RESUMO:
O cosmopolitismo desponta, na modernidade, como o projeto de uma cultura altamente etnocêntrica e imperialista. Dever-se-ia, porém, em virtude dessa constatação, abandonar qualquer expectativa de uma política de coexistência harmoniosa entre diferentes povos, culturas, países e modos de ser que coabitam nosso mundo? O presente artigo tem por objetivo pensar alguns dos termos e das condições em que uma educação cosmopolítica pode se apresentar como resposta aos diferentes desafios da contemporaneidade, tendo por base a proposta cosmopolítica formulada por Isabelle Stengers notadamente nos textos “La proposition cosmopolitique” (STENGERS, 2007) e “Pour en finir avec la tolérance” (STENGERS, 1997).
Palavras-chave: Cosmopolitismo; Alma-conceito; Corpo-mundo; Formação ética; Etoecologia
ABSTRACT:
Cosmopolitanism emerges in modernity as a project of a highly ethnocentric and imperialist culture: should we, however, abandon any expectation of constructing a policy of harmonious relations between different peoples, cultures, countries and ways of being that coexist in our world? The present article aims to discuss some of the terms and conditions in which a cosmopolitan education can be presented as a response to the different challenges of contemporary times, based on the cosmopolitical proposal presented by Isabelle Stengers notably in the texts “La proposition cosmopolitique” (STENGERS, 2007) and “Pour en finir avec la tolérance” (STENGERS, 1997).
Keywords: Cosmopolitanism; Soul-concept; Body-world; Ethic formation; Eto-ecology
RESUMEN:
El cosmopolitismo emerge en la Modernidad como un proyecto de una cultura altamente etnocéntrica e imperialista: ¿deberíamos, sin embargo, abandonar cualquier expectativa de una política de relaciones armoniosas entre diferentes pueblos, culturas, países y formas de ser que coexisten en nuestro mundo? El presente artículo tiene como objetivo discutir algunos de los términos y condiciones a partir de los cuales una educación cosmopolítica puede presentarse en respuesta a los diferentes desafíos de los tiempos contemporáneos, basada en la propuesta cosmopolítica presentada por Isabelle Stengers, especialmente en los textos “La proposition cosmopolitique” (STENGERS, 2007) e “Pour en finir avec la tolérance” (STENGERS, 1997).
Palabras clave: Cosmopolitismo; Alma-concepto; Cuerpo-mundo; Formación ética; Eto-ecología
A tradição cosmopolita
Se, em suas origens (LAËRCE, 1999, p. 720)1, entre os cínicos do século III a.C., cosmopolita designava o indivíduo em ruptura voluntária ou compulsória com a esfera política (YERASIMOS, 2007, p. 46) e se, em seguida, o termo serviu também para definir o novo status dos cidadãos da pólis sob dominação macedônica, na modernidade o cosmopolitismo assumiu um sentido radicalmente diferente, pois, agora, a afirmação do vínculo de pertencimento à humanidade não mais resultava de uma rejeição ou de um impedimento da participação política, senão da crença em sua ampliação, fruto dessa extremada confiança no papel civilizatório das luzes que deveria encontrar, no pensamento de I. Kant (1994), sua formulação mais famosa e mais recorrente.
De fato, diante da insociável sociabilidade que caracterizaria a natureza humana, conduzindo os indivíduos a buscar a vida em sociedade e, ao mesmo tempo, a rejeitá-la, Kant (1994) ponderava que apenas a razão poderia fornecer a resposta adequada, sob a forma de uma sociedade civil que, substituindo o estado selvagem por uma “segunda natureza”, promovesse o “progresso contínuo das Luzes” (KANT, 1994, p. 29). Contudo, prosseguia o filósofo, para que a natureza pudesse desenvolver completamente na humanidade todas as suas disposições (KANT, 1994, p. 37), não bastaria a constituição dos diferentes Estados, já que estes tenderiam a reproduzir, em menor escala, a mesma insociabilidade natural que leva à liberdade sem freios (KANT, 1994, p. 33). O cosmopolitismo deveria, então, ser o projeto político de constituição de uma grande sociedade das nações, em que, sob a luz da razão, a coexistência consolidaria a paz perpétua entre os povos. Kant não hesitava em afirmar que caberia ao continente europeu, capaz de aperfeiçoamento contínuo de sua constituição, a tarefa pedagógica e propriamente civilizatória de “dar leis a todos os outros” (KANT, 1994, p. 41).
O cosmopolitismo moderno nasceu, dessa forma, marcado pela profunda arrogância do projeto das luzes, por seu indisfarçável etnocentrismo: mas estaríamos, por esse motivo, liminarmente obrigados a passar da crítica histórica ao anátema conceitual? Deveríamos abandonar definitivamente qualquer sugestão relativa a uma política possível entre humanos pertencentes a diferentes povos, nacionalidades, modos de ser? As múltiplas evidências que nos vêm da atualidade indicam que esse seria um pesado equívoco, não apenas porque as mais importantes ameaças com que os diferentes povos se defrontam têm hoje dimensões mundiais - novas e antigas epidemias, a degradação climática e suas catastróficas consequências sociais, os fluxos migratórios, as guerras e seus genocídios -, como também porque a própria vida cultural e econômica dos diferentes países adquiriu, por força dos avanços tecnológicos, dimensões de fato planetárias.
