Open-access Qualificação e reestruturação das relações industriais: uma nova moeda-de-troca?

Skills and restructuring of industrial relations: a new bargaining instrument?

Resumos

Este artigo é uma reflexão sobre o lugar da qualificação no processo de reestruturação das relações industriais. Nele procuro sustentar o argumento de que em contextos nos quais se instabilizam parâmetros importantes da ação gerencial (como mercados de produtos, modos de regulação estatal das condições de competição e relações sindicais), a fabricação de formas de consentimento tem na negociação em torno da qualificação uma importante moeda-de-troca. Para tanto, lanço mão de estudos no complexo petroquímico brasileiro, tratando de modo mais detido a experiência de uma das mais importantes empresas do setor no país.

Qualificação; relações industriais; reestruturação industrial; Brasil; indústria petroquímica


This article deals with the rol of managerial policies on training and skills in contexts of instable institutional conditions (like market overture, new state regulations related to privatization processes, and changing patterns in industrial relations). I argue that, under these conditions, consent negotiation relies upon manipulation of institutional resources for negotiating qualification policies toward the core labor force. Empiral analysis takes into account the experience of market deregulation, privatization and restructuring of industrial relations in Brazilian petrochemical industry.


Qualificação e reestruturação das relações industriais: Uma nova moeda-de-troca?

Nadya Araújo Castro*

RESUMO: Este artigo é uma reflexão sobre o lugar da qualificação no processo de reestruturação das relações industriais. Nele procuro sustentar o argumento de que em contextos nos quais se instabilizam parâmetros importantes da ação gerencial (como mercados de produtos, modos de regulação estatal das condições de competição e relações sindicais), a fabricação de formas de consentimento tem na negociação em torno da qualificação uma importante moeda-de-troca. Para tanto, lanço mão de estudos no complexo petroquímico brasileiro, tratando de modo mais detido a experiência de uma das mais importantes empresas do setor no país.

Palavras-chave: Qualificação, relações industriais, reestruturação industrial, Brasil, indústria petroquímica

Esse texto procura refletir sobre o lugar da qualificação no processo de reestruturação das relações industriais. Para tanto, tomo, de uma pesquisa mais ampla,1 um estudo de caso particularmente elucidativo, realizado numa das maiores empresas da indústria petroquímica brasileira. Transformações recentes desafiaram-na por diferentes pontos de vista. A abertura comercial e a redução de alíquotas a expuseram com intensidade ímpar aos riscos da concorrência no mercado nacional; a desativação das formas pretéritas de apoio estatal e a rápida privatização do setor retiraram-lhe a principal âncora de sustentação em que apoiara suas políticas de modernização tecnológica e ampliação de capacidade produtiva. Tudo isso no exato momento em que o mercado internacional (sua válvula de escape habitual) vivia um momento de excesso de oferta e de queda dos preços. Nesse mesmo momento, ainda, a empresa procurava superar uma conjuntura de relações industriais conflagradas após uma inusitada greve geral num pólo industrial petroquímico (primeira e única na história desta indústria no Brasil). Embora pintado a traços tão rápidos, o quadro deixa entrever a enorme instabilidade que estava a desafiar alguns dos principais parâmetros de sua estratégia empresarial: mercados (interno e externo) de produtos, modo de regulação estatal das condições de competição, relações sindicais.

Nesse novo contexto, a fabricação de novas formas de consentimento nos chãos-de-fábrica passava a ser uma das metas mais importantes. Defendo, no estudo empírico aqui apresentado, o argumento de que a qualificação (aí compreendidas as novas formas de gerenciá-la) se constituiu numa das moedas-de-troca mais importantes nos esforços visando a fabricação desse novo consenso.

Assim definido, o escopo do trabalho adota um partido analítico no que concerne à abordagem da qualificação. Resisto a tratá-la simplesmente como um conjunto de habilidades e atitudes que, tal como requeridas para o desempenho num posto de trabalho ou num ambiente organizacional, necessitam ser acumuladas pelo indivíduo trabalhador, como um capital de inclusão nos contextos produtivos reestruturados. Resistindo ao risco da reificação contido nesse tipo de abordagem, assumo aqui um ponto de vista sociológico, propugnando pelo valor heurístico de entender-se a qualificação como uma construção social. Construção social num duplo sentido.

Por um lado, porque competências (imaginadas como necessárias ou reconhecidas como portadas) são representações e, nesse sentido, são fatos sociais, são constructos. Mesmo os best ways que fazem (ou fizeram) furor na literatura acadêmica e/ou no imaginário gerencial (como a chamada "administração científica do trabalho" ou o denominado "modelo japonês") são modos de recrutar, modos de fazer e modos de premiar pelo trabalho cuja capacidade de moldar comportamentos (i) é sempre transitória e (ii) tem sido sempre recriada em cada contexto societal por onde um valor dessa espécie se difunde. Vale dizer: tais valores, longe de unívocos, são dotados de uma polissemia que reflete as negociações da vida social.

Daí porque diferentes meios sociais valoram de modo desigual as competências que permitiriam conferir a um indivíduo-trabalhador a condição de "qualificado". Ao fazê-lo, produzem códigos classificatórios que estabelecem regras de acesso e critérios de interdição, associando formas de trabalho a atributos sociais. Desse modo, "trabalho de homem" passa a ser diferente de "trabalho de mulher" (do mesmo modo que antes, e sem pejo, costumávamos diferenciar "trabalho de branco" de "trabalho de negro"). As habilidades passam a estar adjetivadas pelo gênero, pela idade ou pela condição étnico-racial de quem as desempenhará. Mesmo ali onde competências têm uma dimensão fortemente aquisitiva (como em se tratando de anos de estudo, de experiência profissional etc.), nunca é demais lembrar que tal aquisição é também socialmente condicionada, posto que as oportunidades de estudo e/ou de acesso e permanência no trabalho são, em medida não desprezível, desigualmente distribuídas. Trajetórias familiares e redes sociais, por exemplo, são sabidamente determinantes de primeira hora do acesso e da progressão, seja na escola, seja no mercado de trabalho.

Mas, o caráter socialmente construído da qualificação resulta visível também por um outro ponto de vista; e é este que interessa mais de perto ao presente texto. Tanto quanto todos os outros jogos de significados que se expressam na vida social em geral, e na vida do trabalho em particular, a qualificação é, a um só tempo, produto e procedimento, meio e fim nos processos de negociação entre atores.

Produto, na medida em que as regras de inclusão e exclusão ¾ isto é, os sistemas classificatórios que definem a natureza da atividade no trabalho, as habilidades de quem a exerce e as retribuições (materiais e simbólicas) pelo exercício de tal atividade ¾ são sempre negociadas entre atores. Nesse sentido, tais sistemas são produto de práticas coletivas em âmbitos institucionalizados de interação nos sistemas de relações industriais; aí estão presentes, no nível micro, por exemplo, as gerências de recursos humanos, as chefias de unidades, os sindicatos, as comissões (de empresa, de prevenção de acidentes etc.)

Mas os sistemas de classificação de competências e qualificações são, eles mesmos, procedimentos, mecanismos, meios no processo de produção de consentimento no âmbito do trabalho. São matéria-prima a partir da qual se negocia a produção de institucionalidades, instrumentos de barganha nas negociações entre gerências e trabalhadores com relação à natureza dos regimes fabris.2 Estudos empíricos parecem indicar, de modo bastante incisivo, que a aquisição da qualificação torna-se uma moeda-de-troca importante na negociação entre gerências e trabalhadores "sobreviventes" nos contextos reestruturados a partir do ajuste dos anos 90 na indústria brasileira em geral (Humphrey 1995; Campos 1996; Castro e Comin 1997).

A descrição que a seguir se apresenta documenta este mesmo fenômeno no caso da indústria petroquímica. Ali, observa-se que as competências valorizadas pelas gerências se redefinem como resultado do intenso enxugamento de quadros e da reorganização do trabalho em equipes; mas observa-se, sobretudo, como, na nova forma gerenciada, a qualificação torna-se um elemento fundamental (i) na barganha política pelo consentimento do trabalhador individual, ampliando seu comprometimento com os objetivos da empresa, e (ii) na desqualificação do sindicato como instituição, por excelência, de representação de interesses coletivos no âmbito do trabalho. Assim abordada, a qualificação torna-se tanto mais inteligível quanto mais imersa no entendimento da trajetória das relações industriais em seu nível micro.

