Open-access EDUCAÇÃO, PATRIMÔNIOS E COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL EM ESCOLAS PÚBLICAS NO SUL DO BRASIL

EDUCATION, HERITAGE AND INTERCULTURAL COMMUNICATION IN PUBLIC SCHOOLS IN SOUTHERN BRAZIL

EDUCACIÓN, PATRIMONIO Y COMUNICACIÓN INTERCULTURAL EN LAS ESCUELAS PÚBLICAS DEL SUR DE BRASIL

RESUMO

O artigo orienta-se pela hipótese de que a educação patrimonial pode converter-se em ferramenta conceitual e metodológica para a comunicação intercultural em contextos escolares. A partir de entrevistas realizadas com docentes atuantes nos anos iniciais da escolarização no estado do Rio Grande do Sul, são examinadas experiências e práticas pedagógicas em Ciências Humanas articuladas com iniciativas de educação patrimonial destinadas à salvaguarda e à valorização de histórias, territórios e identidades. As evidências analisadas põem em questão facetas contraditórias da educação patrimonial desenvolvida em municípios e, simultaneamente, demonstram sua pertinência para desconstrução e problematização de traços coloniais, seletivos e eurocêntricos presentes em práticas pedagógicas desenvolvidas no Sul do Brasil.

Palavras-claves Educação patrimonial; Interculturalidade; Comunicação intercultural

ABSTRACT

This article is guided by the hypothesis that heritage education can become a conceptual and methodological tool for intercultural communication in school contexts. Based on interviews carried out with teachers working in the early years of schooling in the state of Rio Grande do Sul, Brazil, experiences and pedagogical practices in Human Sciences articulated as heritage education initiatives aimed at valuing histories, territories and identities are examined. The evidence analyzed calls into question contradictory facets of heritage education in municipal contexts and, simultaneously, demonstrates its relevance for deconstructing and problematizing colonial, selective, and eurocentric traits present in pedagogical practices developed in southern Brazil.

Keywords Heritage education; Interculturality; Intercultural communication

RESUMEN

Este artículo se guía por la hipótesis de que la educación patrimonial puede convertirse en una herramienta conceptual y metodológica para la comunicación intercultural en contextos escolares. A partir de entrevistas realizadas a docentes que trabajan en los primeros años de escolaridad en el estado de Rio Grande do Sul, se examinan experiencias y prácticas pedagógicas en Ciencias Humanas articuladas como iniciativas de educación patrimonial orientadas a valorar historias, territorios e identidades. La evidencia analizada cuestiona facetas contradictorias de la educación patrimonial en contextos municipales y, simultáneamente, demuestra su relevancia para deconstruir y problematizar rasgos coloniales, selectivos y eurocéntricos presentes en las prácticas pedagógicas desarrolladas en el sur de Brasil.

Palabras-chave Educación patrimonial; Interculturalidad; Comunicación intercultural

Introdução

Eis-nos chegados a uma estranha situação: é nesta sociedade contemporânea onde foi anunciado tantas vezes a morte do sujeito que este aparece em plena luz (TOURAINE, 2007, p. 222).

As concepções eurocêntricas, monoculturais e conservadoras de patrimônio cultural e de educação patrimonial são hoje circunscritas por um conjunto de impasses e dilemas políticos e identitários diante de mudanças nos sentidos e nas práticas de patrimonialização cultural no Brasil. Os lugares tradicionais de poder estatal que delineavam a ideia de patrimônio são problematizados pela emergência de novos atores demandantes de lógicas afirmativas e de políticas de representatividade ao setor. Identifica-se o protagonismo de novas coletividades ao reivindicarem processos de registro ou tombamento (ABREU, 2015), principalmente indígenas, afro-brasileiros, quilombolas, mulheres e populações periféricas detentoras de uma história de exclusão social e negação cultural.

Esse movimento histórico de rediscussão de processos coloniais e dos procedimentos políticos direcionados à homogeneização vem ressignificando a pauta pedagógica e cultural de instituições educativas, ora manifestando a efetuação de novas tarefas socioculturais, como a salvaguarda de bens e patrimônios culturais, ora reconhecendo a composição de agendas progressistas, caso da interculturalidade, mesmo em contextos contraditórios e de retrocesso democrático. Em específico, George Yúdice (2015) afirma que as políticas culturais desenvolvidas no continente americano engendraram demandas por uma ecologia cultural capaz de equilibrar sustentabilidade e diversidade em suas diversas configurações territoriais.

Na perspectiva das instituições escolares, o ensino de Ciências Humanas, principalmente Geografia e História, acompanha todo esse movimento político, cultural e intelectual de crítica aos processos monoculturais que produziram representações fixas e estáveis das identidades nacional e regional. De acordo com Circe Bittencourt (2007), as reformulações curriculares iniciadas no Brasil no final da década de 1980 e em meados de 1990 continham essas críticas e reverberavam debates entre professores e pesquisadores a respeito da desconsideração da realidade nacional nos planos de ensino, do abrandamento dos processos coloniais ou mesmo da simplificação das dinâmicas espaço-temporais e identitárias vividas na América Latina.

No caso do ensino de Ciências Humanas nos anos iniciais da escolarização, no Ensino Fundamental, esse revisionismo ofereceu condições para a emergência de práticas pedagógicas direcionadas aos territórios, destacando-se a História e a Geografia municipal. Verifica-se uma importante associação do ensino dessas áreas à educação patrimonial, não entendida simplesmente como metodologia de ensino, mas como ferramenta sociocultural de produção de lugares e identidades. Contudo, no estado do Rio Grande do Sul, contexto de realização do presente estudo, considerando-se sua constituição histórica e demográfica marcada pela imigração europeia desde o século XIX, observam-se traços acentuados de tradicionalismo cultural; de predomínio curricular de festas e celebrações municipais da história oficial remanescentes da presença de alemães, italianos, poloneses, açorianos, entre outros; e de uma tendência à comunicação monocultural em seus ambientes institucionais e nas interações dos indivíduos nas comunidades.

