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UNIVERSIDADE E FORMAÇÃO ÉTICO-ESTÉTICA

UNIVERSITY AND ETHICAL-AESTHETIC EDUCATION

UNIVERSIDAD Y FORMACIÓN ÉTICA-ESTÉTICA

RESUMO

A reivindicação ética da ideia de universidade (HUMBOLDT, 2010a; 2010b) baseada na unidade entre cultura e ciência se desintegra pela perda de intenções comuns, resultando na exigência de nova formação ética, que, articulada por meio de processos de aprendizagem (HABERMAS, 1987), dimensiona a formação pelo enlace entre ética e estética. A possibilidade da estética para interpretar desejos e sentimentos em relação aos valores que atuam no agir moral é analisada nos exemplos literários de Denis Diderot e Machado de Assis, mediante a indeterminação e a imaginação moral. A força estética desses elementos dá acesso às possibilidades inexploradas, não preconcebidas em modelos estruturados de comportamentos, que não só ampliam o autoconhecimento como se abrem à diferença, trazendo lucidez à decisão moral.

Palavras-chave
ética; Estética; Indeterminação; Imaginação moral

ABSTRACT

The ethical claim of the idea of the university (HUMBOLDT, 2010a; 2010b) based on the unity between culture and science disintegrates due to the loss of common intentions, resulting in the demand for a new ethical education, which, articulated through learning processes (HABERMAS, 1987), gauges education through the link between ethics and aesthetics. The possibility of aesthetics to interpret desires and feelings in relation to the values that act in moral action is analyzed in the literary examples of Denis Diderot and Machado de Assis, based on indetermination and moral imagination. The aesthetic strength of these elements gives access to unexplored possibilities, not preconceived in structured models of behavior, which not only broaden self-knowledge, but also open up to difference, bringing lucidity to moral decisions.

Keywords
Ethics; Aesthetics; Indeterminacy; Moral imagination

RESUMEN

La reivindicación ética de la idea de Universidad (HUMBOLDT, 2010a; 2010b), basada en la unidad entre cultura y ciencia, se desintegra por la pérdida de intenciones comunes, resultando en la exigencia de una nueva formación ética que, articulada por medio de procesos de aprendizaje (HABERMAS, 1987), dimensiona la formación por el enlace entre ética y estética. La posibilidad de interpretar deseos y sentimientos de la estética, con relación a los valores que actúan en la acción moral, es analizada en los ejemplos literarios de Denis Diderot y Machado de Assis, a partir de la indeterminación y de la imaginación moral. La fuerza estética de esos elementos da acceso a posibilidades inexploradas, no preconcebidas por modelos estructurados de comportamientos y no solamente amplía el autoconocimiento, también se abre a la diferencia, aportando lucidez a la decisión moral.

Palabras-clave
Ética; Estética; Indeterminación; Imaginación moral

Introdução

“Então, porque instruímos os nossos filhos através dos estudos liberais?” Não é porque estes lhes possam transmitir a virtude, mas porque preparam o espírito para recebê-la (SÊNECA, 2004SÊNECA, L. A. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.).

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado

(PESSOA, 2011PESSOA, F. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.).

O interesse por uma esfera pública de debates sobre a universidade contrasta com o perturbador silêncio a respeito de sua histórica reivindicação ética. Não que falte louvor em torno de tal reivindicação1 1 Refiro-me à celebração formal nos documentos normativos das universidades que reafirmam a dimensão ética. Mais recentemente, o documento Aprender a transformarse con el mundo: educación para la supervivencia futura, elaborado pela Common Worlds Research Collective (2020), subsidia a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) com orientações para a educação superior, associando-se às novas gramáticas de reconhecimento de um mundo ampliado (incluindo questões ambientais e dos povos indígenas) do ponto de vista ético. , mas ela é cooptada e distorcida pelas demandas da sociedade cada vez mais vinculadas à lógica de mercado. Trata-se de uma racionalidade instrumental que estimula os sistemas de aprendizagem regulados pelas tecnologias da informação – tão ao gosto de nosso tempo – e prioriza o desenvolvimento de habilidades técnicas, fraudando o sentido da formação.

As repercussões desse processo evidenciam-se quando somos confrontados com ações de profissionais com formação universitária que infringem normas éticas, comprometendo a dignidade do outro2 2 Como exemplo, refiro-me aos médicos que defenderam o uso de cloroquina na pandemia de Covid-19, quando já havia comprovação científica de que tal medicamento era inadequado para o tratamento da doença. Esse exemplo evidencia problemas da conexão entre a ética e a verdade científica. , por um esvaziamento da capacidade de pensar e sentir a respeito do próprio agir profissional. Esse descuido com a ética destaca-se, também, quando a ação pedagógica e investigativa é orientada apenas por paradigmas hegemônicos, sem escutar as exigências de novos reordenamentos epistêmicos e culturais que ampliam os conceitos de justiça, de ética e de dignidade.

Tais constatações remetem-se à responsabilidade da universidade, pois, nesse âmbito, a questão ética ultrapassa a aplicação de um código e se orienta para a formação de pessoas autônomas, com sensibilidade, capazes de “referir-se de modo reflexivo às reivindicações morais de seu ambiente social” (HONNETH, 2009HONNETH, A. Crítica del agravio moral: patologías de la sociedad contemporánea. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica; Universidad Autónoma Metropolitana, 2009., p. 289). Afinal, o que amplia nossa compreensão de mundo, alarga os horizontes e os valores que devem ser cultivados e estimulados, tornando-nos sensíveis às reivindicações do outro, é a reflexão ética, cujo compromisso consiste em problematizar as questões que afligem a existência humana para tornar possível o convívio.

A universidade é um espaço institucional adequado para submeter à crítica impiedosa todas as crenças e expectativas normativas, uma vez que a própria vontade é moldada no processo formativo por uma complexa rede entretecida de argumentos racionais e elementos da sensibilidade. Essa vontade e disposição afetiva para atentar às questões éticas é uma exigência da formação a ser trabalhada ao longo do percurso acadêmico.

Não afirmo que a ética proporia soluções, pois não é seu propósito, mas sim possibilitaria um pensamento sobre a complexidade das relações dos homens entre si e com a natureza e do homem consigo mesmo. A ética não oferece respostas prontas, porque o agir humano depende de circunstâncias que são complexas, orientadas por princípios ou normas, exigindo que o agente seja capaz de refletir acerca da interação entre as normas e a percepção de fatores emocionais e existenciais envolvidos no juízo moral. O agir ético é, assim, uma constante reflexão a respeito do bem viver, que relaciona a individualidade de um eu entretecido em formas históricas de vida com um ethos comum expresso em valores e expectativas normativas. Enquanto instituição formadora, a universidade deve formar seus profissionais atentos às reivindicações morais do mundo social.

Diante desse contexto, pretendo problematizar a formação ética na universidade. Em uma perspectiva hermenêutica, argumento que a reivindicação ética na formação universitária pode se tornar mais efetiva pela articulação com a estética, numa relação de complementaridade existente entre o saber filosófico e aquele que provém da literatura, das artes plásticas, da música, do cinema, do teatro, da poesia, capaz de educar uma sensibilidade atenta às exigências morais do mundo social, sempre renovadas e reinterpretadas à luz do contexto histórico. Aqui há o pressuposto de que uma formação ética não se esgota na dimensão cognitiva, no conhecimento de normas e códigos, mas exige capacidade de interpretar desejos e sentimentos em relação a padrões valorativos, revisar crenças e preconceitos, que podem ser acolhidos pela dimensão estética, de um modo que a mera dimensão cognitiva não consegue fazê-lo.