Para alcançar a demonstração desse argumento, o texto se debruça sobre um estudo de caso de modo a ilustrar como concretamente se constroem os nexos entre as trajetórias da reestruturação produtiva, das mudanças nas relações industriais e das mudanças na gestão da qualificação.

Reestruturando a produção e as relações industriais: A trajetória da Companhia

A empresa objeto de análise ¾ a partir daqui denominada Companhia ¾ é a principal produtora brasileira de petroquímicos básicos, com uma capacidade nominal de 910 mil toneladas de eteno. Em dezembro de 1995, operava com 1.126 funcionários, um terço a menos do efetivo em atividade no início da década (em 1990, eram 1.768), muito embora tivesse duplicado sua capacidade de produção em 1992 (passando de 460 mil para 910 mil toneladas de eteno), com a partida da mais moderna planta em termos de tecnologia de base e controle energético em operação no país.

Central de matérias-primas e de utilidades, a Companhia deu início às suas atividades em 1978, na condição de estatal, única provedora up-stream de todas as necessidades em petroquímicos básicos do II Pólo Petroquímico Brasileiro, em Camaçari. A Companhia constitui-se na cabeça de uma cadeia de firmas petroquímicas, formando o principal complexo integrado de produtores do setor no Brasil. Ao longo de sua existência, a Companhia tem sido uma referência básica para a atuação das demais empresas no Pólo, seja em termos de política de desenvolvimento e incorporação de novas tecnologias, seja em termos de experiências de mudanças organizacionais, seja em termos das políticas de recursos humanos e de relações industriais. Suas iniciativas sinalizam formas de conduta para as demais empresas, particularmente no que concerne às possibilidades e aos limites de negociação das relações sindicais, sendo significativa sua força política junto ao sindicato patronal.

Para o Sindicato dos Trabalhadores, a Companhia tem sido, sem dúvida, um dos alvos privilegiados da atenção (e da atuação) política de seus dirigentes e militantes, seja pela sua capacidade de balizar limites para ação das demais, seja pelo seu porte e peso na afiliação sindical, seja por sua posição estratégica na organização da cadeia de produção no complexo. Para a indústria petroquímica brasileira, sua importância advém não apenas do fato de ser a principal produtora brasileira de petroquímicos básicos, mas do significado político do experimento de implantação do Pólo de Camaçari, por ela capitaneado.

Como os processos de reconfiguração da cadeia petroquímica e de abertura econômica do pós-90 afetaram a Companhia? Convém fixar algumas de suas especificidades com respeito a essa questão:

1. O processo de ajuste econômico atinge em cheio a Companhia, no início dos anos 90, provocando uma descontinuidade importante e transformando suas estratégias de gestão. Essas mudanças, na verdade, não advêm do mercado competidor internacional (ao qual a Companhia já reconvertera parte de sua produção desde o início dos anos 80); elas são, antes, conseqüência das novas formas de regulação adotadas pelo Estado brasileiro para o setor no pós-90, as quais, alterando as políticas de preço e de alíquotas de importação da nafta, afetaram a forma pela qual se exercia a competição no setor.

2. Conquanto privatizada desde 1979, permaneceu estreita a associação entre a Companhia e o Estado. Em primeiro lugar, porque a Petroquisa ainda se manteve entre os acionistas da empresa até 1995. Em segundo lugar, tendo importante participação acionária na holding Norquisa e nas empresas de segunda geração (proprietárias da Norquisa e ainda em processo de privatização), a Petroquisa, como maior sócia individual e principal orquestradora das políticas para o setor, manteve, até o governo Collor, uma enorme capacidade de influir na gestão da Companhia, que era importante ponta-de-lança para sua ação na petroquímica.

3. Desse modo, o início dos anos 90 constitui um momento de descontinuidade com relação à política da empresa, na medida em que se redefinem as condições indicadas nos dois tópicos acima. E isto, ver-se-á em seguida, tem fortíssimos impactos sobre suas estratégias de gestão, dentre elas a organização do trabalho e as relações industriais. Por isso mesmo, a análise assumirá o ano de 1990 como um corte importante de tempo para caracterizar as mudanças em nível micro.

4. Sem embargo, para entender a trajetória das relações industriais na Companhia, há que assumir a existência de um outro ponto de inflexão na sua história: o ano de 1985, quando ocorre a greve geral no Pólo de Camaçari. No transcurso e desfecho desse embate entre sindicato e gerências, a Companhia desempenhou um papel decisivo; por isso mesmo, finda a greve, o rescaldo dos conflitos marcou profundamente as relações industriais, que seguiram, como se verá, um outro curso na empresa.

Essas especificidades justificam, então, que se fixe a observação em dois momentos de tempo, que balizarão as descrições e as análises sobre a reestruturação das relações industriais e a reorganização do trabalho na Companhia, em especial, e na cadeia integrada de empresas de segunda geração de Camaçari, em geral:

• 1985-1990: quando se pode observar os efeitos da greve sobre a reconstrução das relações industriais. Nesse período, a organização do trabalho vê-se também afetada por dois outros fatores: (i) as mudanças introduzidas pela Constituição de 1988 (que afetaram o marco legal institucional que se refere às normas sobre o trabalho em regime de turnos, alterando a jornada de trabalho e levando a negociações a respeito); (ii) as mudanças tecnológicas que então foram introduzidas, especialmente no âmbito do controle de processo (SDCD's, controle otimizado etc.);

• 1990-1995: quando, em decorrência da abertura comercial e retirada do Estado antes descrita, tem lugar um intenso processo de "enxugamento" e reestruturação organizacional que altera os terrenos, as práticas e as formas de negociação das relações industriais, afetando não apenas o âmbito de requerimentos e perfis de qualificação, como a forma de seu gerenciamento.

Uma vista d'olhos, por rápida que seja, na trajetória das formas (estruturas, procedimentos e valores) de regulação das relações industriais na Companhia, chama a atenção do observador para as intensas mudanças que ocorrem nesse terreno. Elas abrangem:

• o plano da estrutura institucional: isto é, como se distribui na organização a tarefa de gerenciamento seja da organização e das relações de trabalho, seja da negociação das relações sindicais, seja de gestão da qualificação;

• o plano dos mecanismos: políticas em torno de benefícios materiais (como políticas de cargos, de mobilidade, de salários) ou políticas em torno de práticas simbólicas (como formas de denominar cargos, de diferenciar simbolicamente posições hierárquicas, de representar diferenças sociais em situações de intensa publicização, como as refeições ou transporte);

• o plano simbólico: emergência de novos valores que se expressam (i) na re-significação, para a Companhia, de seus diferentes espaços organizacionais (noção de asset/"ativos" organizacionais e redefinição da estrutura organizacional da empresa, baseando-a na concepção de "ativos"); (ii) nas novas representações sobre a chefia intermediária e a figura do "líder" ("Programa Chetur"); (iii) na importância das relações sociais tecidas nos cotidianos de trabalho para o gerenciamento da micropolítica fabril, fazendo face à ação de arregimentação do Sindicato de Trabalhadores e criando instâncias institucionais de representação de interesses coletivos que contornem a ação sindical; (iv) na construção de canais diretos de comunicação entre direção da empresa e pessoas (Programa "Canal Direto").

Qual a raiz dessas mudanças? Assumo, como dito, a existência de dois momentos de inflexão: um interno, que reflete as vicissitudes de uma modalidade de gestão do trabalho, e que culmina na greve de 1985; outro externo, que reflete as vicissitudes da dependência à política do Estado e que vulnerabiliza a empresa quando esta se altera sob o impacto da conjuntura internacional, que foi a abertura do mercado em 1990. De fato, as mudanças do pós-90 no âmbito das relações industriais parecem mais propriamente um aprofundamento no escopo e uma intensificação no ritmo de transformações que já haviam começado a se gestar a partir do final da greve em 1985. Nesse sentido, fatores micro, meso e macro jogam conjuntamente para configurar o quadro atual. Senão vejamos.