Todavia, nada disso impede nem mesmo paradoxalmente alimenta a atração que movimentos ultranacionalistas exercem em muitas partes do globo, como mais recentemente entre nós… O que nos leva de volta à importância de se buscarem alternativas, tanto para um projeto de convivência harmoniosa entre os povos que mal esconde seu caráter autoritário e narcísico quanto para formas perversas de retraimento de países e povos nos estritos limites das normas e dos valores de sua própria tribo.
Uma política para o cosmos?
Não seria preciso ressaltar a importância que assume essa discussão para a formação humana, não estivéssemos, no campo da educação, diante do mesmo duplo desafio: empreender a crítica dos limites do idealismo iluminista que modelou nossas concepções e práticas pedagógicas, ao mesmo tempo que prevenindo-nos também contra o perigoso caminho do conservadorismo de índole nacionalista que passou a ser propugnado a partir das últimas eleições no país. É muito especialmente no terreno da formação ética que esse desafio se instala: como evitar que, ante as múltiplas crises (econômicas, climáticas, sociais, políticas) que se apresentam e se acumulam no horizonte das sociedades, não acabem por se impor o fechamento, a xenofobia e a ausência de todo questionamento? Ainda, como fornecer respostas que rompam com a vacuidade, com o caráter genérico e desencarnado que parece predominar nos projetos de educação a cada vez que se pensa em formação ética? Como contribuir para que a escola se torne um lugar em que se cultive ativamente a disposição de abertura para o mundo, para o outro, para a diferença? Se admitirmos que essa é uma questão essencial colocada à prática da educação, hoje, então reconheceremos que, no que respeita ao cosmopolitismo, a questão não é saber se ele pode oferecer uma resposta, mas em que condições ele pode fazê-lo, fazendo ao mesmo tempo avançar a democracia.
O que chamamos de democracia é, ou a forma menos ruim de gerir o rebanho humano, ou então uma aposta centrada não na questão do que são os humanos, mas do que eles podem se tornar capazes. É a questão que John Dewey colocou no centro da sua vida: como “favorecer”, “cultivar” os hábitos democráticos (STENGERS, 2018, p. 457).
É nesse espírito que Isabelle Stengers (2018) formula sua “proposta cosmopolítica”, cuja grande singularidade é romper com a herança iluminista, ao introduzir a exigência de uma prática de contínuo questionamento das certezas, dos modos habituais de relacionamento com os outros, das ideias prontas. Seu cosmopolitismo, ou antes sua “cosmopolítica”, como a autora a denomina, tem a ver com a coabitação necessária de diferentes humanos em um planeta em perigo, diz respeito à incerteza, à experiência o que Marco Antônio Valentim (2018, p. 28)2 chama de “sobrenatural” - o encontro com aquilo ou com aquele que, por sua total estranheza, promove o curto-circuito de nossas referências mais básicas e essenciais. Não se trata, portanto, da proposta de dizer o que é, nem sequer o que deve ser: Stengers (2018) sugere tão somente a importância de desacelerar os raciocínios habituais, de modo que se crie uma sensibilidade diferente sobre os problemas que nos mobilizam atualmente. Longe de ser, como no passado, um programa baseado na afirmação de um princípio geral, de uma verdade universal e incontestável, ou de um exercício mais ou menos descompromissado de especulação, sua proposta cosmopolítica
não tem sentido senão nas situações concretas, onde agem os práticos, e requer práticos que - este é um problema político, e não cosmopolítico - tenham aprendido a dar de ombros diante das pretensões dos teóricos generalizadores, que têm o hábito de defini-los como executores encarregados de “aplicar” uma teoria, ou de capturar sua prática como ilustração de uma teoria (STENGERS, 2018, p. 445).
O mundo que a proposta de Stengers (2018) anuncia não é aquele de um indivíduo que em toda parte estava em casa, como queriam os antigos estoicos; nem um mundo unificado por valores comuns, como os modernos imaginaram, um mundo ideal de plena positividade e de harmoniosa convivência entre indivíduos e povos (STENGERS, 2018, p. 444). O mundo de que fala a filósofa nos é muito mais próximo: é o mundo de crescentes incertezas, povoado por interrogações, assombrado por múltiplas ameaças, confrontado a “problemas cujas repercussões se apresentam como planetárias” (STENGERS, 2018, p. 446) e que resiste constantemente aos saberes e às técnicas instituídos. Um mundo no qual a “boa vontade”, o “respeito pelos outros” - sentimentos exaltados por Kant (1994) e tão valorizados nas reflexões sobre o cosmopolitismo (NUSSBAUM, 1996) -, em vez de se revelarem como chaves para a solução dos impasses, se apresentam em sua total inocuidade, como sintomas da doença terminal que atinge a razão ocidental (STENGERS, 2018, p. 446).
Devo, portanto, afirmar que a proposição cosmopolítica, tal como eu a apresentarei, renega explicitamente todo parentesco com Kant ou com o pensamento antigo. No sentido que tentarei transmitir, o “cosmos” tem pouco a ver com o mundo no qual o cidadão antigo, por toda parte, se afirmava em seu território, ou com uma terra por fim unificada, onde cada um seria cidadão. É exatamente o contrário (STENGERS, 2018, p. 444).
A proposta da autora de fato redefine completamente os termos em que o cosmopolitismo foi pensado até aqui. Para começar, o cosmos já não diz respeito, como se viu desde sua origem etimológica, à supremacia de uma forma de cultura, de um mundo particular elevado à condição de modelo e paradigma para toda a humanidade, tampouco à de um projeto inexistente, mas não menos dominante de sociedade, feito um ideal a englobar todas as outras, ou seja, ao qual todas as outras deveriam se submeter:
O cosmos, tal qual ele figura nesse termo, cosmopolítico, designa o desconhecido que constitui esses mundos múltiplos, divergentes, as articulações das quais eles poderiam se tornar capazes, contra a tentação de uma paz que se pretenderia final, ecumênica, no sentido de uma transcendência que teria o poder de requerer do que diverge que se reconheça como uma expressão apenas particular do que constitui o ponto de convergência de todos (STENGERS, 2018, p. 447, grifo nosso).
