Resumos
O presente artigo visa abordar as novas configurações das políticas culturais e algumas de suas implicações nas políticas e práticas educativas contemporâneas. No plano de uma análise sociológica, sobretudo ao considerar a hipótese do declínio da institucionalidade moderna da escola e reconhecer a ampliação e diversificação das políticas culturais, particularmente a partir da gestão Gilberto Gil, o autor pretende verificar os agenciamentos formativos que perfazem as ações e políticas culturais brasileiras. Considera, ainda, que tais agenciamentos redefinem as relações entre os atores e as instituições, tanto quanto são orientados por objetivos situados entre as expectativas de retorno social e de formação para a cidadania.
Políticas culturais; Agenciamentos; Educação; Cidadania
This article aims to address the new configurations of cultural policies and some of its implications for contemporary educational policies and practices. From a sociological analysis perspective, especially when considering the hypothesis of the decline of the modern institutionality of the school and recognizing the expansion and diversification of cultural policies, particularly as from Gilberto Gil's administration as Minister of Culture, the author intends to investigate the formative agencies that make up the cultural actions and policies in Brazil. The article also considers that those agencies not only change the relationships between actors and institutions, but are guided by goals situated between the expectations of social return and citizenship training.
Cultural policies; Agencies; Education; Citizenship
Cet article vise à répondre aux nouvelles configurations des politiques culturelles et de certaines de ses implications pour les politiques et les pratiques éducatives contemporaines. Dans un plan d'analyse sociologique, surtout lorsque l'on considère l'hypothèse de la baisse des institutions modernes de l'école et de reconnaître l'expansion et la diversification des politiques culturelles, en particulier de la gestion Gilberto Gil, l'auteur a l'intention d'enquêter sur les agencement formatifs qui constituent les actions et les politiques culturelles au Brésil. On estime encore que tels agencements redéfinissent les relations entre les acteurs et les institutions et aussi qui sont guidés par des objectifs situés entre les attentes de retour social et de la formation à la citoyenneté.
Politiques culturelles; Agencement; Education; Citoyenneté
ARTIGOS
Educação, cidadania e agenciamentos formativos nas políticas culturais brasileiras
Education, citizenship and formative agencies in brazilian cultural policies
Éducation, citoyenneté et agencements formatifs dans les politiques culturelles au Brésil
Rodrigo Manoel Dias da Silva
Curso de Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Erechim (RS) - Brasil. Contato com o autor: <rodrigoddsilva@hotmail.com>
RESUMO
O presente artigo visa abordar as novas configurações das políticas culturais e algumas de suas implicações nas políticas e práticas educativas contemporâneas. No plano de uma análise sociológica, sobretudo ao considerar a hipótese do declínio da institucionalidade moderna da escola e reconhecer a ampliação e diversificação das políticas culturais, particularmente a partir da gestão Gilberto Gil, o autor pretende verificar os agenciamentos formativos que perfazem as ações e políticas culturais brasileiras. Considera, ainda, que tais agenciamentos redefinem as relações entre os atores e as instituições, tanto quanto são orientados por objetivos situados entre as expectativas de retorno social e de formação para a cidadania.
Palavras-chave: Políticas culturais. Agenciamentos. Educação. Cidadania.
ABSTRACT
This article aims to address the new configurations of cultural policies and some of its implications for contemporary educational policies and practices. From a sociological analysis perspective, especially when considering the hypothesis of the decline of the modern institutionality of the school and recognizing the expansion and diversification of cultural policies, particularly as from Gilberto Gil's administration as Minister of Culture, the author intends to investigate the formative agencies that make up the cultural actions and policies in Brazil. The article also considers that those agencies not only change the relationships between actors and institutions, but are guided by goals situated between the expectations of social return and citizenship training.
Key words: Cultural policies. Agencies. Education. Citizenship.
RÉSUMÉ
Cet article vise à répondre aux nouvelles configurations des politiques culturelles et de certaines de ses implications pour les politiques et les pratiques éducatives contemporaines. Dans un plan d'analyse sociologique, surtout lorsque l'on considère l'hypothèse de la baisse des institutions modernes de l'école et de reconnaître l'expansion et la diversification des politiques culturelles, en particulier de la gestion Gilberto Gil, l'auteur a l'intention d'enquêter sur les agencement formatifs qui constituent les actions et les politiques culturelles au Brésil. On estime encore que tels agencements redéfinissent les relations entre les acteurs et les institutions et aussi qui sont guidés par des objectifs situés entre les attentes de retour social et de la formation à la citoyenneté.
Mots-clés: Politiques culturelles. Agencement. Education. Citoyenneté.
Apresentação
Na última década, os estudos desenvolvidos sobre as políticas culturais apontam para seus novos objetivos sociais (CURY, 2002; CANCLINI, 2003; YÚDICE, 2004; SILVA, 2011; SILVA, 2012). Os processos de construção destas políticas acompanham transformações societárias globais, nas quais a cultura passa a ser usada convenientemente como ferramenta sociopolítica e econômica para alcançar objetivos delineados em diversas escalas (YÚDICE, 2004). Ações estatais em cultura passam a ser associadas ao enfrentamento das desigualdades sociais, ao desenvolvimento econômico e social, às intervenções no ordenamento das cidades ou intervenções na urbanidade - sobretudo em contextos de periferia -, à formação humana e à qualificação das experiências escolares.
As mudanças nos princípios organizativos das políticas culturais brasileiras, explicitados nos atuais mecanismos de seleção de projetos, com vistas aos recursos públicos (mediante editais), e na pluralização das questões identitárias (BARBALHO, 2007; SILVA, 2012), reorientam as lógicas de ação dos atores no setor, cujas exigências têm embasado uma ideia de "retorno social" (YÚDICE, 2004). Além disso, faz-se possível observarmos mudanças evidenciadas em programas governamentais que deslocam a cultura ao centro das problemáticas sociais, caso dos programas Cultura Viva e Mais Educação, em que novas situações também podem ser constatadas no âmbito das trajetórias de agentes culturais (SILVA, 2013).