Conflito sindical e reestruturação da gestão do trabalho: A greve de 1985 e seus impactos sobre efetivos e qualificações

Qual o significado da greve de 1985 e qual o papel dos trabalhadores da Companhia nesse processo? Preliminarmente, convém salientar que, sendo ela a única fornecedora upstream, sua posição, estratégica perante a cadeia de produção intermediária, tornava a paralisação das suas unidades vital para o sucesso de qualquer movimento paredista. Isto porque, se a ação sindical, àquela época, tinha grande repercussão nos coletivos de trabalhadores, de um modo geral, em todas as firmas do complexo, ela era certamente desigual entre as firmas. Isto acarretava o risco de que uma greve deflagrada não se generalizasse na cadeia, pela heterogeneidade de força política nos diversos chãos-de-fábrica, a menos que se assegurasse que, pela parada de operação da central provedora de matérias-primas, mesmo as empresas menos mobilizadas pelo sindicato fossem levadas a suspender suas atividades, pressionadas por razões técnicas de provimento de insumos. E, para tanto, era vital parar a Companhia que, por sua centralidade na organização da cadeia, podia assegurar a generalização do movimento, pela via de algumas paradas "técnicas".

Viver essa experiência-limite de enfrentamento deixou marcas nos dois atores principais, até porque essa foi a primeira e única greve de trabalhadores que paralisou toda uma cadeia produtiva num complexo petroquímico brasileiro. Por isso mesmo, esta greve torna-se um momento de viragem nas relações entre gerências e trabalhadores, no complexo integrado como um conjunto, e na Companhia, em particular. Dou a palavra a dois intérpretes privilegiados desse momento: um dirigente sindical que foi, naquele momento, um dos principais líderes do movimento e que acompanhou, militando no sindicato, todas as transformações experimentadas pela empresa desde então; um dirigente da empresa que, estando desde então na Companhia, encarna hoje o processo de mudança organizacional por ela vivido e, nesse sentido, avalia a greve pelo que ela deixa de lições para a gestão do trabalho. As longas citações querem reter o significado do movimento, guardando toda a emoção da narrativa pelos que nele se envolveram.

...A gente achava pouco provável ter a greve em 84,3 mas de qualquer forma a gente fez um movimento, juntou duas turmas lá dentro, e a empresa reprimiu muito violentamente esse movimento em 84. E na época, uma frase que ficou conhecida, que um gerente de operações chegou a dizer que para parar a Copene precisava ter três culhões. O pessoal foi muito humilhado, o pessoal era extremamente humilhado, o pessoal de operação era tratado de uma forma extremamente discriminatória com relação ao pessoal do administrativo (...) e o tratamento era muito discriminatório. Tinha todo esse caldeirão de insatisfação, onde diversas reivindicações pequenas não eram atendidas, desde a alimentação que o pessoal recebia comida fria (... . As empresas costumam dizer que era afirmação do Sindicato pura e somente.

Evidente que tinha uma questão de afirmação porque a negociação vinha ao longo dos anos caindo em termos de concessão. É aquele negócio, o ladrão lhe ameaça e você diz a ele que está com a arma na cintura, se você nunca puxa e atira, ele vai perdendo o medo. E é o que acontecia com o patronato; a gente sempre dizia que ia fazer greve, mas nunca fazia (...). É evidente que ao longo do tempo as concessões em benefícios e salários começaram a decrescer, e isso dá para ver com relação ao salário. Quer dizer, o pico salarial da categoria é em 82, aí começa a cair. É evidente que só era ameaça de greve, e ela não acontecia; então o sindicato tinha essa coisa da afirmação, precisava disso para se afirmar, para elevar o patamar da negociação.

Mas independente da questão do sindicato, eu visualizo e eu participei (...) tinha uma afirmação dos próprios operadores. Era uma afirmação de dignidade, de ser humano, uma coisa que vem de dentro das pessoas; tanto é que a emoção tomou conta na hora da parada; vi pessoas chorando, se abraçando, todo mundo se abraçou na sala de controle,e chorando. Quer dizer, a fábrica parada e todo mundo se abraçando, chorando, jogando o capacete para cima; ou seja, houve uma comemoração daquilo, houve uma festa. Os operadores na época, o chefe chegava, porque o painel é marcado com uma listra amarela de distanciamento, o cara entrava aí: "Não! Respeite a linha amarela porque hoje quem está na direção sou eu." Teve muito dessas demonstrações de dizer "Olha! Hoje você me respeita porque agora quem está mandando na fábrica é a gente." E isso ficou muito claro.

Formalmente ficou definido que a gente ia entregar a empresa à direção da greve. A gente formulou, chamou o diretor da fábrica (...) e disse a ele: "A gente está decidindo parar a fábrica e estamos entregando ao seu comando, para você indicar as pessoas que vão comandar a parada aqui, e tal". Ele se negou a comandar, então a gente deu a ordem de parada. O pessoal começou a parar a planta; aí depois ele quis colocar as pessoas e a gente disse que não precisava mais, que a fábrica já estava mais da metade parada, e agora a gente ia assumir porque a gente começou. Se ele quisesse assumir desde o início tudo bem, mas como a gente já tinha começado a gente é que ia terminar a parada. Então todo mundo assumiu isso na hora, aqui quem manda agora sou eu, e não deixou o engenheiro encostar, não deixou o chefe encostar.

O mesmo cara que um ano antes disse que só parava quem tivesse três culhões, se ajoelhou, chorou, pediu ao pessoal pelo amor de Deus para não parar.

Então houve essa afirmação das pessoas, é como se dissesse: "Olha! Eu sou gente. E vai ter que me respeitar aqui porque senão..." Então houve muito isso, eu acho que a greve aconteceu, entre outros fatores, por causa desses elementos também.

Entrevista com dirigente sindical petroquímico.

Como o mesmo episódio é narrado e valorizado a partir da ótica da empresa? É o que se vê a seguir:

(...) 1985 é a ruptura nas questões de capital e trabalho; e essa ruptura ela é até hilária porque era uma época das melhores conquistas de capital e trabalho, as melhores convenções coletivas dos petroquímicos do Brasil se davam aqui na Bahia no Pólo, com o Sindiquímica; os melhores salários estavam naquela época.

Mas tem uma questão que eu vejo que foi chave nesse modelo: não era o concreto, era a questão do gerenciamento, estava ligado ao modelo de gestão. Eu acho que a nossa população gerencial, nosso corpo gerencial, naquela época, tinha um objetivo, todas as empresas do Pólo tinham um objetivo, que era produzir, dar a partida naquele grande projeto e as preocupações estavam voltadas nisso. 90% da nossa população é de engenheiros, nós somos uma empresa de engenharia, formada por engenheiros e isso não era uma dimensão que estava em sua mão, no dia-a-dia que você trabalhava. Falar numa questão concreta, o avanço do cronograma do projeto e etc. isso é fácil, mas em que isso está me impactando, como é que estou recebendo isso,(...) ... isso não passava. Então, foi um grande desencanto. Eu tinha alguns amigos que gerenciavam essa área de operação e a deflagração da greve foi uma verdadeira explosão. "Bom, como é que isso aconteceu comigo, como é que isso aconteceu com minha turma?". Essa coisa do coletivo não era muito forte, não existiam muitas bandeiras naquela época. Então o que se viu? Se viu o seguinte: não existia no corpo de executivos, primeiro, eu acho, uma maturidade. Como já existia no corpo executivo de São Paulo, que trabalha no ABC; o pessoal já tinha vivenciado isso várias vezes, o que na Bahia era uma coisa nova.

Não existia, inclusive não eram valorizados, não eram computados esses pequenos sinais do dia-a-dia como eram trabalhados e foi uma gota d'água, gotinhas e gotinhas que estourou o pote. E também a clareza do papel de você enquanto gerente, de que lado você está.(...) se perguntar a qualquer pessoa que trabalhou na Companhia há muito tempo, ela lembra muito claro essa época de 1985.