Quanto à política, ela já não anuncia a construção de um consenso que introduziria, por meio da imposição de uma medida comum (STENGERS, 2018), igualdade entre os cidadãos, esteio de uma “harmoniosa participação de cada um em um corpo único” (STENGERS, 2018, p. 455). O corpo, diz a esse respeito Stengers (2018), é uma péssima metáfora política, não apenas porque ele não funciona do modo harmônico, como se supõe, mas porque ali vigora uma rígida estratificação que garante a estabilidade do todo. “A cada vez que a referência biológica prevalece, o pensamento torna-se o inimigo”, já que o pensamento não pode senão desfazer essa estratificação (STENGERS, 2018, p. 455). No lugar dessa metáfora, a filósofa propõe o modelo químico da “catálise, da ativação, da moderação” (STENGERS, 2018, p. 456): pois, muito embora a ideia de uma técnica política possa parecer a muitos totalmente inadequada, a prática do químico é uma “arte da heterogeneidade, de trazer à presença corpos que são heterogêneos” (STENGERS, 2018, p. 460).
Fazer existir o heterogêneo
Fazer existir o heterogêneo: eis aí a exigência propriamente cosmopolítica, garantida pela recusa de se falar em nome do bem comum, da racionalidade, do progresso e, por que não, do equilíbrio de contas, da recuperação econômica? Todas essas formas de invocar um comum artificioso e inexistente impedem que as questões possam ser consideradas em sua imanência, impedem que se possa pensar o novo. É esse o contexto em que Stengers (2018) introduz as figuras do idiota, do especialista e do diplomata. Pensadas especificamente no âmbito da tomada de decisão política, elas permitem examinar de maneira bastante original as formas de autoridade e de autorização que advêm do saber teórico e técnico, determinando o rumo dos acontecimentos e a definição das soluções para os problemas. Nessa condição, tais figuras podem dar a ver, também, o modo como, no campo da reflexão e da prática da formação humana, nos relacionamos com o conhecimento, ou antes como nossas concepções sobre o conhecimento acabam por determinar como nos relacionamos não só entre nós, teóricos, professores e alunos que ostentamos posições diferentes na sociedade3, mas ainda, mais amplamente, com as diferentes culturas de que se compõe o nosso multiverso.
Por isso mesmo, nos termos de Stengers (2018), o cosmopolitismo tem como condição primeira a crítica radical do saber que mata a interrogação e a possibilidade de reconhecimento da existência dos múltiplos mundos: recusa da diferença para a qual convergem, é preciso que se diga, tanto o dogma obscurantista quanto o discurso científico, a cada vez que este, apoiando-se sobre o já pensado, se nega, ele também, a abdicar das certezas de que resultam suas posições.
É para essa ameaça que se volta Stengers (2018), cuja obra é inteiramente dedicada à questão da ciência e de seu fazer. A autora insurge-se contra a pretensão que marcou a história do pensamento ocidental, de estabelecer o conhecimento científico como autoridade inquestionável, e isso em nome da própria ciência, de sua capacidade de invenção. Essa capacidade, diz-nos Stengers (2018), não depende do solo de certezas sobre o qual se deseja erguer todo o saber, no entanto, ao contrário, da possibilidade de o pesquisador “abandonar sua posição de porta-voz de uma teoria (ou de um método) responsável por fazê-lo um cientista” (STENGERS, 2018, 452). A filósofa afirma que sua análise não pretende ser denúncia de uma injustiça ou defesa das vítimas do poder da teoria, mas tão somente examinar ainda as condições em que a ciência pode se fazer como exercício de invenção. As implicações que se podem tirar de sua reflexão vão muito além da contribuição para a reflexão epistemológica, a tal ponto que a modernidade fez do conhecimento racional sua principal arma política.
De fato, se a questão do saber acompanha toda a história da filosofia, a partir da modernidade a busca da certeza se torna uma verdadeira obsessão, conjugada nos termos de uma atividade individual de pensamento: o que posso pensar, em que condições e sob que limites? Aos poucos, porém, as garantias que essa interrogação permitiu construir se desfazem, a orgulhosa estabilidade de um saber pretensamente universal foi sendo substituída cada vez mais pelo mal-estar resultante das múltiplas evidências não apenas da incerteza que caracteriza nosso conhecimento, mas também de seu caráter necessariamente limitado e particular.
A crítica da neutralidade da ciência e a injunção ao autoquestionamento são igualmente topoi tradicionais da epistemologia moderna, contudo a autossuficiência, longamente alimentada pela imagem do pensador isolado, capaz de refazer o mundo em seu pensamento, impediu decisivamente que o exercício da autocrítica saísse do controle do pesquisador e, assim, que este, indo ao encontro de outras formas de pensar, fizesse a perturbadora experiência da incerteza:
Na maior parte do tempo, como todo mundo, eu acredito saber o que sei. Mas este termo, cosmopolítica, me ocorreu em um momento de inquietação em que me vi obrigada a desacelerar, face à possibilidade de que, não obstante toda a minha boa-vontade, eu estivesse ameaçada de reproduzir o que, desde que comecei a pensar, aprendi ser o grande pecado da tradição à qual pertenço: transformar em chave universal neutra, isso é, válida para todos, um tipo de prática de que nos orgulhamos particularmente (STENGERS, 2018, p. 445, grifo do original).