O presente artigo orienta-se pela hipótese de que a educação patrimonial pode converter-se em ferramenta conceitual e metodológica para a comunicação intercultural em contextos escolares. A partir de entrevistas realizadas com docentes atuantes nos anos iniciais da escolarização no estado do Rio Grande do Sul, são examinadas experiências e práticas pedagógicas em Ciências Humanas articuladas como iniciativas de educação patrimonial destinadas à valorização de histórias, territórios e identidades.

Visamos pôr em questão facetas contraditórias da educação patrimonial em contextos municipais e, simultaneamente, demonstrar sua pertinência para desconstrução e problematização de traços coloniais, seletivos e eurocêntricos presentes em práticas pedagógicas desenvolvidas no Sul do Brasil. Para esse propósito, organizamos o presente artigo em três seções textuais. Na primeira, iremos revisitar alguns princípios que fundamentam a ideia moderna de patrimônio cultural para, a seguir, expor algumas evidências conceituais da pluralização da noção de patrimônio e de sua capacidade de incorporar novos elementos ou reelaborar-se no século XXI. Na segunda, pretendemos sistematizar aspectos conceituais que fundamentam a análise a ser realizada, com ênfase no exame do conceito de interculturalidade. Na terceira, serão explicitados os procedimentos metodológicos e as principais estratégias empregadas para a produção dos dados examinados, seguidos pela análise de depoimentos de professores e professoras atuantes em escolas públicas, diante das escolhas conceituais apresentadas nas sessões anteriores.

De Patrimônio a Patrimônios

De acordo com Dominique Poulot, qualquer tipo de patrimônio “tem a vocação de encarnar uma identidade em certo número de obras ou de lugares” (2009, p. 40). O debate acerca das referências do que é digno ou não de ser definido como patrimônio é tangenciado por uma “pedagogia política do patrimônio” (POULOT, 2009), a qual propõe e atribui uma identidade a uma comunidade. Essa pedagogia mobiliza duas representações: 1) uma territorial, “cujos limites são materializados por diversos monumentos e cujo controle dependia de um saber estratégico” (POULOT, 2009, p. 41) – geralmente um conhecimento nativo; 2) uma representação estetizada de uma paisagem a ser desenhada ou pintada – caracterizada por um mundo de elites, de “homens de gosto”, estranhos ao local, que se tornam mentores de “orgulho local” (POULOT, 2009, p. 41).

A invenção identitária proposta por Poulot, inspirada na narrativa de Goethe sobre a Catedral de Estrasburgo, oferece-nos subsídios para a compreensão do modo como o sentido de patrimônio cultural é fabricado nas sociedades modernas ocidentais e, em alguma medida, como é alicerçado em uma pedagogia político-patrimonial.

Para além da viagem pitoresca, da qual ela participava com essa figura do desenhador de temas, a postura de Goethe anunciava a posição que, mais tarde, será ocupada pelo Inspetor dos Monumentos Históricos, na configuração imaginada, em 1830, pelo político influente e historiador François Guizot: trata-se da capacidade de dirigir as consciências e os modos de apropriação dos habitantes, graças a uma pedagogia política e cultural

(POULOT, 2009, p. 42).

Nas primeiras décadas do século XIX, diversos países europeus iniciaram processos de unificação política. Importava desincorporar os pertencimentos e lealdades com as comunidades locais e incorporar novas pertenças e identificações orientadas pelos valores dos nascentes Estados nacionais. Nesse contexto, Benedict Anderson nos apresenta a definição de nação como uma comunidade política imaginada e reitera que “a condição nacional é o valor de maior legitimidade universal na vida política dos nossos tempos” (2008, p. 28). Poulot ainda acrescenta que esse processo é acompanhado por um conjunto amplo de disputas e tensões, tanto por representações identitárias e subjetivações históricas (caso da escola pública, por exemplo) quanto pela coerência a narrativas de autenticidade, apropriação e entendimento social sobre o que é um patrimônio. Cada contexto nacional, principalmente na Europa e na América, evidenciou suas afirmações e suas contradições quanto à invenção da ideia de patrimônio.

No caso brasileiro, Márcia Chuva, ao estudar as práticas de preservação do patrimônio cultural nas décadas de 1930 e 1940, informa que tais práticas integraram o amplo processo de formação do Estado e da nação e são “consideradas como formas específicas integradoras da nação” (2009, p. 317). Desde sua origem, o IPHAN (primeiramente SPHAN) comprometeu-se com a restauração de bens tombados, assumindo a busca por suas feições originais e primitivas, objetivando a produção da brasilidade. O barroco lusitano foi assumido como parâmetro para definição dessa “brasilidade”, o qual foi reinterpretado como produção cultural expressiva da evolução universal da arte em detrimento das visões anteriores, que o definiam como desqualificado.