As relações de trabalho mudaram muito a partir daí. (...). Você conhece essa questão de obra, você já trabalhou em algum canteiro de obra? Canteiro de obra é uma grande comunidade e a Companhia aqui até 1985 era isso. Por exemplo: o diretor estava de bicicleta lá na obra, era aquele negócio, todo mundo se conhecia pelo nome e todo mundo falava com todo mundo, comia na marmita, era o mesmo barracão, era aquele negócio da comunidade.

Existe uma estratificação, um poder hierárquico, existe uma camada, existem dois lados, essa consciência dos dois lados é muito forte. (...) tanto que a partir de 1985 a gente começou a desenvolver um trabalho muito forte nessa questão do desenvolvimento gerencial, preparar as lideranças para conduzir essa grande força que tem na organização, que é a força de trabalho.

Nessa época, a gente começou a trabalhar; pegamos o que tinha de melhor a nível de consultoria, a nível de referencial de gestão e usamos; e culminou em 1988, quando adotamos a filosofia sociotécnica aonde se começou a trabalhar a questão da organização do trabalho, que, para mim, é a questão central, é a causa básica dessa quantidade de efeitos que existem por aí, ela está muito centrada na preparação do trabalho.

Entrevista com gerente da empresa

Pelo menos três medidas importantes resultam desse movimento paredista e alteram o formato micro da gestão do trabalho e das relações industriais:

(i) no plano institucional, ganha importância estratégica a área (e a equipe) de Recursos Humanos, a quem se delega a tarefa de ausculta e proposição de medidas para contornar os problemas que a greve havia evidenciado, notadamente fazendo face às dificuldades que se colocavam no plano da gestão do trabalho;

(ii) no plano dos procedimentos, introduzem-se mudanças importantes que visam recuperar o compromisso entre chefias intermediárias nos pisos-de-fábrica e direção da empresa, rompendo a solidariedade política das equipes técnicas que estava na base de arregimentação e possibilidade de paralisação da planta;

(iii) no plano dos valores, deflagra-se o combate à pouca sensibilidade gerencial, à excessiva demarcação simbólica das diferenças de status, empreendendo-se todo um conjunto de mudanças que atenuem as dificuldades de comunicação entre empresa e operadores.

Como esse novo contexto das relações industriais impactua sobre o plano das competências valoradas pela empresa, e como essas se expressam em novas normas de carreiras? Tomo como exemplo, aquele em que parece ser mais firme o ponto de contato entre política de relações sindicais e gestão do trabalho: o caso das iniciativas com relação à reestruturação da carreira de operador. Originadas na Companhia, como rescaldo da greve de 1985, essas mudanças difundiram-se posteriormente por todas as demais empresas de segunda geração da cadeia petroquímica do Pólo. Para ilustrar, passo novamente a palavra a um dos atores do processo:

(...) o operador III era um cara concursado e que tinha um cargo de chefia. O cargo, uma vez conquistado, era definitivo; ele não perdia mais o cargo, a não ser que fosse demitido. Não era uma função de confiança que a empresa delegava a ele; ele conquistava aquela posição (...)

(...) na greve de 85 quem, basicamente ¾ junto com as pessoas militantes ou mais conscientes, ou do sindicato ¾ viabilizou, de certa forma, e construiu a greve foram os operadores chefes, os operadores-chefes, os operadores III, tanto é que quase todos foram demitidos, foram os que puxaram a greve também. É evidente quando, dentro de uma hierarquia, o seu chefe está fazendo a greve, está no movimento, fica muito mais fácil puxar os outros.(...)

Em 87, tem as mudanças dos nomes das funções, deixa de ser operador I, II e III. (...), passa a ser operador, operador especializado e operador pleno. Essa carreira é ainda por concurso, por evolução profissional, mas o operador-chefe, na época o nome foi mudado de operador III para operador-chefe, esse operador-chefe passou a ser indicado pela empresa. Deixou de ser um cargo que se conseguia. Manteve-se a estrutura operador, operador especializado e operador pleno. O pleno corresponderia ao III, só que esse pleno não mais respondia como chefia. A empresa podia escolher um pleno, ou até um especializado, como em alguns casos, que tinha menos em formação profissional do que o pleno, para ser o operador-chefe. O que importa mais na escolha da empresa é a relação de confiança em relação à pessoa que está sendo escolhida

Entrevista com dirigente sindical.

Fica patente que, no pós-greve, a autoridade técnica deixava de legitimar a condição de chefia, até então resultante da maior senioridade na carreira de operador, consagrada numa prova de conhecimentos. A chefia passava a ser um ato de delegação de comando, uma prova de autoridade cedida pela hierarquia da empresa. Nesse sentido, ela devia demandar uma competência que não resultava da autoridade profissional, mas da confiança da Companhia. O "capital profissional" foi, por assim dizer, substituído por um "capital-confiança", alterando radicalmente o escopo das competências requeridas e mobilizadas pelos operadores para galgar o topo de sua carreira.

Essa nova geração de chefes, que dirigiria um coletivo marcado pela greve e por uma centena de demissões que a ela se seguiram, foi fortemente estimulada a integrar-se num novo pacto de interesses que visava unir empresa e trabalhadores, excluindo qualquer sorte de diálogo com o sindicato. Rompia-se, naquele momento, todo e qualquer resquício da gestão paternalista das relações industriais que marcara o tempo heróico da partida das unidades, o tempo das incertezas quanto a procedimentos. Para tanto, dois mecanismos importantes foram acionados: a simplificação das estruturas (especialmente as intermediárias) de comando e a circulação (e partilha) de funções gerenciais. Uma e outra tinham estreita relação com estrutura dos cargos e com a definição das competências para o trabalho gerencial qualificado.

A simplificação das estruturas de comando deu-se através de um enxugamento dos escalões hierárquicos vigentes até a greve de 1985. Tomemos como exemplo a produção de matérias-primas, mais exatamente uma unidade produtora como a Unidade de Olefinas, "coração" do processo produtivo numa empresa dedicada a gerar petroquímicos básicos. Na Companhia ¾ desde a partida da planta, em 1978, até a greve de 1985 ¾ vigorara uma estrutura de mando tal que compreendia nada menos que sete níveis hierárquicos que eram distribuídos desde o cume da chefia operacional (o superintendente da produção de matérias-primas) até o operador (de painel ou de campo), que estava na base da execução do controle do processo petroquímico. Destes sete níveis, nada menos que quatro (superintendente, gerente de produção, coordenador de turno e chefe de divisão) eram privativos de profissionais de nível superior, mais exatamente de engenheiros; outros três representavam chefias médias (supervisor de turno, chefe de turno, operador-chefe).

Era nítida a diluição da competência de comando sobre a equipe. Por um lado, comando técnico separava-se de comando gerencial, na medida em que era a competência técnica (avalisada pelo concurso) que habilitava um operador II ao cargo de operador III (até então, como se viu, operador-chefe). Sendo um chefe meramente técnico, não cabia ao operador III qualquer responsabilidade sobre o gerenciamento administrativo de sua equipe; desse modo, os alvos técnicos poderiam ser gerenciados com completa independência perante políticas de recursos humanos e de relações sindicais da Companhia. Já o gerenciamento dos quadros, por sua vez, diluía-se entre múltiplos níveis hierárquicos, estando um pouco com o chefe de divisão, um pouco com o supervisor de turno e um pouco com o chefe de turno; todos esses cargos requeriam competências e previam atribuições de gerenciamento administrativo das equipes de operação.

A experiência da insurreição dos operadores-chefes no momento da greve de 85 levou a Companhia a repensar a distribuição política da competência de comando do pessoal: direção técnica e direção administrativa passaram a se associar na figura do operador-chefe (desde então, um cargo de confiança). Já a sobreposição de mando intermédio, até então existente entre supervisor de turno e chefe de turno, resolveu-se com a eliminação do primeiro. Assim, as equipes de turno tornaram-se mais enxutas hierarquicamente e as competências técnicas e gerenciais passaram a estar presentes em todos os níveis daquilo que se define como chefia média.