Para desenvolver esse argumento, retomo primeiramente breves considerações a respeito da reivindicação ética da universidade, conforme proposição de Wilhelm von Humboldt (2010aHUMBOLDT, W. Plan einer vergleichenden Anthropologie. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Antropologie und Geschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010a. v. 1. p. 255-266.; 2010b)HUMBOLDT, W. Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenchaftlichen Anstalten in Berlin. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Politik und Zur Bildungswesen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010b. v. 4. p. 255-266., que vincula universidade à “cultura moral da nação” e às críticas feitas a esse projeto que não se realiza pela perda das intenções comuns nem pela perda da unidade da razão. Na sequência, indico que a crise da ideia de universidade constitui uma herança desafiadora que provoca a pensar uma nova formação ética, articulada por meio de processos de aprendizagem (HABERMAS, 1987HABERMAS, J. Eine Art Schadensabwicklung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987.), dimensionando a formação pelo enlace entre ética e estética. Por fim, analiso as categorias estéticas da indeterminação e da imaginação moral nos exemplos literários de Denis Diderot (1713-1784) e Machado de Assis, que apontam as possibilidades de ampliação do horizonte ético, da revisão de crenças e do surgimento da alteridade. Concluo que o estreitamento de visão, o aprisionamento em preconceitos e a própria deterioração da percepção estética são as maiores barreiras para a formação humana com sensibilidade ética, cujo desbloqueio, a cargo da estética, pode produzir uma nova lucidez.

Sobre a Reivindicação Ética na Universidade

Muitas vezes deixamos de lado ou até esquecemos a constituição histórica da ideia de universidade que assumiu contornos específicos num arco de sucessivas transformações, que incluem desde a reforma da Universidade de Berlim, no século XIX, até as contemporâneas reformas neoliberais3 3 Dardot e Laval (2019) alertam para não ocorrer um uso impreciso do termo neoliberal. Não se trata, segundo os autores, “apenas de políticas econômicas monetaristas ou austeras, da mercantilização das relações sociais ou da ditadura dos mercados financeiros. Trata-se de uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor, por parte dos governos, a lógica do capital na economia, na sociedade e no próprio Estado até convertê-la em forma de subjetividades e em norma das existências” (DARDOT; LAVAL, 2019). , cuja pressão política conduziu o processo formativo a um entrincheiramento balizado pela eficiência e produtividade de jaez empresarial e pela promoção do desenvolvimento de “competências e habilidades que interessam ao mercado competitivo” (SILVEIRA; BIANCHETTI, 2016SILVEIRA, Z.; BIANCHETTI, L. Universidade moderna: dos interesses do Estado-nação às conveniências do mercado. Revista Brasileira de Educação, v. 21, n. 64, p. 79-99, 2016. https://doi.org/10.1590/S1413-24782016216405
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, p. 3).

Diante desse contexto gerador de novos modos de subjetivação, é producente lembrar uma das tradições que influenciaram a universidade brasileira: a ideia de universidade proposta por Humboldt (2010aHUMBOLDT, W. Plan einer vergleichenden Anthropologie. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Antropologie und Geschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010a. v. 1. p. 255-266.; 2010b)HUMBOLDT, W. Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenchaftlichen Anstalten in Berlin. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Politik und Zur Bildungswesen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010b. v. 4. p. 255-266., inspirada no idealismo alemão e no neo-humanismo, explícita quanto à dimensão ética, a qual tem permanecido no discurso educacional como referência para interpretar e avaliar a situação contemporânea. Essa é uma tradição invocada quando se pretende contrapor a atual ênfase utilitarista e mercadológica, mas tal ideia enfrentou problemas, como veremos a seguir.

Humboldt (2010b)HUMBOLDT, W. Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenchaftlichen Anstalten in Berlin. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Politik und Zur Bildungswesen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010b. v. 4. p. 255-266. vincula a universidade à “cultura moral da nação”, em que o trabalho da ciência serve de base para a “educação espiritual e moral” (HUMBOLDT, 2010bHUMBOLDT, W. Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenchaftlichen Anstalten in Berlin. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Politik und Zur Bildungswesen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010b. v. 4. p. 255-266., p. 255). Não se trata apenas de formar o homem em sua individualidade, mas sim de orientar o processo a uma ordem objetiva: “O homem deve permitir que todas as relações em que se encontra atuem sobre ele, não deve rechaçar nenhum influxo em particular, mas deve cultivar o influxo de tudo a partir de si mesmo e de acordo com princípios objetivos” (HUMBOLDT, 2010aHUMBOLDT, W. Plan einer vergleichenden Anthropologie. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Antropologie und Geschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010a. v. 1. p. 255-266., p. 346). Ou seja, há uma ligação entre “ciência objetiva” e “educação subjetiva”, a ser promovida por uma universidade estruturada conforme os princípios de autonomia, liberdade para ensinar e aprender, unidade entre ensino e pesquisa, unidade entre cultura e ciência, princípios estes que vão além do âmbito universitário e beneficiam o cidadão. Desse processo, resultaria o que Humboldt (2010a, p. 348)HUMBOLDT, W. Plan einer vergleichenden Anthropologie. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Antropologie und Geschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010a. v. 1. p. 255-266. chama “uma bela individualidade”, a recíproca influência entre os sentimentos e o conceito.

Como sabemos, esse modelo teve êxito ao propor a autonomia incondicional da universidade como o lugar da ciência e da pesquisa, mas não tardaram as críticas quanto à sua funcionalidade, pelo impacto das transformações tecnológicas sobre o conhecimento e pela ausência de condições no enfrentamento dos “problemas da universidade para as massas” (OELKERS, 2011OELKERS, J. The German concept of “bildung” then and now. Berlin: European College of Liberal Arts, 2011. Lecture. Disponível em: https://www.uzh.ch/cmsssl/ife/dam/jcr:ffffffff-bb47-55f9-ffff-ffffe58ee284/LectureBerlindefdef.pdf. Acesso em: 6 nov. 2022.
https://www.uzh.ch/cmsssl/ife/dam/jcr:ff...
). A articulação entre ciência e formação moral não é mais alcançada, porque a ciência passa a ser influenciada não só por interesses utilitaristas, de poder e de financiamento, mas também pelos seus próprios impulsos investigativos ligados a cálculos estratégicos, não mais preocupada com o desenvolvimento do espírito livre nem da formação moral. Habermas (1987)HABERMAS, J. Eine Art Schadensabwicklung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987. alertou que a filosofia idealista de reconciliação atribuiu “à universidade uma força de totalização que desde o começo se revelaria como uma exigência muito elevada” (HABERMAS, 1987HABERMAS, J. Eine Art Schadensabwicklung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987., p. 80).

Vale lembrar que o relatório A condição pós-moderna, de Jean-François Lyotard (1989)LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989., encomendado pelo Conselho das Universidades de Québec, no fim dos anos de 1960, condensa num epítome a nova configuração em andamento da atividade acadêmica e científica cuja práxis se encontra desvinculada da formação espiritual: “O antigo princípio de que a aquisição do saber é indissociável da formação (Bildung) do espírito, cai e cairá cada vez mais em desuso” (LYOTARD, 1989LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989., p. 18).

Três décadas antes, Robert Musil (1989)MUSIL, R. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989., um agudo observador de seu tempo, no romance O homem sem qualidades, cujo primeiro volume foi publicado em 1930, ironiza o ambiente carreirista da universidade, esse “reino da verdade”, em que a admiração é reservada aos sábios mais velhos, “dos quais depende conseguirmos ou não mestrado ou cátedra”, e afirma: “A verdade é que a ciência desenvolveu um conceito de força espiritual dura e lúcida, que torna insuportáveis todos os antigos conceitos metafísicos e morais da humanidade” (MUSIL, 1989MUSIL, R. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989., p. 35). Esse duro diagnóstico espraia-se, conforme consta da análise da educação superior em diferentes países do mundo, nos quais predomina a constatação de que o ideal humboldtiano se desloca cada vez mais em direção aos processos de mercantilização, comercialização e empreendedorismo (BRUNNER, 2014BRUNNER, J. J. La idea de la universidad pública: narrativas contrastantes. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 22, n. 82, p. 11-30, jan./mar. 2014. https://doi.org/10.1590/S0104-40362014000100002
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, p. 15).