A participação em editais públicos e a institucionalização de suas práticas e projetos culturais profissionalizam tais agentes, tornam-lhes "produtores culturais", atentos aos retornos sociais e econômicos esperados. Suas biografias, narrativas e depoimentos explicitam objetivos de formação cultural de crianças, adolescentes e adultos em programas sociais ou escolares, além de sua própria formação, em alguma medida transferindo os debates sobre cultura de uma dimensão clássica ou transcendente para um estado de imanência. Os agenciamentos culturais operam ou potencializam mudanças na vida coletiva.
A consequência dessas mudanças é uma aproximação significativa entre as políticas culturais e as políticas educativas, uma vez que seus conteúdos e suas formas revelam afinidades e objetivos socialmente compartilhados. Projetos culturais passam a circular pelas instituições de ensino, assim como a pauta dos programas educacionais é entrecruzada por direitos, demandas e reivindicações culturais (SILVA, 2010). Acompanhando tal linha argumentativa, nosso interesse nesta elaboração reside em analisar aqueles objetivos produzidos quanto à formação dos atores culturais nesses processos, nos quais sua ação social e seus agenciamentos culturais tornam-se tangenciados por mediações políticas e "imperativos sociais de desempenho" (YÚDICE, 2004).
Parece conveniente observar que a maioria desses interesses acompanham mudanças mais amplas transcorridas na política e na cultura. Neste particular, o presente artigo visa abordar as novas configurações das políticas culturais, no Brasil, e algumas de suas implicações nas políticas e práticas educativas contemporâneas. No plano de uma análise sociológica, sobretudo ao considerarmos a hipótese do declínio da institucionalidade moderna da escola (DUBET, 2004, 2007) e reconhecermos a ampliação e diversificação das políticas culturais, particularmente a partir da gestão Gilberto Gil, pretendemos verificar os agenciamentos formativos que perfazem as ações e as políticas culturais brasileiras, na atualidade.
Educação, capacitação e agenciamentos formativos: um diagnóstico sociológico
As sociedades contemporâneas experimentam intensas mudanças, as quais são narradas sociologicamente por diversas perspectivas e entendimentos cujas ênfases objetivam-se, por vezes, em suas dimensões endógenas ou, em outras, situadas em fatores exógenos postos para além daquela própria coletividade. As dinâmicas de mudança social evidenciam uma reorganização da "pluralidade de forças sociais" (SIMMEL, 1946), de maneira que novos arranjos socioculturais encontram condições de possibilidade, ao passo que trazem em si outras exigências e imperativos à ação dos atores naquela sociedade. Em parte, é essa reorganização das forças sociais que define e constrói significações à própria sociedade, sobretudo se concordarmos com François Dubet, quando identifica a incompletude de sentidos do termo, pois é usualmente nomeado seguido de uma adjetivação específica: sociedade industrial, sociedade pós-industrial, sociedade nacional, sociedade espanhola, entre outras. No entanto, a presença desse qualificativo explicita vetores característicos das experiências vividas naquele agrupamento, embora se reconheça seus conteúdos de convenção humana e os variados alcances que esta definição possa atingir.
Mesmo que as definições desdobrem-se de convenções sociológicas, portanto matizadas por visões teóricas ou metodológicas distintas, identificamos certos traços oportunos para uma sucinta reflexão sobre estas situações sociais. Em todo caso, nos parece que o delineamento de três circunstâncias típicas de nosso tempo pode nos encaminhar à produção de um diagnóstico que evidencie a centralidade dos interesses formativos, próprios da cultura contemporânea. Ao procedermos com este diagnóstico, estaremos interessados em indicar os modos pelos quais estes interesses objetivos pelas capacitações engendram agenciamentos formativos, que operam como técnicas de vida (SIMMEL, 1946) inerentes às políticas culturais.
A primeira circunstância reflexiva identificável neste panorama social verifica-se no declínio ou instabilidade das instituições sociais, particularmente nos limites da confiança e solidariedade produzidos por estas instituições, sejam elas estatais ou de mercado. Segundo Richard Sennett (2006), o ocaso dos planos quinquenais soviéticos e seus controles econômicos, igualmente a fragilização das corporações capitalistas, que oportunizavam empregos vitalícios na produção contínua de produtos e serviços, e a menor rigidez e redução das instituições previdenciárias produziram condições sociais instáveis e fragmentárias. Tais mudanças expuseram a fragmentação das grandes instituições:
A fragmentação das grandes instituições deixou em estado fragmentário as vidas de muitos indivíduos: os lugares onde trabalham mais se parecem com estações ferroviárias do que com aldeias, a vida familiar se viu desorientada pelas exigências do trabalho; a migração tornou-se o verdadeiro ícone da era global, e a palavra de ordem é antes seguir em frente que estabelecer-se. (SENNETT, 2006, p. 12)
Esses traços societários associam-se à restrição da rigidez das estruturas burocráticas do Estado e, complexificando o cenário, vive-se processos de geração de riqueza, em diversos países, consequentes deste desmantelamento das estruturas burocráticas de governo e das corporações fixas, do desenvolvimento tecnológico e da volatilidade das estruturas administrativas. De tal sorte, esse processo é marcado por desigualdades econômicas e instabilidade social. Alain Touraine (2007, 2011), por sua vez, menciona em sua análise o fato de estarmos vivendo um longo processo de desinstitucionalização e, de certa forma, de enfraquecimento de categorias sociais tipicamente modernas, sobremaneira visíveis nas hierarquias, nos conflitos e na ação dos próprios atores. Tal status quo permite ao sociólogo concluir que houve uma diminuição ou desaparecimento de atores propriamente sociais, os quais acabam cedendo lugar a outros atores, necessariamente não sociais, na medida em que colocam em cena suas orientações culturais fundamentais (TOURAINE, 2011), caso das entidades que representam determinadas categorias profissionais.
