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A realidade brasileira em tempos de barbárie do capital e os desafios ao Serviço Social

The Brazilian reality in times of capital barbarity and the challenges to social work

No final do século passado, Marilda Iamamoto (2015IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2015., p. 17) inicia um de seus livros afirmando: “O momento que vivemos é um momento pleno de desafios. Mais do que nunca é preciso ter coragem, é preciso ter esperanças para enfrentar o presente. É preciso resistir e sonhar”.

Essa frase dialoga de maneira direta com o tempo presente, passados mais de 30 anos de ter sido escrita. O tempo da esperança parece não ganhar força em meio a sucessivas crises que atingem, não apenas a humanidade, mas também o planeta. No horizonte próximo, parece não se vislumbrar o socialismo. Se as alternativas apontadas por Mészaros (2006MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2006.) forem reais - socialismo ou barbárie -, caminhamos, então, para a barbárie?

Quando em tempo real assistimos a diferentes genocídios de diversos grupos étnicos, de maneira encoberta ou, às vezes, de forma explícita como o que está ocorrendo em Gaza, a perplexidade e o sentimento de impotência afloram. Ainda que milhares de pessoas tenham saído às ruas em países de diferentes continentes para protestar contra o genocídio, Israel segue com as agressões à Palestina e a devastação de Gaza. Os conflitos, as guerras e outras violências de diferentes dimensões estão presentes em todos os países do globo terrestre e evidenciam um mundo cada vez mais paradoxal: de um lado, a extrema concentração da riqueza e, de outro, a ampliação da miséria1 1 Segundo o relatório da Desigualdade Social: “Os 10% mais ricos da população global controlam 76% da riqueza mundial em 2021. Em contraste, os 50% mais pobres possuem apenas 2%. Os 40% médios, por sua vez, possuem 22%”. Segundo essa mesma fonte, o Banco Mundial anunciou que a pandemia de Covid-19 levou 100 milhões de pessoas para a pobreza extrema, o que eleva o total global para 711 milhões em 2021 (CNNBrasil, on line). . Este é o “el dorado” do capital! A promessa de liberdade que se efetivou para poucos.

O capitalismo se espraiou pelo mundo e hegemoniza as formas de vida, de produção e cultura; desde o século passado, segue buscando alternativas para uma crise estrutural que o ameaça de maneira permanente. Para isso, outras formas de produção e gestão e novas tecnologias são demandadas e novos territórios, apropriados. Os conflitos se acirram devido à resistência dos/as trabalhadores/as e povos atingidos pelo processo imperialista que o capital desencadeia e fortalece em todo o globo, via de regra, com apoio dos diferentes Estados nacionais e suas respectivas classes dominantes.

Num momento em que a forma de organização da produção/consumo esgota os recursos naturais e humanos e desiquilibra o planeta, vivenciamos uma crise sanitária, até então apenas retratada em filmes de ficção. A pandemia da Covid 19 deixou milhares de mortos e sequelados por todo o globo terrestre. Com a crise sanitária, segue a crise humanitária decorrente das relações capitalistas em que os mais fragilizados sofrem, adoecem e morrem em maior número. Sem nenhum fatalismo, apenas parte da lógica capitalista que determina os destinos de maneira quase inexorável de pelo menos um terço dos habitantes do globo terrestre. Não é possível, para eles, acessar água potável, comida nem dignidade, pois compõem o contingente que foi condenado à morte lenta e gradual em nome da chamada sociedade de mercado e sua suposta liberdade.

A classe trabalhadora tem seu cotidiano perpassado pela intensificação do trabalho, por níveis crescentes de violência, adoecimentos mental e físico; pessoas cujo desenvolvimento, ainda que potencializado pela tecnologia e por um pequeno avanço no âmbito dos direitos humanos, seguem hegemonicamente emaranhadas na ideologia dominante, a qual dificulta sobremaneira uma perspectiva humanizadora, solidária e crítica à sociedade do capital. A educação é voltada para a competição e não para a solidariedade; para o mérito, para a busca do sucesso como resultado de ações e potências individuais.

Essas condições tornam-se terreno fértil para o avanço de perspectivas neoconservadoras.