O Desafio da Herança

Essa brevíssima e incompleta caracterização apenas indica a presença de duas tendências de pensamento divergentes: de um lado, o predomínio das orientações utilitaristas, externas aos anseios originários da universidade; e, de outro, a expectativa de criação de uma consciência cultural e de formação intelectual crítica capaz de preparar para o pensamento, a autonomia e a capacidade de julgar. De algum modo, esse tensionamento é gerado pelos influxos da ideia humboldtiana, que permanecem no horizonte como uma herança ainda em disputa e que deve ser sopesada. Derrida (1994)DERRIDA, J. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. alerta que, a respeito daquilo que herdamos:

É preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção. [...] Se a legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pedisse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar

(DERRIDA, 1994DERRIDA, J. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 33).

Ao sopesar essa herança, percebe-se que a dimensão ética da formação não se efetiva conforme a proposta de Humboldt (2010aHUMBOLDT, W. Plan einer vergleichenden Anthropologie. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Antropologie und Geschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010a. v. 1. p. 255-266.; 2010b)HUMBOLDT, W. Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenchaftlichen Anstalten in Berlin. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Politik und Zur Bildungswesen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010b. v. 4. p. 255-266.5 5 Houve vários esforços, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, de repensar o modelo de Universidade de Berlim proposto por Humboldt. Merecem destaque dois importantes documentos: o primeiro é A ideia da universidade para a situação atual, de Karl Jaspers, publicado em 1923 e reeditado em 1946 e 1961, que defende o ideal humboldtiano, segundo o qual as ciências se articulam numa totalidade, e a educação, que significa mais que conhecimento, envolve a “formação da personalidade de acordo com um ideal de Bildung, com normas éticas” (JASPERS, 1923 apud RINGER, 2000, p. 95). Em 1986, por ocasião da celebração dos 600 anos da Universidade de Heidelberg, Jürgen Habermas (1987) fez um discurso intitulado A ideia da universidade: processos de aprendizagem, em que apresentou uma avaliação das transformações ocorridas, apontando a inadequação entre a proposta de Humboldt e as exigências funcionais do sistema e da economia, o distanciamento entre ensino e pesquisa e a formação entendida apenas como capacitação profissional. , uma vez que o processo de diferenciação das disciplinas científicas deixa de cumprir a unidade entre ciência e cultura. Impõe-se a própria lógica da investigação científica, e a atitude independente da ética não fica livre das pressões práticas provindas do sistema6 6 Em decorrência da independência dos processos da investigação, as universidades implantaram os comitês de ética na pesquisa, a partir do fim da primeira metade do século XX, sob o impacto da Segunda Guerra Mundial. Tais comitês têm como finalidade “resolver questões específicas da pesquisa com seres humanos surgidas em diferentes instâncias do processo investigativo, que envolvem o contexto, as consequências éticas das decisões, os pesquisadores, as instituições e os participantes envolvidos” (HERMANN, 2019). . Contudo, de acordo com Derrida (1994)DERRIDA, J. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., se essa herança não nos “desafiasse”, não teríamos o que herdar. Assim, conclui-se que não se trata de denegar ou negligenciar a dimensão ética na formação, mas de considerar, como já avaliou Habermas (1987)HABERMAS, J. Eine Art Schadensabwicklung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987., que “os processos de aprendizagem” não se reduzem apenas a intercambiar com “a economia e a administração”, mas também continuam em estreita ligação com as funções de reprodução do “mundo da vida”, o que lhes permite contribuir com a “socialização” e a “continuidade hermenêutica das tradições, e com as teorias da ciência, da moral e da arte e literatura para a formação de uma consciência própria das ciências no âmbito geral da cultura” (HABERMAS, 1987HABERMAS, J. Eine Art Schadensabwicklung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987., p. 94).

O sentido da ética e das orientações valorativas para a formação e a consciência cultural, deflacionado de grandes expectativas idealistas, se mantém pelos processos de aprendizagem, associados a uma reflexão hermenêutica capaz de interpretar seu próprio tempo. Com esse procedimento, Habermas (1987)HABERMAS, J. Eine Art Schadensabwicklung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987. desloca o eixo da ideia de universidade de uma idealização da razão, que se autoconcebe com soluções definitivas, para uma racionalidade destranscendentalizada, plural e falível.

A Questão da Estética na Ética

Nesse contexto de ruptura da unidade da razão, de autonomização do campo científico em relação à ética e de emergência de uma pluralidade de orientações valorativas, a estética reafirma sua importância, pois a arte e a experiência estética possibilitam interpretar desejos e sentimentos em relação a padrões valorativos e produzir um estranhamento ao mundo familiar, com grandes chances de desbloqueio de nossas cegueiras interpretativas, ampliando a sensibilidade ética.

A abertura para um movimento contemplativo, um espaço de alargamento de perspectivas e de problematização daquilo que tutela a autonomia do agir e do pensar e escraviza as mentes não envolve apenas o intelecto, mas também a percepção estética. Trata-se de pôr em movimento uma razão não mais separada da sensibilidade, dimensionando a questão ética da formação pela perspectiva do entrelaçamento entre ética e estética. Esses campos são autônomos, não se confundem, o que implica um duplo significado: por um lado, a recusa total da estetização da moral; e, por outro, a resistência aos preconceitos do iluminismo, que impôs uma rígida separação entre os saberes disciplinares, como se não houvesse possibilidade de iluminação mútua.

Seel (2000)SEEL, M. Ästhetik des Erscheinens. Munique: Carl Hansen Verlag, 2000. observa que a estética traz uma contribuição irrenunciável para as outras disciplinas filosóficas, pois “considera os aspectos irredutíveis do mundo e da vida” (SEEL, 2000SEEL, M. Ästhetik des Erscheinens. Munique: Carl Hansen Verlag, 2000., p. 40). É irrenunciável à filosofia teórica na medida em que “revela uma dimensão da realidade que se subtrai à determinação por meio do conhecimento, mas, ao mesmo tempo, é um aspecto da realidade que pode ser conhecido” (SEEL, 2000SEEL, M. Ästhetik des Erscheinens. Munique: Carl Hansen Verlag, 2000., p. 41). Para a filosofia prática, prossegue Seel (2000)SEEL, M. Ästhetik des Erscheinens. Munique: Carl Hansen Verlag, 2000., a estética é igualmente irrenunciável por oferecer “uma possibilidade na vida do ser humano, de se abrir a um presente particular da própria existência, um presente cuja finalidade se encontra em si mesmo” (SEEL, 2000SEEL, M. Ästhetik des Erscheinens. Munique: Carl Hansen Verlag, 2000., p. 41). A estética também promove acentuada valorização da pluralidade, dando vazão àqueles elementos que não mais se encaixam no conceito, no processo de racionalização, e isso tudo influencia novos modos de vida, novas categorias interpretativas, forçando a busca de um tratamento ético diferenciado.