Mas a greve de 1985 teve também um outro significado, muito importante para a política de pessoal, para a divisão do trabalho operacional e para a gestão da qualificação. Ela conferiu um atestado de maioridade à Companhia: maioridade não apenas política, mas também técnica. Isto porque, ela demonstrou que o corpo de funcionários operacionais era perfeitamente senhor do comando do processo, a ponto de subordinados ¾ com a completa autonomia que a insubordinação de uma greve lhes outorgava ¾ demonstrarem-se capazes de completar sem riscos um delicado procedimento de parada. Estava dado o sinal para o primeiro grande movimento de "enxugamento", que eliminou não apenas lideranças políticas mas, com elas, afastou uma importante fatia de sobre-efetivos, de "gorduras de pessoal", que fôra necessária, nos "tempos heróicos", enquanto se ganhava segurança no comando do processo de produção.

Este enxugamento foi notável, especialmente na base da pirâmide das equipes. Vejamos como ele ocorreu, ainda tomando o exemplo da Unidade de Olefinas, o "coração" da empresa. A produção de olefinas divide-se usualmente em três grandes fases, cada uma delas configurando três áreas de competências técnicas relativas à transformação petroquímica: a área quente (operação de fornos), a compressão de gases e a área de resfriamento. "Área quente", "compressão" e "área fria" (tal como tratadas no jargão dos cotidianos de trabalho no Brasil) comportavam, até 1985, equipes independentes. Cada uma delas contava com um operador-chefe, dois operadores de painel e um número elevado de operadores de campo (variando de 15 na área quente, 9 na compressão e 13 na área fria). Desse modo, até 1985, a unidade operava com nada menos que 46 operadores, sendo 3 do nível III (chefes), 6 do nível II (no comando dos painéis) e 37 do nível III (campo). O que muda no pós-greve? O número de operadores de campo cai abruptamente, chegando a 15 em 1989; verifica-se, com isso, uma redução de 60% dos trabalhadores nesse cargo em apenas quatro anos. Quem era o operador de campo e qual seu papel na divisão do trabalho operacional dentro do "coração" da fábrica? Nível inicial da carreira, recrutado, por isso mesmo, no mercado externo de trabalho, a ele cabiam as tarefas menos especializadas, dado que se concentrava nas chamadas "manobras" (aberturas e fechamento de válvulas, inspeção de equipamentos ), efetuadas fora (e sob determinação estrita) da sala de controle.

Como se produziu um enxugamento tal que tornou a equipe um conjunto 50% menor no transcurso de apenas quatro anos, passando de 46 para 22 membros? Dois movimentos convergentes: a senioridade das equipes operacionais no comando da planta (do que a greve foi, como disse, um atestado) denunciava que as "gorduras" operacionais4 tornavam-se supérfluas. Tais gorduras, significativamente, localizavam-se no trabalho de inspeção de campo, exatamente ali onde a habilidade de sensoreamento humano do processo (e de seus riscos) parecia mais necessária, enquanto não se tinha segurança nos procedimentos técnicos de controle automatizado.

Isto nos leva ao segundo movimento: na segunda metade dos anos 80 a Companhia também investe em melhorar a precisão de sua tecnologia de controle de processo, dimensão-chave da operação numa planta petroquímica, introduzindo o chamado Sistema Digital de Controle Distribuído (o SDCD). As malhas instaladas melhoravam a qualidade do controle, ao tempo em que punham à disposição dos operadores mais informações sobre a transformação química em curso, informações essas que advinham agora a tempo real.

Quais os efeitos desses dois movimentos? Os ganhos de qualificação e a maturidade operacional das equipes somavam-se à maior confiabilidade do processo, agora melhor controlado pela tecnologia de controle digital distribuído. Com isso, não apenas foi possível reduzir à metade o pessoal, mas alterar de maneira importante a divisão do trabalho, com efeito sobre as competências requeridas. Primeira mudança importante ¾ e pioneira em termos da reestruturação organizacional em plantas similares: as três áreas clássicas de competências foram reduzidas a duas: área quente e área fria; nesta última passaram a se incluir as competências para comando do processo de compressão. Isto significa que a nova ferramenta de controle de processo passou a permitir que um mesmo operador pudesse operar duas áreas antes operadas de modo estanque, estabelecendo-se um espaço de polivalência no exercício da atividade operatória.5 Certamente, essa ampliação do espaço de conhecimentos sobre o processo químico de transformação e a concentração de duas antigas fases em mãos de um mesmo (e menor)6 grupo de operadores tornavam-se possíveis dada a nova qualidade da tecnologia de controle de processo, geradora de maior confiabilidade no processo.

As novas competências envolvem não apenas um maior conhecimento da transformação físico-química (agora supervisionada num âmbito mais extenso), como a maior capacidade de abstração (nítida na transição da figuração via painéis para a figuração ainda mais abstrata via telas de controle no computador) e a permeabilidade ao trabalho em interface com computadores. Mesmo as interações entre operadores e pessoal de manutenção ganham uma nova característica com o advento da instrumentação digital. Ademais, o próprio enxugamento de níveis hierárquicos, numa conjuntura de renovação de tecnologia de controle de processo, estimulavam um maior diálogo entre operação e engenharia, na configuração dos novos equipamentos e na fixação dos procedimentos operacionais.

São essas mudanças (no tamanho dos efetivos, na estrutura das carreiras, nos níveis hierárquicos e nas competências requeridas) mero reflexo de mudanças técnico-organizacionais? Defendo aqui que não; e nesse ponto destaco a importância de contextualizarmos o estudo da qualificação no marco das mudanças nas relações industriais e nas formas de negociação do uso do trabalho. De fato, outras empresas do complexo petroquímico brasileiro também renovavam, no mesmo periodo, sua tecnologia de controle de processo. E nem por isso as mudanças na organização do trabalho e nas competências (técnicas e gerenciais) requeridas se aproximavam ao que se alcançou na Companhia. Estudo realizado nas duas únicas outras plantas brasileiras, em posição similar na cadeia petroquímica (e, por isso mesmo, localizadas nos dois outros pólos petroquímicos nacionais, mas com presença sindical muito menos ponderável e mais presas aos ditames das regras da burocracia governamental), mostrou que a renovação tecnológica dava-se num estilo muito mais conservador, preservando a antiga organização do trabalho e deixando intocadas carreiras e competências (Castro e Guimarães 1991). E por que tal não se verificou na Companhia? Acredito que a resposta nos deve deslocar outra vez para o plano das relações empresa-sindicato.

Nele, o confronto ocorrido em 1985 teve como resultado forjar um novo valor, que passou a marcar a estratégia da Companhia a partir de então. Ele é assim enunciado por um de seus mais altos executivos ao rememorar aquele momento:

A nossa, digamos, talvez principal estratégia nessa área é ¾ isso depois foi-se desenvolvendo através de diversas práticas, de diversas táticas, de diversos programas, de diversos caminhos ¾ talvez a principal estratégia durante esse período tenha sido simplesmente o seguinte: Nós não podemos deixar nenhum espaço vazio, porque qualquer espaço que for deixado, vai ser ocupado pelo sindicato. É o que nós temos feito durante todo esse tempo: não deixar nenhum espaço para o sindicato atuar. Porque é exatamente nesses espaços vazios que eles agem e, um dos principais espaços vazios que a gente tinha era esse em que as coisas não se comunicavam, as pessoas que lidavam diretamente com o trabalhador de turno, essas pessoas não faziam esse meio-de-campo. Porque o trabalhador de turno, ele já se sente um pouco distante da administração. ( ) eles trabalham no mesmo regime administrativo, vamos dizer assim, só 4 ou 5 dias a cada 25 ou 30. Então, durante esses 4 ou 5 dias a cada 25 ou 30 é que você tem oportunidade de interagir mais fortemente com eles. Durante o resto do período eles estão, digamos assim, isolados, só estão eles aqui dentro e, a área administrativa, o pessoal que coordena a produção e que lidera os programas de trabalho que eles executam, não estão presentes. Eles já se sentem, digamos assim, deslocados. Se você, durante as poucas oportunidades que tem não interage muito fortemente com eles, esses espaços vão ser ocupados por outras pessoas.

