Resumo
A Mata Atlântica impressionou os viajantes pela diversidade de ecossistemas e pela maior riqueza de plantas e de animais, se comparada aos ecossistemas de onde viriam os estrangeiros ao Brasil no século XIX. Este artigo analisa os escritos produzidos entre os anos de 1851 a 1890 de viajantes e estudiosos sobre Joinville (Santa Catarina, Brasil), dando ênfase à análise dos valores que os autores atribuíram à biodiversidade da região, articulando-os ao contexto e aos objetivos da escrita de cada um. Problematiza também as relações entre cultura, humanidade e natureza estabelecidas pelos autores. A interpretação dos relatos nos permitiu compreender o caráter predominantemente dominador e utilitarista sobre as paisagens e os territórios prospectados ao empreendimento imigratório, colonizador e/ou comercial no sul do Brasil, bem como apontar os valores atribuídos à natureza a partir de suas descrições sobre as espécies da flora e da fauna então existentes.
Palavras-chaves
Patrimônio-natural; Santa Catarina; Mata Atlântica; Viajantes-estrangeiros
Abstract
While comparing the Brazilian Atlantic Forest to other known ecosystems, foreign visitors of the 19th Century were overwhelmed by the impressive diversity of its ecological communities and greater number of animals and plants. This article intends to analyze the papers written by visiting scholars during the period from 1851 to 1890 on the city of Joinville, located in the Province of Santa Catarina, Brazil. It focuses on the analysis of the values that writers attributed to the biodiversity of the region, relating them to the goals and concepts of the involved articles. It also discusses the interrelation between the culture, humanity and nature established by the authors. The interpretation of these articles allows us to understand the predominant dominating and utilitarian attitude of the migrating entrepreneurs and colonizers regarding the territory and its landscapes. It also points to the values attributed to nature due to the descriptions of the existing species of fauna and vegetation.
Keywords
Natural-heritage; Santa Catarina; Atlantic-forest; Foreign-travelers
Uma cidade na Mata Atlântica
A cidade de Joinville, em Santa Catarina, está totalmente inserida no bioma de Mata Atlântica com as seguintes regiões fitoecológicas e formações pioneiras: Floresta Ombrófila Densa, Floresta Ombrófila Mista, Estepe Ombrófila e as formações pioneiras de influência flúvio-marinhas, mangue e restinga (SCHWARZ, 2007SCHWARZ, Maria Luiza. As representações de crianças e adolescentes da biodiversidade de Mata Atlântica na região de Joinville (Santa Catarina-Brasil). Tese (Doutorado em Geografia) - Departamento de Geografia, Universidade de Montréal, Montréal, 2007., p.57).
Desde a segunda metade do século XIX, esse bioma vem sofrendo com perdas e introduções de novas espécies de biodiversidade. Tais mudanças estão associadas principalmente aos processos de ocupação humana que ocorreram de forma mais intensiva e extensiva em dois momentos marcantes da história da região: a imigração germânica iniciada em 1851 e a migração interna intensificada a partir da década de 1960 (CUNHA, 1982, p.76).
No século XIX, a imigração em Joinville foi inicialmente promovida pela Sociedade Colonizadora de Hamburgo. Era formada por comerciantes de Hamburgo dedicados aos negócios de importação e exportação de produtos coloniais (RICHTER, 1982RICHTER, K. A fundadora de Joinville: Sociedade Colonizadora de 1849 em Hamburgo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Florianópolis, 3ª fase, n. 4, 1982. , p.77). Aproveitando-se de uma conjuntura da política imperial brasileira, na qual concorreram a abolição do tráfico de escravos, a Lei de Terras e a descentralização da política de povoamento, atribuindo maior poder aos governos provinciais, a Sociedade Colonizadora ampliou seus negócios, combinando imigração e colonização da região norte de Santa Catarina (COELHO, 1993COELHO, Ilanil. Joinville e a Campanha de Nacionalização. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Universidade Federal de São Carlos., São Carlos, 1993., p.17). Para o início desse empreendimento, a Sociedade contou com uma considerável concessão de terras dotais, pertencentes a D. Francisca, irmã de D. Pedro II, onde foi fundada em 1851, a colônia agrícola D. Francisca (antiga denominação de Joinville). Para se ter uma ideia, apenas nos dois primeiros anos (1851-1852), a Sociedade estabeleceu 821 imigrantes no núcleo colonial. Até 1861, esse número subiu para 3.769. A territorialização desses imigrantes obedeceu ao que os autores chamaram de “fases clássicas de colonização”: o desmatamento e a agricultura de subsistência, a exploração agrícola de policultura, a comercialização madeireira e de excedentes e, paralelamente, o desenvolvimento de uma produção artesanal, tendo como suporte a pequena propriedade e o trabalho familiar.
O segundo momento de adensamento demográfico na região ocorreu a partir da década de 1960 em decorrência do forte processo de expansão industrial, levando a cidade a assumir, na década de 1980, a primeira colocação como o mais populoso município do estado de Santa Catarina e um dos mais industrializados do sul do país. Contudo, sob a lógica desenvolvimentista urbano-industrial, seu território passou a ser alvo de loteamentos arbitrários e de ocupações em áreas impróprias para habitação (CRISTOFOLINI, 2013CRISTOFOLINI, Nilton José. Desenvolvimento Socioeconômico de Joinville/SC e a Ocupação dos Manguezais do Bairro Boa Vista. Tese (Doutorado em Geografia). Departamento de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. , p.236). A periferia cresceu e as populações e a própria paisagem passaram a enfrentar graves problemas decorrentes das deficiências dos serviços de saúde, de abastecimento de água, de coleta de lixo e rede de esgoto (COELHO, 2011COELHO, I. Pelas tramas de uma cidade migrante. Joinville: Editora UNIVILLE, 2011. , p.65-71). O bioma de Mata Atlântica seria bastante afetado e sofreria, desde então, com intensa e extensa exploração e redução dos seus ecossistemas, das espécies e da suas variabilidades genéticas (SEVEGNANI et al., 2012SEVEGNANI, L. et al., Ameaças a Biodiversidade in SEVEGNANI, L. e SCHROEDER, E. Biodiversidade Catarinense: Características, Potencialidades, Ameaças. Blumenau: Edifurb, 2012. pp. 197-221, p.217-221).
Apesar disso, o município ainda hoje apresenta grande extensão de Floresta Atlântica, com vegetação remanescente de Floresta Ombrófila Densa em seus estágios sucessionais. Para nós, isso se explica pelo fato de uma grande área do município ser protegida por colinas e serras - o que dificultou o acesso e a ocupação humana em larga escala - e ter sido criado, a partir da década de 1990, um conjunto de leis que instituiu as denominadas Áreas de Proteção Ambiental - a primeira abrangendo “35% da área total do município em sua porção oeste”.
Por outro lado, num momento como o que estamos vivendo, em que afloram sensibilidades de proteção a esse bioma, parece-nos oportuno sustentar a ideia de que, tal como no passado, as relações que as populações estabelecem com o patrimônio natural que herdam são historicamente marcadas pela atribuição de valores que estas conferem ao ambiente, aos elementos que o compõem, às práticas que nele empreendem e às percepções socioculturais que desenvolvem sobre a natureza.