A afirmação do barroco significou a rejeição das influências indígena, africana ou afro-brasileira e de outros deslocamentos populacionais sobre o patrimônio cultural brasileiro. Até a década de 1970, o trabalho do IPHAN e das agências estaduais para o setor visou reunir e reinterpretar aspectos da vida cultural do país, com ênfase na profusão de ações orientadas por uma narrativa única, qual seja: associar o patrimônio cultural a uma discursividade capaz de “unificar nação e cultura, constituindo-se em peça fundamental no processo de construção da nação” (CHUVA, 2009, p. 327). A comunicação cultural presente (ausente) em tais políticas e iniciativas era obstaculizada por uma posição de poder monocultural (SILVA, 2015), eurocêntica e conservadora, sob a qual repousava a negação da existência física e simbólica de negros, quilombolas, indígenas, mulheres, ribeirinhos, campesinos e pobres. O predomínio da “boa tradição” (CHUVA, 2009) e da necessidade de critérios técnicos com fundamentação científica positiva ofereceu-nos seis décadas de um léxico patrimonial seletivo e excludente.

A partir da década de 1980, verificou-se, no plano internacional, uma ampliação da conceituação de patrimônio e seus instrumentos de preservação. O Brasil, porém, mantinha-se resistente a formas alternativas de patrimonialização (LONDRES, 2009). O tombamento fez-se o instrumento de preservação por excelência (LONDRES, 2009), o qual, além de um instrumento jurídico, converteu-se em rito de consagração do valor patrimonial de um bem no país.

Somente no final do século XX vislumbram-se mudanças expressivas no conjunto das práticas de patrimonialização no Brasil. Primeiramente, verificamos novas ênfases identitárias e demandas por tombamento de outras origens étnicas e processos migratórios, reduzindo gradativamente a perspectiva lusitano-barroca que orientava a ideia brasileira de patrimônio vigente. Destaca-se o tombamento do casario colonial remanescente da imigração italiana em Antônio Prado, no estado do Rio Grande do Sul, que representa o primeiro tombamento de origem não portuguesa no país (SILVA, 2017). Importantes também, para essa redefinição e para desdobramentos futuros no campo cultural, foram os tombamentos do Terreiro da Casa Branca, na Bahia, e da Serra da Barriga, em Alagoas, os quais representaram a participação negra na constituição da sociedade brasileira e são entendidos como verdadeiras lutas políticas pelos movimentos negros.

Na esteira da publicação da Recomendação de Salvaguarda das Culturas Tradicionais e Populares (UNESCO, 1989) e do processo de redemocratização do país, verificamos a consolidação de políticas preservacionistas em fóruns internacionais (sendo o Brasil signatário de acordos) e a emergência de novos sujeitos do direito coletivo que passam a participar e a demandar processos de patrimonialização (ABREU, 2015). O Programa Cultura Viva (a partir de 2005) e a promulgação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (Decreto n. 5753/2006) engendraram condições para uma visão ampliada e democrática dos processos patrimoniais, incorporando comunidades tradicionais e populações residentes em periferias urbanas. Ocorre, nos termos de Néstor García Canclini (2006), a dissolução de monoidentidades e a progressiva emergência de novos processos de patrimonialização (SILVA, 2019).

Importante considerarmos a indissociabilidade histórica entre educação e patrimônio cultural. Desde as primeiras políticas culturais direcionadas ao setor, verificou-se forte permeabilidade entre as áreas, bem como os efeitos de sentido desdobrados de sua aplicabilidade em diversos contextos. A “pedagogia política do patrimônio” (POULOT, 2009) alicerçou interesses, ideologias e inovações no campo cultural, estendendo a força educativa dos patrimônios, mediante sua socialização, sua valorização e a conscientização dos valores estatais que lhe eram inerentes.

As primeiras ações designadas como Educação Patrimonial no Brasil datam da década de 1980. Em 1983, a Heritage Education foi apresentada no I Seminário de Uso Educacional de Museus e Monumentos e, em 1999, ressignificada pela publicação do Guia Básico de Educação Patrimonial. Nesse período, ainda que estivéssemos em um contexto de abertura democrática, as práticas eram associadas a uma metodologia de ensino apropriada à socialização do valor do patrimônio histórico e artístico nacional e aos sentidos estadocêntricos de patrimônio, bem como a metodologias para o ensino de História na escola.

A passagem de Patrimônio (maiúsculo e singular) a patrimônios (minúsculo e plural) possibilitou similares deslocamentos quanto à educação patrimonial, uma vez que seu conteúdo pedagógico acompanhou o mesmo movimento revisionista quanto ao ensino de História e as mesmas problematizações acerca da dominação e do silenciamento cultural de segmentos expressivos da população. Como nos ensinou Mário Chagas, “o campo da educação patrimonial não é tranquilo e não é pacífico; ao contrário, é território em litígio, aberto para trânsitos, negociações e disputas de sentidos” (2004, p. 144). Assim, diversas são as críticas e as resistências a definições restritivas de educação patrimonial como simples metodologia ou como instrumento de controlar ou eliminar a diversidade cultural.

Programas e projetos em educação patrimonial no país vêm materializando uma intencionalidade política e pedagógica para a ampliação dos âmbitos de aprendizagem, muitas vezes conferindo a cidades, territórios e patrimônios lugar de conteúdo e de forma de aprender e ensinar. A educação patrimonial articula-se a iniciativas de cidades educadoras e de experiências políticas de ampliação da jornada escolar em territórios municipais, como, por exemplo, no período em que integrou a agenda formativa nacional do Programa Mais Educação, no governo Lula (2007-2010) e início do governo Dilma Rousseff. No entanto, são predominantes no país iniciativas municipais em educação patrimonial, articuladas com pautas regionais, de afirmação de expressões culturais e de salvaguarda de patrimônios culturais de reconhecimento local.

Segundo Scifoni, as transformações socioculturais e pedagógicas do século XXI exigem uma educação patrimonial renovadora, que problematize a realidade e as políticas patrimoniais do país, “desmistificando ideias conservadoras do passado, superando os limites de uma ação tradicionalista fundada na transmissão de informações e conteúdos” (2017, p. 13). Ao mesmo tempo, capaz de se (re)elaborar a partir de fundamentos teórico-metodológicos consistentes, capazes de orientar novas práticas e novos modos de pensar (TOURAINE, 2007).