Mais especificamente, quero sugerir que a ética na formação humana pode se valer da estética pela relação de complementaridade7 7 Há diversos modos de relação entre ética e estética, incluindo desde a complementaridade até a oposição. O tema foi objeto de intenso debate, e um pós-modernismo acentuado, impulsionado por incertezas metafísicas e epistemológicas, chegou a subsumir a ética na estética, ameaçando a autonomia desses campos, o que não deixa de ser perturbador. Associo-me a uma relação de complementaridade, em que tanto ética como estética têm validade, como se apresenta em Habermas (1987), Früchtl (1996), Adorno (1998), Welsch (1995), Nussbaum (1990, 1995), Seel (2000), entre outros. existente entre o saber filosófico e aquele que provém da literatura, das artes plásticas, da música, do cinema, do teatro, da poesia. A arte opera com o sensível (aisthesis em grego significa percepção sensível, daí deriva o termo estética), que transcende as fronteiras meramente racionais, promovendo um genuíno experienciar do mundo que não só desafia o modo como pensamos as questões éticas (a igualdade, a dignidade, o respeito moral, a alteridade, as normas), como amplia a percepção da conduta humana, aproxima de dilemas e particularidades das questões morais, preparando a capacidade de julgar.

O encontro com o estético pode enriquecer a formação ética pelo despertar de um espírito aberto e de uma sensibilidade mais refinada que favoreça a compreensão de nós mesmos e do outro, consolidando um processo formativo comprometido com um olhar sensível às demandas morais da sociedade. Nessa perspectiva, recolho do campo da estética dois elementos estruturantes que podem ampliar nossa compreensão moral: a indeterminação e a imaginação moral.

Indeterminação

A indeterminação é um elemento estético que surge no aparecer da obra de arte, pondo à disposição uma possibilidade de resistência às condições repressivas da vida social, pois a arte deve “introduzir o caos na ordem e não o inverso” (ADORNO, 1998ADORNO, T. Ästhetische Teorie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998., p. 114). Assim, ao ser uma provocação à ordem, constitui-se numa espécie de antídoto à realidade, que rompe com expectativas niveladoras.

A arte tem um elemento irritante no seu aparecer, algo que não estava determinado e que exige sensibilidade interpretativa, porque não se enquadra na lógica dos esquemas conceituais disponíveis. Esse aparecer não é empírico no sentido de que seriam dados sensíveis disponíveis à interpretação, mas é aparição de uma realidade que se torna permanentemente inconcebível. Assim, “as obras de arte tornam-se aparições no sentido mais rico do termo, aparições de um outro, quando o acento incide sobre o caráter irreal da sua realidade” (ADORNO, 1998ADORNO, T. Ästhetische Teorie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998., p. 123). Mesmo as obras de arte consideradas afirmativas são a priori “polêmicas”, diz Adorno (1998)ADORNO, T. Ästhetische Teorie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998., pois, ao se separarem do mundo empírico, elas testemunham que o mundo deve se tornar outro, “esquemas inconscientes, de sua transformação” (ADORNO, 1998ADORNO, T. Ästhetische Teorie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998., p. 123). Artistas como Mozart, por exemplo, embora se movimentem em torno da esfera pura do espírito, têm seu momento polêmico pela “força do distanciamento que, sem palavras explícitas, condena a pobreza e a falsidade da qual se distancia. A força ganha a forma como negação determinada” (ADORNO, 1998ADORNO, T. Ästhetische Teorie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998., p. 264).

Pela erupção da indeterminação na experiência estética, aparecem “as possibilidades desconhecidas e não aproveitadas pela sua invisibilidade” (SEEL, 2000SEEL, M. Ästhetik des Erscheinens. Munique: Carl Hansen Verlag, 2000., p. 39), abrindo espaço para apresentar as múltiplas alternativas de ação existentes ou ainda inexistentes, às quais não teríamos acesso de outro modo. A consciência dessas possibilidades inexploradas, não preconcebidas em modelos estruturados de comportamento, do radicalmente indeterminado, tem efeito liberador, na medida em que introduz uma nova luz no autoconhecimento, favorecendo o manejo das próprias emoções e desejos diante das incertezas da vida, algo decisivo para a formação de uma personalidade autônoma. A experiência estética percebe o objeto em sua indeterminação constitutiva, abrindo uma zona de aparição em que outro lado inacessível da realidade é revelado.

A respeito daquilo que a obra de arte deixa aparecer, trago o exemplo do romance filosófico de Diderot O sobrinho de Rameau (começou a ser escrito em 1761, sendo retomado e reescrito ao longo de 20 anos), redigido na forma de um diálogo repleto de ironias e críticas às normas sociais entre o próprio filósofo, Diderot, e Jean-François Rameau, um homem sem profissão. O encontro é desequilibrado: de um lado, a sabedoria filosófica, a esperança em um futuro melhor, a moralidade, o respeito; de outro, um homem que vive de favores, que não acredita em ganhar a vida honradamente. A força artística deixa aparecer um elemento ainda não determinado conceitualmente, um eu que pode ser um não eu, como se lê na descrição inicial de Rameau: “Nada é mais diferente dele que ele próprio” (DIDEROT, 1973DIDEROT, D. O sobrinho de Rameau. São Paulo: Abril Cultural, 1973., p. 139).

O romance é uma espécie de antecipação do movimento romântico, pois ambos projetam uma sensibilidade refinada à expansão do eu e da própria consciência. Com aguda percepção estética, Diderot (1973)DIDEROT, D. O sobrinho de Rameau. São Paulo: Abril Cultural, 1973. deixa antever a ideia de inconsciente delineada em Schopenhauer e Nietzsche e formulada, posteriormente, em Freud. Seu texto foi muito apreciado à época, tendo recebido tradução de Goethe, em 1805, que ficou impressionado com sua riqueza. Hegel citou-o na Fenomenologia do espírito, no capítulo “O espírito alienado de si mesmo: a formação (Bildung)”, referindo-se à personagem como um exemplo de “consciência dilacerada”, que faz a inversão de todos os conceitos e realidades (HEGEL, 2002HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: UFS, 2002., p. 360), pois Rameau é um devasso, ironiza os costumes e não se submete às normas morais. Segundo ele, “louva-se a virtude, mas é odiada e dela se foge” (DIDEROT, 1973DIDEROT, D. O sobrinho de Rameau. São Paulo: Abril Cultural, 1973., p. 355). Trilling (2015)TRILLING, L. A imaginação liberal: ensaios sobre a relação entre literatura e sociedade. São Paulo: É Realizações, 2015. observa que Diderot tem a percepção do “elemento oculto da natureza humana e da oposição entre o oculto e o visível” (TRILLING, 2015TRILLING, L. A imaginação liberal: ensaios sobre a relação entre literatura e sociedade. São Paulo: É Realizações, 2015., p. 65), como se observa nesta passagem, em que Rameau diz:

Tudo o que sei é que eu gostaria de ser um outro, quem sabe até arriscar-me a ser um homem de gênio, um grande homem. Sim, devo confessar, há algo dentro de mim que me diz. Nunca ouvi louvar um único homem sem enraivecer-me secretamente. Sou invejoso. Quando fico sabendo de algum fato degradante de sua vida privada, escuto com prazer; isto nos aproxima e suporto mais facilmente minha mediocridade

(DIDEROT, 1973DIDEROT, D. O sobrinho de Rameau. São Paulo: Abril Cultural, 1973., p. 344).

Nesse jogo de oposição, a obra dá visibilidade à existência de paixões e desejos que não estava ainda franqueada, pelo menos com toda a clareza e evidência, ampliando as considerações éticas. Ou seja, o romance faz aparecer algo censurável, abrindo caminho para entender a complexa relação entre paixões, desejo e ação moral. Leva-nos a pensar a respeito dos elementos não conscientes, o não eu que interfere no agir moral.