Quando enfim a chave universal neutra não abre mais nenhuma porta para o presente e o quadro em que a interrogação se coloca não vem do sujeito isolado, quando o visado já não pode, em toda sã consciência, ser mais a segurança absoluta, o problema desloca-se da questão do fundamento do saber para a questão de seus representantes, isto é, das autoridades que engendra.
Não bastam, assim, diz Stengers, a boa vontade e o respeito pelos outros; é preciso “nos estranharmos de nós mesmos, para que os outros deixem de parecer a nossos olhos exóticos” (STENGERS, 2018, p. 446); é preciso abdicar do que obriga a um sentimento de superioridade em relação aos outros saberes, aos saberes outros. Faz-se necessário, afirma a filósofa, “acabar com a tolerância” (STENGERS, 1997), essa atitude que, sob pretexto de vir ao socorro dos mais desfavorecidos, “mal dissimula um imenso orgulho”, mantida, não por acaso, “pelos especialistas modernos do que Freud havia denominado ‘as três profissões impossíveis’: ensinar (ou transmitir), governar e curar” (STENGERS, 1997, p. 8)4.
Com efeito, esses três ofícios têm em comum os fatos de lidarem com atividades presentes em todas as sociedades humanas e de seus teóricos haverem passado, desde a modernidade, a se apresentar como especialistas, que, sob a segura orientação da ciência, são capazes de recusar toda forma de crença e de ilusão. Desse modo, a tolerância manifesta-se na atividade de produção de um saber que se pretende constante e seguro, devendo servir de referência para “múltiplas práticas de assistência e de intervenção sociais” (STENGERS, 1997, p. 9) desenvolvidas pelos corpos técnicos. Ela manifesta-se também, especialmente, nessas próprias práticas, que são sempre o espaço de definição de uma “ecologia social”, isto é, espaço onde se apresentam e se relacionam grupos heterogêneos (STENGERS, 1997, p. 9). Assim sendo, tanto as práticas produtoras de saber quanto as práticas produtoras de mediação se apoiam sobre o estabelecimento “entre ‘nós’ e ‘os outros’ de uma diferença de natureza que se traduz pela possibilidade que ‘nós’ temos de julgar ‘os outros’ em termos de suas crenças, sem mesmo tê-los encontrado (STENGERS, 1997, p. 10).
Não foi esse, de fato, o caminho percorrido pela teoria da educação e por seus quadros técnicos desde que, sob o título de pedagogia, se imaginou uma “disciplina que apresenta todas as características das outras disciplinas científicas”, que “consiste, não em ações, mas em teorias”, “maneiras de conceber a educação, e não maneiras de praticá-la”? (BUISSON, 1887, p. 2089).
O idiota, o especialista, o diplomata
É nesse contexto que deve, inicialmente, intervir o idiota. Em seu sentido grego original, o termo designa aquele que não fala a língua grega, estando assim liminarmente separado da civilização e da comunidade dos civilizados. Como a personagem conceitual que, sob inspiração do famoso romance de Dostoiévski, Deleuze (1980) descreve, o idiota é, para Stengers (2018), alguém que simplesmente hesita, que instala a dúvida, que cria um interregno que, finalmente, obriga ao pensamento. Dessa forma, o idiota contrapõe-se diretamente à figura do especialista, que, em seu apego à teoria, acaba por se fazer incapaz de reflexão. Ou seja, tendendo a definir cada situação como um simples caso particular de uma determinação mais geral, a teoria acaba por “impedir que seus representantes sejam obrigados a pensar, que esse caso os coloque em risco” (STENGERS, 2018, p. 452).
Em outras palavras, o saber do especialista a que se refere a filósofa se instala independentemente da situação ecológica que o convoca, isto é, dos diferentes grupos em presença, independentemente do que o “oikos o obriga a levar em conta, ou, ao contrário, a ignorar”(STENGERS, 2018, p. 450)5. Por isso mesmo, o especialista pode seguir sem que seu conhecimento e sua prática jamais sejam ameaçados pela experiência: “O especialista é aquele cuja prática não é ameaçada pelo problema discutido, e seu papel exigirá dele que se apresente, e apresente aquilo que sabe de um modo que não prejulgue a maneira como esse conhecimento será levado em conta” (STENGERS, 2018, p. 460).
Nessas condições, o saber do especialista engessa-se e esvai-se, pois nenhuma invenção é mais possível. Eis que, do ponto de vista do conhecimento, colocar-se em risco é fazer viver o saber que, de outra maneira, assume sua completa impotência.
A ecologia política afirma que não existe conhecimento que seja ao mesmo tempo pertinente e separado: não é de uma “definição objetiva” de um vírus ou de uma inundação que podemos ter necessidade, mas daqueles cujas práticas foram engajadas de modos múltiplos “com” esse vírus ou “com” esse rio (STENGERS, 2018, p. 459).
Todavia, como afirmado, há ainda uma terceira figura, relativa àqueles cuja prática é produtora de mediação. É a ela que Stengers se refere ao nomear o diplomata - esse mesmo que os especialistas veem como simples executores encarregados de aplicar o conhecimento que lhes é servido. Engajados com a prática, seu papel é criar mediações e parece ser especialmente importante no âmbito de um conhecimento que, em vez de se mostrar insensível às especificidades do oikos, define uma verdadeira “ecologia política”, uma “cultura ativa da incerteza” (STENGERS, 2018, p. 451), um conhecimento mais do que apropriado, assim, para o fazer entre humanos.