O neoconservadorismo consiste na junção entre os valores do conservadorismo moderno e os princípios do neoliberalismo. Do conservadorismo clássico, preservam-se a tradição, a experiência, o preconceito, a ordem, a hierarquia, a autoridade, valorizando-se as instituições tradicionais, como a igreja e a família patriarcal (Barroco, 2022BARROCO, M. L. da S. Direitos humanos, neoconservadorismo e neofascismo no Brasil contemporâneo. Serviço Social e Sociedade, n. 143, p. 12-21, jan./abr. 2022. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/j/sssoc/a/zjrwPzBctDGqj84D74Vg4cv . Acesso em: 16 jan. 2024.
http://www.scielo.br/j/sssoc/a/zjrwPzBct...
). [...] Do neoliberalismo, conservam-se a não interferência do Estado na economia, o empreendedorismo, a meritocracia, o privatismo, o combate aos movimentos sociais e aos direitos sociais (Barroco, 2022BARROCO, M. L. da S. Direitos humanos, neoconservadorismo e neofascismo no Brasil contemporâneo. Serviço Social e Sociedade, n. 143, p. 12-21, jan./abr. 2022. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/j/sssoc/a/zjrwPzBctDGqj84D74Vg4cv . Acesso em: 16 jan. 2024.
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). Propostas neofascistas encontram ressonância num tempo em que o emprego é escasso e a competição toma o lugar da solidariedade; em que a barbárie dissemina o ódio e a desumanização; em que a brutalidade passa a ser virtude política e o irracionalismo apela aos piores instintos e às reservas de animalidade que brotam no indivíduo, na sociedade capitalista, como diz o filósofo Lukács (2007) (Barroco, 2022BARROCO, M. L. da S. Direitos humanos, neoconservadorismo e neofascismo no Brasil contemporâneo. Serviço Social e Sociedade, n. 143, p. 12-21, jan./abr. 2022. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/j/sssoc/a/zjrwPzBctDGqj84D74Vg4cv . Acesso em: 16 jan. 2024.
http://www.scielo.br/j/sssoc/a/zjrwPzBct...
, p. 13).

Com o avanço do neoliberalismo, novas gerações são formadas a partir de um ideário em que o “outro” é um concorrente ou uma ameaça à sua existência.

Os rebatimentos do projeto neoliberal, para além das relações econômicas e políticas, dão-se exatamente no processo de reprodução social, em que o ideário do mérito e da competição se acirra, o trabalho em equipe não é movido por relações solidárias, mas sim pelo controle e aceleração do ritmo de cada um. Como afirmam Raichelis, Vicente e Albuquerque (2018RAICHELIS, R.; VICENTE, D.; ALBUQUERQUE, V. (orgs.). A nova morfologia do trabalho no Serviço Social . São Paulo: Cortez, 2018., p. 4-5): “Mais do que uma doutrina econômica, é uma nova racionalidade que corrói as relações sociais, transforma sujeitos em concorrentes e produz a mercadorização da instituição pública...”.

Nesse contexto de acirramento do individualismo e com as novas possibilidades criadas pela chamada quarta revolução tecnológica, um outro tipo de sociabilidade está sendo criada, em que cada vez mais as relações coletivas e solidárias se deparam com grandes limites. Ainda que o avanço tecnológico, como fenômeno contraditório, também promova desenvolvimento e crie muitas alternativas e acessos, constrói um mundo virtual que isola e controla os indivíduos no trabalho e nas relações privadas. As redes sociais e a avalanche de informações fictícias ou reais povoam os espaços e relações onde não necessariamente é preciso conviver com o diferente, pois, no virtual, existe a opção de bloqueá-lo ou excluí-lo. As fake news criam um mundo paralelo, onde o real e o fictício se misturam de maneira estranhada.

Um mundo que não oferece oportunidades concretas para a maioria da população, portanto quase bloqueia projetos de longo prazo. A ausência/instabilidade do trabalho e das relações sociais encurtam os sonhos, dificultam a construção de projetos duradouros, o que provoca, por um lado, mais desprendimento, mas, por outro, adoecimentos mentais os mais diversos, além de agudizar o risco de uso de drogas ou envolvimento com o tráfico e provocar a instabilidade permanente do trabalho, da renda e da moradia. No caso do Brasil, para mais de 50% da população, a insegurança se estende até o acesso ao alimento.

