Resumo:
Habitualmente trata-se da obra do médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues como uma espécie de arquétipo do racismo científico, corrente que predominou nos círculos intelectuais brasileiros na virada do século XIX para o XX. As implicações dessa leitura seguem até hoje informando sobre as ideias vitais de um “homem de sciencias”, intérprete do Brasil, figura indispensável na tradição autoritária do Pensamento Social Brasileiro. Tendo como partida a multiplicidade de abordagens desse domínio específico das Ciências Humanas e Sociais - mas privilegiando o fazer historiográfico que o mesmo acolhe -, temos por objetivo aclarar os estratagemas teórico-metodológicos mobilizados em prol de uma releitura da obra rodrigueana. A ideia é deslocar o foco de um discurso único e exclusivamente fatalista e fixista - predominante até os dias atuais - para outro mais complexo, que foge ao determinismo racial e se apropria de outros conteúdos paradigmáticos da época - em especial o evolucionismo-social e a sociologia tardiana. A presente proposta tem por objetivo uma nova interpretação dos escritos rodrigueanos, autor que acomodou ideias, autores e conceitos que divergiam dos cânones raciais-darwinistas (excessivamente atrelados ao mesmo), mas não menos discriminatórios.
Palavras-chave:
Nina Rodrigues; Pensamento Social; raça; evolucionismo; historiografia
Abstract:
Usually, the work of the doctor and anthropologist Raimundo Nina Rodrigues is treated as a kind of archetype of scientific racism, a trend that prevailed in Brazilian intellectual circles at the turn of the 19th to the 20th century. The implications of this reading continue to this day informing about the vital ideas of a “man of sciences”, interpreter of Brazil, an indispensable figure in the authoritarian tradition of Brazilian Social Thought. Starting from the multiplicity of approaches of this specific domain of the Human and Social Sciences - but privileging the historiographic work that it welcomes - we aim to clarify the theoretical and methodological stratagems mobilized in favour of a reinterpretation of Rodrigues’ work. The idea is to shift the focus from a single and exclusively fatalistic and fixist discourse - prevalent until to this day - to a more complex one, which escapes racial determinism and appropriates other paradigmatic contents of the time - especially social-evolutionism and Tardian sociology. The present proposal aspires a new interpretation of the Rodrigues’ writings, an author that accommodated ideas, authors and concepts that diverged from the racial-Darwinist canons (excessively linked to it), but no less discriminatory.
Keywords:
Nina Rodrigues; social thought; race; evolutionism; historiography
História e Pensamento Social
A proposta do presente texto baseia-se em questões de fundo teórico-metodológico voltadas para a investigação dos “homens” e suas “ideias” no tempo e o diálogo desta prática historiográfica com outras áreas das Ciências Humanas e Sociais. Enquanto profissionais, os historiadores contemporâneos são devedores de um itinerário de experiências, estranhezas e compreensão do(s) homem(s) e sua articulação com o(s) tempo(s) que ganhou musculatura a partir de meados dos anos 60/70 do século XX. Embora ainda se servindo de estratagemas norteadores de escolas inspiradas em visões totalizantes, esquemáticas e recitativas (Annales e Marxismo, por exemplo), novas propostas e estilos de reflexão, pesquisa e narração passaram a dominar a “oficina” daqueles que refletem sobre o tempo presente e passado.
Referimo-nos aqui, entre outras questões basais, a um complexa e variável operação intercorrente e variante de observação dos objetos de estudo, enfim, de novos protocolos de pesquisa, atentos mais aos “vestígios” do que às “normas”, aos “indícios” do que às “estruturas”, aos “eventos” do que aos “ciclos”. Esse fenômeno levou muitos autores a destacar - ainda que de forma não definitiva, levando-se em conta o caráter impersistente da disciplina História - o retorno do “sujeito”, da “narrativa”, do “acontecimento” - tal como teorizaram Michel Serres, Robert Darnton, Michel de Certeau, Paul Ricoeur, Carlo Ginzburg, entre outros (BARROS, 2011BARROS, José D.’Assunção. A Nova História Cultural. Considerações sobre o seu universo conceitual e seus diálogos com outros campos históricos.Cadernos de História, v. 12, n. 16, p. 38-63, 2011.).