Entrevista com dirigente da Empresa

A gestão do trabalho num contexto de desproteção estatal e aberta competitividade: Efetivos e qualificações sob o desafio das políticas de produtividade, qualidade e custos (1990-1995)

O que muda em 1990? A estratégia de negócio, traço essencial ao perfil e cultura gerencial da empresa. Ora, naquele ano a Companhia apresentou, pela primeira vez em toda sua história, um resultado negativo, ausência de lucros, "fechando no vermelho". Ela, que até 1990 se submetia à política do CIP ¾ Conselho Interministerial de Preços ¾ sendo uma mera "espectadora do mercado", como diria um dos entrevistados, percebe que a competição internalizara-se no seu espaço econômico. As alíquotas de importação, que sempre se localizavam em torno de 35%, passaram a cair vertiginosamente a partir de 1990, alcançando 14%, em 1993, e 2% no primeiro semestre de 1994.

Até então, o controle estatal dos preços fizera com que nem o gerenciamento do negócio pudesse se desenrolar com muitos graus de liberdade com relação aos custos. Dito de modo mais direto: o preço do produto refletia o custo arbitrado; e esse ¾ assim mandava a boa prática da proteção estatal ¾ era sempre igual ao custo do pior produtor na cadeia no Brasil, via de regra a central de matérias-primas de São Paulo. Nesse sentido, a Companhia contava sempre com uma enorme margem de manobra na sua estratégia de negócios. No momento em que as alíquotas se reduziram e outros produtores passaram a colocar seus produtos a preços de custo, havia que internalizar a capacidade de administrar custos, aprofundando vantagens comparativas.

Para tornar ainda mais imperiosa essa pressão, a Companhia, como toda e qualquer produtora de commodities, sabia que sua chance de liderar o mercado não era definida por inovações em produto, mas por uma liderança operacional que se expressaria em maior confiabilidade operacional, custos competitivos e capacidade de preservação ambiental (igualmente decisiva para a imagem social do produtor petroquímico hoje). Diante desse quadro, os anos 90 desafiaram a Companhia a erigir um novo valor na sua estratégia interna de gestão: o valor da estratégia empresarial internamente compartilhada para assegurar liderança em custos.

Essa nova estratégia possuía algumas conseqüências importantes no gerenciamento do trabalho, todas elas ligadas à urgência da nova visão que valorizava o desempenho operacional e a liderança em custos. Que impactos resultam, por exemplo, da busca contínua de melhoria no desempenho operacional? No ponto de partida dessa busca estava o suposto de que, se a política tecnológica não se volta para desenvolver produtos (mas garantir a permanente atualização tecnológica, aperfeiçoando-lhe o processo e seu controle), torna-se um valor, que informará às novas práticas gerenciais, a necessidade de permanente avaliação dos impactos da mudança técnica. Esta, sem dúvida, vai mais além da mera incorporação de novidades tecnológicas; ela se torna impossível sem a incorporação do conhecimento e da experiência dos que operam concretamente os processos. Nessa linha, a Companhia inaugura um Programa de Idéias, voltado para maximizar iniciativas de melhoria do processo.

Que impactos, para o gerenciamento do trabalho, resultam, por exemplo, do alvo de liderança em custos? Na busca por expurgar todo custo que não se vincule à essência, ao cerne do negócio, a Companhia passa a suprimir todo e qualquer trabalho ao qual não seja capaz de agregar tecnologia, subcontratando-o a terceiros. É poderoso o movimento de terceirização que passa a ter lugar, deslocando para fora da gestão direta da Companhia funções não apenas classicamente laterais à produção petroquímica (como limpeza, alimentação, segurança patrimonial, vigilância...), mas tarefas centrais, como as de manutenção. Várias conseqüências importantes se colocam, seja para a gestão do trabalho, seja para a gestão das relações sindicais.

A primeira delas é a redução significativa dos efetivos diretamente contratados, da qual apresentamos números anteriormente. A segunda diz respeito aos problemas gerenciais repostos pelas políticas dos contratantes: a Companhia sabe, hoje, que a mera mudança de responsabilidade contratual não elimina preocupações com a gestão do trabalho, na medida em que os contratantes, via de regra, mantêm políticas de sobre-efetivos, têm baixa capacidade tecnológica e reproduzem antigos problemas de gerenciamento do trabalho em condições de precarização; tudo isso afeta as metas da empresa em termos de sua política de resultados. Ou seja, seu leque de fornecedores ainda dista muito de suas próprias características de gerenciamento do trabalho; do que se depreende que os efeitos virtuosos, que porventura tenhamos descrito na reestruturação desta empresa, não se propagam pelos fornecedores em direção aos quais vêm externalizando tarefas; e isto é reconhecido pelos seus próprios escalões gerenciais. Finalmente, a terceirização parece ter tido claras conseqüências políticas: se ela coloca uma importante bandeira de cunho social nas mãos do sindicato, ela lhe retira os quadros que poderiam prover maior número de trabalhadores afiliados em sua base, para legitimá-lo.

Acontecem pressões não só porque a demanda interna cai, mas porque aumenta, substancialmente, a possibilidade de importar produtos a baixo preço. Isso gerou, nos anos de 91 e 92, uma crise extremamente forte na indústria petroquímica. As empresas tiveram que se adaptar de uma forma muito rápida a essa nova situação. E, eu acho, que isso... a crise foi tão forte, que não houve nenhum poder de reação por parte dos trabalhadores. As empresas simplesmente não tinham, àquela altura, alternativa que não fossem se tornarem extremamente produtivas, extremamente competitivas; embora, o fator mão-de-obra não seja na indústria petroquímica um elemento de custo relevante, digamos assim, as empresas tiveram que fazer esforços, eu diria, dramáticos em todas as áreas, inclusive na área de pessoal. E, aí, veio uma onda muito grande de terceirização e, veio com tal força, com tal velocidade que no meu modo de entender os sindicatos não tiveram nenhuma chance de reação, o movimento foi extremamente forte, o esforço de adaptação extremamente rápido e, com isso, a impressão que eu tenho é que o Sindicato dos Trabalhadores ¾ que já tinha levado uma trombada forte em 1985 ¾ de lá prá cá as coisas mudaram muito, mas, de 90 em diante mudaram mais ainda.

Entrevista com diretor da empresa.

A mudança é de tal ordem que ela impactua fortemente no plano da própria concepção organizacional da empresa. Sua estrutura organizacional se transforma. Qual a novidade dessa mudança e como ela impactua na gestão das relações de trabalho? Passo a palavra, outra vez, a um de seus dirigentes, para quem a novidade

( ) foi organizar as coisas de baixo para cima. A organização é de baixo para cima, a partir dos ativos que você tem que tornar mais eficientes e produtivos. Quais são os ativos que nós temos? Nós temos plantas de olefinas, plantas de aromáticas, plantas de utilidades, um bruto sistema de distribuição e estocagem de produtos e utilidade; então, são esses ativos que nós temos que tornar o mais produtivos, possível. Então, se vem organizando, fazendo toda a organização do processo produtivo de baixo para cima. E não de cima para baixo.

E, outro ponto característico dessa organização, é que as equipes que têm como responsabilidade tornar esses ativos o mais produtivos possível, essas equipes têm que ser autônomas até o limite de não haver ociosidade; elas têm que ter recursos de produção, engenharia de processos, coordenação da produção, manutenção e engenharia de modificações da planta da maneira a mais autônoma possível ¾ de baixo para cima.

Entrevista com dirigente da empresa

Tais mudanças ocasionaram como conseqüências imediatas, um enxugamento da estrutura com uma nova e importante redução nos níveis na hierarquia,7 agora atingindo a alta gerência da empresa. A este enxugamento seguiu-se a adoção do procedimento de rotação das funções gerenciais, fazendo circular gerentes entre áreas antes jamais intercambiáveis. Ao lado disso, buscou-se implementar programas voltados para assegurar, pela via da multifuncionalidade da ação, contínua melhoria nos procedimentos de gestão. Ou seja, premida pela necessidade de ajuste às novas condições de competição (não mais política com o sindicato, mas econômica num mercado mais desregulado e desprotegido), a empresa repensa o perfil e a alocação das competências gerenciais de seus quadros.