Este artigo pretende discutir as representações construídas em narrativas escritas por viajantes e estudiosos que, por motivos vários, estiveram, observaram e procuraram exprimir suas percepções sobre a biodiversidade de Joinville entre os anos 1851/1890, ou seja, numa época em que ainda não se discutia biologia da conservação, tampouco o conceito de biodiversidade, mesmo que alguns dos autores já se referissem a esse conceito de forma fracionada, através da paisagem e das espécies que viam e descreviam. As reflexões que apresentamos são resultantes de investigações ora em andamento junto ao Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade (PCS), as quais têm motivado diálogos entre diferentes áreas disciplinares, em especial entre História e Geografia, com o intuito de problematizar as dimensões espaço-temporais do patrimônio natural.
Na primeira parte do artigo, buscamos explicitar os marcos teóricos e metodológicos do estudo realizado, dando destaque aos autores que mobilizamos para abordar e interpretar a construção social de representações e a atribuição de valores à natureza e ao patrimônio natural. Também nesta parte apresentamos uma biografia sintética dos viajantes e estudiosos e as principais motivações das obras que tomamos como fontes, com o objetivo de circunstanciar histórica e geograficamente ao leitor as narrativas que analisamos.
A segunda e a terceira partes do artigo abordam as representações construídas nos relatos acerca da biodiversidade de ecossistemas e da diversidade específica, ou seja, a diversidade de paisagens do bioma Mata Atlântica e a diversidade de espécies, onde serão classificadas segundo a tipologia de valores de Stephen Kellert (1993KELLERT, S. The Biological Basis for Human Values of Nature. In The Biophilia Hypothesis. KELLERT, S.; WILSON, E. (Org) Washington, DC: Island Press, 1993., p. 44-59) e apresentadas a seguir.
Viajantes e estudiosos: valores e representações da Mata Atlântica
Segundo a historiadora Regina Horta Duarte (2002DUARTE, R. H. Olhares estrangeiros: viajantes no Vale do rio Mucuri. Revista Brasileira de História, São Paulo , v. 22, n. 44, pp. 267-288, 2002., p.268), com a abertura dos portos brasileiros em 1808, a coroa portuguesa já possibilitava aos estrangeiros percorrerem seus vastos territórios "até então dificilmente acessíveis à sua curiosidade". A partir de 1850, a região norte catarinense seria destino de vários deles, dentre os quais aqueles interessados em avaliar as condições para o estabelecimento de imigrantes, informar seus leitores sobre a situação econômica, política e moral das colônias já estabelecidas, descrever o que viam e retratar o que lhes era estranho, produzindo, a partir de si, representações sobre o lugar e, principalmente, sobre a biodiversidade. Por isso, os relatos que tomamos para análise são aqueles que abordam a diversidade dos ecossistemas e de espécies e a problemática envolve os valores que estes estrangeiros atribuíram ao bioma de Mata Atlântica e às espécies da fauna e da flora nos seus escritos sobre Joinville e região. Para tanto, valemo-nos da tipologia de valores proposta pelo pesquisador em ecologia social Stephen Kellert, que investigou as conexões entre natureza e humanidade estabelecidas por várias sociedades em diferentes tempos e espaços.
Ainda que o autor constate variações relativas a fatores geográficos, demográficos, econômicos e culturais, propôs uma metodologia de análise com nove categorias de valores, as quais, segundo ele, foram manifestações recorrentes nas sociedades que estudou (KELLERT, 1993KELLERT, S. The Biological Basis for Human Values of Nature. In The Biophilia Hypothesis. KELLERT, S.; WILSON, E. (Org) Washington, DC: Island Press, 1993., p.42-44), a saber: i) utilitarista - a natureza como algo suscetível a aplicações práticas para alçar diferentes tipos de ganhos material; ii) naturalista - satisfação com os contatos diretos com a natureza; iii) ecológico-científico - interesse em estudos sistemáticos da natureza; iv) estético - a natureza como objeto de fruição e de idealização do belo; v) simbólico - a natureza tomada como fonte de comunicação, circulação de pensamentos, de linguagem relativa a mitos e histórias ou mesmo como metáfora para os humanos lidarem com seus dilemas e enigmas; vi) humanista - a natureza tomada como manifestação sensível de pertencimento, de apego e de filiação com outras espécies e formas de vida; vii) moralista - a natureza como inspiração moral, isto é, fonte para o estabelecimento de preceitos, regras e convenções para governar as ações e relações humanas; viii) dominador - a natureza como instrumento e meio para a competição social e também como objeto de dominação, conquista e controle territorial; ix) negativista - manifestações de aversão e de medo ao mundo natural (KELLERT, 1993KELLERT, S. The Biological Basis for Human Values of Nature. In The Biophilia Hypothesis. KELLERT, S.; WILSON, E. (Org) Washington, DC: Island Press, 1993., p.44-59; SCHWARZ, 2007SCHWARZ, Maria Luiza. As representações de crianças e adolescentes da biodiversidade de Mata Atlântica na região de Joinville (Santa Catarina-Brasil). Tese (Doutorado em Geografia) - Departamento de Geografia, Universidade de Montréal, Montréal, 2007., p.48; SCHWARZ; ANDRÉ; SEVEGNANI, 2008SCHWARZ, M. L. Preferências e valores para com as paisagens da Mata Atlântica: Uma comparação segundo a idade e o gênero. Caminhos de Geografia, Uberlândia v. 9, n. 26 pp. 114 - 132, 2008. , p.117). No Brasil, estas categorias foram utilizadas por Schwarz (2007SCHWARZ, Maria Luiza. As representações de crianças e adolescentes da biodiversidade de Mata Atlântica na região de Joinville (Santa Catarina-Brasil). Tese (Doutorado em Geografia) - Departamento de Geografia, Universidade de Montréal, Montréal, 2007., p.48) para identificar os valores atribuídos por crianças e adolescentes à biodiversidade da Mata Atlântica na região de Joinville.
Pela leitura e interpretação que realizamos dos escritos dos viajantes, constatamos que é possível estabelecer muitas conexões entre as categorias propostas por Kellert. Contudo, pelo fato de os viajantes possuírem diferenças não apenas de nacionalidade ou de motivações a seus escritos, adotamos essa tipologia no intuito de aproximá-los, visando promover um debate que leve em conta a historicidade da noção do termo que hoje cunhamos por biodiversidade, bem como as representações construídas sobre ela, as quais remetem aos modos como esses viajantes conceberam as relações entre cultura e natureza e articularam a produção de conhecimento ao denominado “processo civilizatório” do território sul-americano.
Ainda que considerando a polissemia do conceito de representações e a trajetória desse conceito que se tornou chave nos debates travados por estudiosos, principalmente da psicologia no decorrer do século XX (PIAGET, 1926PIAGET, J. La représentation du monde chez l’enfant. Paris: Presses Universitaires de France, 1926. , p.4-30; ARNAULT, 1985ARNAULT, de La M. M.; De MONTMOLLIN, G. La représentation comme structure cognitive en psychologie sociale, Psychologie française, Les représentations vol. 30, n.3-4, pp. 239-244, 1985., p.239-244), referimo-nos neste estudo à proposição da historiadora Sandra Pesavento (2004PESAVENTO, S. J. História e história cultural. 2a. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004., p.39-40) para quem “as representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem sua existência”. Se, por um lado, “são matrizes geradoras de condutas e práticas sociais”, por outro lado, não devemos tomá-las como “uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele”.
