trabalhador e à monetização do risco, endossadas pela experiência latino-americana, na qual se inserem diversos autores, em certa medida, influenciados pelo marxismo. Na ocasião, também evocamos a analogia feita por Marx (2011MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.) em seu O 18 de brumário de Luís Bonaparte, depreendendo uma concepção de história da qual extraímos o símile da farsa para analisar as respostas dadas pelas plataformas digitais à questão da saúde.

2. A falácia do trabalho autogerido

Uma condição sine qua non para que a falácia da autogestão se efetive consiste em seu alcance entre os próprios trabalhadores, capturando-os através de uma narrativa carregada dos fetichismos típicos do capitalismo. Em geral, essa condição encontra um contexto favorável, uma vez que, grosso modo, atinge trabalhadores desempregados e que necessitam se (re)inserir na dinâmica de compra e venda de mercadorias (inclusive, da própria força de trabalho), conforme imposto pela lógica de produção e reprodução do capital, sob o risco de serem lançados ao pauperismo absoluto.

Não obstante, uma falsa solução para o desemprego lubridia os desempregados (ou subempregados), implicando diversos elementos fetichizantes (os quais abordaremos no desenrolar da análise), mas que para se fazer força de sujeição demanda, inicialmente, defrontar-se com o trabalhador naquilo (e com aquilo) que lhe causa mais impacto. Esse “primeiro encontro” se consubstancia por meio de uma espécie de “cartão de visitas”, capaz de convencer o trabalhador de que ele, finalmente, encontrou o que precisava. Para tal, um dos signos mais enigmáticos do capitalismo, o dinheiro, é evocado pelas empresas detentoras das plataformas digitais, a exemplo de Uber, 99, Rappi e Loggi. Vejamos:

Ganhe dinheiro dirigindo com a Uber (Uber, 2021aUBER. Site oficial da Uber. 2021a. Disponível em: Disponível em: https://www.uber.com/br . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://www.uber.com/br...
, grifos nossos).

Seja motorista parceiro 99 e aumente sua renda (99, 2021a99. Site oficial da 99: motorista. 2021a. Disponível em: Disponível em: https://99app.com/motorista/ . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://99app.com/motorista/...
, grifos nossos).

Aumente seus ganhos fazendo entregas (Loggi, 2021aLOGGI. Site oficial da Loggi: fazer entregas. 2021a. Disponível em: Disponível em: https://www.loggi.com/fazer-entregas/ . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://www.loggi.com/fazer-entregas/...
, grifos nossos).

Ganhe dinheiro fazendo entregas com Rappi (Rappi, 2021aRAPPI. Site oficial da Rappi: soy Rappi. 2021a. Disponível em: Disponível em: https://soyrappi.com/?_ga=2.194205737.589327193.1634240595-2115107178.1633704928&_gl=1*nlgybi*_ga*MjExNTEwNzE3OC4xNjMzNzA0OTI4*_ga_FGJHX7E4KW*MTYzNDI0MDU5Mi4zLjEuMTYzNDI0MDY5Mi4zNA . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://soyrappi.com/?_ga=2.194205737.58...
, grifos nossos).

Seja um motorista e comece a dirigir e a ganhar dinheiro (Cabify, 2021CABIFY. Site oficial da Cabify. 2021. Disponível em: Disponível em: https://cabify.com/br . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://cabify.com/br...
, grifos nossos).

Como pode ser constatado, as mensagens que comparecem na página inicial das empresas fazem referência direta à possibilidade de ganhar dinheiro, caso da Uber, Rappi e Cabify, ou indireta, como no caso da 99 ao afirmar que ser motorista parceiro é condição para aumentar a renda ou, ainda, sobre o aumento dos ganhos, conforme a Loggi.

Marx (1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988a. Livro primeiro, t. I.), em sua análise sobre o dinheiro, demonstra que este é a forma mais enigmática da mercadoria na esfera da circulação, porquanto parece ser o pressuposto do processo de troca, quando na verdade, ao contrário, ele é resultado das demandas geradas na generalização das trocas, tornando-as viáveis em face da articulação entre a dimensão particular de cada uma delas e a dimensão social genérica. Assim, nas sucessivas metamorfoses que as mercadorias sofrem, a forma dinheiro é aquela que viabiliza esse processo, como equivalente geral, meio circulante, meio de pagamento (inclusive, da força de trabalho vendida pelo trabalhador) e, sobremodo, na sua metamorfose final, assumindo a forma de capital e exercendo uma força dominadora entre aqueles que se defrontam na relação de troca, pois esconde aquilo que lhe determina e antecede.