De certo modo, a decomposição dos atores torna-se consequência das dissociações entre uma economia globalizada e os conflitos, disputas e ações políticas ausentes em nível mundial, mas vigorosos nos níveis local e nacional. O argumento de Touraine refere-se a outros posicionamentos nas relações entre os níveis local e global à organização sociopolítica na atualidade, vistos, por exemplo, nas afirmações de movimentos femininos em suas dinâmicas de afirmação da diferença em escalas mundiais, os quais não anulam a intensidade de conflitos e tensionamentos locais em torno destes atores, como no mercado de trabalho ou em suas vidas íntimas. Esta desinstitucionalização explicita, ainda, mecanismos crescentes de diferenciação de situações, categorias, grupos e opiniões.
No exposto, o cientista social francês interroga como nuança fundamental destas mudanças a cisão entre a vida econômica, em seu conjunto, e a vida social. Face às contínuas transformações do capitalismo, desde sua crise de 1929, a esfera econômica parece autonomizar-se da vida social como um todo, fato este que corrobora com o declínio das instituições, em especial aquelas "onde são elaboradas as normas e modos de negociação sociais" (TOURAINE, 2011, p. 29). Paradoxalmente, o sociólogo destaca que há uma separação inevitável entre os atores e os sistemas sociais, mas, em concomitância, a experiência humana é submetida às necessidades econômicas, embora, como ressalta, ainda possam refazê-las.
Através desse entendimento, os atores sociais desafiam-se à construção de suas experiências (DUBET, 1996), mesmo se desafiados pelas projeções de interesses e conflitos advindos de suas vivências nas "fronteiras" entre as esferas econômicas, políticas e culturais. Assim, a segunda circunstância reflexiva refere-se aos modos como os próprios atores sociais experimentam estas transformações sociais e de que forma modulam-se e são projetados três desafios a suas ações sociais, particularmente quanto às relações profissionais. Se as relações pessoais e profissionais dependiam do potencial sociointegrador das instituições sociais, onde as mesmas efetuavam-se em regimes de longa duração, atualmente, o tempo constitui-se em desafio fundamental, como observa Sennett (2006, p. 13):
Como cuidar de relações de curto prazo, e de si mesmo, e ao mesmo tempo estar sempre migrando de uma tarefa para outra, de um emprego para outro, de um lugar para outro. Quando as instituições já não proporcionam um contexto de longo prazo, o indivíduo pode ser obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida, e mesmo a se virar sem um sentimento constante de si mesmo.
A construção da experiência social destes atores (DUBET, 1996) nestas novas situações, em parte, procura responder ao dilema da construção da própria vida sem um sentimento constante de si mesmo. Isso porque, se são rápidas as modificações nas temporalidades das relações humanas, faz-se necessário movimentos de permanente capacitação diante dos fluxos das mudanças tecnológicas, sociais e culturais. Visualizamos o segundo desafio:
Como desenvolver novas capacitações, como descobrir capacidades potenciais, à medida que vão mudando as exigências da realidade. Em termos práticos, na economia moderna, a vida útil de muitas capacitações é curta; na tecnologia e nas ciências, assim como em formas mais avançadas de manufatura, os trabalhadores precisam atualmente se reciclar a cada período de oito ou doze anos. (SENNETT, op. cit., p. 13)
O desenvolvimento de capacidades potenciais, na razão em que mudam as realidades, abrevia o prazo das capacitações e produzem lógicas de ação que reafirmam o objetivo de produzir novos talentos. Em lugar do artesanato, as relações modernas atribuíram centralidade ao desempenho meritocrático de habilidades potenciais, de maneira que as relações sociais tornaram-se cada vez mais presentificadas, em detrimento de subjetividades construídas desde a tradição ou o pensamento mítico ou mágico. Assim sendo, a construção de subjetividades fica circunscrita a modelos identificados como a cultura do "novo capitalismo":
Uma individualidade voltada para o curto prazo, preocupada com as habilidades potenciais e disposta a abrir mão das experiências passadas só pode ser encontrada - para colocar as coisas em termos simpáticos - em seres humanos nada comuns. A maioria das pessoas não é assim, precisando de uma narrativa contínua em suas vidas, orgulhando-se de sua capacitação em algo específico e valorizando as experiências por que passou. Desse modo, o ideal cultural necessário nas novas instituições faz mal a muitos dos que nelas vivem. (Idem, ibid., p. 14-15)
A terceira circunstância, derivada das anteriores, expressa o dilema da educação permanente. 1970 foi o ano escolhido pela Unesco como "Ano Internacional da Educação", sendo que, no período, a entidade publicou 21 princípios orientadores à educação do futuro. Um dos mais significativos destes identifica-se com a necessidade da educação permanente, a qual precisaria ser a pedra angular da política educacional nos próximos anos, em todos os países, "para que o indivíduo tenha oportunidade de aprender durante toda a sua vida" (FAURE, 1972, p. 238). Posteriormente, o conceito de educação permanente inaugurou um novo projeto educacional dirigido e produzido desde as mudanças sociais hodiernas. A educação amanhã, livro de Bertrand Schwartz, esclarece os interesses que estavam em jogo naquelas diretrizes:
[...] modelo de educação permanente: desenvolvimento da igualdade de oportunidades, continuidade no tempo e no espaço, associação em todos os níveis da formação geral (cultural e social) à formação profissional, participação dos usuários na determinação dos objetivos, dos meios e das modalidades de controle. (SCHWARTZ, 1976, p. 60)
Estas circunstâncias sinalizam para o entendimento convencional de que a cultura do novo capitalismo possa ser associada à conformação de uma sociedade onde as constantes capacitações tornam-se fundamentais (SENNETT, 2006). Nesta condição, os agenciamentos formativos podem ser interpretados como meio de expressão ou consequência desta formação social, a ser verificado nas trajetórias pessoais ou experiências coletivas de atores envolvidos nas políticas da cultura, ora fazendo-se possibilidade de ação, ora restringindo-a, mas tornando-se produtor de novos repertórios de ação (SILVA, 2012). Isso não significa que as mudanças sociais, em suas distintas escalas, do local ao global, sejam abstraídas e assimiladas pelos atores em iguais situações, ou desprovidas de reações ou resistência. A decomposição da vida social (TOURAINE, 2011) e os impertinentes ditames do sistema econômico internacional trazem novas exigências políticas às relações entre os atores sociais e o sistema e, em igual teor, exigem novas formas (e disputas) aos agenciamentos de recursos (YÚDICE, 2004).