No caso dos escritos em análise, ao mesmo tempo em que os autores pretendem representar o que seus leitores não podiam ver, aquilo que escrevem dizendo ser o real está envolto no jogo social de percepções, classificações e escolhas sobre o que representar como real. Por isso, assevera Pesavento (2004PESAVENTO, S. J. História e história cultural. 2a. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004., p.41) “as representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade”. Dessa perspectiva, interessa-nos perscrutar as representações da Mata Atlântica nesses escritos não para chegar a uma suposta verdade de sua condição no passado, mas para problematizar como seus autores a identificaram, atribuíram valores a ela e expressaram a si próprios e à sociedade em que viviam.
Explorar, reconhecer, analisar, contemplar e também sonhar com terras inexploradas e perdidas do outro lado do Atlântico era a meta de muitos estrangeiros vindos ao Brasil durante o século XIX. Os diários e escritos são a materialidade dessas viagens e, na época, circularam em vários lugares da Europa. Segundo Leite (1995LEITE, M. L. M. Naturalistas viajantes. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, pp. 7-19, 1995. , p.18),
Enquanto os naturalistas-viajantes do período colonial eram exclusivamente súditos da Coroa portuguesa, encarregados de revelar as riquezas e utilidade dos recursos naturais, os que percorreram o Brasil no século XIX (...) estavam empenhados na observação e classificação dos homens e de suas línguas consideradas entre as espécies da natureza. Ligados à nobreza ou a sociedades científicas, percorriam o solo brasileiro num esforço conjunto e planejado de revelar, colecionar e classificar os reinos naturais da América.
Na França, em especial, muitos escritos foram publicados pelo Musée des familles, Le tour du monde, Le magasin pittoresque (LEÃO, 2014LEÃO, A. B. Nós e os franceses: Gilberto Freyre à prova de Adèle Toussaint-Samson, Etnográfica, vol. 18, n. 3,| pp. 625-647, 2014. , p.625-647). Alguns deles não foram traduzidos para o português ainda. Trata-se de narrativas que abordaram desde a história natural, com estudos dos astros, ar, animais, vegetais e minerais, passando pela geografia, política e economia do país, até a descoberta de novas doenças e as condições de vida dos imigrantes então instalados. Como as mudanças ocorriam muito rapidamente, à medida que novas regiões eram ocupadas, a literatura ficava defasada, sendo necessária a atualização constante das informações, como descreve um dos autores por nós analisados, Charles Reybaud (1856REYBAUD, C. Le Brésil. Paris: Typographie de Henri Plon, 1856., p.5, tradução livre) :
Com o rápido desenvolvimento do império [brasileiro], o que está acontecendo hoje será modificado amanhã e certamente, daqui a dez anos ou menos, meu livro deverá ser refeito, pois os fatos e os números que ele descreve estarão defasados da mesma maneira que os números recolhidos em 1845.
Para este estudo, valemo-nos dos relatos de dois franceses, autores de obras pouco conhecidas no Brasil: o já citado Charles Reybaud REYBAUD, C. Le Brésil. Paris: Typographie de Henri Plon, 1856.e Alfred MarcMARC, A. Le Brésil : excursion à travers ses 20 provinces. Paris: M. J. G. Argollo Ferrão, 1889., que escreveram Le Brésil e Le Brésil: excursion à travers ses 20 provinces, respectivamente. Também serão analisadas as obras de: Léonce Aubé, Notice sur Dona Francisca, escrita em 1857; Theodor Rodowicz-OswiecimskyRODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992, A Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil, escrita em 1853 (Tradução de 1992); e James Cooley Fletcher, O Brasil e os Brasileiros, escrita em 1857 (Tradução de 1941).
Como já destacamos, o nosso intuito é o de contribuir com as discussões sobre como a Mata Atlântica foi representada pelos autores, quais espécies e em que termos eles lhe atribuem valores, quais ecossistemas são citados com maior frequência e em que medida os valores atribuídos são ou não próximos e recorrentes. A seguir apresentamos uma breve biografia de cada autor, procurando circunstanciar suas obras.
Louis-François Léonce Aubé era um engenheiro francês e teve um papel destacado na implantação da Colônia Dona Francisca, sendo um dos pioneiros. Quando chegou ao Brasil estava com 34 anos de idade e tornou-se o Vice-Cônsul da França em Santa Catarina e procurador dos Príncipes de Joinville. Foi encarregado de fundar e colonizar as terras dotais. Procurou uma empresa especializada na Alemanha para fazer um contrato de colonização, ficando o Senador Christian Mathias Schroeder de Hamburgo responsável pelo empreendimento. O contrato foi aprovado e ratificado em 26 de abril de 1849 pelos Príncipes de Joinville. Nele era determinado que, em troca da concessão gratuita de oito léguas de terra, o Senador Schroeder ficaria responsável por trazer imigrantes europeus ao local e organizar a implantação da Colônia. As demarcações dessas terras se iniciaram em dezembro de 1845 e terminaram em março de 1846.
Alguns meses antes da chegada dos primeiros imigrantes, em agosto de 1850, Léonce Aubé escreveu uma carta para o Imperador Dom Pedro I, relatando a situação da Colônia Dona Francisca:
No caso se a Vossa Majestade desejar conhecer o local onde serão instalados os primeiros colonos e onde foram construídas as casas em que serão abrigados, consultando o grande mapa da demarcação Vossa Majestade encontrará facilmente o Rio Caxoeira, um dos afluentes do Saguassú; subindo o rio Caxoeira, encontraremos à esquerda o rio Bucarem, depois acima um pequeno ribeirão e acima um outro ribeirão um pouco mais longo; é precisamente neste lugar que nós desmatamos uma pequena extensão do terreno e construímos duas casas a aproximadamente 100 braços do rio Caxoeira e na beira do pequeno ribeirão de que vos falei, uma casa de cada lado” (Aubé apudFICKER, 1965FICKER, C. História de Joinville: crônica da Colônia Dona Francisca. Joinville: Ipiranga Ltda, 1965., p. 60, tradução livre das autoras).
Assim, os primeiros imigrantes que chegaram se depararam com um terreno bastante irrigado, com resquícios de vegetação abatida e duas casas para acolhimento inicial. Somente após alguns meses conseguiram obter um pedaço de terra para ser desmatada, onde estabeleceram residência, cultivo e pequena produção artesanal. Em janeiro de 1852, registravam-se 62 casas e cabanas acabadas e 26 em construção (FICKER, 1965FICKER, C. História de Joinville: crônica da Colônia Dona Francisca. Joinville: Ipiranga Ltda, 1965., p.119). Em sua publicação de 1857, Léonce Aubé exprime tanto um certo orgulho de ter participado desse “progresso” inicial quanto um fascínio pela natureza do lugar e otimismo de seus recursos ainda pouco conhecidos.
Theodor Rodowicz-Oswiecimsky era capitão reformado do Exército prussiano, engenheiro, geógrafo, e chegou na Colônia D. Francisca em setembro de 1851, adquirindo terras e tornando-se colono. Retornou à Europa em junho de 1852. Ao que tudo indica, o motivo de seu retorno foi por força de uma incompatibilidade com a Direção da Sociedade Colonizadora quando da iniciativa dele e de outros colonos em fundarem uma Comuna, espécie de instância de poder político local. A sua obra foi escrita e publicada em alemão gótico em 1853, em Hamburgo, antes mesmo da publicação da obra de Léonce Aubé. Apenas em 1992 foi editada em português pela Fundação Cultural de Joinville, Editora da UFSC e Fundação Catarinense de Cultura. Theodor Rodowicz-Oswiecimsky esclarece já no início de seu relato os motivos e os compromissos que assumiu ao escrever. Queria ele trazer aos seus leitores informações sobre a questão que considerava como uma “doença contagiosa”, “um micróbio” que tomava conta de seus conterrâneos: a emigração. Ao sentir-se capacitado, quer por sua formação quer por sua experiência nas terras de D. Francisca, explicitava no Prefácio com letras garrafais que pretendia relatar a “VERDADE” das condições apresentadas àqueles dispostos a se tornarem um “COLONO” (Prefácio, p.1) no Brasil e em Joinville, principalmente para combater ilusões alimentadas por propagandas enganosas que circulavam na Europa. Em doze capítulos descreve com riqueza de detalhes as condições ambientais da região, atribuindo valores à biodiversidade e, ao mesmo tempo, tecendo críticas à política emigratória e à administração local.