Nos dois textos que estamos examinando, “La proposition cosmopolitique” (STENGERS, 2007) e “Pour en finir avec la tolérance” (STENGERS, 1997), Stengers tem em mente situações muito específicas de deliberação política envolvendo, costumeiramente, o interesse de uma população particularmente diante do poder daqueles que falam em nome do bem comum tanto quanto dos especialistas chamados a se pronunciar sobre as questões em litígio. Ela apoia-se na distinção operada por Bruno Latour (2011) entre questões de fato (matters of fact) - que teriam, a princípio, a qualidade de um equacionamento neutro, racional - e questões de interesse (matters of concern), para descrever a forma como a palavra dos especialistas sempre acaba por prevalecer, mesmo quando se trata de um fórum aparentemente aberto reunindo os estudiosos e técnicos e a população interessada pela discussão (STENGERS, 1997, p. 40).
Em nome da ciência, da expertise, do interesse geral (essa generalidade pronta a ser servida em todos os pratos), dos imperativos administrativos ou econômicos, define-se quem são os interlocutores autorizados e a quem não se faculta o direito à voz, visto que, pessoalmente comprometidos com as questões em jogo, eles são tidos como incapazes de ater-se à pureza descritiva e neutra dos fatos tal como a grande tradição moderna nos ensinou a pensá-los:
O erro que cometemos, o erro que cometi, foi acreditar que não havia uma outra maneira eficiente de criticar os fatos a não ser nos afastando deles e direcionando a atenção para as condições que os tornavam possíveis. Mas isso significava aceitar de maneira muito acrítica o que eram essas questões de fato, o que era fiel demais à infeliz solução herdada da filosofia de Immanuel Kant. A crítica não tem sido crítica o suficiente, apesar de todos os seus arranhões doloridos. A realidade não é definida por questões de fato. Questões de fato não são as únicas coisas que a experiência nos dá. As questões de fato são muito parciais e, eu diria, muito polêmicas, interpretações muito políticas das questões de interesse, apenas um subconjunto do que também poderia ser chamado de estado de coisas. É esse segundo empirismo, esse retorno à atitude realista, que eu gostaria de oferecer como a próxima tarefa para os críticos (LATOUR, 2004, p. 231-232, grifos nossos).
A proposta etoecológica6 de Stengers é a de recusa de modelos de entendimento e desentendimento espontâneos que acabam por dominar nas reuniões de boa vontade, tais como elas se apresentam (ou não) nos embates políticos envolvendo, por exemplo, as questões fundiárias, os direitos dos povos da floresta, as reivindicações dos diferentes movimentos sociais, os destinos da escola e da universidade pública.
A ecologia das práticas promovida pelo cosmopolitismo envolve, assim, a limitação dos poderes dos especialistas, mas também a atuação de diplomatas chamados, a cada vez, a prolongar os papéis heterogêneos, a “fazer existir o heterogêneo contra a poderosa tentação de tomadas de posição em nome do que o é autorizado pelo interesse comum, pela ciência, pela razão etc.” (STENGERS, 2007, p. 64).
A participação dos interessados suspende o hábito que nos faz pensar que sabemos o que sabemos e quem somos, que detemos o sentido do que nos faz existir. Nesse contexto, os interesses, ou seja, a identidade particular de quem os sustenta, não é um obstáculo, porém a própria condição do exercício diplomático - do qual se espera que saiba criar o etos de uma interrogação que não visa à reflexão sobre, mas descoberta do que de fato importa na situação em questão (STENGERS, 2007, p. 65).
É assim que se instala uma “produção pública, coletiva de saberes em torno de situações que nenhuma expertise particular pode ser suficiente para definir, e que exigem a presença legítima ativa, objetante, propositiva, de todos os ‘interessados’”. (STENGERS, 2007, p. 54).
O exercício da diplomacia a que estão, portanto, sumariamente convocados todos aqueles comprometidos com uma população ameaçada pela invisibilidade, pela perda de identidade, pela indiferença e pela desigualdade ganha hoje um sentido de urgência que apenas as múltiplas crises justificam. O diplomata é aquele que está lá para garantir que se dê voz àqueles cujo modo de existência, o que habitualmente denominamos de identidade está ameaçado pelas decisões políticas:
O papel dos diplomatas é pois, antes de qualquer outra coisa, de suspender a anestesia que produz a referência ao progresso ou ao interesse geral, dando voz aos que se definem como ameaçados, de forma a fazer hesitar os especialistas, a obrigá-los a pensar a possibilidade de que sua decisão seja um ato de guerra (STENGERS, 2007, p. 65).
O que o diplomata realiza ao dar voz a esse outro incômodo cuja presença não estava prevista o idiota o faz com sua intervenção, ao suspender temporariamente a autoridade do saber científico e especializado para fazer existir certa desorientação.
Não é, portanto, a força de coerência dos discursos dos que têm voz que, levando a um consenso, faz ser a cosmopolítica, mas a presença “sob um modo que imprime o máximo de dificuldade para a decisão, que proíbe qualquer atalho, qualquer simplificação, qualquer diferenciação a priori entre o que conta e o que não conta” (STENGERS, 2007, p. 67).