A obra de arte faz parte de nossa interpretação da vida, e o que aparece na experiência estética é o outro, uma diferença, um abrir-se ao não idêntico, que se encontra reprimido na realidade pela “compulsão à identidade” (ADORNO, 1998ADORNO, T. Ästhetische Teorie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998., p. 14), indicando que o mundo não é plenamente compreendido apenas no âmbito conceitual, pois depende desse aparecer estético da indeterminação. Uma orientação ética meramente abstrata perde algo sem essa força da experiência estética. Esse algo é aquilo que podemos experienciar na indeterminação.

Imaginação Moral

A imaginação moral é uma dimensão estética que dá acesso a um tipo de saber que favorece à ética, mas em geral é uma dimensão negligenciada, porque a tradição ética prioriza a questão dos fundamentos e das normas de ação, secundarizando o papel dos sentimentos e de tudo aquilo que se relaciona à capacidade de imaginar. De qualquer maneira, sua relevância para a reflexão ética se deve ao fato de que nosso conhecimento moral:

[...] não é uma simples apreensão intelectual de proposições, nem uma simples apreensão intelectual de fatos concretos; é uma percepção. Consiste em ver uma realidade complexa e concreta com uma elevada lucidez e de modo altamente responsável, em abarcar o que existe com imaginação e sentimento

(NUSSBAUM, 1990NUSSBAUM, M. Love’s knowledge: essays on philosophy and literature. Oxford: Oxford University Press, 1990., p. 152).

Abarcar com imaginação faz parte de um longo processo constitutivo do próprio pensamento. Pascal (2001, p. 15)PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. já observava: “A imaginação dispõe de tudo; faz a beleza, a justiça e a felicidade que é tudo no mundo”, e Shelley (2010)SHELLEY, P. Uma defesa da poesia e outros ensaios. Ed. Bilíngue. São Paulo: Landmark, 2010. E-book. chamava a atenção para o fato de que a imaginação é um instrumento da ética, pois “o homem para ser enormemente bom, deve imaginar com intensidade e abrangência; ele deve se colocar no lugar do outro [...]; as dores e os prazeres de sua espécie devem se tornar as suas próprias” (SHELLEY, 2010SHELLEY, P. Uma defesa da poesia e outros ensaios. Ed. Bilíngue. São Paulo: Landmark, 2010. E-book.). A formação universitária pode investir em favor da expansão da imaginação, enquanto uma possibilidade da articulação entre estética e ética, auxiliando a enfrentar o emaranhado de circunstâncias que atuam sobre a deliberação moral, incluindo as crenças, os hábitos, as emoções, os desejos e tudo o que afeta nossa própria subjetividade.

A famosa afirmação de Aristóteles, em Poética, de que “a poesia é mais filosófica que a história” (ARISTÓTELES, 2011ARISTÓTELES. Poética. Madri: Gredos, 2011., p. 50), porque a poesia torna o universal mais visível do que a história, apoia-se no fato de que o poeta não narra o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. O poeta expressa e interpreta os acontecimentos e, nesse como se da invenção poética, obtém acesso a uma complexidade do agir, o que torna a imaginação um elemento decisivo na formação moral.

Um debate sobre a questão ética deve considerar as ambiguidades presentes no julgamento moral, o aspecto genuíno do conflito e as armadilhas que frequentemente acompanham mesmo as mais acertadas decisões (FESMIRE, 2003FESMIRE, S. John Dewey and moral imagination: pragmatism in ethics. Bloomington: Indiana University Press, 2003., p. 120). Daí decorre a importância da imaginação, que não apenas desenvolve a capacidade de prever as consequências da ação para nós mesmos, como também permite considerar o outro com quem nossa vida está entrelaçada. Fesmire (2003)FESMIRE, S. John Dewey and moral imagination: pragmatism in ethics. Bloomington: Indiana University Press, 2003. retoma a tese de John Dewey de que a deliberação moral é “fundamentalmente imaginativa”, o que torna pertinente conceber a conduta moral “como um modelo de percepção estética e criação artística” (FESMIRE, 2003FESMIRE, S. John Dewey and moral imagination: pragmatism in ethics. Bloomington: Indiana University Press, 2003., p. 4). Ou seja, nosso agir moral também é uma criação.

A imaginação moral encontra especial alcance pelo trabalho da literatura, que permite compor quadros complexos de ação, enunciando as conexões históricas e as categorias psicológicas presentes na deliberação moral, alargando o horizonte de compreensão.

Lionel Trilling (2015)TRILLING, L. A imaginação liberal: ensaios sobre a relação entre literatura e sociedade. São Paulo: É Realizações, 2015. faz parte de um movimento que põe em relevo a potência da literatura para a ética. Em 1950, publicou A imaginação liberal, um conjunto de ensaios em que avalia a contribuição do romance para penetrar nos perigos de nossos desejos aparentemente tão generosos, perceber como nos comportamos e o que se esconde atrás de nossos bons impulsos, subvertendo ideias de uma simplificação da moralidade. Segundo ele: “Nos últimos duzentos anos, o romance tem sido o agente mais eficiente da imaginação moral” (TRILLING, 2015TRILLING, L. A imaginação liberal: ensaios sobre a relação entre literatura e sociedade. São Paulo: É Realizações, 2015., p. 266), porque a literatura é “a atividade humana que leva totalmente em conta, e de maneira mais precisa, a variedade, as possibilidades, a complexidade e as dificuldades das coisas” (TRILLING, 2015TRILLING, L. A imaginação liberal: ensaios sobre a relação entre literatura e sociedade. São Paulo: É Realizações, 2015., p. 21).

O movimento de encenar toda essa complexidade da ação aparece em diversos romancistas do fim do século XIX e início do XX, como Robert Musil e Henry James, e também em muitos filósofos estudiosos de filosofia antiga e moderna, na década de 1980 em diante, que fazem um diálogo entre filosofia e literatura8 8 De acordo com Mello (2014, p. 78): “O movimento de aproximação entre filosofia moral e teoria literária que surge na década de 1980 busca repensar essa noção estrita de literalidade. Em outras palavras, busca superar a oposição entre literalidade do texto e conteúdo sociomoral e afirmar a dimensão ético-filosófica da literatura de ficção como uma dimensão de sua própria literalidade, inseparável da dimensão estético-formal. As obras de escritores como James, Conrad e Musil têm despertado o interesse desse movimento filosófico, na medida em que, ao questionarem certezas epistemológicas, põem em xeque os juízos morais derivados de tais certezas”. Destacam-se, ainda, as contribuições de Charles Taylor e Richard Rorty, que indicam os limites das teorias normativas e a importância da expressividade poética para a compreensão da moralidade. . Entre eles, além de Trilling, destacam-se: Martha Nussbaum, Cora Diamond, Stanley Cavell e Iris Murdoch. Nussbaum (2010)NUSSBAUM, M. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Madri: Katz, 2010., em sua obra Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades, faz um diagnóstico de uma crise na educação que se estende das escolas à universidade, causada pelo abandono dos estudos das artes e das humanidades, cuja relevância consiste em desenvolver a imaginação para promover a capacidade humana de fazer as escolhas na vida, que sempre possuem dimensão trágica. Quando a educação frauda essa expectativa e se volta apenas para o lucro ou o crescimento econômico, a própria cidadania democrática fica comprometida.

Em suas pesquisas sobre a relação entre ética e literatura, Nussbaum (2010)NUSSBAUM, M. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Madri: Katz, 2010. busca compreender a complexidade da experiência moral de um modo que não pode ser abordado pelas teorias éticas, na medida em que estas não entram na particularidade dos casos específicos nem na multiplicidade de perspectivas a respeito da realidade, trazendo à tona ambivalências e fragilidades presentes no juízo moral. Nesse aspecto, a teoria da filósofa não mais endossa o rigorismo kantiano, avesso a conflitos e desacordos insolúveis, pois está aprisionado a uma moral sub specie aeternitatis.