Isso porque o fetichismo do dinheiro expressa um degrau a mais na complexificação do fetichismo da mercadoria. Lembremos que, como representação geral da riqueza no capitalismo, a mercadoria é o eixo movente das relações sociais mercantilizadas, uma vez que, como coisa, não tem vontade própria, depende de os homens se relacionarem como pessoas, mas subsumidos à sua lógica, isto é, como compradores e vendedores juridicamente iguais (Marx, 1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988a. Livro primeiro, t. I.).

Na mercadoria, portanto, está consubstanciada uma relação social (entre pessoas), subsumida à coisa, formal e juridicamente estabelecida entre iguais, mas ocultando a desigualdade econômica que lhe subjaz, ou seja, o fato de poucos possuírem os meios de produção (logo, as mercadorias) e a maioria apenas possuir a si mesmo para vender, como força de trabalho. Desse modo, na mercadoria também está refletido o caráter econômico, ainda que ofuscando aqueles que tentam o enxergar, sobretudo porque coaduna a dualidade entre valor de uso e valor (entre trabalho útil concreto e trabalho abstrato), pois se o primeiro é definido por sua qualidade em atender a certa necessidade (por isso, detectável na objetividade da mercadoria), o segundo apenas existe como relação abstrata que dilui e iguala os diversos trabalhos humanos em uma forma homogênea, sintetizada no tempo de trabalho socialmente necessário à produção da mercadoria. Essa homogeneização do trabalho humano não é passível de ser depreendida da objetividade da mercadoria, mas apenas existe em face das relações sociais mercantis, como invenção metafísica das pessoas reificadas e das coisas (mercadorias) personificadas (Marx, 1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988a. Livro primeiro, t. I.).

O dinheiro eleva esse caráter fetichista, pois representa uma forma particular de mercadoria que se desloca das demais, inclusive ganhando certa autonomia em relação ao valor (tempo de trabalho socialmente necessário) do material monetário que lhe representa (pensemos, inicialmente, no ouro, prata ou cobre), passando a existir como signo imaginário, figura de valor que pode se metamorfosear em um bilhete de papel, uma cifra bancária ou uma moeda virtual. Nele, no dinheiro, você não encontra os sinais concretos do trabalho útil, tampouco aquilo que determina a grandeza de valor de qualquer mercadoria, mas apenas esses elementos transfigurados de tal maneira que ele parece ser autossuficiente (Marx, 1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988a. Livro primeiro, t. I.).

Como não bastasse o enigma que o dinheiro representa, quando assume a função de meio de pagamento da compra da força de trabalho empregada na produção das mercadorias, desdobra-se em uma espécie de “feitiço” ainda mais pujante. Isso porque o salário (pagamento pela força de trabalho) repõe a questão da igualdade jurídica, mistificando, ainda mais, a desigualdade econômica. Aos olhos do próprio trabalhador, parece que seu salário pode alcançar um justo patamar pelo que trabalhou e, portanto, apenas quando está abaixo desse patamar é que o conjunto dos trabalhadores se rebela contra o “feitiço”. Contudo, mesmo o salário se elevando a patamares capazes de “frear” o movimento operário, ele somente significa que uma quantidade maior de trabalho excedente (logo, mais-valia) foi extraída do trabalhador. Ou seja, aumentou-se o salário apenas na medida em que a exploração do trabalhador se tornou mais produtiva para o capital e, portanto, seja em qualquer patamar, o salário é mediação de uma relação de exploração (Marx, 1988bMARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988b. Livro primeiro, t. II.).

O fetiche do salário também se fortalece pelas metamorfoses que sofre. Se o salário por tempo (pago conforme a jornada) esconde o fato de a maior parte de tal tempo ser trabalho não pago, o salário por peça:

[...] parece, à primeira vista, como se o valor de uso vendido pelo trabalhador não fosse função de sua força de trabalho, trabalho vivo, mas trabalho já objetivado no produto, como se o preço desse trabalho não fosse determinado, como o do salário por tempo, pela fração Valor diário da força de trabalho/Jornada de trabalho de dado número de horas, mas pela capacidade de produção do produtor (Marx, 1988MARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988b. Livro primeiro, t. II.b, p. 133).