O Brasil, na realidade, é um país emblemático para evidenciar como a barbárie do capital constrói elementos estruturais para reprodução de uma sociedade marcada pela extrema desigualdade de renda e riqueza, em que a posse dos solos urbano e rural sempre foi elemento fundamental para alicerçar os abismos e fossos sociais.

Desde a formação do Estado brasileiro, a posse da terra foi um elemento crucial para determinar a configuração das classes sociais. Quando as tensões decorrentes da resistência negra e do movimento abolicionista inviabilizaram a manutenção do regime escravista (Moura, 1988MOURA, Clovis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.), a terra se tornou cativa e só pôde ser adquirida mediante a sua compra/venda. Esse foi um golpe do Estado contra a população negra! Se tivesse ocorrido ali a primeira política reparatória, o Estado teria distribuído as terras para os negros e constituído uma nação de pequenos agricultores, viabilizando-se um outro projeto de país. Aliás, a reforma agrária nunca ocorreu no Brasil nem em seus moldes mais clássicos como na maior parte dos países capitalistas.

Segundo dados do último censo: “o índice de Gini é de 0,867, o que evidencia a permanência de uma estrutura agrária extremamente concentrada; além disso, sofreu ainda ligeiro aumento, seguindo em sentido contrário ao que vinha acontecendo nos últimos recenseamentos” (IBGE, 2020INSTITUTO BRASILIERO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSCA (IBGE). Atlas do Espaço Brasileiro. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.ibge.gov.br/geociencias/atlas/tematicos/16362-atlas-do-espaco-rural-brasileiro.html . Acesso em: 25 nov. 2023.
http://www.ibge.gov.br/geociencias/atlas...
, p. 47). No Brasil, os estabelecimentos com 1.000 a 2.500 hectares ou mais somam 0,9% dos estabelecimentos rurais, ocupam 45% da área e ficam com 43% dos créditos agrícolas. Por outro lado, os estabelecimentos de até 50 hectares somam 78,3% em número, mas em área ocupam apenas 13,1% e ficam com 13 a 23% dos créditos. A concentração fundiária é escandalosa quando se analisam os dados dos estabelecimentos de até 10 hectares, ou seja, aquela agricultura camponesa e familiar por excelência, são 47,8% dos estabelecimentos e utilizam 2,3% da área (OXFAM, on line, 2020OXFAM. Menos de 1% das-propriedades agrícolas é dona de quase metade da área rural brasileira. Disponível em: Disponível em: http://www.oxfam.org.br/publicacao/menos-de-1-das-propriedades-agricolas-e-dona-de-quase-metade-da-area-rural-brasileira . 2020. Acesso em: 25 jan. 2023.
http://www.oxfam.org.br/publicacao/menos...
). Um outro dado importante sobre as características da estrutura agrária brasileira é que, entre os estabelecimentos de mais de 1.000 hectares, 8 a cada 10 proprietários são brancos (IBGE, 2020INSTITUTO BRASILIERO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSCA (IBGE). 8 em cada 10 proprietários de grandes estabelecimentos rurais são brancos. 2020. Disponível em: Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/12/15/ibge-8-em-cada-10-proprietarios-de-grandes-estabelecimentos-rurais-sao-brancos.htm?cmpid=copiaecola . Acesso: em 25 nov. 2023.
https://economia.uol.com.br/noticias/est...
), o que mostra, de maneira explícita, que a herança colonial persiste ao longo do tempo.

Não é casual, portanto, que, em área rural, se localizem os maiores bolsões de pobreza. Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan) apontou que, em 2022, as formas mais severas de insegurança alimentar (IA) - moderada ou grave - estavam presentes em aproximadamente 38,0% dos domicílios de agricultores familiares/produtores rurais. A prevalência de IA grave era de 21,8%, mostrando que a fome atingia os moradores de mais de um quinto dessas habitações.

A concentração da terra, o escravismo e o heteropatriarcado foram construindo as bases concretas de que o capitalismo se apropriou para desenvolver suas relações de exploração, diretamente conectadas ao capitalismo já globalizado. A resultante desse processo é que a população mais pobre é aquela que vive sem terra ou com pouca terra, que é negra, mulher ou LGBTQIA+. Também aqui não há fatalidade: a construção da desigualdade é concreta e cotidiana, pois o acesso ao trabalho, à educação, à moradia e à saúde, ou seja, tudo aquilo que se convencionou chamar de avanços civilizatórios não chega, ou chega de maneira precária, para o conjunto dos/as trabalhadores/as mais pobres - aqueles/as que, via de regra, sofrem mais intensamente esse processo de expropriação da riqueza socialmente construída.