Cultura, experiência e formação cultural
Argumentamos, pois, que os agenciamentos de recursos e os objetivos de formação cultural dos indivíduos são constitutivos de repertórios de ação, em nosso tempo. Isso implica considerarmos, inicialmente, que os projetos de ação elaboram-se sob novas exigências, tangenciados por permanentes negociações com as mudanças institucionais vividas, de modo que impõem novas configurações às relações estabelecidas entre a agência e os dispositivos institucionais na produção da experiência dos atores.
Dubet (1996) destaca o caráter ambíguo que a ideia de experiência encerra, uma vez que a mesma remete a dois fenômenos contraditórios que o próprio sociólogo trata de vincular. Por um lado, a experiência é um modo de sentir, de sofrer um estado emocional suficientemente forte que acabe por inibir a liberdade do ator, ao mesmo passo em que constrói sua subjetividade (DUBET, op. cit.). Por outro lado, a referida ideia pode ser entendida como atividade cognitiva, maneira de construir o real ou de experimentá-lo. Desde essa ambivalência da representação da experiência, entre o estado emocional e a atividade cognitiva, considera que a experiência não é uma "esponja", isto é, um modo de incorporar o mundo pelas emoções e sensações, mas um modo de construir o mundo.
A experiência adquire sentido, portanto, quando a ação não se torna redutível à versão subjetiva do sistema. Se o ator não estiver plenamente socializado, por assim dizer, a ação perde sua unidade e deixa de ser redutível a um programa único. Dessa maneira, "a socialização não é total, não porque o indivíduo escape ao social, mas porque a sua experiência se inscreve em registros múltiplos e não congruentes" (idem, ibid., p. 98). A produção das experiências sociais dos atores, em seus múltiplos registros, demonstra-nos que os sentidos da ação são inúmeros e constituintes de repertórios. Esses repertórios integram os projetos de ação (SCHUTZ, 1974) mobilizados desde as condições de agenciamento de recursos dos atores e os próprios processos formativos que lhes dão consistência e operatividade.
Por um registro sociológico mais amplo, cabe destacarmos que as redefinições político-culturais em nosso tempo demarcam a transição da cultura ao centro das esferas econômicas, políticas e sociais (FEATHERSTONE, 1997). Assim, a cultura torna-se espaço estratégico de negociação econômica e política das realidades (VELHO, 1994), em um cenário onde se alteram, de modo significativo, as tipicidades de cursos de ação possíveis (SCHUTZ, 1974) e a cultura se torna uma "reserva disponível" para os projetos desenvolvidos (YÚDICE, 2004). Assim, se a cultura torna-se uma reserva objetiva de recursos disponíveis, a efetuação de um projeto dependerá da capacidade dos atores em agenciarem recursos para o desenvolvimento de suas ações, permitindo que se reconheça que George Yúdice atualiza a concepção de agência de Alfred Schutz.
Para Schutz (1974), a concepção de agência sugere que os projetos, enquanto planos ou cursos de ação possíveis, seriam embasados nas potencialidades dos "conhecimentos à mão", os quais produziriam sentidos à ação. Por este viés, memória, recursividade ou identidade seriam motivações próprias à ação. Yúdice (2004), por sua vez, provoca reflexões sobre os usos da cultura, sendo que o agenciamento de recursos é condicionado pelo próprio uso conveniente que é feito da cultura. Com isso, o autor contribui para um entendimento imanente da cultura, a partir do qual esta se torna gerida pela performatividade na ação dos atores, pois "a conveniência da cultura sustenta a performatividade como lógica fundamental da vida social de hoje" (YÚDICE, op. cit., p. 50). O agenciamento de recursos necessários à implementação de um projeto cultural é oportunizado por seu próprio uso conveniente, como recurso para atingir um fim, ao mesmo tempo em que se efetua por forças performativas a demarcar imperativos sobre as relações entre atores e sociedade.
Atualmente, parece haver uma emergência destes processos e, sobretudo, da necessidade dos atores agenciarem recursos para o desenvolvimento de projetos na/ para/pela cultura, o que fica explícito a partir de várias angulações: desde a constante presença de editais públicos e privados destinados ao financiamento de projetos culturais voltados a fins diversos; a busca de constituição de redes sociais com vistas à interlocução e consolidação de grupos culturais voltados a fins próprios; ou ainda o apelo à formação dos atores culturais, constituinte de agenciamentos formativos, para atuação nestas dinâmicas.
Se as transformações societárias recentes atribuem centralidade à cultura (HALL, 2006), a qual passa crescentemente a redirecionar ou redefinir os projetos elaborados pelos atores sociais, então a formação cultural torna-se exigência à ação dos atores culturais em nosso tempo, tornando-se formação permanente, e faz-se condição de possibilidade à própria ação. Essa ambiguidade da formação cultural, delimitadora e potencializadora da ação social, seria uma das sínteses possíveis dos projetos e políticas culturais contemporâneos. Isto nos provoca a pensar que a formação situa-se para além do jogo ambíguo da delimitação-potencialização da ação social, pois a formação constitui-se em elemento da produção da experiência social dos atores.