Ideologicamente, o salário por peça atua na subjetividade do trabalhador, fazendo-lhe crer que quanto mais trabalha, mais ganha, em função da quantidade de peças (poderiam ser corridas ou entregas) que produz. Esse ledo engano mistifica o fato de que o tempo necessário à produção do valor da força de trabalho (expressa em salário por peça) e o trabalho excedente (cristalizado na forma de mais-valia) estão repartidos em cada peça ou serviço produzido. Portanto, mesmo produzindo mais peças ou executando mais serviços, o trabalhador não aumenta o seu salário em termos relativos, mas apenas aumenta a exploração que sofre, logo, a quantidade de mais-valia que lhe é roubada, ainda que seus ganhos aumentem em termos absolutos (Marx, 1988bMARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988b. Livro primeiro, t. II.).

Imagine o poder fetichizante que essa forma de salário (carregada dos fetiches que lhe são pressupostos) pode assumir quando ela deixa de ser reconhecida como salário, mas apenas rendimentos, ganhos ou lucros. Trata-se exatamente do que temos assistido com a uberização do trabalho, conquanto essa forma precária de trabalho se baseia no pagamento por “serviço prestado”, ou seja, o trabalhador a cada corrida ou entrega que realiza (para ficarmos com os exemplos das empresas que analisamos por ora) tem de seu pagamento (realizado pelo consumidor) uma porcentagem retida pela empresa detentora da plataforma digital. Porém, o quantum ele vai receber, parece, está livremente determinado pela quantidade de entregas e corridas que é capaz de fazer, quando na verdade segue parâmetros determinados pelas próprias empresas (Souza, 2022SOUZA, D. O. A funcionalidade do salário por peça no trabalho mediado por plataformas digitais. Katálysis, Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 383-391, 2022.).

Voltaremos a essa questão do controle do trabalho (logo, dos valores pagos), mas por ora queremos assinalar a presença do salário por peça no trabalho uberizado, ainda que sob uma nova forma. Isso porque essa forma de salário se camufla por trás de relações juridicamente precárias, pois na falta de reconhecimento de vínculo trabalhista, não se reconhece a existência de salários (Souza, 2022SOUZA, D. O. A funcionalidade do salário por peça no trabalho mediado por plataformas digitais. Katálysis, Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 383-391, 2022.). O “cartão de visitas” das empresas aqui analisadas endossa essa perspectiva, pois, como vimos, nunca utilizam o termo salário, mas fazem questão de destacar que o trabalhador (também não denominado como tal) pode ganhar dinheiro, aumentar sua renda ou seus ganhos. Aqui, podemos acrescentar algumas “falas” dessas empresas, sobretudo nos seus Termos de Uso, quando fazem questão de explicitar que não há vínculo trabalhista com motoristas e entregadores:

6.2 Considerando que o Condutor Autônomo é um profissional autônomo, a Loggi não será, em nenhum momento, responsável por quaisquer consequências, prejuízos, lucros cessantes ou danos causados ao veículo ou ao próprio condutor autônomo em virtude dos serviços de Frete [...] (Loggi, 2021bLOGGI. Site oficial da Loggi. Termo de uso: entregadores. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.loggi.com/termos-de-uso-entregadores/#inexistencia-garantias . Acesso em: 21 jul. 2021.
https://www.loggi.com/termos-de-uso-entr...
, grifos nossos).

4.8 [...] NÃO SE ESTABELECE ENTRE O MOTORISTA PARCEIRO E A 99 QUALQUER VÍNCULO DE NATUREZA SOCIETÁRIA, EMPREGATÍCIA E/OU ECÔNOMICA [...] (99, 2021b99. Site oficial da 99: termos de uso. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://99app.com/legal/termos/motorista/ . Acesso em: 21 jul. 2021.
https://99app.com/legal/termos/motorista...
, grifos no original).

O esforço em propagar a ideia da autonomia (palavra repetida por três vezes pela Loggi no trecho mencionado) e, com isso, livrar-se das responsabilidades trabalhistas é evidente nas duas empresas citadas, o que exemplifica o princípio básico da falácia propagada, em geral, por essas plataformas. Não à toa, a 99 fez questão de destacar com letras em caixa-alta o item 4.8 de seu Termo de Uso, dada a importância desse subterfúgio jurídico para a sua dinâmica de lucros. Livrar-se dessas responsabilidades implica também se eximir das consequências sobre a saúde (questão latente no trecho do Termo de Uso da Loggi aqui citado), mas igualmente de todos os direitos trabalhistas e previdenciários, responsabilizando o trabalhador pelo processo e forjando a imagem da plataforma como mera mediadora.