Cisne e Santos (2018CISNE, M.; SANTOS, S. M. M. dos. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.) explicam esse processo com base na categoria analítica da coextensividade/consubstancialidade, ou seja, uma perspectiva que entende o entrelaçamento entre raça, classe e sexo, que são elementos fundamentais para explicar a maior precarização da vida de mulheres, dos grupos étnicos e racializados e da população LGBTQUIA+, pertencentes à classe trabalhadora sob o regime do capital. As autoras destacam que a identificação desses elementos na estrutura da formação sócio-histórica do Brasil é fundamental para entender o que elas denominam de sistema heteropatriarcal-racista-capitalista.

Essa fusão foi e é absolutamente funcional para a produção e a reprodução do capital, uma vez que no heteropatriarcado e no racismo encontramos as bases para o entendimento da exploração intensificada da força de trabalho, condição central para a reprodução das situações concretas e das múltiplas opressões (Cisne e Santos, 2018CISNE, M.; SANTOS, S. M. M. dos. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018., p. 25).

Com o avanço tecnológico, o capitalismo alargou sua capacidade destrutiva ao tratar os recursos naturais como inesgotáveis, em seu movimento incessante em busca do lucro. O que se convencionou chamar de crise ambiental nada mais é do que o resultado das relações capitalistas que se configuram no âmbito da produção e reprodução da vida na sociedade do capital.

Em sua sede insaciável de lucratividade, o capitalismo revela sua essência crescentemente destrutiva e perdulária, manifestando uma contradição essencial no processo de reprodução: a crescente obsolescência programada, o desperdício no trato dos recursos naturais e sociais - condições essenciais para a expansão da produção e do consumo - confrontam-se, progressivamente, com o caráter limitado das potencialidades ambientais, com finitude dos recursos naturais, o que vem comprometendo, sistematicamente, a própria existência sobre o planeta (Silva, 2010SILVA, M. das G. Questão ambiental e desenvolvimento sustentável - Um desafio ético-político ao Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2010., p. 27).

O avanço tecnológico produzido sob o comando do capital tem gerado uma nova morfologia do trabalho onde a classe trabalhadora luta para ter, nas palavras de Antunes (2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.): o “privilégio da servidão”, ou seja, manter-se empregado frente ao grande contingente que permanece no flagelo do desemprego. Aqueles que permanecem trabalhando tem suas condições objetivas cada vez mais precarizadas com vínculos frágeis e instáveis:

Aqueles que se mantêm empregados presenciam a corrosão dos seus direitos sociais e a erosão de suas conquistas históricas, consequência da lógica destrutiva do capital, que, expulsa centenas de milhões de homens e mulheres do mundo produtivo (em sentido amplo), recria, nos mais distantes e longínquos espaços, novas modalidades do trabalho informal, intermitente, precarizado, “flexível”, depauperando ainda mais os níveis de remuneração daqueles que se mantêm trabalhando (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 25).

Para além das condições estruturais ditadas pelo capitalismo, o avanço das propostas neoliberais no Brasil, a partir dos anos de 1990, construiu as plataformas fundamentais para o amplo processo de devastação ambiental e dos direitos do trabalho, configurando-se, consequentemente, no maior acirramento das relações sociais, extremamente desiguais.

A década de 1980, marcada por amplas lutas sociais e ascenso do movimento de massas, resultou em algumas conquistas efetivas que foram incorporadas na Constituição Federal de 1988. Em seu conjunto, a Constituição resguarda as relações sociais da sociedade do capital (e nem poderia ser diferente, afinal foi um documento construído no âmbito dos marcos legais do Estado Capitalista), o que fica evidente na própria forma como o direito à terra é tratado. Entretanto, do ponto de vista dos direitos sociais, prevê mecanismos importantes para assegurar a universalização da saúde, a assistência social como direito de cidadania, a responsabilidade da sociedade e do Estado para com o bem-estar de crianças e adolescentes etc.