Influenciada especialmente por Aristóteles, Nussbaum (2010)NUSSBAUM, M. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Madri: Katz, 2010. dirige seu interesse pela percepção das obrigações em conflito, pelo significado ético das paixões, pois reconhece que os problemas da moral se iniciam na mediação entre o geral e o particular. Sua investigação vale-se da análise de diversas obras de grandes autores – como Charles Dickens, Marcel Proust, Samuel Beckett e Henry James – para sustentar a tese de que a força expressiva das obras literárias encontra os termos e a forma para desenvolver uma ideia, expressar emoções e expor a experiência moral em seus aspectos psicológicos, sociais e culturais.

Logo, em consonância com Henry James, Nussbaum (1990, p. 7)NUSSBAUM, M. Love’s knowledge: essays on philosophy and literature. Oxford: Oxford University Press, 1990. reconhece que a “atenção delicada e a boa deliberação requerem uma complexa e matizada percepção, assim como uma resposta emocional diante das características concretas do próprio contexto, incluindo personagens e relações particulares”. Esse tipo de abordagem não poderia ser adequadamente expresso de maneira abstrata, mas apenas num texto interessado pelo concreto, compatível com a forma. A ética – tanto a utilitarista como a kantiana – tenta ignorar a relação entre forma e conteúdo. Dispensando a contribuição da literatura, nossa educação moral fica empobrecida, pois os exemplos literários podem iluminar a experiência moral, sobretudo por nos oferecer o que James (2003)JAMES, H. A arte do romance. São Paulo: Globo, 2003. denomina de “moralidade projetada”. Ao prefaciar sua obra Retrato de uma senhora para a famosa edição de New York, Henry James (2003)JAMES, H. A arte do romance. São Paulo: Globo, 2003. indica que a arte do romance representa uma “moralidade projetada”, capaz de expressar:

[...] não apenas seu poder de [...] percorrer todas as diferenças da relação individual com o tema geral, toda a variedade de perspectivas, de disposição para refletir e projetar, criada por condições que nunca são as mesmas de homem a homem (ou, nessa argumentação, de homem a mulher), mas também de positivamente parecer mais verdadeiro a seu caráter na medida em que, com uma extravagância latente, retesa ou tende a romper seu próprio molde

(JAMES, 2003JAMES, H. A arte do romance. São Paulo: Globo, 2003., p. 160).

Para dar concretude a essa exposição, trago um exemplo relevante da arte literária como um modo de imaginação moral que nos previne “do próprio aprisionamento em conceitos rígidos e estereotipados e da própria insensibilidade com as pretensões do outro” (BREDELLA, 1996BREDELLA, L. Aesthetics and ethics: incommensurable, identical or conflicting? In: HOFFMANN, G.; HORNUNG, A. (org.). Ethics and aesthetics: the moral turn of posmodernism. Heidelberg: Universität Verlag Winter, 1996. p. 29-51., p. 51). O exemplo refere-se ao conto “O caso da vara”, de Machado de Assis, publicado na Gazeta de Notícias, em 1891, e mais tarde, em 1899, incluído no livro Páginas recolhidas. É um exemplo de como a imaginação ajudou a construir uma sensibilidade ética favorável à luta contra a lógica escravista no Brasil do século XIX. Machado de Assis, examinador impiedoso da alma e da cultura brasileiras, aponta com maestria para os nossos problemas. A ordem escravocrata predomina até no ambiente doméstico, em que permanece o desdém pelo sofrimento do outro, como o conto mostra a respeito da personagem Lucrecia.

O conto inicia-se com a fuga de Damião do seminário. O rapaz encontra-se na rua, amedrontado, espantado e incerto, temendo ser castigado pelo pai, que não aceitaria a fuga. Resolve, então, pedir ajuda a Sinhá Rita, “uma viúva querida de João Carneiro”, seu padrinho (relação amorosa que fica subentendida no conto). Sinhá Rita vive cercada de crias, as quais ensina a fazer rendas e bordados. Damião vai até sua casa e expõe o problema. Conta o “desgosto que lhe causava o seminário; que não podia ser um bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse” (MACHADO DE ASSIS, 1998MACHADO DE ASSIS, J. Contos. Porto Alegre: LP&M, 1998., p. 81), intercedendo junto ao seu padrinho João Carneiro.

Sinhá Rita sente-se lisonjeada com o apelo e decide ajudar o jovem, enviando recado ao padrinho por um escravo. Enquanto aguardam sua chegada, relaxam, contam anedotas, e uma das criadas, Lucrecia, distraída, esquece o trabalho para escutar o moço. Ao perceber a distração, Sinhá Rita pega uma vara e ameaça a menina:

– Lucrecia, olha a vara!

A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume

(MACHADO DE ASSIS, 1998MACHADO DE ASSIS, J. Contos. Porto Alegre: LP&M, 1998., p. 83).

Damião percebe que Lucrecia não tem culpa e decide protegê-la, certo de que convenceria Sinhá Rita a não castigá-la. Na sequência, fica-se sabendo que o padrinho, apesar de aceitar com relutância o pedido para ir até a casa do pai de Damião, se sente “entre um puxar de forças opostas” (MACHADO DE ASSIS, 1998MACHADO DE ASSIS, J. Contos. Porto Alegre: LP&M, 1998., p. 84), ou seja, entre a amizade do pai de Damião e os favores da viúva. Por fim, chega uma carta de João Carneiro trazida pelo escravo informando que o pai de Damião estava furioso, que não aceitava a fuga. Sinhá Rita responde a mensagem ordenando: “Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos” (MACHADO DE ASSIS, 1998MACHADO DE ASSIS, J. Contos. Porto Alegre: LP&M, 1998., p. 89).

Nesse momento, Sinhá Rita começa a recolher os trabalhos feitos pelas suas criadas e vê que Lucrécia não havia terminado o seu. Ouçamos o fim do conto nas palavras de Machado de Assis (1998, p. 89-90)MACHADO DE ASSIS, J. Contos. Porto Alegre: LP&M, 1998.:

Viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.

– Ah! malandra!

– Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.

– Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!

Lucrecia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.

– Anda cá!

– Minha senhora, me perdoe!

– Não perdoo, não.

E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.

– Onde está a vara?

A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.

– Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?

Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...

– Dê-me a vara, Sr. Damião!

Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...

– Me acuda, meu sinhô moço!

Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

Nesse fim há uma mudança de perspectiva da narrativa, que concentra a força estética pelo efeito surpreendente de deslocar o drama de Damião (que não é mais retomado no texto) para os castigos aplicados em Lucrecia e o desvelamento das relações morais. Há uma tensão entre o acossamento da jovem pelo sentimento de vingança da patroa (pois não concluíra o bordado) e a covardia de Damião, que não a defende, conforme havia prometido.

O conto apresenta uma série de motivos envolvidos no dilema e na decisão moral, desde a ambivalência que atormenta o padrinho (puxado por “forças opostas”) até a presença de interesses mesquinhos (fugir do seminário, ter poder sobre o amante, os favores obtidos pelas amizades). Damião sucumbe ao interesse em agradar Sinhá Rita, agora transformada em sua protetora. De modo a não contrariá-la, deixa de proteger a menina de uma injustiça, tomando a decisão exclusivamente orientada pelo interesse próprio. Ou seja, o dilema moral desfaz-se rapidamente em favor do egoísmo e da autoconservação.