Charles Reybaud (autor de Le Brésil, 1856) não foi um viajante, mas um estudioso sobre o Brasil. Os seus escritos, em forma de livro, foram publicados na França em 1856 pela editora Guillauman e Cie Editeurs, fundada em 1835 por Urbain Gilbert Guillaumin (THEILLIER, 2013THEILLIER, D. un patrimoine français unique à explorer. Cours de Philosophie. Paris: Guillaumin et Cie, 2013.). A editora era especializada em economia política, com enfoque na difusão de ideias liberais (THEILLIER, 2013THEILLIER, D. un patrimoine français unique à explorer. Cours de Philosophie. Paris: Guillaumin et Cie, 2013., sp). O estudioso decidiu escrever um livro sobre o Brasil motivado pela pouca literatura em francês sobre o país e a defasagem das que existiam. Para tanto, ele declara na introdução que se muniu das melhores fontes e que, de maneira minuciosa, pesquisou documentos oficiais produzidos por homens de mais alta competência. Ainda segundo ele, seus escritos haviam passado por um rígido controle e se tornado objetos de muita atenção e cuidado para que até mesmo as pessoas do Brasil pudessem consultá-los para resolver as suas dúvidas (REYBAUD, 1856REYBAUD, C. Le Brésil. Paris: Typographie de Henri Plon, 1856., p.7, tradução livre das autoras). Desse modo, o autor nos dá uma ideia sobre a importância que, na França, adquiria o trabalho científico, não apenas para possíveis interesses colonizadores como também para a decifração e análise da natureza brasileira.
James Cooley Fletcher (1823-1901) nasceu em Indianápolis, Estados Unidos, e era um pastor presbiteriano que veio ao Brasil para atuar como missionário entre 1852 e 1869. Em 1857, publicou com Daniel P. Kidder, também missionário que tinha visitado o Brasil na época regencial, o livro O Brasil e os Brasileiros: Esboço Histórico e Descritivo, tornando-se, à época, a principal referência de conhecimento do território brasileiro nos Estados Unidos. No decorrer de suas estadas, Fletcher exerceu um ativo papel político, junto a D. Pedro II, em prol do protestantismo e da liberdade de culto. Em 1855, após ter organizado uma exposição industrial de produtos norte-americanos no Rio de Janeiro, partiu em viagem ao sul. Como também era agente da American Bible Society, nas cidades que visitou, vendia bíblias em português, inclusive para imigrantes germânicos. No prefácio da obra diz que o objetivo era “traçar um retrato fiel da história do país”, bem como “tornar conhecidos os costumes, os hábitos e o adiantamento do povo mais progressivo que vive ao sul do Equador” para leitores que pouco sabiam sobre o Brasil e o imaginavam apenas como um lugar de “rios caudalosos e florestas virgens, palmeiras e jaguares, cobras gigantescas e crocodilos, macacos roncando e papagaios gritando, minas de diamante, revoluções e terremotos” (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p. xi-xii).
Alfred Marc foi redator do Jornal Le Brésil e vicepresidente da terceira seção da Sociedade de Geografia Comercial de Paris. Ele foi contratado pelo dono do Jornal para trabalhar no Brasil e escrever sobre o mesmo, especialmente sobre economia. Argollo Ferrão, dono do jornal, pediu para que ele fosse bastante neutro em seu trabalho, apontando tanto os aspectos positivos quanto os negativos. Alfred Marc passou dois anos no Brasil (1888-1889) e seus escritos satisfizeram o seu patrão, que lhe fez um outro pedido: dar continuidade ao trabalho, juntamente com os herdeiros de Ferrão. Os textos de Alfred Marc foram publicados em dois tomos, sob o título Le Brésil: excursão através das 20 províncias (título traduzido pelas autoras). No primeiro tomo, ele escreve sobre a sua viagem da Europa para a Amazônia e aos Estados do Norte, Nordeste e Sudeste. No segundo tomo, escreve sobre o Sudeste e Sul do Brasil, abordando Joinville e região.
Como dissemos, as representações produzidas por esses estrangeiros variam segundo o caráter e o objetivo de cada relato, e é necessário esclarecer que, tal como eles, procuraremos em nossa análise produzir, no tempo presente, uma nova representação sobre o passado-presente da paisagem da Mata Atlântica que, tal como eles, é por nós apropriada e significada.
Representações e valores da floresta ombrófila densa
Na chegada dos primeiros imigrantes à região de Joinville, na barca Colon, Léonce Aubé (1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229.) relatou o que observou sobre os sentimentos dos que ali pisavam pela primeira vez:
É um lindo dia este da chegada, e o primeiro sentimento que nos toma conta foi sempre a alegria e a admiração em vista desta vegetação desconhecida e luxuriante que parece invadir até os rochedos e as areias da praia (AUBÉ, 1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229., p. 390, tradução livre das autoras).
A exuberância da floresta é o primeiro elemento da representação de Aubé e de outros viajantes, como Rodowicz-Oswiecimsk (1853, 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992), que também descreveu a chegada dos imigrantes e o que eles avistaram. Em comum, esses discursos atribuem valores estéticos, segundo a classificação de Kellert (2004), isto é, a natureza e todos os seres vivos percebidos como uma fonte essencial de beleza e de atração física. O colorido das flores observadas na região pela primeira vez os fascinaram, assim como a exuberância da floresta e de suas espécies. Rodowicz-Oswiecimsk (1853, 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992) narra:
A viagem pelo rio é ato interessante. Pela primeira vez, os passageiros puderam apreciar, de parte, a imponência de uma mata virgem brasileira. Só se pode afirmar, ser um espetáculo deslumbrante, no qual a palmácea coqueiro sobressai do conjunto, com sua coroa ao topo. Mostra-se o verde em todas as tonalidades, desde o bem escuro até o suave verde desmaiado, com as árvores imponentes a exibirem tudo aquilo e nos quais se enrolavam as mais variadas espécies de trepadeiras com suas flores, convidando a tomarem seus lugares mais coloridos e belos pássaros que se possa imaginar, ao lado das mais lindas orquídeas, helicônias misturadas com verde amarelado das bananas e das folhagens largas e coloridas. O emaranhado dos juncos e taquaras, como se fecham este santuário virgem com uma parte impenetrável (…) Apreciando a maravilha dos diversos grupos de árvores, chega-se a conclusão de que nenhum jardineiro seria capaz de sorti-las melhor, e sem querer o espectador sente seus pensamentos elevarem-se ao Criador desta majestosa beleza!… (…) (Rodowicz-Oswiecimsk, 1851; 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992, p. 29)
Além dos valores estéticos, ao final da citação, Rodowicz-Oswiecimsk (1851; 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992) suscita dois outros valores: moralista e humanista. Ele percebe a natureza como o elemento universal de criação divina, fornecendo uma base para a moralidade que define e forma a existência humana (KELLERT, 1993KELLERT, S. The Biological Basis for Human Values of Nature. In The Biophilia Hypothesis. KELLERT, S.; WILSON, E. (Org) Washington, DC: Island Press, 1993., p.53-54). Tal percepção exprime a crença de que a harmonia e o equilíbrio seriam essencialmente naturais. Nesse sentido, sugere que os homens, também como criação divina, deveriam não apenas se inspirar na natureza para pautar apreciações e juízos sobre si próprios e o mundo em que vivem, como também supor que o Criador de tão majestosa beleza observa, controla e, ao mesmo tempo, provê, para além de quaisquer intervenções humanas, o jardim que criou. Desse modo, a natureza seria fonte e recurso inesgotável abertos e disponíveis às ações e interesses humanos.