Essa estratégia de captura da subjetividade do trabalhador (Alves, 2010ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2010.) é muito funcional à falácia da autogestão do trabalho. O trabalhador é controlado justamente porque é convencido de que controla o seu trabalho. Nessa linha, o motorista ou entregador, ao ser considerado autônomo, torna desnecessária ou incoerente a necessidade de vínculo trabalhista. Voltamos às mensagens das páginas iniciais nos sites das empresas e confirmamos que tudo parece ser questão de escolha e do quanto o indivíduo autônomo pretende se esforçar:

Sem chefe, horário flexível, ganhos rápidos (Uber eats, 2021UBER EATS. Site oficial da Uber eats. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.ubereats.com/br . Acesso em: 11 jul. 2021.
https://www.ubereats.com/br...
, grifos nossos).

Dirija pelo app da Uber. Você escolhe quando quer ganhar (Uber, 2021aUBER. Site oficial da Uber. 2021a. Disponível em: Disponível em: https://www.uber.com/br . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://www.uber.com/br...
, grifos nossos).

Tenha poder de escolha. Com a 99food, você se conecta quando quiser. Se você tem uma moto ou bicicleta, escolha seus próprios horários para retirar e entregar pedidos intermediados pelo aplicativo (99food, 202199FOOD. Site oficial da 99FOOD: entregador. 2021. Disponível em: Disponível em: https://food.99app.com/pt-BR/entregador . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://food.99app.com/pt-BR/entregador...
, grifos nossos).

A promessa é tentadora, pois ao ratificar a possibilidade de ganhar dinheiro, qualifica-se esse ganho como sendo rápido, ocorrendo quando se quiser, como uma mera questão de escolha. Ao contrário da promessa, efetiva-se uma forma mais sofisticada de subordinação do trabalhador à empresa. Isso ocorre porque o controle se dá mediante o gerenciamento dos dados coletados na plataforma, alimentando os algoritmos que determinam a organização do trabalho. O sistema de avaliação do serviço prestado, com notas atribuídas pelos consumidores, é peça-chave na definição das oportunidades e gatilhos que serão lançados na plataforma pela empresa. Uma série de bônus, benefícios ou punições é utilizada para moldar a atuação do motorista ou entregador, a serviço dos objetivos previamente estabelecidos pela empresa (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020.). Ou seja, a finalidade é fazer com que ele trabalhe mais ou menos em horários e locais de interesse da empresa, constituindo um pseudopoder de escolha do trabalhador, pois na verdade consiste em uma autonomia na subordinação (Carelli, 2017CARELLI, R. L. O caso Uber e o controle por programação: de carona para o século XIX. In: LEME, A. C. P.; RODRIGUES, B. A.; CHAVES JÚNIOR, J. E. R. (orgs.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano: a intermediação de mão de obra a partir das plataformas eletrônicas e seus efeitos jurídicos e sociais. São Paulo: LTr, 2017.).

Além disso, devemos considerar que os valores a serem pagos (e a porcentagem recolhida) são definidos pela empresa, em geral em face da ausência de regulamentação. Esses elementos subordinadores, internos à uberização, articulam-se com a dinâmica genérica do capital, no qual se impõem mediações para a vida do trabalhador, por exemplo, a satisfação de suas necessidades mediante a compra e venda de mercadorias. Ou o trabalhador vai ao mercado comprar alimentos, roupa, moradia etc., portando aquela mercadoria especial, o dinheiro ou sua reprodução social e biológica estará obstada. Por conseguinte, a “isca” (ganhe dinheiro) jogada pelas plataformas é eficaz ideologicamente, consubstanciando a força fetichizante inerente ao mundo das mercadorias. Na mesma esteira, não se pode dizer que se trata de um trabalho que se dá pelas livres escolhas do trabalhador, seja porque internamente é programado/gerenciado pelos algoritmos, seja porque externamente está submetido ao metabolismo social do capital (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009.).

Uma última ressalva sobre essa questão consiste em considerá-la dialeticamente, uma vez que a luta de classes lhe confere uma tônica particular no capitalismo. Com isso, esse processo não se dá sem que parte dos trabalhadores comece a entender o enigma que representa e se levante contra as plataformas, na reivindicação por melhores condições de trabalho, maiores rendimentos e, em alguns casos, formalização de um contrato de trabalho. Essas lutas jurídicas e políticas ainda estão longe de alcançar o âmago da desigualdade econômica mais profunda que determina o mundo do trabalho, mas possuem sua importância e estão diretamente conectadas às (ausências de) ações direcionadas à saúde desses trabalhadores, conforme veremos a seguir.