Damião tenta safar-se da circunstância valendo-se do bom manejo que possui a respeito das estratégias sociais dominantes (pedir favores, valer-se de apelos). Já a injustiça que sofre Lucrecia expõe o lamento e a dor dos escravizados. A ela restou a vara, que materializa a punição no corpo, marcando na carne a vingança de Sinhá, trazendo não só a dor física, mas o sentimento de vergonha, necessário para mostrar que a escravidão inclui a apropriação do corpo do outro. Como a escravidão em seu demorado processo de libertação – que no Brasil se arrastou por mais de três séculos –, Lucrecia encontra-se sem justiça, sem defesa moral, abandonada à própria sorte, enquanto o corpo violado expõe o não reconhecimento.

O conto, permeado pela riqueza do diálogo interior, pela concisão e beleza do estilo machadiano, encena de forma precisa as ambiguidades que acompanham a decisão moral, o aspecto trágico do conflito e os insidiosos interesses egoístas que aprisionam Damião. A percepção estética torna visível como entram em jogo a educação e os costumes para consolidar uma ordem social injusta.

O efeito estético da narrativa tem poder de convicção e ajuda-nos a compreender a complexidade da experiência moral, uma vez que a imaginação traz à tona ambivalências e fragilidades presentes na deliberação ética. A decisão de Damião confronta o compromisso da promessa e a força dos costumes que naturalizam a escravidão e penetram as relações sociais. Nesse sentido, a literatura contém “o desenvolvimento completo de uma reflexão ética, mostrando suas raízes numa forma de viver” (NUSSBAUM, 1995NUSSBAUM, M. La fragilidad del bien: fortuna y ética en la tragedia y la filosofía griega. Madri: Visor, 1995., p. 43). Essa é a força educadora do conto de Machado de Assis (1998)MACHADO DE ASSIS, J. Contos. Porto Alegre: LP&M, 1998., capaz de indicar, com aguda sensibilidade e imaginação moral, a violência escravista enraizada na vida doméstica, mostrando como são tecidos os nós dessa tessitura, na qual confluem o caráter moral, as crenças e os fatores sociais. A violência escravista é a negação de qualquer princípio ético, que penetra a realidade social de forma insidiosa e influencia a compreensão moral, pois oblitera a capacidade de ver e sentir, distorcendo qualquer realidade e reafirmando preconceitos ainda vigentes em nossa sociedade.

A intensidade de sentimentos e afetos promovidos pela experiência estética educa a sensibilidade para interpretar princípios e valores morais (a igualdade, o respeito humano, a justiça, a tolerância) de um modo que não pode ser obtido apenas pelo trabalho cognitivo. Não seria exagero afirmar que só podemos ter um agir ético adequado se nossa sensibilidade perceber o contexto e as crenças envolvidos nas decisões. Ao defender a relação entre ética e estética, Welsch (1995, p. 19)WELSCH, W. Estetização e estetização profunda ou a respeito da atualidade estética. Porto Arte, Porto Alegre, v. 6, n. 9, p. 7-22, 1995. https://doi.org/10.22456/2179-8001.27534
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destaca: “Sensibilidade desenvolvida percebe princípios desviantes, descobre imperialismos, tem alergia pelas injustiças e exorta a entrar na luta pelos direitos dos oprimidos”.

Ao Final, Algumas Ponderações

Diante da complexidade do tema, parece-me relevante fazer algumas ponderações: primeiramente, destacar que na formação ética não basta forçar nem disciplinar a vontade, como se fosse suficiente querer para resolver os elementos impulsivos que dificultam a interiorização da consciência moral. Ao contrário, isso depende de um delicado processo de abertura de mentes e corações, fecundado por experiências afetivas, intelectuais e estéticas que despertam a sensibilidade a respeito de como as crenças, os valores e as emoções afetam a vida moral e como atuam no enfrentamento do sujeito consigo mesmo. Qualquer mudança resulta de um trabalho moral interno por meio do reconhecimento daquilo que nos afeta, dependendo muito mais de uma ruptura com as estereotipias e de um exercício de imaginação moral do que de uma aplicação rígida de normas e princípios abstratos. Nesse aspecto, encontram-se os meandros mais complexos e a matéria mais delicada de um processo formativo.

Em segundo lugar, salienta-se que não há determinação necessária entre experiência estética e ética. O que há é a possibilidade de compreender o mundo de um modo tal cujo acesso depende da sensibilidade. É apenas isso que a estética pode oferecer à formação ética, o que já é por si só significativo, e muito provavelmente a universidade pode comprometer-se com uma ação dessa natureza.

Em terceiro, deve-se esclarecer que os exemplos apresentados neste artigo, por serem literários, dependem de leitura. Não é à toa que Nussbaum reconhece como parte da educação moral um intercâmbio educativo e socrático entre texto e leitor, leitor este que julga como o texto participa de sua experiência ética. Uma experiência que convoca a alargar a compreensão do mundo e de nós mesmos pelo autoconhecimento, contudo é preciso considerar os limites de uma época em crise e de uma universidade que restringiu a formação à capacitação técnica.

Já não há mais tempo para a leitura não só das obras literárias, mas também para a atenção estética às outras expressões artísticas. Esse era o ideal formativo da tradição da Bildung e da universidade humboldtiana, que requer atenção concentrada, interioridade, capacidade reflexiva, qualidades que atualmente são atropeladas pela imediatez, pelo tempo efêmero da comunicação digital, que desagrega a atenção e superficializa o entendimento. De qualquer modo, pensar a formação ética pelo diálogo com a literatura, as humanidades e a arte é um desafio para aqueles que não pretendem se alinhar ao aligeiramento formativo e apostam na força da imaginação9 9 É preciso destacar que as possibilidades abertas pela imaginação moral incluem também decisões que articulam ética e política. Cito o exemplo de implantação de novos modelos de ensino superior cuja demanda é de natureza ética, como é o caso do Projeto Unitierra (Universidad de la Tierra), em Oaxaca, México. Fundada em 1999, a Universidad de la Tierra é um exemplo de desinstitucionalização do ensino superior para fazer a inclusão social relativa ao conhecimento dos povos indígenas (MCCOWAN, 2021, p. 17). .

Estou convencida de que o estreitamento de visão, o aprisionamento em preconceitos e a própria deterioração da percepção estética são as maiores barreiras para a formação humana com sensibilidade ética, cujo desbloqueio, a cargo da estética, pode produzir uma nova lucidez. Por analogia à epígrafe de Sêneca (2004)SÊNECA, L. A. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004., a experiência estética, as artes, as humanidades não “ensinam a virtude”, mas preparam o espírito. Quando a educação abandona esses recursos, ela simplifica a questão humana, desfigurando a ética.