Um cosmos para a política: a recuperação do corpo
A tradição política do Ocidente preconizava que cada cidadão ou grupo de cidadãos colocasse a formulação de seus interesses à prova do interesse geral, do pertencimento à comunidade política e seu projeto. Mas, na medida em que a ecologia das práticas, diz Stengers, não pretende se fazer cúmplice da “grande divisão” (LATOUR, 1993) entre culturas modernas e não modernas - essa maneira clássica de se construir o mundo pela divisão entre um nós e os outros -, é necessário rever as grandes categorias que herdamos dessa tradição e, especialmente, aquelas que definem as relações de coexistência, isto é, a política. Desconfiando, portanto, da dimensão universal atribuída a essa tradição ocidental, trata-se, pelo cosmopolitismo, de colocar em questão sua lógica, sua forma de desconfiar do que resistia a essa universalidade e de desconfiar do particular, rapidamente convertido em corporativismo. Disso não se implica, porém, uma injunção ao abandono dessas categorias; elas
devem ser complicadas, retomadas “com” outras categorias que “dobram” de forma diferente a divisão entre particular e coletivo. E, entre essas outras categorias, estão essas “sobrenaturezas”, esses mundos múltiplos que parecem destinados a criar obrigações e condições não redutíveis à questão do pertencimento, ainda que conflituoso, a uma comunidade política (STENGERS, 1997, p. 68).
Os corpos em presença, longe de se apresentarem liminarmente como obstáculos para um consenso universal, realizam o ambiente democrático, criando a exigência de abertura à totalidade dos interessados, à totalidade dos interesses, à totalidade dos modos de ser - mas uma totalidade para sempre explodida, transtornada pela própria presença desses múltiplos cuja principal característica é ser irredutíveis a um denominador comum estável.
Não há, contudo, como idealizar a situação desses que serão diretamente atingidos pelas deliberações mais amplas realizadas no âmbito político: nem sempre eles conhecem ou avaliam com clareza a situação que ameaça sua existência, seus interesses, seu modo de vida. É aqui que a perspectiva da formação humana se impõe como prática de um novo tipo de cosmopolitismo: fazer existir a diversidade ali onde se pensou o tempo todo sob o modo da uniformização, prolongar a heterogeneidade em vez de buscar a identificação, assegurar a presença de outros mundos e modos de ser. Isso não pode ser realizado pela imposição de uma autoridade teórica, nem mesmo pelos discursos racionais que ela poderia sustentar: a dificuldade consiste aqui no fato de que o cosmos, tal como ele figura na proposta cosmopolítica, não tem representante: ninguém fala em seu nome, e seu modo de existência traduz-se pelo conjunto diverso dos modos de fazer que o constituem.
Em outras palavras, a noção de cosmos, tal como Stengers (1997) a propõe, resiste ao movimento que constituiu desde seus primeiros passos a tradição filosófica no Ocidente como exigência de abandono da toda dimensão material da existência e, antes de qualquer coisa, da própria corporeidade em favor de um conhecimento que se pretende especializado e imparcial:
Enquanto nosso corpo estiver associado à nossa razão, em nossa pesquisa, e que nossa alma estiver contaminada por este mal, não atingiremos completamente o que desejamos e que dizemos ser o objeto de nosso desejo, que é a verdade. [...] Enquanto estivermos em vida, o melhor meio, ao que parece, para nos aproximarmos do conhecimento é de, tanto quanto possível, não manter qualquer comércio ou comunhão com o corpo (PLATÃO, 1984, 66b-67a).
O anátema lançado contra o corpo, anunciado pela alma platônica, vai se consolidar na modernidade no ego cogito cartesiano, cuja atividade supõe a prévia abstração de qualquer dimensão corpórea e mundana e que, como bem observa Descola (2005), ainda vige entre os humanos sob a forma de um “regime de separação entre um espírito mais ou menos imaterial e um mundo físico e corpóreo objetivo” (DESCOLA, 2005, p. 324). Como nessa tradição, que vai de Platão a Hegel, o conceito, diz-nos Galimberti (1998, p. 77), representa “o universal que está presente na coisa”, a rejeição do corpo implica fazer da alma o equivalente geral capaz de reduzir a multiplicidade das formas a uma ideia universal uniforme.
Eis como conhecer, tal como queria Platão, consiste invariavelmente nessa operação de abstrair-se do mundo e do corpo, na consagração de um saber que, liberado das limitações do tempo e do espaço, nada deve nem ao etos nem ao kairós (JANKÉLÉVITCH, 1980, p. 93):
Conhecer a natureza não mais significa observá-la, mas converter suas diferenças qualitativas à in-diferença quantitativa que constitui o índice matemático antecipado para as funções do ego. [Em outras palavras, o conhecimento no sentido cartesiano implica em um] […] processo de abstração da experiência sensível (GALIMBERTI, 1998, p. 50).
Assim, por extensão, conhecer o outro, na tradição cartesiana, não é mais voltar-se para ele, observá-lo, deixando-se afetar pela experiência de sua singularidade e abrindo-se para outros modos de ser, mas “reduzir as diferenças qualitativas a uma indiferença quantitativa” (GALIMBERTI, 1998, p. 50). Integralmente formalizado, o outro é um conceito, tal como o é o próprio corpo, que, concebido intelectualmente, já não guarda muito em comum com o corpo vivido na experiência:
Já que somente a res cogitans é pensante, obtém-se um corpo tal como concebido pelo intelecto, e não tal como vivido na existência. Um corpo como ideia e não em carne e osso [...]. A história conservará como única verdade do corpo sua experiência desencarnada (GALIMBERTI, 1998, p. 51).