Desse modo, o que salientamos é que a formulação dos projetos é negociada no plano das interações sociais, entre agentes portadores de projetos individuais e coletivos distintos, dentro de um determinado campo de possibilidades (VELHO, 1994). Essa condição de possibilidade oportuniza que, entre trajetórias e projetos, os atores agenciem recursos para formular e implementar suas projeções. Tal dinâmica ocorre nas políticas hodiernas, de maneira que, mesmo sob as transformações do capitalismo vigente que alteram o estatuto dos usos da cultura (YÚDICE, 2004; SENNETT, 2006), há formulações e reformulações dos projetos culturais quando alinhados aos projetos individuais em trajetórias de vida específicas (SILVA, 2012, 2013).
Ao mesmo tempo, esse horizonte formativo redefine as justificativas destes projetos político-culturais, sob a égide da cidadania, as quais passam a abrir espaço para a formação de novos atores e de novos públicos. Muitos destes agenciamentos tomam as instituições de ensino como lócus privilegiado, em circunstâncias históricas particulares. O declínio da institucionalidade da escola (DUBET, 2004, 2007), produzida na Modernidade, parece converter-se em situação favorável e adequada à emergência e multiplicação de novos projetos culturais advindos de distintos setores da sociedade e do Estado. As escolas e seus estudantes tornam-se públicos destas políticas culturais contemporâneas, como demonstraremos a seguir.
A escola e os agenciamentos culturais: um campo de problematizações
Desde o início da década de 1990, inúmeros cientistas sociais têm apontado e analisado algumas transformações nos processos de socialização dos atores sociais ocorridos no interior das instituições de ensino. Muitas destas leituras enfatizaram o declínio da institucionalidade da escola ao constatar a conflitualidade de suas normas e a redução de suas capacidades de socialização (DUBET, 2004). Outras contribuições teóricas evidenciaram as assimetrias entre a produção dos sentidos da escolarização, tipicamente modernos, e as mudanças no momento histórico e cultural que a mesma instituição experimenta (TIRAMONTI, 2005), tanto quanto diferentes leituras reiteram que o caráter das mediações presentes na convivência institucional redefine os condicionamentos culturais que operam na educação escolar (LOPES, 2009). Neste contexto, destacam-se as múltiplas implicações presentes nas relações entre educação e cultura, as quais não são recentes, pois acompanham muitas produções clássicas de filósofos, sociólogos, pedagogos e antropólogos, pelo menos desde Kant e a ideia de Modernidade.
No entanto, o que parece estar em mudança são os sentidos atribuídos à cultura ou às políticas culturais, inclusive quando alcançam os processos escolarizados, os quais tendem a exceder as necessidades formativas situadas na escolarização e a alcançar horizontes culturais mais amplos, face às formações culturais na globalização. Outros sentidos atribuídos à cultura atravessam-se às práticas cotidianas das instituições de ensino a partir de distintas modulações (COSTA; MOMO, 2009), mas também orientam novos sentidos às dinâmicas de gestão e formulação de agendas para as políticas educacionais (SILVA, 2010). Assim sendo, nesta seção textual, estamos interessados em analisar alguns cruzamentos destas duas situações teóricas, aparentemente distintas, quais sejam: o declínio da institucionalidade da escola - hipótese teórica com a qual parte significativa da Sociologia da Educação tem trabalhado - e a multiplicação recente das políticas de (para a) cultura no Brasil contemporâneo, que tomam estas instituições como público privilegiad.
Diante desta percepção, inúmeros autores interpretam o declínio da institucionalidade da escola e apontam mudanças substanciais em seus fazeres políticos e pedagógicos, tanto quanto outros sinalizam suas consequências. Dubet (2007), por exemplo, quando analisa a situação, destaca como principal consequência a fragilização dos princípios estruturadores das instituições de ensino, sendo estes: valores sagrados, vocação docente, escola como santuário e liberação através da disciplina. Quando, portanto, seus valores fazem-se profanos, seus docentes tornam-se profissionais, seus espaços perdem as prerrogativas de exclusividade do saber universal e suas normas rígidas esmaecem em múltiplas negociações, passamos a verificar inegáveis mudanças nas instituições de ensino.
A fragilização dos dispositivos institucionais modernos observados nas instituições de ensino, sobretudo em suas conhecidas estratégias de fabricação unilateral de identidades sociais, ou em seus mecanismos de controle do corpo e da mente de seus estudantes, tem permitido a circulação de múltiplas discursividades em seu interior, assim como novas práticas socioculturais passaram a ocupar-lhe. Evidentemente que estas novas narrativas escolares não estão desprovidas de hierarquias, clivagens ou interesses; pelo contrário, evidenciam-se novos jogos de relações políticas, socioeconômicas e pedagógicas, ou seja, políticas culturais passam a transitar por seus frágeis dispositivos institucionais. Assim, não supomos que as finalidades educativas modernas depositadas nas escolas esmaeceram, ou que se tornaram destituídas de seus potenciais de regulação social, mas passaram a conviver com outros dispositivos culturais de deliberação (DEWEY, 1970), na razão em que estabelecem a conformação de um campo valorativo voltado para a democratização da cultura, na escola. Acompanhando as reflexões de Dewey, constatamos a impossibilidade de uma plena democratização destas instituições sociais. Porém, mesmo que a presença de técnicas de vida produza novas formas de controle e regulação das práticas culturais, plasma-se um novo campo de valores democráticos, pois não há grupo social sem a existência de "valores apreciados em comum" (ibid., p. 105). Neste cenário, a escola passa a ser um espaço de "sujeitos em trânsito" (TOFLER, 1964), onde os agentes, suas práticas, suas discursividades e seu estar-no-mundo mobilizam-se. Tal situação de transitividade permite a irradiação de agenciamentos culturais, tal como fluxos de sentido que lhe atravessam (e instituem) em múltiplas direções.