É evidente que não basta a lei para o direito se efetivar, daí a ênfase das classes dominantes para fazer avançar os ideários e políticas neoliberais, exatamente para se contrapor às lutas coletivas que poderiam forçar a efetivação daquilo que se tornou direito constitucional.

Trinta e cinco anos depois de promulgada a Constituição de 1988, ela se tornou uma “colcha de retalhos”2 2 Desde 1988 até agora, a Constituição Federal foi modificada 140 vezes. A esse respeito conferir: www.camara.leg.br/noticias/931900-parlamentares-aprovaram-14-emendas-a-constituicao-em-2022/#:~:text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20foi%20modificada%20140,isso%2C%20t%C3%AAm%20a%20mesma%20for%C3%A7a. , repleta de emendas, mas ainda segue como instrumento legal importante na luta por políticas sociais públicas universais. Mas, como todo instrumento carece de quem o manuseie, daí a necessidade de utilizar a letra da lei para lutar por políticas públicas de maneira a assegurar condições de cidadania para os diversos segmentos da classe trabalhadora, incluindo, em especial, aqueles que são atingidos de modo incisivo pelo sistema heteropatriarcal-racista-capitalista.

Os tempos são muito adversos. Os dados da desigualdade, conforme mencionado, apresentam-se em diversos âmbitos, mas serão mencionados especificamente aqueles que tratam da fome e insegurança alimentar, pois são emblemáticos quando a pauta trata de direitos fundamentais: o acesso ao alimento de qualidade - balanceado e nutritivo - para os desenvolvimentos físico e mental de todas as pessoas, independentemente de sua idade, necessidade, cultura, condição de classe ou origem étnica.

Os dados do II Inquérito da Rede Penssan apontam que 41,3% dos domicílios estavam em situação de segurança alimentar e 58,7%, em situação de insegurança alimentar, seja com a preocupação de não ter o alimento no futuro próximo (insegurança alimentar leve), com comprometimento da qualidade de sua alimentação (insegurança alimentar moderada) ou com insuficiência de alimentos que atendessem às necessidades dos moradores (insegurança alimentar grave). Em número, isso se traduz da seguinte maneira: no Brasil, “125,2 milhões de pessoas estão em IA, destas mais de 33 milhões em situação de fome, expressa pela IA grave” (Rede Penssan, 2022REDE PENSSAN. II VIGESSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. 2022. Disponível em: Disponível em: https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil . Acesso em: 21 dez. 2023.
https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito...
, p. 37-38).

Ainda segundo o mesmo relatório, a fome está mais presente nos domicílios de área rural e nas regiões Norte e Nordeste. Quando a análise discrimina variáveis de raça/cor ou gênero, também a situação se agrava:

Enquanto a SA foi encontrada em 47,9% dos domicílios com responsáveis homens, naqueles onde as mulheres eram a referência apenas 37,0% apresentaram a mesma classificação. Ou seja, mais de 6 em cada 10 (63,0%) domicílios com responsáveis do sexo feminino estavam em algum nível de IA. Destes, 18,8% em situação de fome. [...]

Semelhante ao que foi observado na desigualdade de gênero, neles, 6 de cada 10 domicílios cujos responsáveis se identificavam como pretos ou pardos viviam em algum grau de IA, enquanto nos domicílios cujos responsáveis eram de raça/cor de pele branca autorreferida mais de 50,0% tinham SA garantida (Rede Penssan, 2022REDE PENSSAN. II VIGESSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. 2022. Disponível em: Disponível em: https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil . Acesso em: 21 dez. 2023.
https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito...
, p. 37 e 52).

Teixeira (2015TEIXEIRA, L. S. C. O valor da fome no Brasil: Entre as necessidades humanas e a reprodução do capital (Tese de doutorado) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.) é uma das primeiras autoras do serviço social que discute sobre a questão da fome relacionando-a com o tipo de agricultura que o capitalismo impõe hegemonicamente como modelo produtivo. A autora afirma:

Na dinâmica das relações sociais engendradas no capitalismo, a fome está intimamente relacionada à lei geral de acumulação capitalista. Por um lado, por que o padrão de reprodução do capital, na particularidade do complexo sistema agroalimentar industrial, submete países de capital dependente ao mercado internacional de alimentos regulando-o com a fome, e ainda expulsa do processo produtivo camponeses de suas terras (Teixeira, 2015TEIXEIRA, L. S. C. O valor da fome no Brasil: Entre as necessidades humanas e a reprodução do capital (Tese de doutorado) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015., p. 23).