3. Tragédia e farsa da saúde no trabalho uberizado

A saúde dos trabalhadores uberizados tem sido apreendida pelo viés da segurança, sobretudo relativa à mobilidade no trânsito. Entre os casos aqui analisados, Uber/Uber eats, 99/99food, Ifood e Rappi passaram a oferecer seguro pessoal para motoristas ou entregadores, válido enquanto estão no curso da viagem ou entrega, o que parece ser uma resposta às tensões e demandas surgidas a partir desse viés. Para seguirmos com nossa análise, é necessário verificar o teor das propostas de seguro:

Este seguro cobre os motoristas parceiros desde o momento em que se deslocam para buscar o usuário, e também os usuários a partir de seu embarque da viagem até o momento em que esta é encerrada. Morte acidental: R$ 100.000,00 (cem mil reais); Invalidez permanente total ou parcial por Acidente: até R$ 100.000,00 (cem mil reais), dependendo do grau de perda ou redução funcional do membro afetado; Despesas Médicas Hospitalares e Odontológicas: até R$ 15.000,00 (quinze mil reais) de reembolso (Uber, 2021bUBER. Site oficial da Uber: segurança. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.uber.com/br/pt-br/drive/insurance/ . Acesso em: 21 jul. 2021.
https://www.uber.com/br/pt-br/drive/insu...
).

Tanto passageiros quanto os motoristas parceiros cadastrados na plataforma têm direito a seguro de proteção contra acidentes pessoais que possam ocorrer durante as corridas (99, 2021c99. Site oficial da 99: segurança. 2021c. Disponível em: Disponível em: https://99app.com/seguranca/ . Acesso em: 21 jul. 2021.
https://99app.com/seguranca/...
).

E como funciona a cobertura do Seguro de acidentes pessoais: Até R$ 15.000 - Consultas médicas ou atendimento emergencial e de urgência; Curativos, suturas e gesso em caso de quebra de ossos ou luxação; Exames como radiografia ou ressonância; Reembolso de despesas odontológicas emergenciais; Cirurgias resultantes do acidente. Até R$ 100.000 - em caso de invalidez permanente total/parcial por acidente; Pagos à família em caso de morte acidental (Ifood, 2021IFOOD. Portal do entregador: seguro acidentes pessoais. 2021. Disponível em: Disponível em: https://entregador.ifood.com.br/quero-fazer-parte/seguro-acidentes-pessoais/ . Acesso em: 21 jul. 2021.
https://entregador.ifood.com.br/quero-fa...
).

4. Quais os valores das coberturas? Despesas médicas hospitalares e odontológicas até R$ 30.000,00; Invalidez permanente total ou parcial por acidente até - R$ 100.000,00; Morte Acidental - R$ 100.000,00; Auxílio Funeral por Morte Acidental até R$ 5.000,00 (Rappi, 2021bRAPPI. Blog soy Rappi: Rappi seguro. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://blogbra.soyrappi.com/rappi-seguro/ . Acesso em: 21 jul. 2021.
https://blogbra.soyrappi.com/rappi-segur...
).

Observamos que os seguros são semelhantes, sendo automaticamente aplicáveis quando o motorista ou entregador se cadastra no app. Em geral, há pequena variação de valores quando no caso de despesas com procedimentos médicos e odontológicos (de R$ 15.000,00 a R$ 30.000,00), sendo de R$ 100.000,00 para invalidez permanente ou morte. Como já vimos na seção anterior, a Loggi não se responsabiliza por consequências aos motoristas do frete, além disso, não conseguimos encontrar essa informação no site da Cabify.

Após a descrição desse panorama, o primeiro aspecto analítico diz respeito ao contexto de surgimento desses seguros, notadamente consubstanciados após reinvindicações dos trabalhadores, conflitos jurídicos e Projetos de Lei (PL) sobre o assunto. Desde os primeiros anos de surgimento dessa forma de organização do trabalho, os casos de acidentes de motoristas e entregadores passaram a ser notícia, por vezes resultando em óbito, mas desconsiderados, estatisticamente, como acidentes de trabalho (Pina, 2019PINA, R. Uberização vai mascarar números de acidente de trabalho, dizem especialistas. Brasil de Fato, São Paulo, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/07/21/uberizacao-vai-mascarar-numeros-de-acidente-de-trabalho-dizem-especialistas . Acesso em: 2 ago. 2021.
https://www.brasildefato.com.br/2019/07/...
).