A primeira vista da região que tem Fletcher é descrita na sua chegada a São Francisco do Sul. Tratava-se de uma cidade-ilha “lindamente situada” numa baía que a protegia do oceano “e nela desagua[va] o rio São Francisco do Sul, que corre das montanhas que erguem seus verdes cumes muito ao longe”. Além do valor estético, Fletcher atribui também valores utilitaristas à floresta quando diz: “com uma população ativa, essa região - que, no que respeita à fertilidade e ao clima é uma das melhores do mundo - teria uma cultura florescente não excedida pelos ricos campos da Lombardia ou pelas plantações modelo de Midlothian” (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p. 25). O autor previa que, com o estabelecimento de colônias europeias na vizinhança, haveria um novo impulso às principais atividades da cidade: construção de navios e corte de madeiras.
Atualmente, a Floresta Atlântica conta, oficialmente, com 20.000 espécies vegetais (MMA-Ministério do Meio Ambiente do Brasil, 2016MMA - Ministério do Meio Ambiente do Brasil (2016). Mata Atlântica. Disponível em: <Disponível em: http://www.mma.gov.br/biomas/mata-atlantica
>. Acesso em: 04.04.2016.
http://www.mma.gov.br/biomas/mata-atlant...
, p.11), sendo que, em toda a Europa, esse número é de 12.500 espécies (NATURE 2000, 2007NATURE 2000, Plantes en danger. Nature 2000 gère la diversité végétale. Commission Europeène, n. 23, 2007. Disponível em: <http://ec.europa.eu/environment/nature/info/pubs/docs/nat2000newsl/nat23_fr.pdf.>. Acesso em: 04.04.2016.
http://ec.europa.eu/environment/nature/i...
, p.3). Mesmo que não tenhamos números comparativos referentes à época destes autores, a disparidade entre as espécies existentes nas duas regiões é evocada recorrentemente nos escritos de Aubé, Rodowicz-Oswięcimsk, Reybaud e Fletcher. Por essa razão, podemos sugerir quão fascinante e desconhecida era essa floresta que avistavam. Contudo, ao evocarem valores estéticos à flora, articulam, ao mesmo tempo, valores ecológicos-científicos e, principalmente, utilitaristas, lamentando o pouco conhecimento botânico disponível em seus países. A esse respeito, diz Rodowicz-Oswięcimsk (1853, 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992, p.61): “quando se observa a infinidade de vegetações que, há milênios, vem crescendo e florescendo nestas terras, onde o homem somente consegue penetrar com uma espada na mão, onde uma planta disputa lugar com a outra, não se poderá duvidar de sua fertilidade”. Todavia, onde fontes de conhecimento se contradiziam e cada autor se considerava uma autoridade no assunto, o problema consistia em “obter informações seguras” junto aos imigrantes que andavam na região “às apalpadelas” e “no escuro” (Rodowicz-Oswięcimsk, 1853, 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992, p.61).
Para Aubé, mais difícil era observar, identificar e classificar a fauna:
Nos primeiros passos que fazemos na floresta podemos crer que ela não serve de moradia a nenhum ser vivo. É que a vegetação e os cipós entrelaçados impedem um olhar mais longínquo e a fuga é o primeiro movimento do animal selvagem quando se aproxima do homem e ele se enfia nas profundezas impenetráveis dos bosques, antes mesmos de percebê-los. (AUBÉ, 1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229., p.421, tradução livre)
Decorridos 37 anos da chegada dos primeiros imigrantes, em 1888, a Colônia Dona Francisca contava com 15.000 mil habitantes. Foi nesse ano que recebeu a visita de Alfred Marc. Em seu relato - e em contraste com outros viajantes -, a Floresta Atlântica é pouco descrita. Isso se deve, provavelmente, tanto às mudanças antrópicas quanto ao interesse da visita, que era o de observar a situação econômica dos lugares por onde percorria. A paisagem antropizada foi descrita por Alfred Marc comparando-a com as pequenas cidades europeias localizadas ao longo do Rio Reno:
Joinville é a primeira cidade da província e, depois de Petrópolis e de todas as de origem colonial, é a mais bela, a mais desenvolvida, a mais confortável; ela conta com 15.000 habitantes, sendo 11.300 de nacionalidade estrangeira. Ela ocupa uma superfície considerável; é cortada por ruas plantadas de árvores, macadamizadas e muito bem cuidadas. As casas, na maioria em forma de chalés, são separadas umas das outras por cercas-vivas de roseiras ou de espinhos floridos que contornam os jardins. Os canais abertos, com gramados que margeiam as ruas, dão um escoamento rápido das águas até o rio Cachoeira. A impressão do conjunto faz lembrar as pequenas cidades tão graciosas à beira do Rio Reno (…) (MARC, 1889MARC, A. Le Brésil : excursion à travers ses 20 provinces. Paris: M. J. G. Argollo Ferrão, 1889., p.433, tradução livre das autoras).
Os viajantes descreveram com maior riqueza de detalhes a Floresta Ombrófila Densa, embora os ecossistemas associados, como o mangue, também foram citados, mas com menor intensidade. Abordaremos a seguir as espécies de plantas e animais nativos do bioma de Mata Atlântica citados pelos autores.
Representações e valores da biodiversidade específica
As características da vegetação de Mata Atlântica estão ligadas ao tipo de solo e de propriedades físicas, químicas, hídricas, assim como de temperatura, radiação e luminosidade (SEVEGNANI et al., 2012SEVEGNANI, L. et al., Ameaças a Biodiversidade in SEVEGNANI, L. e SCHROEDER, E. Biodiversidade Catarinense: Características, Potencialidades, Ameaças. Blumenau: Edifurb, 2012. pp. 197-221, p.93-133 ). Das espécies conhecidas, a Mata Atlântica abriga 1,6 milhão de espécies animais, sendo aproximadamente 250 espécies de mamíferos (55 endêmicas), 340 anfíbios (87 endêmicas), 197 répteis (60 endêmicos), 1.023 aves (188 endêmicas), além de, aproximadamente, 350 espécies de peixes (133 endêmicas) (SCHÄFFER; PROCHNOW, 2002SCHÄFFER, W. B.; PROCHNOW, M. Mata Atlântica e Você: como preservar, recuperar e se beneficiar da mais ameaçada floresta brasileira. Brasília: APREMAVI, 2002., p.12; SCHWARZ, 2007SCHWARZ, Maria Luiza. As representações de crianças e adolescentes da biodiversidade de Mata Atlântica na região de Joinville (Santa Catarina-Brasil). Tese (Doutorado em Geografia) - Departamento de Geografia, Universidade de Montréal, Montréal, 2007.). Em conjunto, mamíferos, aves, répteis e anfíbios somam 1.810 espécies, sendo 389 endêmicas. Este bioma abriga, aproximadamente, 7% de todas as espécies do planeta. Das 20.000 espécies vegetais, 8.000 são endêmicas (SCHÄFFER; PROCHNOW, 2002SCHÄFFER, W. B.; PROCHNOW, M. Mata Atlântica e Você: como preservar, recuperar e se beneficiar da mais ameaçada floresta brasileira. Brasília: APREMAVI, 2002., p.12).