Tampouco o empirismo rompeu com a separação corpo/alma, que recusa qualquer abertura sobre o mundo: longe de ser a aquisição de um indivíduo privado de corpo, o mundo é, mesmo aí, o produto de uma operação intelectual (GALIMBERTI, 1998, p. 52). Eis como a autoridade da ciência se estabelece contra a experiência de mundo a que o corpo e somente ele dá acesso. Entende-se, então, que a problemática anunciada por Stengers (2018) em sua proposta cosmopolítica foi não apenas estabelecida nos meios científicos, mas interiorizada pelo tipo antropológico que a modernidade forjou: “Educados pelo conhecimento filosófico e científico, nós não temos qualquer dificuldade hoje em renunciar à nossa própria experiência ou em desvalorizar nosso próprio ponto de vista sobre o mundo para adotar o do ‘Eu-penso’”. (GALIMBERTI, 1998, p. 83).
Urge, portanto, recuperar o corpo, desfazendo o poder abstrativo e reducionista do ego incorpóreo da modernidade, substituindo o formalismo da consciência pela comunicação sensorial sem a qual é impossível habitar o mundo, ou pensá-lo, como queria Kant (1994), com o a priori da razão (GALIMBERTI, 1998, p. 84-85).
Redescobrir um corpo… cósmico
Nesse contexto, tanto quanto a proposta cosmopolítica implica a exigência de um longo trabalho de formação humana que contribua para instituir na sociedade e nas novas gerações disposições que favoreçam os hábitos democráticos, essa formação não pode, tampouco, se fazer sem a recuperação do corpo, nem se erguer sob as bases de uma concepção formal, universalista e desencarnada de saber, mas deve trazer à presença as marcas sensíveis da diversidade que precisa abraçar. Se, assim como a prática política, a formação humana sempre desconfiou dos corpos, a proposta cosmopolítica sugere, também nesse domínio, de maneira ainda mais urgente, a valorização da corporeidade.
Todavia não a valorização de qualquer corpo, não o corpo entendido como singularidade isolada, corpo anatômico ele próprio despedaçado em órgãos isolados, tal como a ciência nos apresenta. O corpo a ser reencontrado é aquele capaz de abrir-se à dimensão desse cosmos. A fenomenologia mostrou que a vida do corpo é a abertura para o mundo e que o mundo, por sua vez, é “o meio em que se exprimem as potencialidades do corpo” (GALIMBERTI, 1998, p. 58). Redescobrir o corpo é, pois, a exigência primordial de uma proposta que pretende fazer coexistir mundos múltiplos e divergentes: “As relações que meu corpo aberto ao mundo desenvolve fazem dele a origem de todas as transcendências. A partir dessa origem, meu corpo exprime um logos bem mais profundo que todas as relações lógico-objetivas” (GALIMBERT, 1998, p. 82-83).
Uma formação que se dedique à recuperação do corpo como primeiro e original apoio para o cosmopolitismo não é tarefa, porém, nem para os especialistas que a ciência autoriza nem para uma prática entre outras de diplomacia. Para empregar ainda a terminologia de Stengers (2018), ela começa pela atuação do idiota, incapaz de falar a língua da in-diferença, apartado da comunidade dos civilizados e de valores desde sempre instituídos como abstrações que falam em nome do bem comum, da moral social, do desempenho econômico do país. Dar sobrevida ao idiota é, nesse sentido, uma estratégia indispensável para que a formação humana, longe de fazer da perda do mundo seu vetor principal, possa ser pensada em termos de produção da presença do múltiplo e do heterogêneo (GUMBRECHT, 2010, p. 72). O idiota abre caminho, mas é ainda preciso que se possa instalar, a exemplo dessas culturas da presença de que nos fala Gumbrecht (2010), uma cosmologia mais ampla, na qual, situados espacial e fisicamente, os corpos possam voltar a se ver como parte do mundo, e não como subjetividades dele apartadas (GUMBRECHT, 2010, p. 106). “A referência ao corpo, na cultura de presença, implica que, nas relações entre humanos, e destes com as coisas do mundo, a ênfase recai sobre a dimensão espacial - ‘dimensão que se constitui ao redor dos corpos’” (GUMBRECHT, 2010, p. 110).
A formação cosmopolítica é aquela que se abre à incalculável diversidade em que se implica a coexistência das culturas e dos modos de ser múltiplos que habitam o mesmo planeta. Mas, como fazê-lo? Que figura seria preciso convocar para viabilizar tal revolução no modo de ser que é o nosso - que depende de interromper a temporalidade impositiva da lógica capitalista e desconfiar das necessidades e das urgências que ela nos propõe e ainda, muito mais, de romper o fechamento cognitivo que caracteriza as sociedades (CASTORIADIS, 1999, p. 27)? Não a figura do especialista, tampouco daquele que fala em nome de um saber a ser transmitido:
Acolher o novo nada tem a ver com uma aprendizagem, porque isso equivale, no mínimo, a modificar maciçamente e repentinamente os dispositivos “subjetivos” já estabelecidos (num processo onde os “ensaios e erros” não têm praticamente nenhum papel). É claro que essa capacidade de acolher o novo, sempre minimamente presente porque senão não haveria alterações da sociedade, sofre ela própria uma imensa transformação, em função da criação histórica de sociedades que rompem o fechamento quase absoluto das sociedades tradicionais (CASTORIADIS, 1999, p. 54).