As mais variadas especialidades, dentro do universo da História, foram marcadas por uma multiplicidade de visões sobre o passado ou foram, em si, partes dessa nova gestação, direta ou indiretamente. Entre tais áreas, não se pode ignorar o Pensamento Social Brasileiro que vem ganhando força nos últimos 30 ou 40 anos no Brasil. Para os propósitos imediatos deste artigo, este é tratado como um dos pontos cardeais para uma nova estratégia de interpretação da obra do médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) - em especial, seu recorte racial, mas não apenas -, atuante no meio científico e acadêmico brasileiro entre o final do século XIX e início do XX.
Imperioso esclarecer aqui a distinção entre dois campos de conhecimento e estudo, o Pensamento Social e a História do Pensamento Social - brasileiros ou não. O primeiro se caracteriza por uma vasta área interpenetrada por diferentes saberes, também conhecida por outras terminologias, dependendo de onde parta a reflexão do autor - como “Sociologia do Conhecimento” (ELIAS, 2008ELIAS, Norbert. Sociologia do conhecimento: novas perspectivas. Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 3, p. 515-554, 2008.; MANNHEIM, 1972MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.). Já o segundo remonta à práxis historiográfica propriamente dita, exercitada normalmente, mas não exclusivamente, por historiadores dedicados ao estudo de ideias, personagens, conceitos-chave, redes colaborativas, demarcações geracionais e instituições que balizaram a(s) intelectualidade(s) e sua(s) trajetória(s) no decorrer do tempo (SCHWARCZ; BOTELHO, 2011SCHWARCZ, Lilia Moritz; BOTELHO, André. Simpósio: cinco questões sobre o pensamento social brasileiro. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 82, p. 139-159, 2011.; BASTOS, 2011BASTOS, Elide Rugai. Atualidade do pensamento social brasileiro. Sociedade e estado, v. 26, n. 2, p. 51-70, 2011.).
Na longa tradição1 1 Referimo-nos aqui, entre outros: MAIO, 1995; SCHWARCZ, 1993; SKIDMORE, 2012. de estudos que enquadra Nina Rodrigues nos moldes de um discurso cientificista, fatalista, típico do final do século XIX, marcado pelo racialismo dogmático, foram negligenciados aspectos que arrevesam o mesmo e, no limite, o subvertem. A atual proposta é, em si, demonstrar como deslocamos a herança intelectual rodrigueana da esfera de um darwinismo-social exacerbado, para áreas de estudos antagônicas. O acomodamento de propostas que divergiam do conteúdo oitocentista paradigmático fez do conjunto de sua obra um objeto intrincado, fórmula exemplar do momento tensionado em que viviam as ciências de seu tempo.
Retornemos, brevemente, à Escola dos Annales inaugurada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre. A Nouvelle Histoire trazia entre suas ricas inovações, o trânsito de pesquisadores e ideias entre o campo da História e as demais Ciências Sociais e Humanas. Não à toa também queria se fazer ciência, muito embora já houvesse assumido o caráter de disciplina acadêmica na segunda metade do século XIX e conquistado larga faixa do mercado editorial europeu, pelas mãos da escola “positivista”. Não que esta última não se comunicasse de modo algum com suas irmãs, mas as tratava como meros apêndices, ferramentas auxiliares, de forma “imperialista”.2 2 Destacamos, como exemplo, os autores clássicos Charles Seignobos, Charles-Victor Langlois e Fustel de Coulanges. Cf.MALERBA (2015, p. 21). Contrapondo-se à esta doutrina “metódica” - centrada em si e em suas certezas teleológicas - os annalistes associaram-se à economia, à sociologia, à geografia, à antropologia e à psicologia, abrindo “problemas” inéditos aos pesquisadores (BURKE, 1993BURKE, Peter. A revolução francesa na historiografia. São Paulo: Unesp, 1993.).
No âmbito da história da historiografia, não há como negar a importância dos “eruditos” franceses e sua prática interdisciplinar para a expansão dos estudos sobre o que atualmente se entende, no Brasil, por Pensamento Social. Essa interlocução, no entanto, nunca foi pacífica. O grupo história-novista possuía uma agenda de disputa institucional - em especial com a sociologia durkheimiana -, em que a estratégia foi assimilar para dominar. Dessa forma, como apontado por François Dosse, a História assumiu um caráter central, não mais imperialista, porém “federalista”, frente às competidoras. Uma espécie de política da “boa vizinhança”, renegando-se o confronto direto e ganhando admiradores pela forma habilidosa que caracterizou seus representantes - o que nunca os impediu de pretender liderar uma espécie de “síntese pluridisciplinar”, uma “ciência social unificada” (DOSSE, 1994DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova história. [S.l.]: Editora Ensaio, 1994. 267 p.).