O serviço social é uma profissão profundamente impactada por esse quadro social e político. A questão social, ou seja, esse conjunto de determinações que o sistema heteropatriarcal racista-capitalista impõe para construir verdadeiros abismos sociais, é o objeto de trabalho profissional, especialmente em suas refrações mais cruéis. A profissão vai cada vez mais tendo que se defrontar, no cotidiano de seu trabalho, com os aspectos profundamente impactantes dessas refrações no âmbito das políticas públicas, em especial as de assistência social.

Num cenário de desmonte das políticas públicas - seja pela orientação neoliberal em curso há muitos anos, seja pelo desmonte mais recente do período 2018-21, quando Bolsonaro esteve no Governo3 3 O governo Lula, que assumiu o governo em janeiro de 2023, fez uma movimento de recuperação das políticas públicas sociais, mas ainda caminha com lentidão e correlação de forças bastante tensa com o Congresso Nacional; um dado importante no combate à fome foi a retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), extinto no governo Bolsonaro, assim como das Conferências - não só na área de segurança alimentar - e das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, essenciais para a produção de alimentos. -, as tensões decorrentes das relações institucionais vão provocando diversos impactos ao trabalho profissional. O compromisso com a qualidade dos serviços fica profundamente afetado devido às condições objetivas do trabalho profissional, muitas vezes vinculado a políticas com programas fragmentados e desfinanciados, com quadro de profissionais insuficiente sequer para o atendimento mínimo da demanda da população.

Já faz parte do acúmulo teórico do serviço social o entendimento de que o trabalho profissional tem nas condições concretas uma determinação importante, ou seja, a configuração da realidade social e das políticas públicas é fundamental para pensar a atuação. Ou como afirma Guerra (2015GUERRA, Yolanda. Sobre a possibilidade histórica do projeto ético-político profissional: a apreciação crítica que se faz necessária. In: FORTI, V. L.; Guerra, Y. A. D. (orgs.). Projeto Ético-Político do Serviço Social: contribuições à sua crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015., p. 55), o serviço social “só pode se mover dentro das possibilidades históricas postas pela própria realidade”. Mas, faz parte desse acervo também o entendimento de que o acúmulo teórico metodológico e o compromisso ético político são fundamentais para definir o trabalho profissional na perspectiva crítica assumida pela direção social estratégica da profissão, conhecida como Projeto Ético-Político (PEP).

[...] as dificuldades para a realização do PEP são de duas ordens. A primeira, de natureza material concreta: o mundo burguês e seu modo de ser, sua estrutura e sua dinâmica; a lógica que o conforma e sua sociabilidade, a ideologia dominante e a correlação de forças sociais que, em geral limita ou impede iniciativas que confrontem com a reprodução social. A segunda, de ordem teórico-intelectual, necessitando do desvendamento da ideologia dominante e da formação de um sujeito que seja capaz de interpretar adequadamente os princípios, valores e a direção estratégica desse projeto e, ainda, de saber intervir na realidade em direção de sua transformação, combinando seus princípios com formas de operacionalizá-los (Guerra, 2015GUERRA, Yolanda. Sobre a possibilidade histórica do projeto ético-político profissional: a apreciação crítica que se faz necessária. In: FORTI, V. L.; Guerra, Y. A. D. (orgs.). Projeto Ético-Político do Serviço Social: contribuições à sua crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015., p. 64).

Como parte da classe trabalhadora, a profissão tem sido cada vez mais afetada por precarização dos vínculos, remuneração e intensificação do trabalho, o que impõe grandes desafios para a efetivação do projeto profissional.