Para além da questão dos acidentes, esses trabalhadores têm apresentado quadros de desgaste, sobretudo ligados às longas jornadas. Isso porque, além de precisarem realizar várias corridas ou entregas no dia para atingir rendimentos mínimos, passam muito tempo conectados, aguardando serem acionados via app, e todo esse tempo não é contabilizado para fins remuneratórios, embora os levem ao cansaço (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020.).

O processo de desgaste se desdobra em insatisfação, irritabilidade, insônia, estresse e várias outras manifestações que afetam a saúde, podendo evoluir para quadros mais graves de estresse ocupacional, depressão ou, até mesmo, síndrome de burnout. O problema se agrava porque, assim como no caso dos acidentes, a relação com o trabalho é mascarada nos sistemas de informação e a responsabilidade das empresas não é reconhecida.

As questões de saúde (sobretudo pela ótica da segurança), junto aos baixos rendimentos, têm sido pauta das principais reivindicações desses trabalhadores, que começam a se organizar em associações ou outras formas coletivas, inclusive com atuação semelhante aos sindicatos (Souza, 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 19, 2021.; Uchôa-de-Oliveira, 2020UCHÔA-DE-OLIVEIRA, F. M. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, e22, 2020.). Protestos marcantes têm ocorrido em todo mundo, a exemplo da França desde 2015, dos Estados Unidos em 2016 e na Espanha em 2017 (Uchôa-de-Oliveira, 2020UCHÔA-DE-OLIVEIRA, F. M. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, e22, 2020.). No Brasil, os protestos se intensificaram em 2019, com os motoristas indo às ruas, e tiveram seu ponto mais eminente em 2020, em face dos problemas gerados pela pandemia de covid-19, quando entregadores realizaram um “breque” nacional (Souza, 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 19, 2021.).

Juridicamente, esse contexto ressoou em algumas disputas, a exemplo do que ocorreu em São Paulo, quando o Tribunal Regional do Trabalho reconheceu, em determinando caso, o vínculo trabalhista entre um motorista e a Uber (Uchôa-de-Oliveira, 2020UCHÔA-DE-OLIVEIRA, F. M. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, e22, 2020.). Além disso, politicamente, diversos parlamentares brasileiros têm apresentado projetos de lei sobre essa matéria. Em estudo realizado pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP (2020CENTRO DE ENSINO E PESQUISA EM INOVAÇÃO DA FGV DIREITO SP. Caderno expandido do briefing temático #1: projetos de lei de 2020 sobre gig economy − uma sistematização de definições e normas sobre condições de trabalho, benefícios e remuneração. São Paulo: FGV Direito SP, 2020.), só em 2020, 40 projetos de lei foram listados a partir dos portais eletrônicos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Entre eles, 12 tratam diretamente deseguros e 22 falam sobre saúde e/ou segurança, revelando a amplitude que o debate tomou jurídico-politicamente.

Essa multiplicação de projetos de lei vem a reboque dos efeitos da pandemia, quando o debate assumiu maior visibilidade, em especial, pelos protestos que esses trabalhadores organizaram. Não à toa, notamos o crescimento da oferta dos seguros entre as plataformas digitais, assim como o fornecimento de informações sobre a prevenção da covid-19, durante a pandemia, em suas páginas na internet.

Em suma, a situação da saúde dos trabalhadores uberizados já vinha se configurando como tragédia, com alta ocorrência de acidentes e doenças. Ainda que de maneira muito restrita aos acidentes, a dialética da realidade imputou respostas a essa tragédia, emergidas na forma jurídica e materializadas na oferta dos seguros ora analisados. Porém, lembremos que Marx (2011MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.) fez referência à máxima de Hegel, quando ele dizia que a história se repetia duas vezes e, ironicamente, complementou: “a primeira como tragédia, a segunda como farsa” (Marx, 2011MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 25). O nosso segundo aspecto analítico, nesta seção, desdobra-se a partir dessa analogia, uma vez que a preocupação demonstrada pelas empresas com a saúde dos supostos parceiros não passa da repetição da tragédia da saúde dos trabalhadores, agora como farsa.