Essa irradiação de agenciamentos culturais na escola contemporânea permite-nos compreender a presença constante de projetos e políticas culturais, de iniciativas pública e privada, em seu interior. O trânsito destes programas nas instituições de ensino evidencia-nos, com interesse heurístico, o declínio da institucionalidade moderna da escola, a irradiação de novos agenciamentos culturais em seu interior e a conformação de novos modelos valorativos que lhe reconstruam o sentido social. Vejamos, a seguir, como atualmente alguns destes agenciamentos culturais configuram novas modulações políticas (estatais) às instituições.
A efetividade de muitas das políticas públicas para a cultura, historicamente, fez-se descontínua em nosso país, consolidando-se a partir de iniciativas isoladas e desprovidas de regularidade ou de sistematicidade (RUBIM, 2011). No entanto, a gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura (2003-2006) promoveu a temática às pautas políticas do governo federal e, cabe destacar, da própria Nação, potencializando inúmeros projetos para o setor, a produção de um Plano Nacional de Cultura, assim como ações políticas intersetoriais envolvendo a área com políticas de educação, de esporte e lazer ou de proteção social básica e combate à fome, entre outras. Observamos, no recente período, uma intensificação das referidas políticas que chegam às escolas de educação básica, consolidando ações intersetoriais e interdisciplinares entre os Ministérios da Educação e da Cultura, cabendo destacar como exemplares dessa tendência: o "Programa Arte, Cultura e Cidadania - Cultura Viva", promovido pela Secretaria de Cidadania Cultural vinculada ao Ministério da Cultura, e o "Programa Mais Educação", promovido pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Cultural vinculada ao Ministério da Educação, ou ainda o "Programa Segundo Tempo", oriundo do Ministério do Esporte. Diante da ampliação do campo político de atuação do setor cultural e, ao mesmo tempo, da percepção do declínio da institucionalidade da escola moderna (ou tradicional), faz-se possível reconhecermos estas implicações intersetoriais ou a recíproca influência e determinação entre as políticas educativas e as políticas culturais.
São inúmeros os agenciamentos formativos que se irradiam pelas instituições de ensino com finalidades e interesses de reconstrução valorativa. Neste particular são amplamente divulgados os projetos de educação para o trânsito, educação ambiental, educação patrimonial, educação turística, educação artística, educação inclusiva, ou mesmo educação fiscal e financeira, que depositam na ideia de cidadania suas expectativas e interesses sociais, sobretudo em situações de mudança cultural ou de globalização. No entanto, em muitos destes casos a cultura é usada, convenientemente, para promover a cidadania na escola, entre seus estudantes e professores, o que acompanha uma tendência atual (YÚDICE, 2004; COSTA; MOMO, 2009). Os agenciamentos culturais engendram agenciamentos formativos.
Entretanto, para compreendermos estes agenciamentos que perfazem as políticas culturais, faz-se necessário analisá-los em circunstâncias empíricas onde se evidenciam os múltiplos objetivos sociais que se impõem a tais políticas. Para além das dinâmicas ocorridas nas políticas e processos estatais de escolarização, já citados, precisamos confrontar estes agenciamentos com o campo próprio da política e da produção cultural contemporânea, onde a manipulação destas práticas fundamenta-se nas disputas por recursos em editais públicos, onde seus resultados e indicadores de formação e capacitação de estudantes assumem contornos econômicos de "retorno social" (YÚDICE, 2004).
Cidadania e formação de jovens artistas: o Programa de Artes doNatal Luz em Gramado (RS)
Situada na região serrana do estado do Rio Grande do Sul, distante cerca de 120 quilômetros da capital, Porto Alegre, Gramado é um dos principais polos culturais e turísticos do estado. Por um registro histórico, ainda em 1958, Gramado produziu o primeiro evento de rua que serviu de alavanca para o desenvolvimento de eventos culturais e turísticos, a "Festa das Hortênsias", que foi realizada até meados da década de 1980 e inseriu o município nas lógicas do turismo nacional, até a contemporaneidade. Na sequência histórica, uma série intensa de eventos passou a ocupar a população local e os turistas, tais como: Festival de Cinema, Festa da Colônia, Natal Luz, Gramado Cine Vídeo, além de inúmeros eventos de turismo de negócios e de outras naturezas. Este crescente exigiu um significativo desenvolvimento de setores voltados à prestação de serviços e aos atendimentos aos públicos turísticos, como atividades dirigidas à hospitalidade, à hotelaria, à gastronomia, à infraestrutura urbana, aos transportes e à comunicação social.
Ainda no plano da contextualização, precisamos também considerar alguns dados disponibilizados pela Secretaria Municipal de Turismo, a saber: (1) no primeiro semestre de 2011, de janeiro a metade de julho, Gramado recebeu 2,1 milhões de turistas; (2) a primeira quinzena de julho do mesmo ano recebeu 200 mil turistas; (3) a expectativa de recebimento de turistas para o ano de 2011 é de 3,6 milhões; (4) os indicadores de fluxos turísticos são crescentes a cada ano, como é o caso da ocupação hoteleira que tem o aumento médio de 2% (2010-2011).1
O turismo, em Gramado e na Serra Gaúcha, é assumido como vetor e prerrogativa das políticas de desenvolvimento destas cidades serranas, tomando, principalmente, as atividades e manifestações culturais como "reserva disponível" (YÚDICE, 2004) para projetos culturais, neste tempo produzido a partir de narrativas de permanente atratividade ao público visitante e na captação de recursos para seus projetos culturais e turísticos. A busca por recursos financeiros em fontes públicas e privadas passou a exigir a necessidade de retorno social (idem, ibid.), além dos conhecidos interesses em retorno financeiro, publicitário e fiscal, já inerentes às lógicas das leis de incentivo à cultura desde a década de 1990. O evento natalino da cidade, o Natal Luz, há vários anos obtém recursos através do Ministério da Cultura e da Secretaria Estadual de Cultura, mediante lei de incentivo à cultura.