Raichelis, Vicente e Albuquerque (2018RAICHELIS, R.; VICENTE, D.; ALBUQUERQUE, V. (orgs.). A nova morfologia do trabalho no Serviço Social . São Paulo: Cortez, 2018.), em suas pesquisas sobre a nova morfologia do trabalho no serviço social, evidencia que:

É no setor de serviço - públicos e privados - que, de modo geral, se observam a maior e mais ampla precarização e intensificação do trabalho, cujas atividades são mais desvalorizadas, com valor agregado menor e mais baixos salários. Nesse contexto, crescem assédio moral, o desgaste mental das/dos assistentes sociais, o sofrimento e adoecimento provocados pelas novas formas de organização, controle e gestão do trabalho nas políticas sociais (Raichelis et al., 2018RAICHELIS, R. Serviço Social: trabalho e profissão na trama do capitalismo contemporâneo. In: RAICHELIS, R.; VICENTE, D.; ALBUQUERQUE, V. (orgs.). A nova morfologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018., p. 59).

Essa mesma constatação surge na pesquisa de Lourenço (2016LOURENÇO, E. Â. de S. Saúde do trabalhador e da trabalhadora no capitalismo contemporâneo. In: LOURENÇO, E. Â. de S. (org.) Saúde do trabalhador e da trabalhadora e Serviço Social: estudo de relações de trabalho e saúde no capitalismo contemporâneo. Campinas: Papel Social, 2016.). A autora destaca a proximidade dos dados com as condições gerais dos trabalhadores no atual contexto de intensificação e precarização do trabalho. A autora (2016, p. 35) afirma: “A nova gestão do trabalho estabelece metas somente alcançáveis abaixo de muita pressão e violência para com os trabalhadores e trabalhadoras”.

Numa profissão com direcionamento ético-político que se coloca num campo contra-hegemônico, as tensões cotidianas vivenciadas no trabalho são ainda maiores; daí a intensidade da incidência de adoecimento entre os profissionais da área.

Diante desse cenário, como seguir com esperança? É possível resistir e lutar, como conclama Iamomoto, ante questões tão amplas e que envolvem o conjunto da sociedade? Com certeza, a reversão desse quadro faz parte da luta geral dos trabalhadores e trabalhadoras e dos movimentos de resistência.

Um primeiro elemento importante que é necessário destacar: não vivemos o fim da história. As contradições que permeiam esse processo podem reverter a tendência da caminhada inexorável para a barbárie.

As contradições que estruturam a sociabilidade e os limites do capital inviabilizam ganhos defensivos. Segundo Mészaros (2006MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2006.), este fato associado a uma restruturação da luta socialista podem contribuir para a construção de uma ofensiva socialista.

Antunes, ao falar dos grandes desafios para reverter a lógica de completa deterioração do mundo do trabalho, segue em direção semelhante:

O desafio maior do mundo do trabalho e dos movimentos sociais de esquerda é, então, criar e inventar novas formas de atuação autônomas, capazes de articular e dar centralidade às ações de classe contra o capital e sua lógica destrutiva. Isso em uma fase em que nunca o capital foi tão destrutivo em relação ao trabalho, à natureza e ao meio ambiente, em suma, à humanidade (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 303).

O serviço social, como profissão inserida na divisão sociotécnica do trabalho, deve, coletivamente, lutar pela manutenção de seu direcionamento crítico e, para isso, as entidades da profissão são fundamentais. Fortalecer o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Serviço Social (conjunto CFESS/CRESS), a Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (Enesso) e a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss) é fundamental para que não haja retrocesso político na profissão. Hoje, o posicionamento crítico das entidades tem construído referências teóricas, normativas e materiais que contribuem para a formação e o trabalho profissional e, com isso, tem fortalecido os estudantes e profissionais para os embates e disputas necessários nos diversos espaços sócio-ocupacionais.

Um aspecto fundamental destacado por Guerra: se qualificação profissional é condição fundamental (ainda que não única) para a efetivação do projeto profissional, é importante que os profissionais se capacitem para além da informação ou dos elementos técnicos que compõem o trabalho profissional. É preciso entender o movimento do capital, seus determinantes estruturais, o papel do Estado, as novas morfologias do mundo do trabalho, o racismo, a questão agrária, enfim, elementos que compõem a realidade e explicam os seus aspectos fenomênicos com os quais nos confrontamos todos os dias.

Só para mencionar um exemplo daquilo que foi tratado neste artigo: entender que a fome é construção coletiva e resultado de opções políticas, como destacou Teixeira (2015TEIXEIRA, L. S. C. O valor da fome no Brasil: Entre as necessidades humanas e a reprodução do capital (Tese de doutorado) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.), permite aos profissionais buscar soluções a partir de elementos estruturais da realidade e, ao mesmo tempo, livrarem-se de armadilhas ideológicas. O entendimento das causas do fenômeno da fome permitirá ao serviço social abordar temas como a importância da reforma agrária, dos movimentos sociais e, com isso, desvencilhar-se de outros muito como caridade e ajuda ao próximo.