Não se trata de aprendizagem, mas de formação, de autoformação, porque se trata de criar. A instalação de uma cultura cosmopolita parece depender, entre tantas outras coisas, da capacidade de acolhimento do diverso, que é sempre necessariamente também criação do novo, criação de uma nova disposição diante do divergente, criação de novos modos de ser capazes de religar o sujeito a seu corpo e seu mundo. Mas, de onde poderia vir essa extraordinária mudança? O que teria hoje essa força de impacto que os discursos não carregam, essa capacidade de produzir outras imagens, além daquelas com que nos bombardeia a propaganda onipresente, imagens que, atendendo à urgência que é a nossa, possam falar aos sentidos? Como trazer para perto o que insiste em se manter a distância, entrecoberto pelos inúmeros convites ao consumo e ao individualismo? Como conquistar do idiota o tempo perdido, do diplomata o exercício da observação e da escuta, dos práticos o engajamento? Se uma resposta pode ser ainda construída, então é preciso supor que, em seu sentido cosmopolita, a formação humana deverá se apoiar essencial e integralmente na arte:
Talvez fosse esse o papel que conviria muito especificamente àqueles que usualmente são denominados “artistas”, pois trata-se de transmitir alguma coisa que não é da ordem de uma posição, trata-se de dar dignidade e importância ao que pertence primeiro à “sensação” (CASTORIADIS, 1999, p. 66).
Referências
-
BUISSON, F. Pédagogie. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire. Paris: Hachette, 1887. Disponível em: <Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3355
>. Acesso em: 8 abr. 2019.
» http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3355 - CASTORIADIS, C. Encruzilhadas do labirinto V: feito e a ser feito. Rio de Janeiro: DPA, 1999.
-
DELEUZE, G. Spinoza: cours du 02/12/80 [transcription: Christina Rosky]. 1980. Disponível em: <Disponível em: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=131
>. Acesso em: 8 abr. 2019.
» http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=131 - DESCOLA, P. Par delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.
- GALIMBERTI, U. Les raisons du corps. Paris: Garsset-Mollat, 1998.
- GUMBRECHT, H. U. A produção da presença. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.
- JANKÉLÉVITCH, V. Le Je-ne-sais-quoi et le Presque-rien. Paris: Seuil, 1980.
- KANT, I. Idée d’une histoire universelle. Paris: Nathan, 1994.
- LAËRCE, D. Vies e doctrines des philosophes illustres. Paris: Le livre de Poche, 1999. 720 p.
- LATOUR, B. Il n’y a pas de monde commun: il faut le composer. Multitudes, n. 45, p. 38-41, 2011.
- LATOUR, B. Nous n’avons jamais été modernes. Paris: La Découverte, 1993.
- LATOUR, B. Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern. Critical Inquiry, v. 30, n. 2, p. 25-248, 2004.
- NUSSBAUM, M. For Love of Country. Boston: Beacon Press, 1996.
- PLATÃO. Fédon. Paris: Belles Lettres, 1984.
- RANCIÈRE, J. Le Partage du sensible: esthétique et politique. Paris: La Fabrique, 2000.
-
STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 442-464, 27 abr. 2018. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/145663>. Acesso em: 4 fev. 2019. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464
» https://doi.org/https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464» http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/145663 - STENGERS, I. La proposition cosmopolitique. In: LOLIVE, J.; SOUBEYRAN, O. (orgs.). L’émergence des cosmopolitiques. Paris: La Découverte , 2007. p. 45-68.
- STENGERS, I. Pour en finir avec la tolérance. Cosmopolitiques VII. Paris: La Découverte/Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1997.
- VALENTIM, M. A. Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental. Florianópolis. Cultura e Barbárie, 2018.
-
YERASIMOS, S. Le cosmopolitisme avant les nationalismes. In: BADUEL, P. R. (org.). Construire un monde? Mondialisation, pluralisme et universalisme. Tunis: Institut de Recherche sur le Maghreb Contemporain, 2007. 332 p. Disponível em: <Disponível em: http://books.openedition.org/irmc/444
>. Acesso em: abr. 2019.
» http://books.openedition.org/irmc/444
Notas
-
1
. Atribui-se a invenção do termo a Diógenes Laërce (1999).
-
2
. A sobrenatureza é a descoberta do “equívoco ontológico”, o encontro com outra ontologia. A proposta cosmopolítica de Stengers (2018) sugere uma descrição de “nosso mundo” que não faça a economia desse equívoco. Nosso mundo pretende abolir esses outros mundos, sua possibilidade ontológica, para fazer reinar uma só visão da natureza, da realidade e das leis que as regem.
-
3
. Ainda que partindo da mesma crítica à impostura engendrada pela autoridade do saber instituído que Rancière (2000) desenvolve, a proposta de Stengers (2018) parece-nos ir mais longe na análise da forma como concretamente se dão as tomadas de decisão política na atualidade.
-
4
. A forma como Stengers (2018) traduz a famosa tríade é limitada, fazendo a formação equivaler ao ensino e o trabalho psicanalítico a uma cura.
-
5
.Oikos no grego antigo designa a casa, o lugar de habitação, o ambiente familiar, que engloba parentes, agregados e escravos, animais e todo tipo de bens. Do vocábulo deriva economia, entendida como administração do oikos. É também dele que deriva ecologia, termo que a partir do século XIX passou a indicar o estudo do hábitat, do ambiente em que se vive.
-
6
. O termo, cunhado pela autora, faz menção ao etos (também grafado ethos), aos costumes, ao modo de ser habitual, às características de um grupo ou de um povo, tanto quanto a seu meio-ambiente, seu hábitat, e traduz a codeterminação entre os hábitos mentais e comportamentos e o ambiente, na definição da cultura de um grupo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Dez 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
29 Abr 2019 -
Aceito
16 Ago 2019