Quando os viajantes e estudiosos aqui estiveram entre 1851-1890, encontraram uma Mata Atlântica distinta da atual, haja vista as descrições que fizeram observando as espécies específicas da biodiversidade local. Desse modo, interessa-nos nesta parte apresentar as espécies da flora e da fauna local representadas pelos autores, identificar os valores atribuídos às mesmas e, também, suas percepções sobre os grupos sociais existentes na região.
Léonce Aubé, no Notice sur Dona Francisca (1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229.), categorizou os animais em dois grupos: os que habitam a floresta, que são os animais de caça, e os animais ferozes. Segundo suas palavras: “A primeira classe é, sem contradição, a mais numerosa em espécies e em indivíduos, e portanto a caça é simplesmente uma distração, um exercício, jamais um recurso sério” (AUBÉ, 1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229.: 420-421, tradução livre). Já, os animais ferozes, “do gato-tigre ao jaguar (...) são bem numerosos, mas nulamente a temer. A floresta tem quantidade suficiente de caças para eles e ao invés de atacar os homens, eles fogem quando os mesmos se aproximam” (AUBÉ, 1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229., p.421).
As serpentes são outros táxons da fauna que estão nos relatos de Aubé (1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229., p.421), mas não são classificadas nem como animais de caça nem como animais ferozes. Ele fala destas de maneira bastante generalizada, sem, evidentemente, identificar suas estruturas biológicas. Não sendo especialista nesta área, Aubé se restringe a descrever os efeitos das picadas e os cuidados a serem tomados. Contudo, chama a atenção para a grande quantidade de serpentes existente:
As serpentes, que são espantalhos na Europa, não são mais perigosas aqui, já que, após cinco anos da fundação da colônia, elas não causaram nenhum acidente sério (…). Ainda que o veneno de algumas possa causar dano violento e rápido, algumas gotas de alcali sobre e no interior da mordida neutraliza os seus efeitos. Mesmo se esperarmos muito tempo para aplicar o remédio, o pós-mordida nunca é fatal. Nós podemos, então, penetrar sem medo na floresta, com um fuzil para a caça, uma faca sempre útil na viagem e uma garrafa de alcali (….) (AUBÉ, 1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229., p.421, tradução livre ).
Como se vê, para Aubé, a fauna não se constituía uma ameaça para quem adentrasse a Floresta. Pelo contrário, como território a ser explorado e dominado, bastaria aos colonos conhecerem e obterem os insumos adequados para que o empreendimento colonial alcançasse êxito.
Rodowicz-Oswiecimsky também fala das cobras destacando que as pequenas eram criadas como “animais domésticos” para fazerem caçadas noturnas a camundongos e insetos, “substituindo o gato de casa” (RODOWICZ-OSWIECIMSKY, 1853, 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992, p.54). Também faz alusão aos “lindos filhotes de gatos do mato” ou jaguatiricas, sapos martelos, antas, gambás e macacos (RODOWICZ-OSWIECIMSKY, 1853, 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992, p.55). Contudo, os que causavam incômodo aos colonos eram os pequenos animais: os “vampiros que sangram o cangote dos bovinos”, camundongos, baratas, formigas, serra-pau, traças, os “miudinhos e terríveis” maruís, “os chamados bichos-de-pé” e as pulgas. Na nossa interpretação, sua descrição sobre a fauna local suscita ora sentimentos de familiaridade através de valores humanistas e simbólicos, ora de incômodo e aversão, num valor negativista para com certos animais, segundo Kellert.
Fletcher vale-se de vários adjetivos e metáforas para descrever especialmente as aves. Cita o “lindo e branco ibis”, a “garça real azul”, “saltitantes grous” e o som da araponga, semelhante com o badalar de um sino e, por vezes, com “o bater do martelo na bigorna” (1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p.30). Desse modo, ao atribuir valores estéticos às aves, produz representações que concorrem para a construção de uma imagem edênica do lugar.
Rodowicz-Oswiecimsky (1853, 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992) integrou também à fauna os indígenas que “costumavam sondar de cima de árvores” o território. Diz ele: “às vezes veem-se famílias inteiras e, às vezes, grupos tribais que se postam à frente das casas e ali ficam, enquanto existir alguma comida” (Rodowicz-Oswiecimsky, 1853, 1992RODOWICZ-OSWIECIMSK, T. Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil. Florianópolis, DAUFSC, 1992, p. 53). Advertia que alguns “se consegue aliciá-los, mobilizando-os para o trabalho”. Porém, resistir a sua presença, além de inútil, seria perigoso.
Como nos lembra o antropólogo Laplantine (2003LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia, São Paulo: Brasiliense, 15 ed. 2003., p.28), essas representações depreciativas em relação aos indígenas remetem aos vários relatos de viajantes produzidos desde o século XIV e que foram bastante divulgados na Europa. Explica o autor que, à medida que os europeus exploraram o que chamavam de Novo Mundo, começaram a elaborar teorias sobre os indígenas “nos modos de um bestiário”. Assim, quanto mais a alteridade se insinuava perturbadora e obstaculizava a conquista e domínio territorial, mais se manifestava como “metáfora zoológica”, baseada numa taxonomia etnocêntrica que recorria a critérios de ausências para classificar os “seres da floresta”: “sem moral, sem religião, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem arte, sem passado, sem futuro” (LAPLANTINE, 2003LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia, São Paulo: Brasiliense, 15 ed. 2003., p. 28). Ainda que no século XIX o termo “primitivos” começasse a substituir o termo “selvagens”, os indígenas continuaram, predominantemente, a ser representados pelos estudiosos europeus, opondo-se “animalidade e humanidade” (LAPLANTINE, 2003LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia, São Paulo: Brasiliense, 15 ed. 2003., p. 27), cultura e natureza e civilização e barbárie.
De forma semelhante a Rodowicz-Oswiecimsky, Fletcher classifica a população africana aqui existente como uma espécie da biodiversidade, porém, transplantada de outro continente. Conta que, na região, foi guiado por mar e terra por um “escravo que desfrutava do nome apropriado de José Grande” (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p. 32). Qual não foi a sua surpresa ao constatar que, em certa ocasião, o africano manifestou encanto com a beleza do lugar, pois jamais “ninguém teria suspeitado que tivesse gosto para apreciar esses lindos cenários” (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p. 32). Para Fletcher, o africano, um elemento de força bruta, teria sido introduzido pelo colonizador português para compor a natureza e potencializar os recursos da região. A essa representação de inferioridade, articulam-se outras para caraterizar a população local, como a de homens de “aparência doentia” e de imigrantes alemães das “mais baixas classes” entregues à bebida. Por outro lado, registrou que, na nascente colônia, havia “sadias e jovens ‘frauleins’”, “robustos e rosados rapazes”, “crianças de olhos azuis e cabelos louros” (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p.28), mães alfabetizando filhos (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p.39) e homens distintos dedicados à instrução, saúde e religiosidade da população (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p.41-42), isto é, indivíduos que representavam a civilidade do lugar.