Notas

  • 1
    Refiro-me à celebração formal nos documentos normativos das universidades que reafirmam a dimensão ética. Mais recentemente, o documento Aprender a transformarse con el mundo: educación para la supervivencia futura, elaborado pela Common Worlds Research Collective (2020)COMMON WORLDS RESEARCH COLLECTIVE (CWRC). Aprender a transformarse con el mundo: educación para la supervivencia futura. Investigación y Prospectiva en Educación. Paris: CWRC, 2020. Documentos de trabajo, 28. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000374923_spa/PDF/374923spa.pdf.multi. Acesso em: 8 nov. 2022.
    https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf...
    , subsidia a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) com orientações para a educação superior, associando-se às novas gramáticas de reconhecimento de um mundo ampliado (incluindo questões ambientais e dos povos indígenas) do ponto de vista ético.
  • 2
    Como exemplo, refiro-me aos médicos que defenderam o uso de cloroquina na pandemia de Covid-19, quando já havia comprovação científica de que tal medicamento era inadequado para o tratamento da doença. Esse exemplo evidencia problemas da conexão entre a ética e a verdade científica.
  • 3
    Dardot e Laval (2019)DARDOT, P.; LAVAL, C. Anatomía del nuevo neoliberalismo. Viento Sur, Espanha, ano 29, n. 164, 2019. Disponível em: https://vientosur.info/anatomia-del-nuevo-neoliberalismo/. Acesso em: 20 nov. 2022.
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    alertam para não ocorrer um uso impreciso do termo neoliberal. Não se trata, segundo os autores, “apenas de políticas econômicas monetaristas ou austeras, da mercantilização das relações sociais ou da ditadura dos mercados financeiros. Trata-se de uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor, por parte dos governos, a lógica do capital na economia, na sociedade e no próprio Estado até convertê-la em forma de subjetividades e em norma das existências” (DARDOT; LAVAL, 2019DARDOT, P.; LAVAL, C. Anatomía del nuevo neoliberalismo. Viento Sur, Espanha, ano 29, n. 164, 2019. Disponível em: https://vientosur.info/anatomia-del-nuevo-neoliberalismo/. Acesso em: 20 nov. 2022.
    https://vientosur.info/anatomia-del-nuev...
    ).
  • 4
    Humboldt propõe a ideia de universidade na condição de conselheiro de Estado e diretor do Departamento de Cultura e Educação do Ministério do Interior Prussiano. Em 1809, formulou o primeiro esboço do plano para a criação e organização da Universidade de Berlim (fundada em 6 de agosto de 1809), sob inspiração da Bildung, vinculada ao cultivo de si e a uma cultura intelectual e espiritual, defendendo as ideias de que a universidade não deve ser “apenas uma instituição prática”, “nenhuma ciência deve ser excluída” e “a teoria e a prática no ensino universitário” não devem ser separadas (HUMBOLDT, 2010aHUMBOLDT, W. Plan einer vergleichenden Anthropologie. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Antropologie und Geschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010a. v. 1. p. 255-266., p. 31). Essas ideias prosseguem em novas formulações, reunidas no volume 4 da coleção Werke (HUMBOLDT, 2010bHUMBOLDT, W. Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenchaftlichen Anstalten in Berlin. In: HUMBOLDT, W. Schriften zur Politik und Zur Bildungswesen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010b. v. 4. p. 255-266.). Entre esses textos, destaca-se sobretudo “Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenchaftlichen Anstalten in Berlin” (“Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim”), de 1810.
  • 5
    Houve vários esforços, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, de repensar o modelo de Universidade de Berlim proposto por Humboldt. Merecem destaque dois importantes documentos: o primeiro é A ideia da universidade para a situação atual, de Karl Jaspers, publicado em 1923 e reeditado em 1946 e 1961, que defende o ideal humboldtiano, segundo o qual as ciências se articulam numa totalidade, e a educação, que significa mais que conhecimento, envolve a “formação da personalidade de acordo com um ideal de Bildung, com normas éticas” (JASPERS, 1923 apud RINGER, 2000RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000., p. 95). Em 1986, por ocasião da celebração dos 600 anos da Universidade de Heidelberg, Jürgen Habermas (1987)HABERMAS, J. Eine Art Schadensabwicklung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987. fez um discurso intitulado A ideia da universidade: processos de aprendizagem, em que apresentou uma avaliação das transformações ocorridas, apontando a inadequação entre a proposta de Humboldt e as exigências funcionais do sistema e da economia, o distanciamento entre ensino e pesquisa e a formação entendida apenas como capacitação profissional.
  • 6
    Em decorrência da independência dos processos da investigação, as universidades implantaram os comitês de ética na pesquisa, a partir do fim da primeira metade do século XX, sob o impacto da Segunda Guerra Mundial. Tais comitês têm como finalidade “resolver questões específicas da pesquisa com seres humanos surgidas em diferentes instâncias do processo investigativo, que envolvem o contexto, as consequências éticas das decisões, os pesquisadores, as instituições e os participantes envolvidos” (HERMANN, 2019HERMANN, N. Ética. In: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (org.). Ética e pesquisa em educação: subsídios. Rio de Janeiro: Anped, 2019. v. 1. p. 17-23. Disponível em: https://www.anped.org.br/sites/default/files/images/etica_e_pesquisa_em_educacao_-_isbn_final.pdf. Acesso em: 27 nov. 2022.
    https://www.anped.org.br/sites/default/f...
    ).
  • 7
    Há diversos modos de relação entre ética e estética, incluindo desde a complementaridade até a oposição. O tema foi objeto de intenso debate, e um pós-modernismo acentuado, impulsionado por incertezas metafísicas e epistemológicas, chegou a subsumir a ética na estética, ameaçando a autonomia desses campos, o que não deixa de ser perturbador. Associo-me a uma relação de complementaridade, em que tanto ética como estética têm validade, como se apresenta em Habermas (1987)HABERMAS, J. Eine Art Schadensabwicklung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987., Früchtl (1996)FRÜCHTL, J. Ästhetische Erfahrung und moralisches Urteil: Eine Reabilitierung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996., Adorno (1998)ADORNO, T. Ästhetische Teorie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998., Welsch (1995)WELSCH, W. Estetização e estetização profunda ou a respeito da atualidade estética. Porto Arte, Porto Alegre, v. 6, n. 9, p. 7-22, 1995. https://doi.org/10.22456/2179-8001.27534
    https://doi.org/10.22456/2179-8001.27534...
    , Nussbaum (1990NUSSBAUM, M. Love’s knowledge: essays on philosophy and literature. Oxford: Oxford University Press, 1990., 1995)NUSSBAUM, M. La fragilidad del bien: fortuna y ética en la tragedia y la filosofía griega. Madri: Visor, 1995., Seel (2000)SEEL, M. Ästhetik des Erscheinens. Munique: Carl Hansen Verlag, 2000., entre outros.
  • 8
    De acordo com Mello (2014, p. 78)MELLO, L. L. S. “O historiador das consciências delicadas”: ficção, realidade e ética na obra de Henry James. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 7, n. 16, p. 75-89, 2014. https://doi.org/10.15848/hh.v0i16.844
    https://doi.org/10.15848/hh.v0i16.844...
    : “O movimento de aproximação entre filosofia moral e teoria literária que surge na década de 1980 busca repensar essa noção estrita de literalidade. Em outras palavras, busca superar a oposição entre literalidade do texto e conteúdo sociomoral e afirmar a dimensão ético-filosófica da literatura de ficção como uma dimensão de sua própria literalidade, inseparável da dimensão estético-formal. As obras de escritores como James, Conrad e Musil têm despertado o interesse desse movimento filosófico, na medida em que, ao questionarem certezas epistemológicas, põem em xeque os juízos morais derivados de tais certezas”. Destacam-se, ainda, as contribuições de Charles Taylor e Richard Rorty, que indicam os limites das teorias normativas e a importância da expressividade poética para a compreensão da moralidade.
  • 9
    É preciso destacar que as possibilidades abertas pela imaginação moral incluem também decisões que articulam ética e política. Cito o exemplo de implantação de novos modelos de ensino superior cuja demanda é de natureza ética, como é o caso do Projeto Unitierra (Universidad de la Tierra), em Oaxaca, México. Fundada em 1999, a Universidad de la Tierra é um exemplo de desinstitucionalização do ensino superior para fazer a inclusão social relativa ao conhecimento dos povos indígenas (MCCOWAN, 2021MCCOWAN, T. Desinstitucionalização e Renovação no Ensino Superior. Educação & Realidade, v. 46, n. 4, e117607, 2021. https://doi.org/10.1590/2175-6236117607
    https://doi.org/10.1590/2175-6236117607...
    , p. 17).

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Editora de Seção: Ivany Pino https://orcid.org/0000-0001-6227-972X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2023
  • Aceito
    14 Jun 2023
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