Complementaríamos ao dizer que, dialeticamente, em toda tragédia já existe uma farsa em curso, ao passo que a farsa da repetição da história não deixa de ser trágica. Tragédia e farsa andam juntas e se repõem historicamente, predominando uma ou outra, mas nunca de modo unilateral. Por conta disso, as medidas que vêm sendo tomadas pelas plataformas digitais não são nada mais do que uma formalidade diante das tensões jurídico-políticas, mas sem o devido alcance ao cerne da saúde desses trabalhadores. Até mesmo porque o tipo de ação proposta (sobre a forma de seguros), além de restrito a uma dimensão da problemática (os acidentes ocorridos na execução do serviço), reproduz velhas idiossincrasias dos modelos de intervenção sobre a relação trabalho-saúde, outrora criticados, nunca eliminados, mas agora exponenciados. Expliquemos melhor.

Campos como a Medicina do Trabalho e a Saúde Ocupacional surgiram em contextos contraditórios,1 1 A Medicina do Trabalho surge ainda no cenário da Revolução Industrial europeia, em resposta ao alto adoecimento de trabalhadores nas novas indústrias. Trata-se de modelo centrado na figura do médico e direcionado à intervenção sobre o trabalhador. Já a Saúde Ocupacional surge no pós-Segunda Guerra Mundial, no bojo da reconstrução acelerada do mundo destruído pelas forças bélicas. Novamente, o alto ritmo produtivo desembocou em patamares de adoecimento que ameaçavam a produtividade, exigindo que a burguesia reformulasse as formas de intervenção na saúde no trabalho. Guardados os ideais de fundo (isto é, o direcionamento ideológico burguês), a Saúde Ocupacional avança, incorporando novas disciplinas e áreas (Ergonomia, Psicologia, Engenharia etc.) e passando a se preocupar com o ambiente de trabalho. No entanto, o trabalhador permanece visto como mero objeto de intervenção, em ambos os modelos (Mendes; Dias, 1991). refletindo a luta de classes, sendo que muito mais aproximadas às demandas postas pela classe capitalista, conquanto o adoecimento e a morte dos trabalhadores, em determinado patamar, tornem-se obstáculos à produtividade (Souza; Melo; Vasconcellos, 2015SOUZA, D. O.; MELO, A. I. S. C.; VASCONCELLOS, L. C. F. A saúde dos trabalhadores em “questão”: anotações para uma abordagem histórico-ontológica. O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano 18, n. 34, 2015.). Nesses modelos (guardadas as suas diferenças), o trabalhador permanece em uma posição passiva, como objeto de intervenção (Mendes; Dias, 1991MENDES, R.; DIAS, E. C. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Revista de Saúde pública, São Paulo, v. 25, n. 5, p. 341-349, 1991.).

Por terem essas características, esses modelos naturalizam os riscos do trabalho, direcionando suas ações muito mais para o âmbito da reparação dos danos ou, no máximo, da intervenção sobre o ambiente para controle de tais riscos. A transformação do processo de trabalho, desde suas raízes sociais, não comparece como horizonte nos campos da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional, o que motivou a crítica e a reação da classe trabalhadora, construindo um novo campo junto a profissionais da saúde aliados. O Movimento Operário Italiano das décadas de 1960/1970, bem como as experiências latino-americanas nas décadas de 1970/1980, serviu de laboratório para o surgimento de um novo modelo, pautado no protagonismo operário, na tentativa de transformação dos processos de trabalho com vista à alteração da própria sociedade. O novo campo, então denominado Saúde do Trabalhador, enxerga os riscos do trabalho como produtos histórico-sociais, e vislumbra ações transformadoras para além da reparação do dano e adaptação do ambiente, mas enaltecendo a promoção da saúde, a prevenção de agravos e a intervenção coletiva sobre o processo de determinação social da saúde (Souza; Melo; Vasconcellos, 2015SOUZA, D. O.; MELO, A. I. S. C.; VASCONCELLOS, L. C. F. A saúde dos trabalhadores em “questão”: anotações para uma abordagem histórico-ontológica. O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano 18, n. 34, 2015.).

Na lógica da Saúde do Trabalhador, enxergam-se as múltiplas dimensões da relação trabalho-saúde, ainda que dentro das possibilidades objetivas do metabolismo social do capital e suas formas estatais corolárias. Trata-se de campo que avança no Brasil, entre “trancos e barrancos”, coexistindo e tensionando os velhos modelos da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional, ainda hegemônicos em termos práticos (Souza; Melo; Vasconcellos, 2015SOUZA, D. O.; MELO, A. I. S. C.; VASCONCELLOS, L. C. F. A saúde dos trabalhadores em “questão”: anotações para uma abordagem histórico-ontológica. O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano 18, n. 34, 2015.). Os seguros de saúde, com foco em danos pontuais, são expressão dessa hegemonia, pois se centram na reparação de danos/consequências dos riscos sabidamente existentes, mas não enfrentados, assim como a consequente monetização desse processo.