Ao contrário do africano, o indígena era um elemento nativo e constituinte da natureza original do lugar que deveria ser, no mínimo, domesticado. Apesar disso, diz ele que seu relato não deveria causar “a impressão de que a província é um medonho deserto”, já que nas cidades, vilas e nas colônias de imigrantes que conhecera “tudo fala de uma certa soma de civilização e progresso” (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p.46).
Ao interpretarmos a narrativa de Fletcher quanto à população local, os valores negativistas em relação à natureza são realçados pela presença de indígenas. Porém, segundo ele, os efeitos perversos dessa presença seriam superados à medida que outros valores predominassem, em especial, o utilitarista e o dominador, isto é, conhecer, dominar e explorar os recursos naturais. Quanto aos africanos, pelo breve convívio que teve com José Grande, suscita a atribuição de um valor humanístico à natureza, não por esta ter mediado uma filiação humana com José Grande, mas porque a surpreendente fruição de José Grande havia lhe mostrado que a natureza poderia promover inspiração e apego para seres que estavam aquém de sua própria experiência e condição civilizada. Aubé (1857AUBÉ, L. - Notice sur Dona Francisca, in DUTOT, S.; AUBÉ, Léonce (Org). France Brésil - Paris: au bureau de la Compagnie franco-allemande, 1857, pp.181-229., p.398-415) representa a biodiversidade específica descrevendo especialmente as plantações dos primeiros moradores, após o árduo trabalho deles em desmatar a terra para plantar. Numa perspectiva utilitarista, faz uma exposição detalhada dos legumes diversos da família da batata. Uma planta lhe chama muita atenção, dedicando a ela mais de sete páginas: a mandioca. Mesmo sendo identificada como uma raiz nativa, tratava-se de um produto, cuja comercialização poderia ser expandida, dada a apreciação dos nativos, principalmente, com a farinha. Informa que a mandioca era geralmente plantada em colinas e no intervalo de cada “bastão” plantado no solo limpo podia-se também cultivar o milho e o feijão. Interessante notar que essa prática ainda hoje predomina nas unidades agrícolas familiares da região de Joinville. Ela é plantada nos morros, pois não se adapta a solos muito encharcados.
Além da mandioca, Aubé refere-se a uma planta brasileira de frutos deliciosos cultivada em vales, a bananeira. Ainda cita o café, o arroz irrigado, a cana-de-açúcar, o aipim, o mangarito, o taiá, o cará, o inhame, o tabaco e a erva-mate. O valor utilitarista predomina, assim como o potencial alimentar das espécies citadas. O cipó foi o único táxon de potencial não alimentar citado por ele.
O estudioso Reybaud (1856REYBAUD, C. Le Brésil. Paris: Typographie de Henri Plon, 1856., p.200, tradução livre), cuja obra se baseia nas informações recolhidas na bibliografia disponível de sua época, também associa a biodiversidade local com o seu potencial alimentar. Diz: “As terras da colônia são muito férteis. Elas produzem abundantemente o café, a cana-de-açúcar, o arroz, o feijão, o milho, a mandioca, as batatas, o tabaco e outros derivados do país. Elas fornecem também muitos vegetais e frutas da Europa, quando cultivadas com cuidado”.
De acordo com Meneses e Carneiro (1997MENESES, U. B. de; CARNEIRO, H. A História da Alimentação: balizas historiográficas. Anais do Museu Paulista - História e Cultura Material, São Paulo, vol. 5, pp. 9-91, 1997. , p.47-48), na França, ao longo dos séculos XVIII e XIX, o interesse pelo potencial alimentar de gêneros americanos relacionou-se aos efeitos das crises de produção agrícola, ligadas ao crescente processo de industrialização e de urbanização, e ao impacto das previsões elaboradas pelo economista inglês Thomas Robert Malthus, segundo as quais o futuro das sociedades europeias seria de fome e miséria, em razão do déficit entre o montante de produção agrícola e o aumento demográfico. Carneiro (2003CARNEIRO, H. S. Comida e sociedade, uma história da alimentação, São Paulo: Editora Campus, 2003., p.78) ressalta que a ameaça de escassez de alimentos perdurou ao longo do século XIX, principalmente em função do isolamento continental imposto à França nas guerras napoleônicas (CARNEIRO, 2003CARNEIRO, H. S. Comida e sociedade, uma história da alimentação, São Paulo: Editora Campus, 2003., p. 78).
O mesmo interesse pelo potencial alimentar dos gêneros americanos também é recorrente nas representações da biodiversidade de Alfred Marc (1889MARC, A. Le Brésil : excursion à travers ses 20 provinces. Paris: M. J. G. Argollo Ferrão, 1889., p.433). Contudo, não lhe interessa informar aos seus leitores detalhes sobre as condições e características do solo, da fauna ou da flora da região, mas o que dela poderia ser extraído e comercializado para diversas praças. Construindo uma “geografia comercial”, Marc identifica, localiza e descreve produtos como cachaça, açúcar, farinha, fécula de araruta, goma, tapioca, manteiga, tabaco em folhas e madeira, cigarro e erva-mate. Desse modo, seu relato escrito em 1889 exprime a intenção de fornecer subsídios para uma espécie de cartografia econômica de interesse francês. Segundo Cosenza, De Rocchi e Ribeiro (2014COSENZA, J. P. ; DE ROCCHI, C. A. ; RIBEIRO, C. A. C. Presença francesa no Brasil no século XIX: análise dos arquivos contábeis da Casa Boris no período de 1872 a 1887. Revista Brasileira de Gestão de Negócios. São Paulo, v. 16, n. 51, pp. 223-256, 2014., p. 39-40), de 1850 até o final do século XIX, o Brasil apresentava um movimento intenso de importação e exportação de mercadorias e de gêneros alimentícios com a França, movimento só superado pelo comércio com a Inglaterra. Os autores, ao analisarem fontes contábeis de casas de comércio estabelecidas nos principais centros urbanos brasileiros, destacam o papel exercido pelos “comissários em mercadorias” que, da França, se associam com imigrantes para fomentar não apenas os negócios de importação e exportação como também o comércio varejista em várias regiões brasileiras.
Fletcher relata uma preocupação sensível do estado da biodiversidade em relação ao “cruel machado dos mateiros”. Contudo, assevera que, para tornar a região de Joinville habitável “a natureza, bem como o homem, devem fazer seus sacrifícios” (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p. 39-40). Dos imigrantes, o lugar exigiria muito trabalho. A natureza intocada e hostil seria, ao mesmo tempo, generosa, pois poucas chances os imigrantes teriam de passar fome, já que à disposição tinham frutas como laranjas e bananas, “canas tenras e apetitosas”, mandioca para a farinha em lugar de cereais e “águas espelhantes”. A beleza de semprevivas, orquídeas “das espécies mais raras” e baunilhas com flores estreladas e de “deliciosa fragrância” são encontradas em abundância, e um bom negócio seria importar a fava da baunilha da província de Santa Catarina (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p.42-3). Esse valor utilitarista sobre a biodiversidade colocava em evidência os benefícios que os seres humanos possuem através do funcionamento dos ecossistemas.
Os valores utilitaristas para com a biodiversidade eram tendências na época, e, segundo Larrère (2006LARRÈRE, C. Éthiques de l'environnement, Multitudes v. 1, n. 24, pp. 75-84, 2006. , p.75), somente depois dos anos 1970 os europeus começaram a dar maior importância à ética ambiental na Filosofia e de maneira mais crítica. Foi bem depois dos norte-americanos, segundo a autora, embora a crise ambiental não era ignorada.