Ao mesmo tempo, como analisou Silva (2012), os processos de financiamento destes projetos passaram a ser efetuados por editais públicos de concorrência. A elaboração de projetos tornou-se constante, tanto quanto o poder público e setores especializados iniciaram a criação de observatórios de editais, ou mesmo os atores culturais (artistas, cinegrafistas, iluminadores, entre outros) tornaram-se "produtores culturais". Esta lógica, por um lado, procedeu a profissionalização de diversos segmentos da produção cultural, o que contribuiu para a geração de emprego e renda aos circuitos artísticos locais e regionais; mas, por outro, intensificou dinâmicas de elaboração de projetos adequados às condições de nosso tempo e preocupados com as expectativas de sustentabilidade financeira.
Numa dinâmica competitiva, as disputas por financiamento conduziram a busca por indicadores de desempenho e o interesse localizou-se na performance qualitativa e quantitativa dos projetos. Como garantir, desde sua elaboração, a materialização dos objetivos de retorno social em um projeto cultural? O que justificaria o financiamento nestes termos?
Como observou Sennett (2006), na cultura do novo capitalismo, as capacitações tornam-se fundamentais. Neste aspecto, a formação cultural, em suas diversas nuanças, torna-se central. Formação de novos talentos, formação de público e formação cidadã tornam-se dimensões performáticas para a produção de justificativas às ações e projetos culturais. Em Gramado, foco de nosso exercício analítico, observamos semelhante tendência.
O Natal Luz é o evento natalino de Gramado. Criado em 1987, é considerado responsável pela consolidação da cidade como destino turístico nacional. Com a necessidade de ampliação do evento e, respectivamente, de seu elenco, foi iniciado em 2008 um projeto de formação de artistas locais, principalmente daqueles que se encontravam em idade escolar. Então, foi criada a Escola das Artes Pedro Henrique Benetti, hoje denominada Programa de Artes, o qual, juntamente com outras ações, é um dos projetos sociais do Natal Luz. Desde seu início, "promove a formação de jovens artistas da comunidade em nove modalidades: Perna de Pau, Teclado, Violino, Dança (Jazz, Balé e Sapateado), Circo, Escultura, Teatro, Técnica Vocal e Teatro de Bonecos".2
De acordo com suas informações institucionais, são investidos anualmente R$ 200 mil na formação de 230 crianças, adolescentes e adultos, os quais recebem todas as aulas, uniformes e materiais necessários às modalidades artísticas em que atuam, sendo ainda que, da totalidade dos estudantes envolvidos, 90% são integrados ao corpo artístico do Natal Luz.
As informações trazidas sobre esta ação formativa dão conta da eloquência discursiva dos motivos de sua existência. Observamos a necessidade argumentativa de enfatizar os valores investidos e a expectativa de retorno social do projeto. Nas atuais lógicas, a "formação de 230 crianças" dimensiona os "imperativos sociais de desempenho" (YÚDICE, 2004) implicados na iniciativa, tanto quanto materializa interesses objetivos pelas capacitações. A argumentação institucional procura, em seus diversos espaços de divulgação, cristalizar uma ênfase na formação humana. Por exemplo, o blog da Subsecretaria de Cultura do município consubstanciava, no mesmo período, a perspectiva de que a qualificação das pessoas era central na Escola de Artes, embora acentuasse uma nova dimensão: a profissionalização.
A Escola de Artes do Natal Luz é outro marco para a nossa cultura. Lá são ministradas oficinas de diferentes técnicas artísticas, são qualificados os artistas locais. A verdadeira fábrica do Natal Luz é a Escola das Artes, pois é de lá que sai toda a mão de obraartística local empregada na realização dos espetáculos da programação do evento. É uma verdadeira usina da cultura, que fomenta o desenvolvimento artístico, oportuniza novos horizontes aos nossos artistas e forma um grande público para atuar no Teatro, na Dança, nas Artes Plásticas e em muitos outros segmentos culturais.
Como podemos observar, o fragmento evidencia uma dupla significação para a proposta formativa em análise, a saber: a formação escolar e a formação profissional. De certo modo, recuperando novamente leituras de Georg Simmel, parece-nos que dimensões subjetivas da formação humana (cultura) são superadas por interesses objetivos mensuráveis, tal como técnicas de vida (SIMMEL, 1979): indicadores de inserção dos estudantes no corpo artístico dos eventos, a própria ideia de vislumbrar os adolescentes como "talentos" e mão de obra aos interesses turísticos e econômicos em jogo ou, ainda, a formação de público para consolidação de circuitos permanentes de apresentações artísticas na cidade.
Assim sendo, os interesses político-culturais nestas modalidades de ensino-aprendizagem afastam-se daqueles ideais modernos de formação humana (bildung), cujo objetivo assentava-se na produção de um cidadão pertencente a um Estado nacional, posições estas inerentes à escola moderna. Nestes atuais movimentos, educação, cultura ou cidadania parecem dar conta de um mesmo campo de preocupações objetivas, que se voltam, oportunamente, aos potenciais usos da cultura (YÚDICE, 2004) e dos "talentos" dos atores sociais (SENNETT, 2006), os quais compõem narrativas pertinentes aos atuais agenciamentos formativos.
Os agenciamentos observados na Escola de Artes do Natal Luz, pela argumentação de seus proponentes, expõem uma indissociabilidade entre a formação artística, a formação de público e a formação profissional, numa trama discursiva onde "formação de talentos" e "formação cidadã" são projetadas como justificativas para as ações culturais. A fala de um de seus gestores ilustra o argumento.