A monetização do risco foi muito questionada pelos movimentos que deram origem ao campo da Saúde do Trabalhador, consoante o emblemático caso italiano:

As confederações sindicais e os partidos dos trabalhadores sofreram de fato a chantagem ‘ou trabalho, ou saúde’, deixaram de lado a análise dos danos psicofísicos das novas tecnologias, acentuaram na reforma sanitária os aspectos institucionais dos objetivos de saúde, aceitaram que os ritmos obsessivos, gases e pós, as horas extraordinárias mais longas e os turnos estafantes fossem todos transformados em indenizações monetárias nos contratos de trabalho (Berlinguer, 1983BERLINGUER, G. A saúde nas fábricas. São Paulo: Cebes-Hucitec, 1983., p. 15).

A lógica do seguro, portanto, reproduz velhas práticas, já duramente criticadas e inócuas diante da complexidade da saúde dos trabalhadores. Ao serem o cerne das respostas dadas pelas plataformas digitais às tensões desenroladas em face das reivindicações dos trabalhadores, os seguros ora oferecidos atualizam a tragédia da saúde dos trabalhadores, ainda que sob os véus de uma pseudopreocupação com a saúde (ou, ao menos, com a segurança) do “parceiro”. A questão do vínculo precário (ou vínculo não reconhecido), o processo de trabalho pautado em baixos rendimentos e prolongamento das jornadas, impulsionado pelos algoritmos e pelo salário por serviço executado, são questões que permanecem fora do alcance dessas respostas.

Não obstante, é uma “nova” forma de organizar o trabalho que perpetua o velho caráter do capitalismo, consubstanciado na degradação da saúde dos trabalhadores. Diríamos que a tragédia-farsa da saúde é resultado e, ao mesmo tempo, retroalimenta a falácia da autogestão; porém, vai além do mero caráter retórico utilizado para firmar um falso raciocínio (como é típico da falácia). Mais do que mascarar um raciocínio, a farsa aqui em questão tem seu caráter constituído na teatralização da história, resgatando velhas e falsas respostas, historicamente associadas à tragédia da saúde dos trabalhadores. Seja no caso da falácia, seja na trágica farsa, os fetichismos do capital compõem sua base e sua dinâmica, ainda que sob novas formas para os enigmas de sempre.

Considerações finais

A esfinge moderna é o capital e seu enigma está consubstanciado nos diversos fetichismos que produz. Sua forma contemporânea habita as plataformas digitais, propagando a falácia da autogestão e, quando se trata da saúde, dando respostas limitadas e caricatas em face de antigos modelos de entender e intervir na saúde dos trabalhadores. Imersa nesse enigma, a classe trabalhadora deve-se autoconhecer e decifrar a realidade (tarefa para a qual uma ciência transformadora pode contribuir), construindo sua consciência de classe, em si e para si, e mirando a superação de formas de trabalho que lhe reificam e devoram a sua saúde.

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  • 1
    A Medicina do Trabalho surge ainda no cenário da Revolução Industrial europeia, em resposta ao alto adoecimento de trabalhadores nas novas indústrias. Trata-se de modelo centrado na figura do médico e direcionado à intervenção sobre o trabalhador. Já a Saúde Ocupacional surge no pós-Segunda Guerra Mundial, no bojo da reconstrução acelerada do mundo destruído pelas forças bélicas. Novamente, o alto ritmo produtivo desembocou em patamares de adoecimento que ameaçavam a produtividade, exigindo que a burguesia reformulasse as formas de intervenção na saúde no trabalho. Guardados os ideais de fundo (isto é, o direcionamento ideológico burguês), a Saúde Ocupacional avança, incorporando novas disciplinas e áreas (Ergonomia, Psicologia, Engenharia etc.) e passando a se preocupar com o ambiente de trabalho. No entanto, o trabalhador permanece visto como mero objeto de intervenção, em ambos os modelos (Mendes; Dias, 1991MENDES, R.; DIAS, E. C. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Revista de Saúde pública, São Paulo, v. 25, n. 5, p. 341-349, 1991.).
  • *
    Na mitologia grega, essa frase era proferida pela Esfinge de Tebas aos que cruzavam o seu caminho, mas que só poderiam seguir se decifrassem um enigma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2022
  • Aceito
    13 Fev 2023
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