Segundo Diegues (1999, p. 3), a biodiversidade não é simplesmente um conceito do mundo natural:
A biodiversidade não é simplesmente um produto da natureza, ela é também o produto da ação das sociedades e culturas humanas (…) ela é também uma construção cultural e social. As espécies vegetais e animais são objetos de conhecimento, de domesticação e uso, fonte de inspiração para mitos e rituais das sociedades tradicionais e, finalmente, mercadoria nas sociedades modernas.
As narrativas dos viajantes e estudiosos que chegaram na atual Joinville remetem muito mais à domesticação deste ambiente para a implantação de modos de vida europeizados num ambiente que era ocupado pela população autóctone e caiçara, tratados em alguns relatos como elemento da fauna.
As possíveis inversões de valores sobre a Biodiversidade
Mesmo que o objetivo ou propósito da viagem de cada viajante ou estudioso analisado fosse diferente, todos se manifestaram positivamente sobre o esplendor da Mata Atlântica, abordando a diversidade dos ecossistemas e as diferentes formas de vida e de espécies que observaram. Contudo, os valores utilitaristas e dominadores sobre a Mata Atlântica predominaram nesses relatos, quer nas prospecções acerca das possibilidades de exploração econômica, quer quando vislumbram, com otimismo, o progresso futuro da região, associando a diversidade da fauna e da flora com a ocupação humana.
Os valores negativistas, por outro lado, foram suscitados à medida que os relatos apontavam os problemas e os obstáculos que incidiam no êxito do empreendimento colonial, dentre os quais, a presença de indígenas (representados como “hostis predadores”) e a falta de civilidade do lugar, decorrente da introdução, pelo colonizador português, do africano (representado como mero elemento detentor de força bruta) e do comportamento nocivo de alguns imigrantes provenientes das “mais baixas classes”.
Dessa perspectiva, cumpre-nos o desafio de refletir sobre as possíveis inversões dos valores atribuídos pelos autores analisados em relação ao nosso próprio tempo-espaço. Se hoje o estado de Santa Catarina se destaca como território que possui e preserva uma grande extensão de Mata Atlântica no Brasil, e se as áreas de preservação permanente têm se expandido, é de extrema importância reconhecermos, que para proteger esse patrimônio natural, não bastam apenas iniciativas jurídico-formais ou práticas discursivas que põem em destaque a sua rica biodiversidade, a beleza de suas paisagens ou a necessidade imperiosa de “adequar” comportamentos, ideias e ideais a suas dinâmicas naturais próprias e específicas. Para nós, tal preservação requer espaços e tempos de elaboração crítica pelos quais o social pode desafiar as múltiplas apropriações e as disputas políticas que envolvem (e envolverão) a construção de representações por meio da atribuição de valores à Mata Atlântica. Tal qual as formas de vida e a trama das complexas interações que a nutrem, a Mata Atlântica, as representações e os valores que lhe são atribuídos são questões sempre imbricadas com políticas e iniciativas de preservação, isto é, sempre inseridas no jogo social de percepções, classificações e julgamentos, bem como com os interesses, desejos e problematizações que diacrônica e sincronicamente atravessam as disputas de poder pelo domínio de territorialidades e territórios.
Com isso não se quer dizer que a proliferação dos marcos jurídicos, das lutas políticas ou dos projetos de educação voltados à preservação do patrimônio natural não sejam necessários. Ao contrário, pensamos que a relevância dessas iniciativas se explicita à medida que nos remetam ao debate e reflexão sobre como são construídas as representações, as tensões e as lutas de poder que as movem, as ideias e imagens que mobilizam para produzir hierarquias culturais, desigualdades sociais e, principalmente, desafiar visões de mundo que, do século XIX à contemporaneidade, nutrem dicotomias que opõem belo-feio, afeição-aversão, sociedade-natureza, civilização-barbárie, razão-tradição e (por que não?) ciência-imaginação.
REFERÊNCIAS
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Segundo o censo de 1980, a média de crescimento populacional de Joinville foi de 6,45% ao ano, o que significou mais do que o dobro das taxas verificadas no estado de Santa Catarina e no Brasil.
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Utilizamos a definição de biodiversidade ou diversidade biológica conforme a atribuída pela Convenção sobre a Diversidade Biológica-CDBCDB - Secretaria Convenção sobre Diversidade Biológica. Assurer la pérennité de la vie sur Terre - La Convention sur la Diversité Biologique: pour la nature et le bien être de l’humanité. Montreal : CDB, 1999.: “Biodiversidade é termo que designa todas as formas de vida sobre a Terra e as características naturais que elas apresentam. A diversidade que hoje testemunhamos é fruto da evolução dos processos naturais ao longo de milhares de anos e cada vez mais, sob influência humana. Ela constitui a teia da vida da qual fazemos integralmente parte e da qual somos totalmente dependentes” (Tradução livre das autoras). Esta definição unifica os três níveis tradicionais de diversidade entre seres vivos: i) diversidade genética diversidade dos genes em uma espécie; ii) diversidade de espécies - diversidade entre espécies; iii) diversidade de ecossistemas - diversidade em um nível mais alto de organização, incluindo todos os níveis de variação desde o genético (PATO, 2013).
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Trata-se dos projetos “Usos e apropriações do patrimônio cultural nas cidades contemporâneas”, sob coordenação de “autor”, e “Memórias e Representações sobre a biodiversidade vegetal urbana em Joinville-Brasil e Sorel-Tracy-Canada”, sob coordenação de “autor”. Ambos contam com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Fundo de Apoio à Pesquisa da Univille (FAP/Univille).
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Tradução dos títulos Charles Reybaud, Alfred Marc et Léonce Aubé, respectivamente: O Brasil; O Brasil: excursão pelas suas 20 Províncias e Notícias sobre Dona Francisca.
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A obra foi escrita por Fletcher em 1857, mas com a tradução de 1941, Keeder associou-se à mesma.
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Mata Atlântica é todo o bioma, constituído pelas Floresta Ombrófila densa, Floresta Ombrófila Mista e ecossistemas associados: mangue e restinga. Quando falamos em Floresta Atlântica, estamos nos referindo apenas a Floresta Ombrófila Densa ou Floresta Ombrófila Mista.
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Sem número de página, disponível online.
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Notícia sobre Dona Francisca, tradução livre. Com um mapa da Colônia em anexo. Tirado da obra intitulada France et Brésil, de 1857. O capítulo possui 47 páginas.
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[Química.]-Grupo de corpos compostos como a soda, a potassa, etc. que produzem sais na presença dos ácidos e transformam as gorduras em sabões (SILVEIRA et al., 2007).
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Sobre os indígenas, Fletcher informa que “ainda existem aí abundantemente, e no interior distante são combatíveis, e nutrem um ódio mortal pelo homem branco” (KIDDER; FLETCHER, 1941KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros (esboço histórico e descritivo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. xi-xii, 1941. , p. 46). Ao indicar que “ainda existem” indígenas e que aqueles do interior “são combatíveis”, Fletcher refere-se tanto ao extermínio indígena em curso por bugreiros - pessoas contratadas por colonos imigrantes e pelo governo provincial para « limpeza da área » -, quanto às frequentes operações organizadas pelos colonos para afugentar indígenas que resistiam à conquista de seus territórios tradicionais, como é o caso dos grupos Xokleng.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jul 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
27 Set 2017 -
Aceito
28 Abr 2018