Essa é a nossa função: é garantir o ensino, garantir a formação de plateia, garantir a formação de artistas, promover a arte e o produto cultural da cidade e dar oportunidade para que todos possam estar desenvolvendo seu trabalho de encantar moradores e turistas. Não adianta fazermos coisas somente para turista ver, a comunidade gramadense precisa ter acesso à cultura e, consequentemente, isso vai repercutir na política, na economia e no desenvolvimento da cidade. O nosso principal motivador é fazer as coisas acontecerem, a cultura transbordar e que as pessoas tenham oportunidades. Essa é a palavra básica: oportunidade. (Daniel, 31 anos, gestor cultural)
Para prosseguir a análise, vejamos o depoimento que segue:
Não se faz educação sem cultura. É necessária essa mudança de paradigma de que escola é escola, de que é só didática e não mais um aprendizado sociocultural, um aprendizado de cidadania [...]. Nós temos que ver a cultura como forma de democratização, como forma de inclusão social. (Daniel, 31 anos, gestor cultural)
O argumento de Daniel permite-nos evidenciar a percepção da multiplicidade de agenciamentos culturais presentes nos processos formativos contemporâneos, tanto quanto posiciona, discursivamente, a cidadania no eixo da consequente recomposição valorativa dos dispositivos institucionais. Entretanto, nos projetos formativos desenvolvidos na sociedade das capacitações (SENNETT, 2006), toda proposição de cidadania requer problematização, sobretudo porque, na maior parte dos casos, cidadania é tomada como sinônimo de "responsabilidade social" ou de "um projeto socialmente comprometido". Isso não quer dizer que as ações da Escola de Artes do Natal Luz não sejam socialmente relevantes, mas que tal relevância torna-se difusa em uma miríade de objetivos sociais e de expectativas de retorno econômico.
Segundo Silva (2012), os agenciamentos formativos, quando associados a programas de políticas culturais com expectativas de desenvolvimento regional (turístico ou cultural), são condicionados por interesses objetivos, que predominam sobre as dimensões subjetivas. A proposição de ações, projetos e políticas culturais é mobilizada mediante "imperativos sociais de desempenho" (YÚDICE, 2004), vistos como elementos de divulgação, marketing, resultados e retorno social aos projetos desenvolvidos. O apoio financeiro a projetos culturais, embora fundamental, faz-se eivado por dispositivos de garantia de rentabilidade e publicidade a seus patrocinadores, sejam eles públicos ou privados.
Nos limites da experiência: novas políticas, qual cidadania?
Os agenciamentos formativos descritos ao longo deste artigo compuseram uma situação de ambivalência entre a produção da experiência dos atores sociais (DUBET, 1996) e a capacitação de seus "talentos" (SENNETT, 2006) para o ingresso profissional em um mercado cada vez mais seletivo e instável. Essa situação adquiriu visibilidade quando analisamos algumas ações da Escola de Artes do Natal Luz, em Gramado, uma vez que emerge uma indagação que, de certo modo, faz-se necessário retomar: tais agenciamentos são formadores para qual finalidade? Quais interesses estão em jogo nestes projetos culturais formativos, na atualidade?
Se tomarmos apenas a ideia de "talento" humano, típica de uma sociedade das capacitações (SENNETT, op. cit.), a ser moldado e "lapidado" para sua inserção nos mercados profissionais, desde dispositivos de formação constante, poderíamos supor que os atores sociais, no jogo do novo capitalismo, seriam formados para sua integração em um mundo social e, em específico, em um mercado em mudança. As condições de agenciamento de recursos seriam distintas daquelas que já expusemos, uma vez que as únicas técnicas de vida que tangenciariam a ação social seriam aquelas já nominadas por Simmel (1979) no começo do século passado, quais sejam: racionalização, mensuração e impessoalidade/calculabilidade. A vida monetária, ora atualizada, seria a expressão desta sociedade modelada pelas instâncias financeiras de mercado. De certo modo, sem limitar seus potenciais heurísticos, a hipótese de Sennett configuraria um quadro fechado e relativamente simples de interpretação desta cultura do "novo capitalismo", no qual o ator desafia-se a integrar um jogo de relações exteriores a si, mas do qual depende para transitar entre as formações sociais e os interesses laborais.
A possibilidade do ator se integrar em um mercado competitivo e mutável, próprio das políticas culturais de nosso tempo, amplia-se e complexifica-se, se mencionamos suas dimensões subjetivas, de trajetórias pessoais e experiências sociais. Assim, o "empenhamento de si" (DUBET, 1996) é ambivalente ao delineamento de seus "talentos", tal como Simmel parafraseara a poética shakespeariana ao escrever que a questão moderna era "ser e não ser", ao mesmo tempo. E, pois, a ambivalência se expressa como condição das práticas sociais em um determinado tempo, sob um dado jogo de relações e tensionamentos e experienciado pelos atores sociais em situações sociais similares. Não significa, neste sentido, que os aprendizados oportunizados nestes projetos de formação cultural, artística ou estética devam ser desconsiderados.
Podemos pensar que estas mudanças recentes nas políticas culturais, que alcançam as iniciativas escolares e as políticas de cidadania, trazem em si a exigência de um "retorno" socioeconômico que sustente a manutenção daquela prática cultural, o que, operacionalmente, exige a conversão de uma atividade não comercial em atividade comercial (YÚDICE, 2004). Neste caso, interpretamos que os agenciamentos culturais, inúmeras vezes, se dão nestas transições das dimensões comerciais às não comerciais, o que intensifica a competitividade entre interesses e objetivos individuais ou coletivos que estão em jogo na atualidade. Então, ao mesmo tempo em que a experiência humana torna-se submetida às necessidades econômicas (TOURAINE, 2011), mesmo que exista a possibilidade de refazê-las, os objetivos sociais nos processos formativos engendram novos agenciamentos. Ou seja, tais agenciamentos redefinem as relações entre os atores e as instituições, tanto quanto são orientados, de modo ambivalente, por objetivos situados entre as expectativas de retorno social e de formação para a cidadania.
Notas
Recebido em 1º de abril de 2012.
Aprovado em 30 de abril de 2014.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Jul 2014 -
Data do Fascículo
Jun 2014
Histórico
-
Aceito
30 Abr 2014 -
Recebido
01 Abr 2012