Interculturalidade, Migrações e Deslocamentos: Questões da "Nossa Modernidade”

No livro Pensar de Outro Modo, Alain Touraine (2007) discorre acerca das condições para a comunicação intercultural no contexto das sociedades modernas. Segundo o sociólogo, a ideia de modernidade deveria referir-se a princípios que transbordassem pertenças sociais e culturais e ancorar-se nos direitos individuais em perspectiva universal. A inexistência dessa aproximação incorreria em guerras e segregações, assim como o desencontro de tais referências desencadearia impossibilidades para a comunicação na cultura.

Diante de tais impossibilidades, a afirmação de especificidades sociais ou culturais levou-nos aos fundamentalismos, aos desrespeitos e à xenofobia. “O que leva a esta primeira conclusão: a identificação de um indivíduo ou grupo com um conjunto social, cultural e político definido globalmente constitui um obstáculo intransponível à comunicação intercultural” (TOURAINE, 2007, p. 198). O argumento do autor permite interpretarmos que sociedades fechadas em uma identidade única caminham para a censura, a rejeição e a dominação. Por outro lado, sociedades afirmadas sob os princípios da modernidade deveriam buscar e encontrar a comunicação com outros povos e culturas. Assim, a hipótese de Touraine é que “só o reconhecimento do universalismo, da razão e dos direitos humanos permite fazer comunicar culturas diferentes, distingue nelas o que é comum e o que as diferencia” (2007, p. 199).

O que também parece indubitável para Touraine é que não podemos identificar uma única modernização. O respeito às culturas e aos direitos culturais atrela-se aos direitos humanos e a prerrogativas amplas de respeito à diversidade e à valorização da vida humana no planeta. Diversas são as faces da Modernidade ocidental discutidas por diversos autores e correntes intelectuais. O cientista político indiano Partha Chatterjee reitera que as formas de modernidade são variáveis de acordo com as realidades nacionais, considerando-se tempos, geografias, meio ambiente e condições sociais. Em sua análise, observa que a modernidade representa a si mesma (em perspectiva universal), mas também “nos permite identificar as formas de nossa própria modernidade particular” (CHATTERJEE, 2004, p. 51). Pensar a “nossa modernidade” implica reconhecermos que nossa história é entrelaçada pelo colonialismo, pela desilusão e pela nostalgia.

O relato da “nossa modernidade”, em perspectiva latino-americana, associa-se à produção de padrões de poder, de racialização e de dominação social global (QUIJANO, 2009).

A vasta e plural história de identidades e memórias (seus nomes mais famosos são todos conhecidos, Maias, Astecas, Incas) do mundo conquistado foi deliberadamente destruída e sobre toda a população sobrevivente foi imposta uma única identidade, racial, colonial e derrogatória, “índios”. Assim, além da destruição de seu prévio mundo histórico-cultural, foi imposta a esses povos a ideia de raça e de uma identidade racial, como emblema de seu novo lugar no universo do poder. E, por durante 500 anos, foi-lhes ensinado a olhar-se com o olho do dominador

(QUIJANO, 2009, p. 29).

Essa lógica de classificação racial foi igualmente operada com a população negra e escravizada.

De modo muito diferente, mas não menos eficaz e duradouro, a destruição histórico-cultural e a produção de identidades racializadas teve também entre suas vítimas os habitantes sequestrados e trazidos, do que hoje chamamos África, como escravos e depois racializados como “negros”. Eles provinham também de complexas e sofisticadas experiências de poder e civilização (Ashantis, Bacongos, Congos, Iorubas, Zulus etc.)

(QUIJANO, 2009, p. 29).

O argumento de Aníbal Quijano evidencia que a afirmação de uma sociedade intercultural na América Latina implica que seja interpretada como interculturalidade crítica. Implica desenvolvermos raciocínios que compreendam a diversidade simbólica, expressiva e humana das populações presentes no continente americano, mas sobretudo criticar o desenraizamento, a racialização e a escravidão perversa que configuraram o perfil histórico e demográfico do Brasil e dos demais países do continente.

Segundo Catherine Walsh (2019), esse movimento em direção à interculturalidade representou uma “virada epistemológica”, pela qual o conceito representa uma lógica e não apenas um discurso construído a partir das singularidades ou da diferença. Nesse entendimento, parte-se da diferença colonial, como posição de exterioridade, mas não se fixa, porque se trabalha para transgredir “as fronteiras do que é hegemônico, interior e subalternizado” (WALSH, 2019, p. 16). Tal lógica vislumbra o conhecimento e o pensamento ao reconhecer as estruturas dominantes e da historicidade colonizadora, mas se compromete com a construção de um “outro conhecimento”, de um “outro pensar”, sendo que ambos operam descolonizando estruturas e paradigmas de conhecimento universais e ocidentais. A interculturalidade, nos termos da pensadora equatoriana, representa a construção de novos espaços epistêmicos, de circulação e afirmação de diferentes expressões culturais. Alberto Acosta (2016), por sua vez, acrescenta que as sociedades latino-americanas precisam ser caracterizadas por seus traços societários carregados de racismo e com históricas deficiências democráticas. Complementa que a interculturalidade precisa responder e problematizar a discriminação racial e as múltiplas formas de pertencimentos aos territórios.