Concretamente, quais foram os novos procedimentos de gestão que surgiram ao redor dessa nova filosofia operacional? Seis aspectos constituem, para a Companhia, o carro-chefe das mudanças na gestão de seus efetivos. Caracterizarei brevemente cada um deles em seguida.

Um primeiro aspecto refere-se à ênfase no trabalho em grupos. A Companhia passou a ser dividida em "equipes". No topo da hierarquia das equipes (e, como tal, no topo da nova estrutura organizacional da empresa) estão as equipes das unidades de produção, consideradas, como vimos, os "ativos" principais da Companhia. Cada um dos teams que encabeça uma unidade de produção final, passou a ter em torno de si um outro team de apoio, multifuncional, envolvendo desde as funções técnicas (como manutenção, por exemplo), até as antigas funções administrativas (como gerenciamento comercial, por exemplo). Assim, uma equipe (como a daquela unidade de olefinas que vim utilizando como exemplo) arregimenta e integra desde seus operadores de campo (agora somente 13, em vez dos 15 que existiam no final dos anos 80) até seus economistas, que atualizam permanentemente a chefia da unidade com as informações acerca do mercado comprador e do perfil da concorrência.

( ) antigamente, o que se fazia era operar, produzir, não se preocupava com orçamento; havia outros órgãos da empresa que se preocupavam com isso, enquanto a gente estava gastando; não existia uma gestão, nenhum sentido de contribuição de recursos, a gente nunca tinha feito um plano de orçamento, tinham outros setores que faziam para nós...

Entrevista com chefe de Unidade de Produção

Desnecessário dizer que os ocupantes de antigas áreas e cargos técnicos necessitam, agora, desenvolver novas competências, de natureza eminentemente dialógica, para sobreviver num ambiente organizacional onde torna-se decisiva a troca de informações entre escalões e portadores de conhecimentos, que antes não interagiam diretamente. Competências técnicas mas, sobretudo, competências atitudinais tornam-se vitais nessa nova ordem.

Então, um exemplo disso aí: nós estamos discutindo investimento; investimento para o conjunto da Companhia, que vai se distribuir através do lucro do ativo. Então, estava para definir uma ordem de prioridades; para mim, é fácil definir prioridades quanto a nossos ativos; agora, como eu priorizar com relação a aromáticos? E com relação a utilidades? Temos que chegar a um consenso entre nós, dos diferentes ativos, para chegar a isso, não é? E, para isso, eu tenho que esquecer de pensar só na olefinas e começar a pensar de uma forma mais ampla no âmbito da Companhia. O que é que é mais importante num investimento? Será que tem coisa mais importante [que o meu pretendido investimento]? Tenho que deixar um investimento que eu achava mais importante para trás...

Entrevista com chefe de Unidade de Produção

O gerenciamento das equipes pretende estar fundado nos procedimentos de autocontrole. Exemplo mais banal (mas nem por isso menos chocante para o dia-a-dia autoritário das empresas brasileiras) foi a eliminação do cartão de ponto. Significativamente, a nova forma de produzir decisões e controlar o cotidiano parece estar produzindo uma nova institucionalidade interior da Companhia; uma institucionalidade virtual, se considerarmos que ela existe à margem da estrutura formal da empresa. Assim, os ativos se organizam em comitês, que se reúnem semanalmente. As unidades de produção, por sua vez, têm líderes. As grandes decisões, como políticas de investimento, planos de treinamento, supõem a formação de consenso entre os líderes dos diferentes ativos, num fórum de 12 representantes, três para cada um dos quatro ativos principais da Companhia.

Esta nova estrutura de gerenciamento do cotidiano, que de um ponto de vista meramente formal poderia ser considerada uma estrutura "virtual", tem uma eficácia decisória que não somente preenche espaços de formação de vontade técnico-administrativa na empresa, como pode vir a competir fortemente com a capacidade de percepção de problemas, de formação de interesses e de encaminhamento de demandas, que antes era privativa do sindicato. Ela estaria, por assim dizer, preenchendo espaços vazios que, na sua ausência, tenderiam a ser ocupados pela organização sindical.8

Um segundo carro-chefe nas mudanças na política de gestão do trabalho diz respeito à redução dos mecanismos que marcavam, no cotidiano e de forma desnecessária, diferenças de status. Dentre essas, destacam-se as diferenças de cores dos crachás segundo a hierarquia, diferenças nos restaurantes (desde algum tempo unificados), diferenças nos valores das diárias em serviço etc.

Um terceiro traço diz respeito mais de perto ao tema das competências. A Companhia passou a propugnar pela redução das tarefas "pobres" em conteúdo, destinando-as, preferencialmente, a trabalhadores terceirizados. Isto chama a atenção para o fato de que, na organização da cadeia produtiva ¾ e, por extensão, das redes interfirmas na petroquímica ¾, dois tipos de clientes (e de estatuto) parecem se erigir. Por um lado, o cliente cuja relação com a central poderia se denominar "virtuosa"; ele é tipificado pelas empresas capital intensivas, também petroquímicas, mas de geração intermediária, compradoras da produção básica de nossa empresa-caso. Estas compradoras de segunda geração tendem a reproduzir as práticas de gestão moderna que documentamos no caso da primeira geração (carreiras mais permeáveis a critérios de mobilidade por desempenho, estabilidade dos trabalhadores "sobreviventes" ao ajuste, esforços por valorizar e premiar desempenho e competências adquiridas, estrutura organizacional mais plana com redução de níveis hierárquicos ).

Por outro lado, existiria um outro tipo de relação interfirmas, tecida também ao interior do complexo, mas, diferentemente do caso anterior, ao interior da Companhia. São as suas fornecedoras terceirizadas de serviços, empresas trabalho intensivas, classificadas em outros setores que não o setor químico (metalúrgico, por exemplo, no caso da manutenção). Aos trabalhadores dessas empresas, destinam-se as tarefas "pobres" por seu conteúdo de qualificação, ou instáveis, pelo caráter episódico da intervenção (como é o caso da manutenção durante as paradas técnicas). A força de trabalho empregada nestas tarefas nem de longe está afeita às características da gestão moderna das empresas petroquímicas. Uma evidência das desigualdades entre os dois contingentes (que, por vezes, dividem durante longos períodos o trabalho nas plantas da empresa) pode ser encontrada nas condições de escolarização: enquanto os operadores petroquímicos, por exemplo, possuem hoje, em sua ampla maioria, segundo grau completo, com formação técnica especializada, os trabalhadores "terceirizados" com freqüência não possuem mais que a escolarização primária (Agier, Castro e Guimarães 1995).

Uma quarta novidade da política de gestão do trabalho diz respeito aos requisitos de qualificação para postos de chefia técnica: passou-se a admitir que o acesso a funções como a de líder, por exemplo, possa resultar do desempenho profissional mais que do mero grau escolar. Esta dissociação entre qualificação e credencial escolar teve resultados inovadores e de alcance destacável (dadas as práticas vigentes no setor); ao associar mobilidade a experiência e desempenho profissionais, a Companhia passou a admitir que, mesmo cargos até então privativos de engenheiros, como as chefias de unidades de processo, pudessem ser dirigidos por trabalhadores sem formação universitária.

Paralelamente, a empresa colocou em ação um intenso programa para qualificação de chefias intermediárias na operação (Projeto Chetur), voltado para dar-lhes função gerencial, treinamento em relações de trabalho e constituição de um quadro funcional potencial de chetur's, que possa dirigir os grupos de melhoria, ainda em implantação.