Para a profissão, melhores condições de trabalho e concursos públicos também são pautas fundamentais para este momento político, assim como a defesa das políticas públicas sociais universais, da democracia, dos direitos de cidadania e a luta contra todas as formas de desigualdade e preconceito. Essas pautas políticas podem nos conectar com outras que envolvem elementos estruturais, como a questão ambiental, a defesa dos direitos do trabalho e da reforma agrária, o combate ao racismo e a LBTFobia, uma vez que o horizonte não pode ser perdido: uma sociedade para além do capital.

Como afirma Yazbek (2019YAZBEK, M. C. Serviço Social e seu projeto ético-político em tempos de devastação: resistências, lutas e perspectivas. In: YAZBEK, M. C.; IAMAMOTO, M. V. (orgs.). O Serviço Social na história. América Latina, África e Europa. São Paulo: Cortez, 2019., p. 99), é preciso RESISTIR:

[...] seja no tempo miúdo do cotidiano, por dentro dos espaços institucionais onde atuamos, politizando nossas iniciativas, buscando novas práticas, retomando as ações de educação de base, buscando espaços a ocupar, considerando as variadas lutas e propostas de resistência. Seja no apoio às resistências cotidianas das classes subalternas em suas lutas em nossa sociedade [...].

A participação nas lutas e nos movimentos sociais de esquerda contribui não apenas para qualificar a atuação profissional, mas principalmente para manter a esperança e a crença de que um outro mundo é possível.

Como nos ensina Iamamoto (2015IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2015., p. 17), neste percurso é importante seguir com coragem: “Resistir e sonhar. É necessário alimentar os sonhos e concretizá-los dia a dia no horizonte de novos tempos mais humanos, mais justos, mais solidários”.

Referências

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  • 1
    Segundo o relatório da Desigualdade Social: “Os 10% mais ricos da população global controlam 76% da riqueza mundial em 2021. Em contraste, os 50% mais pobres possuem apenas 2%. Os 40% médios, por sua vez, possuem 22%”. Segundo essa mesma fonte, o Banco Mundial anunciou que a pandemia de Covid-19 levou 100 milhões de pessoas para a pobreza extrema, o que eleva o total global para 711 milhões em 2021 (CNNBrasil, on lineCNN BRASIL. 10% mais ricos controlam 76% da riqueza global; 50% mais pobres ficam com 2%. Disponível em: Disponível em: http://www.cnnbrasil.com.br/economia/10-mais-ricos-controlam-76-da-riqueza-global-50-mais-pobres-ficam-com-2 . Acesso em: 12 dez. 2023.
    http://www.cnnbrasil.com.br/economia/10-...
    ).
  • 2
    Desde 1988 até agora, a Constituição Federal foi modificada 140 vezesCÂMARA LEGISLATIVA FEDERAL. Constituição Federal foi modificada 140 vezes. Disponível em: Disponível em: http://www.camara.leg.br/noticias/931900-parlamentares-aprovaram-14-emendas-a-constituicao-em-2022/#:~:text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20foi%20modificada%20140,isso%2C%20t%C3%AAm%20a%20mesma%20for(os%C3%A7a . Acesso em: 27 nov. 2023.
    http://www.camara.leg.br/noticias/931900...
    . A esse respeito conferir: www.camara.leg.br/noticias/931900-parlamentares-aprovaram-14-emendas-a-constituicao-em-2022/#:~:text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20foi%20modificada%20140,isso%2C%20t%C3%AAm%20a%20mesma%20for%C3%A7a.
  • 3
    O governo Lula, que assumiu o governo em janeiro de 2023, fez uma movimento de recuperação das políticas públicas sociais, mas ainda caminha com lentidão e correlação de forças bastante tensa com o Congresso Nacional; um dado importante no combate à fome foi a retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), extinto no governo Bolsonaro, assim como das Conferências - não só na área de segurança alimentar - e das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, essenciais para a produção de alimentos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2024
  • Aceito
    19 Jan 2024
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