Outra dimensão importante a considerar nessa abordagem conceitual se refere às migrações internacionais e às diferentes maneiras pelas quais estrangeiros se integram em nossas sociedades. Abdeljalil Akkari (2010) discute que um dos principais desafios à comunicação intercultural se refere à gestão dos fluxos migratórios. O acesso à nacionalidade e aos direitos de cidadania (destacando-se a educação) expõe limites de igualdade jurídica entre os habitantes de um país, além de condicionar a expressão simbólica e a existência desses indivíduos. O conceito de educação intercultural decorre das diversas modalidades de inserção (assimilação, integração, formação de minorias etc.) de estrangeiros nos sistemas de ensino nacionais.

Em contextos escolares, a gestão da diversidade cultural (AKKARI, 2010) exige o reconhecimento das múltiplas formas de comunicação intercultural, em que pese o enfrentamento político e pedagógico de desigualdades, de colonialismos, de preconceitos e de marginalização social.

Questões de Método e Exercício de Análise

O horizonte reflexivo deste artigo advém de investigação mais ampla de seu autor sobre as experiências educativas em contextos urbanos contemporâneos marcados pela diversidade e pela pluralização da vida urbana, com ênfase em estudos etnográficos realizados em diversos municípios brasileiros. A partir do acompanhamento sistemático de experiências educativas no estado do Rio Grande do Sul, localizado geograficamente no Sul do Brasil, a observação de práticas pedagógicas e a conversação cotidiana com professores atuantes no Ensino Fundamental foram apresentando significativas relações entre educação patrimonial e ensino de Ciências Humanas. A tarefa de ensinar sobre a cultura local, a Geografia e a História dos municípios acaba por impor limites reflexivos ao tradicionalismo pedagógico e seus pressupostos monoculturais. Assim sendo, faz-se necessário interrogarmos: quais são as condições para a comunicação intercultural em contextos escolares? Como a escola e os atores escolares vêm se engajando nos processos contemporâneos de patrimonialização cultural?

Diante das problematizações anteriormente citadas, no período de 2018 a 2020, realizamos 66 entrevistas com professores e professoras atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental no referido contexto. A seleção desse público justifica-se pela organização curricular brasileira, que insere o município, sua organização sociopolítica e econômica e suas expressões culturais como conteúdos privilegiados para o ensino de História e de Geografia do 3º ao 5º ano escolar. Priorizamos docentes que tivessem participado ou coordenado algum projeto pedagógico em seu contexto de trabalho sobre a cultura local, as experiências urbanas, o território ou questões de valorização ou proteção de identidades culturais. O instrumento empregado no estudo foi um roteiro semiestruturado que versava sobre sua experiência profissional, o relato de práticas pedagógicas e a descrição de iniciativas em educação patrimonial ou expressão correlata empregada pelo entrevistado. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Os principais excertos foram selecionados e analisados à luz dos conceitos de interculturalidade e comunicação intercultural (TOURAINE, 2007). No exercício de análise dos dados exibido a seguir, as entrevistadas serão designadas por pseudônimos a fim de preservar-lhes a identidade.

A discussão sobre os bens e as práticas consideradas patrimonializáveis ampliou-se muito nos últimos anos. No entanto, essa ampliação não diz respeito apenas a expedientes jurídicos, sobre estatutos e regulamentos oficiais acerca de patrimônios, mas se refere a transformações sociais, políticas, culturais e pedagógicas operantes na agência individual e institucional em diversas escalas. O campo educacional é intrinsecamente relacionado ao campo patrimonial. A literatura internacional parece estar em consenso quanto à definição do patrimônio como elemento-chave em processos de ensino-aprendizagem (VALECILLO, 2016; CUENCA; MARTÍN-CÁCERES; ESTEPA, 2020), bem como de sua centralidade em programas curriculares e de formação de professores (IBARRA; BONOMO; RAMÍREZ, 2014; LUNA et Al., 2019).

O Brasil não conseguiu promulgar uma Política Nacional de Educação Patrimonial, tampouco dar continuidade às propostas estabelecidas pelo Plano Nacional de Cultura, tendo em vista o desmonte dos setores culturais iniciado em 2016. A maior parte das políticas e programas em educação patrimonial ocorre em âmbito municipal, como mencionado anteriormente. Não obstante, a aprovação da Base Nacional Comum Curricular, em 2018, afirmou o patrimônio cultural como conteúdo para o ensino de Ciências Humanas nos anos iniciais da escolarização, principalmente no 3º e no 4º ano escolar como elemento instituinte da Geografia e da História local. Posteriormente, em 2019, estados e municípios discutiram e construíram seus Documentos de Referência Territorial, nos quais deveriam atualizar os currículos regionais à luz da BNCC, movimento que oportunizou a muitos municípios a inserção de suas referências históricas e espaciais nos planos de ensino.

Quando consideramos a amostra das entrevistas realizadas no estado do Rio Grande do Sul, algumas inferências gerais podem ser realizadas. Em seu conjunto, os depoimentos revelam características próprias da relação entre educação patrimonial e ensino de Ciências Humanas, a saber: 1) são predominantemente formadas por agenciamentos individuais de atores escolares, raras vezes ocasionando projetos de escola ou rede de ensino; 2) a abordagem das temáticas patrimoniais ocorre em escolas públicas e principalmente é mobilizada por docentes atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos 3º e 4º anos, quando a cidade ou o território municipal se converte em conteúdo escolar; 3) as práticas pedagógicas mostram-se capazes de dialogar com temáticas da diversidade, mas são tensionadas por dinâmicas escolares conservadoras e por realidades sociais desiguais, injustas e discriminatórias; e, 4) mesmo que os docentes reconheçam a necessidade de superação do enquadramento oficial das memórias (POLLAK, 1989), relatam os limites para a efetivação de uma comunicação intercultural em nossas experiências escolares.