Uma quinta inovação refere-se à constituição dos comitês de gestão da produção e ao desenvolvimento de uma política de avaliação comparativa de desempenho. A questão da avaliação pelo desempenho e pela premiação pelo uso de competências valoradas pela empresa tem sido um dos "calcanhares-de-aquiles" da reestruturação das empresas brasileiras. Se os prêmios de produção eram acenados pelas empresas, como forma de estimular o compromisso dos trabalhadores, a legislação do trabalho brasileira permitiria, muito facilmente, que parcelas variáveis dos salários pudessem ser judicialmente incorporadas às partes fixas, negociadas junto aos sindicatos, eliminado assim o artifício da premiação por produtividade. A introdução da legislação governamental de participação dos trabalhadores nos lucros e resultados das empresas (PLR) é um primeiro sinal para que se venha a romper as práticas correntes. Da forma como instituída, a chamada PLR permite às empresas constituir comitês de negociação nos quais os sindicatos não são parte necessariamente representada. No caso da Companhia, a avaliação comparativa de desempenho avança em direção a estabelecer critérios de mensuração e de atribuição de ganhos de produtividade a equipes da empresa, o que se constitui num desafio em se tratando de processos contínuos onde o trabalho humano não apenas tem um caráter supervisório (sobre processos automatizados), como se desenvolve em equipe.

Um sexto aspecto da nova política para os recursos humanos diz respeito diretamente à questão do gerenciamento da qualificação. A Companhia começava, no momento do trabalho de campo, a implementar um novo plano de carreira, assim chamado por "competências e habilidades", envolvendo mudanças profundas na nomenclatura, no conteúdo dos cargos e no perfil das carreiras, adequando-as ao novo formato da gestão da empresa. Nesse novo plano de carreira, as chances de mobilidade ocupacional tornam-se maiores, ultrapassando os antigos limites das lotações dos cargos, uma das maiores fontes de insatisfação entre os empregados. Tais mudanças estão estreitamente vinculadas ao processo de busca de certificação ISO, especialmente no que diz respeito a: (i) socialização de conhecimentos via equalização de processos, (ii) intenso incremento dos treinamentos (hoje alcançando 60 horas por empregado, contra 40 horas dois anos atrás), (iii) integração dos sistemas de gerenciamento administrativo e industrial, (iv) simplificação administrativa, (v) gerenciamento do processo com vistas a otimização gerencial e eliminação de toda sorte de tarefa que não agregue valor.

É interessante ressaltar, que todas essas mudanças no campo do gerenciamento do trabalho e das qualificações se fizeram de modo concomitante com a desativação do órgão ao qual estavam tradicionalmente afeitas as questões relativas à política de recursos humanos. Na verdade, o aparente paradoxo resolve-se quando se tem em conta que surge um novo pólo de gravidade para onde se deslocam as decisões institucionais com respeito à matéria: o Programa de Qualidade. A ele passa a estar deferida a concepção, animação e implementação daquilo que a empresa considera a porção "nobre" da gestão de seus recursos humanos ¾ reorganização do trabalho em equipe, política de treinamento, plano de carreira por habilidades e política de incentivos ao desempenho. Todos esses temas passaram a incluir-se no marco do programa de qualidade da Companhia. Em torno dele, erige-se mais um pilar daquela "nova institucionalidade", à qual fiz referência anteriormente.

A empresa passa a ser cortada, então, do topo à base de suas decisões técnicas, por uma nova estrutura organizacional, aparentemente eficaz na tomada de decisões, conquanto escape por completo ao que é normativamente regulado. Ela é o esteio do esforço por formar uma nova comunidade de interesses, por fabricar um novo consenso, erigido com base em uma também nova institucionalidade; dela estavam igualmente distantes, no momento do trabalho de campo, tanto a diretoria da empresa (seu Conselho de Acionistas sequer acompanhava tais mudanças), quanto o Sindicato dos Trabalhadores. Uma rápida mirada nos seis pontos que formam a espinha dorsal da nova política de gestão do trabalho faz sobressair o lugar da qualificação na manufatura deste novo consentimento: dos seis instrumentos de ação, nada menos que cinco dizem diretamente respeito à produção, ao acompanhamento, à premiação e ao gerenciamento de novas competências que o imaginário gerencial entende necessárias a soldar a nova realidade das relações sociais na Companhia.

Notas

Skills and restructuring of industrial relations: A new bargaining instrument?

ABSTRACT: This article deals with the rol of managerial policies on training and skills in contexts of instable institutional conditions (like market overture, new state regulations related to privatization processes, and changing patterns in industrial relations). I argue that, under these conditions, consent negotiation relies upon manipulation of institutional resources for negotiating qualification policies toward the core labor force. Empiral analysis takes into account the experience of market deregulation, privatization and restructuring of industrial relations in Brazilian petrochemical industry.

Bibliografia

Referências bibliográficas

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  • 1
    . Esse estudo foi realizado graças ao apoio proveniente de dois financiamentos. O primeiro deles foi concedido entre 1995 e 1997, pela Finep e Cnpq, para que o Cedes, o Cebrap e a UFBa executassem a pesquisa que coordenei, intitulada "Qualificação, mercados e processos de trabalho: Estudo comparativo no complexo químico brasileiro". O segundo foi concedido ao Cebrap, em 1995¾1996, para que ali se desenvolvessem alguns dos estudos de caso previstos no Projeto Universidade de Bremen/Fundação Volkswagen, "Transformación Económica y Trabajo en América Latina". Na obtenção dos dados aqui apresentados contei com a colaboração decisiva dos seguintes assistentes de pesquisa financiados pelo programa de bolsas do CNPq: Ana Cristina Andrade, Edson Valadares, Martha Maria R.R. dos Santos, Mônica Ramos Rocha, Nereida Mazza Espírito Santo, Priscilla Andreatta Rosa da Silva, Sandra Maira Oliveira e Sandro Augusto Santana, a quem agradeço
  • 2
    . No sentido dado por Burawoy (1982, 1985) de conjunto de instituições que, a um só tempo, resultam do cotidiano das relações sociais na produção e presidem a produção dessa micropolítica, regulando-a.
  • 3
    . Aqui o sindicalista refere-se à mobilização de 1984, uma greve localizada que antecede a greve geral de 1985, mas que lhe parece importante para compreender-se o decurso dos acontecimentos no ano seguinte.
  • 4
    . Até então justificadas por necessidades de segurança e estabilização do processo em uma planta de recente instalação.
  • 5
    . Em texto anterior, no momento mesmo em que esse processo transcorria, chamei a atenção para o fato de que a renovação tecnológica trazida pelos SDCD's punha nas mãos dos operadores uma quantidade tão maior de informações sobre o processo que, mais dia menos dia, permitiria às empresas integrar conhecimentos de áreas antes estanques em termos do trabalho operatório, em torno de um mesmo trabalhador; a Companhia confirmou esta possibilidade tendo sido, talvez, a primeira empresa brasileira a avançar no sentido dessa que chamáramos, então, "uma fronteira de qualificação" (Castro e Guimarães 1991).
  • 6
    . Enquanto as antigas áreas "fria" e de "compressão" mobilizavam quatro operadores de painéis em total, dois em cada uma delas, a nova área "fria", enriquecida com mais tarefas, passou a mobilizar apenas três operadores. A emergência do controle por terminais de computador certamente deve ter facilitado esse enxugamento.
  • 7
    . Dos 180 órgãos existentes até 1990, passou-se a 48, estando hoje a estrutura hierárquica formada por apenas três diretores, 8 gerentes e 37 líderes de equipes (
    teams).
  • 8
    . Tomo como exemplo um episódio que antecedeu em alguns meses o início do trabalho de campo e que ainda repercutia quando cheguei à Companhia. Pouco afeitos a organizar a vida numa conjuntura de inflação controlada, os trabalhadores haviam assumido, após o plano de estabilização econômica, níveis de endividamento que seus salários não podiam suportar. Instalado um clima de ansiedade entre os mesmos, coube aos líderes de equipe reconhecer o problema e negociar com a empresa soluções que antes cairiam na esfera da representação do sindicato: alteração no calendário de pagamento de salários, negociação de antecipações, negociação de empréstimos bancários a juros facilitados etc.
  • *
    Pesquisadora do Cebrap ¾ Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia. E-mail: <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2001
    • Data do Fascículo
      Dez 1997
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