No que tange à análise de aspectos específicos, importa destacarmos o modo como os docentes iniciam suas abordagens e intervenções pedagógicas, uma vez que explicitam suas relações com o conhecimento e as questões de sua contextualização. A maior parte das entrevistadas menciona uma preocupação com o contexto, com os conhecimentos produzidos na comunidade e com lógicas de pertencimento. Os depoimentos dos professores Gabriel e João Paulo são ilustrativos dessa dimensão:

Priorizo, inicialmente, o conhecimento da comunidade a que o aluno pertence. O ambiente escolar, sala de aula, a rua e o bairro em que estão inseridos e as paisagens existentes nesses locais. Desenvolvendo pesquisas para conhecer como eram antes esses lugares e como são atualmente

(Gabriel, professor em São Leopoldo).

Os alunos entendem que fazem parte daquele local, pertencem. Conhecimento dos conceitos, questiona as crianças sobre suas próprias ideias sobre o conceito trabalhado e depois parte para o conteúdo. Enfatiza a questão de pesquisa, busca instigar os alunos, criando estratégias para resolver as coisas

(João Paulo, professor em Ivoti).

Ambos os professores nos demonstram que há correlação entre conhecimento e contexto. O primeiro acentua sua priorização ao conhecimento produzido na comunidade, promovendo práticas de ensino e pesquisa que objetivam compreender o território em diferentes configurações históricas. O segundo expressa uma lógica de pertença (fazer parte) e a produção de reflexões no cotidiano da sala de aula sobre formas de resolver situações problemáticas enfrentadas no bairro ou no município onde atua. Essas diferentes vozes exteriorizam a ambivalência entre a nostalgia de uma vida comunitária própria de pequenos municípios colonizados por europeus e a projeção de iniciativas comunitárias visando à resolução de conflitos e problemas locais. De acordo com Patrícia Kuri (2006), em estudo similar realizado em centros históricos no México, essas posições também arregimentam elementos simbólicos e tangíveis que operam novos vínculos aos lugares, ou seja, novos pertencimentos e afetividades aos contextos vividos.

Aline, professora atuante em uma escola privada em Canela, na Serra Gaúcha, explicita em seu relato que o conhecimento da realidade oportuniza condições para a formulação de projetos de valorização e salvaguarda do patrimônio cultural.

Acredito ser de suma importância o estudante conhecer a história do seu município, para posteriormente compreender país e mundo. Costumo priorizar a valorização de todas as culturas que compõem a história do município, bem como os patrimônios materiais e imateriais, e compreendendo as mudanças ao longo do tempo

(Aline, professora em Canela).

Predomina, no conjunto dos depoimentos, a associação entre conhecer o território e planejar iniciativas pedagógicas direcionadas à conscientização do valor ou à proteção de bens e práticas culturais representativas da cultura local. Diversos relatos demonstram as situações precárias em que se encontra o patrimônio material e a inexistência de investimentos públicos para sua preservação. A perspectiva narrada por Aline desdobra-se nos relatos de Cleide e Diana, atuantes respectivamente em Estância Velha e Novo Hamburgo. A experiência de Estância Velha informa-nos que o universo simbólico vivido pela comunidade também pode contribuir para o desenvolvimento de experiências escolares de patrimonialização. A escola, em determinadas situações de aprendizagem, converte-se em agente de patrimonialização, a fim de “evitar a morte social dos patrimônios” (VALECILLO, 2016). Assim, “los patrimonios culturales son espacios vivos de complicidad social donde se construye una memoria colectiva cargada de significados y refuerza los valores culturales, religiosos o sociales del lugar” (VALECILLO, 2016, p. 42).

Tento utilizar muitos materiais da própria família, como documentos, certidão de nascimento, identidade, fotografia, objetos que a família tem que são importantes na história delas. Utilizo também objetos que eu tenho em casa, como por exemplo a lousa que meu avô utilizava na infância, ferro de passar roupa que era à brasa, louças, materiais que tenho, como os livros que minha vó usava nos partos e já venho utilizando para a parte de Ciências também

(Cleide, professora em Estância Velha).

Penso que a Educação Patrimonial é um tipo de alfabetização cultural e, independentemente de a escola ou o município ter este projeto, o professor precisa fazer esta ligação entre o aluno e a cultura que o envolve. Significativo também é os pais irem junto aos lugares e se acharem fascinados por participarem do aprendizado do filho e construírem também seu conhecimento

(Diana, professora em Novo Hamburgo).

A entrevista com a professora Diana é rica de reflexões sobre a pertinência social de projetos de educação patrimonial nas escolas locais. Se, no Brasil, a ideia tradicional de Heritage Education orientou-se pela produção da brasilidade, a educação patrimonial no contexto investigado assume uma “pedagogia política do patrimônio” (POULOT, 2009) muito mais modesta. Diana e seus colegas interpretam a educação patrimonial como uma ferramenta para a alfabetização cultural, preocupando-se com a apropriação do lugar, a localização socioespacial e o aprendizado comunitário sobre o bairro e escola. O relato da professora associa a educação patrimonial a um processo de alfabetização patrimonial (cultural) segundo o qual, em perspectiva freireana, a leitura do mundo antecede a leitura da palavra. Reconhecer a educação patrimonial como leitura de mundo potencializa o aluno a enfrentar criticamente as condições do tempo presentes e problematizar a situação contemporânea da educação pública no país. Exige, do ponto de vista epistemológico, a afirmação de outras memórias, histórias e geografias, produzindo lógicas inclusivas de conhecer e intervir nas realidades. Como analisado por Perez, Tavares e Araújo (2009), esse processo nos desafia à escuta plural e polifônica das múltiplas vozes que tecem a vida cotidiana e as experiências escolares, principalmente em periferias urbanas.

Para a compreensão da educação patrimonial no referido contexto regional, é importante que consideremos que o currículo escolar é constituído por relações de poder, ambivalências e contradições. “Trabalhar o contexto dos alunos” também precisa ser cotejado como uma afirmativa permeada por processos de “clivagens entre memórias” (POLLAK, 1989), nos quais há o esmaecimento de discursividades pluralistas e a manutenção de conteúdos escolares tradicionais. A entrevista da professora Fátima ilustra bem a influência do currículo tradicional, centrado em datas cívicas, história oficial e visitação aos espaços consagrados ao poder político municipal.

Nas séries iniciais, trabalhamos as comunidades de que fazemos parte desde que nascemos, o bairro onde moramos, a história do nosso munícipio, bem como suas características geográficas e políticas. A colonização do município e do estado. Revolução Farroupilha. Datas comemorativas. Sistema solar. Acho este último encantador, os alunos amam. É uma base para todo o resto do trabalho, situa a criança para os demais estudos na área de geografia. A história do município também é uma base para os estudos que seguem sobre o estado e o país

(Fátima, professora em Taquara).

Há um predomínio de representações oficiais da História do estado do Rio Grande do Sul e dos municípios. Como acontece em muitos lugares no país, o ensino de Ciências Humanas no estado é caracterizado pela lógica de círculos concêntricos, fragmentados entre si, considerando o indivíduo, a família, a escola, o bairro, o município, o estado, o país e assim sucessivamente (CALLAI, 2005). Além disso, os modos de ensinar História e Geografia no estado são profundamente associados à imigração europeia ocorrida no século XIX e celebrada atualmente pela “fundação” da região; mas também à emergência dos Centros de Tradições Gaúchas, iniciados em meados do último século, que se organizam por modelos conservadores de cultura e expressão cultural. Ambas as escolhas políticas condicionam a definição identitária regional e operam como um meta-relato ou como uma narrativa monocultural, estabelecendo diretrizes curriculares e práticas pedagógicas que reproduziram visões eurocêntricas e colonizadoras, em detrimento da presença milenar de povos originários nessa região do país ou da significativa presença de populações afro-brasileiras.

No entanto, Isabela, que atua e reside em Canela, verbaliza a “quebra” da história oficial e de suas representações monoculturais (CANCLINI, 2006) e a possibilidade de narrar e ensinar sobre a história e a geografia local em perspectiva intercultural. Diversos professores, ainda que não correspondam a uma posição majoritária, começam a ressignificar a história regional em perspectiva crítica e anticolonial e, para tal, selecionam novas referências e novos patrimônios culturais que possam reescrever processos identitários e territoriais no Sul do Brasil.

Acredito que todos esses conteúdos são importantes, mas considero muito necessário falarmos sobre a diversidade cultural do Brasil, pois provoca os alunos a olharem para o Brasil de uma maneira multicultural, desmistificando a hierarquia das culturas. Falar sobre a história do povo brasileiro que “casa” muito com a parte das migrações internas do Brasil, abordando as regiões e indo além de mapas

(Isabela, professora em Canela).

Em sentido similar, Luciane, docente em São Leopoldo, problematiza a narrativa de história local que ao longo dos anos descaracterizou a presença de negros e indígenas na região de imigração alemã do Rio Grande do Sul.

A história do município está diretamente associada à imigração alemã. Inclusive, o hino do município enaltece apenas a força e a bravura do imigrante alemão na construção da cidade; e a principal festividade municipal chama-se São Leopoldo Fest. Essa é apenas uma parte/versão da história. Nas aulas de História e Geografia, costumo abordar a participação dos alemães, afro-brasileiros e indígenas na construção do município, ou seja, a importância das três etnias para a composição da população de São Leopoldo

(Luciane, professora em São Leopoldo).

O argumento das professoras evidencia sua percepção acerca da parcialidade das narrativas históricas e curriculares presentes em seus espaços de atuação profissional. Seus relatos nos ajudam a compreender as lógicas coloniais que definiram processos identitários na região (QUIJANO, 2009; WALSH, 2019), evidenciando como a articulação dessas lógicas de saber e poder presentes na configuração política e educacional no contexto estudado perfizeram dinâmicas históricas de dominação e marginalização cultural, as quais foram naturalizadas na formação escolar regional. Seus relatos, ao mesmo tempo, explicitam que suas práticas pedagógicas já contêm fendas importantes que permitem a emergência da comunicação intercultural e, de uma forma potente, a enunciação de uma interculturalidade que permite pensar de outros modos (TOURAINE, 2007) e estabelecer matrizes para um pensamento fronteiriço (WALSH, 2019).

Tereza, professora também atuante em São Leopoldo, amplia essa perspectiva e inicia a promoção de práticas pedagógicas interculturais, realizando aproximações a indígenas e outras populações tradicionais presentes na Região Metropolitana de Porto Alegre.

Um dos passeios que realizava com meus alunos era conhecer os pontos turísticos da cidade, inclusive o cemitério da Feitoria e Lomba Grande, onde encontram-se encerrados os primeiros imigrantes alemães da cidade. Visitamos algumas aldeias indígenas na cidade, onde tínhamos conversas com os líderes indígenas e nos era apresentada a realidade local. Em cada lugar visitado, solicitava para algum responsável dar uma explicação sobre o local e sua importância. Não havia, na época, nenhum projeto próprio do município. O professor deveria desenvolver suas próprias atividades patrimoniais e culturais, assim como arrecadar meios para realizá-las

(Tereza, professora em Porto Alegre).

Esse exercício de análise ainda precisa contemplar uma dimensão presente nos relatos das professoras, a saber: as experiências culturais e pedagógicas de estudantes estrangeiros no estado. Em Porto Alegre e na Região Metropolitana, verificamos a presença crescente de novos imigrantes, estrangeiros e refugiados. Pesquisa publicada em 2021 pelo Departamento de Economia e Estatística (DEE) da Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG) do Rio Grande do Sul, em parceria com a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH), identificou a presença de 50.156 pessoas de outras nacionalidades vivendo atualmente no estado, alocadas em 464 dos 497 municípios. Tais dados, obtidos pelo exame das inscrições no Cadastro Único e no Cartão Nacional de Saúde (PESQUISA..., 2020), informam que, em solo gaúcho, os imigrantes são predominantemente oriundos dos seguintes países: Haiti, Uruguai, Argentina, Senegal, Venezuela, Colômbia, Paraguai, Cuba, Portugal e Itália. No começo desse século, Saskia Sassen (2002) observou e analisou indicativos de que os Estados nacionais europeus deveriam se atentar aos movimentos migratórios e contribuir para o desenvolvimento de políticas imigratórias mais esclarecidas. Semelhantes deslocamentos assumem hoje contornos globais.

Então a primeira atividade que eu fiz foi pensar com eles se todas as escolas eram iguais no mundo inteiro. Aí eu separei imagens de diversos lugares para trabalhar com crianças e abrir espaço para que o Lucas falasse como era lá no Haiti, o que tinha diferente na escola deles e o que tinha igual, e as crianças também poderiam dizer como era a experiência delas nas escolas daqui e tinha alunos que vieram das escolas estaduais, então poderiam falar o que era igual e diferente. E, ao mesmo tempo, as imagens que levei os ajudaram a ampliar o pensamento e o repertório sobre como poderiam ser escolas. E nesse dia eu também trabalhei com vocabulário da escola em haitiano, como falava professor, aluno e materiais

(Ana, professora em Porto Alegre).

O depoimento da professora Ana, sobre como foram desafiadas em ações pedagógicas com haitianos e dominicanos, faz-nos pensar sobre um dos problemas mais difíceis de enfrentar para o desenvolvimento de experiências interculturais e pedagógicas qualificadas, a saber: o trabalho de tradução (MATO, 2008).

Com esta palavra não me refiro apenas aos problemas de tradução de palavras e ideia de uma língua a outra, mas de visões de mundo, sentido e sensibilidades. Estes são os problemas de comunicação intercultural que devemos trabalhar em cada caso e contexto

(MATO, 2008, p. 113, tradução nossa).

Na perspectiva sociológica de Alain Touraine, essa tradução é positiva quando se centra em comunicações interculturais capazes de reconhecer as misturas (hibridismos) e os encontros de sujeitos diversos que não podem mais ser interpretados como distantes ou separados. Nos termos do sociólogo, a comunicação precisa enfrentar a indiferença, a segregação, a marginalização e o ódio.

Considerações Finais

Eu acho bem importante... é uma coisa que envolve bastante aqui na nossa realidade, os que têm os avós de origem italiana, só que eu me pergunto: por que as outras [culturas] não? Por que não trabalhar as outras culturas, outras imigrações? Por que não se aborda tanto? É mais a italiana, mas, agora que a escola está abrindo, a gente está falando também dos suecos, que temos um museu, estamos falando também dos africanos. Vieram negros pra cá, pra nossa cidade. Como eles foram recebidos e tal... Também têm os descendentes de alemães, bem menos esses outros grupos, mas alguma coisa a gente ainda fala. Farroupilha não é só o resultado dos italianos!

(Isaltina, professora em Farroupilha).

A sustentação de propostas de educação patrimonial em contextos interculturais requer que assumamos o diálogo e o reconhecimento como princípios. Nesse empreendimento, a ideia de identidade se amplia e não mais corresponde a modelos monoculturais ou de robustecimento de pressupostos estadocêntricos de patrimônio e identidade nacional (CANCLINI, 2015; 2016). Como nos ensinou Jesús Martín-Barbero (2000), as formas identitárias latino-americanas correspondem a restos, pedaços, rascunhos, amálgamas ou “mapas noturnos”. “Uma identidade marcada menos pela continuidade do que por um amálgama que ainda é a articulação dos tempos longos e curtos, pois são eles os que vertebram internamente o palimpsesto das sensibilidades e dos relatos” (MARTÍN-BARBERO, 2000, p. 93). A comunicação intercultural nos contextos escolares é condicionada por esses palimpsestos de memórias, patrimônios e afirmações culturais.

A interculturalidade é imprescindível para a produção de conhecimento na escola, incorporando cosmovisões, linguagens, memórias e patrimônios representativos das diferentes manifestações culturais que compõem a população brasileira. De povos indígenas a povos remanescentes de quilombos, de descendentes de imigrantes europeus do século XIX a imigrantes e refugiados do século XXI, projetos de educação patrimonial precisam ser nutridos pela diversidade de territórios e identidades que demarcam as expressividades culturais do Brasil. Nos termos de Catherine Walsh (2019), a afirmação dessas expressões culturais engendra a reversão de processos históricos de subalternização e de seletividade e apagamento sociocultural.

A pluralização da educação patrimonial, principalmente quando associada ao ensino de Ciências Humanas, oportuniza novas condições para a comunicação intercultural nas escolas brasileiras. No entanto, tais iniciativas devem se materializar para além das iniciativas individuais dos professores e professoras em seus contextos de atuação e converter-se em insumo para propostas que defendam e revigorem o caráter público da educação no país.

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  • Editores de Seção: Luana Costa Almeida e Xavier Rambla

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2021
  • Aceito
    17 Fev 2022
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