Tal fenômeno acelerou-se de forma significativa na segunda metade do século XX. No entanto, com a adoção de metodologias das disciplinas adjacentes, testemunhou-se não o fortalecimento do anseio globalizante - como previra Fernand Braudel, Jacques Le Goff, entre outros -, mas, inversamente, a multiplicação dos objetos de estudos. A diversidade de propostas fala por si, como não nos deixam mentir, a título de exemplo, o florescimento de domínios como a história das mulheres, da classe trabalhadora, a história da arte, da sexualidade, da marginalidade, entre outros. A do Pensamento Social - ou como a chamam nos Estados Unidos e Europa, “História Intelectual” (por vezes aqui também)3 3 Há uma denominação mais tradicional - embora muitos a considerem como um ramo diferente dos estudos conceituais -, conhecida como História das Ideias que tem sido progressivamente menos utilizada pelos historiadores. Um de seus principais difusores foi o historiador Quentin Skinner, nome maior da chamada Escola de Cambridge, que privilegiou as áreas de intersecção entre história e linguagem (o conhecido método do “contextualismo linguístico”), na conjuntura da chamada Linguistic Turn, nos anos 60/70 do século XX - não trataremos deste último fenômeno, pois foge aos objetivos primeiros deste texto. Cf.FALCON, 1997;SOUZA, 2018. - é parte desse panorama.
Tal domínio da historiografia é particularmente impreciso, posto que ainda não possui objetivos, abordagens ou programas de estudo sistematizados, como afirma Heloísa Pontes:
Essa multiplicidade de denominações expressa uma série de problemas substantivos. Cada historiografia nacional possui seu próprio entendimento a respeito do que seja história intelectual - o que as torna particularmente difíceis de serem “traduzidas” de um país para outro. A essas tradições nacionais sobrepõem-se clivagens de ordem política, maneiras distintas de definir o núcleo central da atividade cultural, abordagens diversas em função da especificidade do objeto analisado (ciência, arte, literatura etc.). (PONTES, 1997PONTES, Heloisa. Círculos de intelectuais e experiência social. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 34, p. 57-69, 1997., p. 59).
Vale pontuar que, embora tais clivagens sejam verdadeiras, essa prática historiográfica - que já vem sendo conduzida como disciplina, eixo temático de grupos de trabalho (GT’s) e periódicos especializados há anos nas universidades aqui e no exterior -, analisa não apenas os sistemas dos letrados, mas os rituais dos que não o são, sendo sua perspectiva classificada, como bem colocado por Robert Darnton, de “cima a baixo”, aproximando-a, assim, da História Social (DARNTON, 1990DARNTON, Robert. História intelectual e cultural. In: O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 175-197.).
É nesse cenário fragmentado, recortado, fracionado (e friccionado), que, no âmbito da História, nenhuma área/subárea de conhecimento, domínio, campo ou escola vanguardista se aventura, atualmente, a propor um esquema interpretativo holístico. Por outro lado, também devemos fazer notar que não há intenções, ou ainda, acordos tácitos e consensuais de espectro restrito, entre historiadores, no sentido de se fecharam em si mesmos, cada qual em seu terreno delimitado. O horizonte, portanto, exprime essa contínua comunicação com outras esferas do conhecimento.
Dentro desse contexto é que procuramos fazer uma releitura da herança intelectual de Nina Rodrigues, servindo-se, para tal, de outros saberes cientifico-acadêmicos caros ao Pensamento Social Brasileiro (e não-brasileiro), tratados aqui não apenas como referências teórico-metodológicas, mas como fontes primárias, documentos históricos, quando assim exigido. Concentraremos nossos esforços na leitura e assimilação que o médico brasileiro fez da escola evolucionista-social - encabeçada pelo antropólogo inglês Edward B. Tylor (1832-1917) - e da sociologia tardiana, termo inspirado nos trabalhos do francês Gabriel Tarde (1843-1904). Como será demonstrado ao longo do texto, ambos os autores aparecem de forma recorrente na literatura rodrigueana desde As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (RODRIGUES, 1894bRODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1894b.), passando por O animismo fetichista dos negros baianos (RODRIGUES, 2006aRODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Editora UFRJ , 2006a.), até As coletividades anormais (RODRIGUES, 2006bRODRIGUES, Raimundo Nina. As coletividades anormais. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2006b.).
Ambos fizeram um contraponto patente ao racismo científico, discurso determinista e organicista de meados dos Oitocentos, construído pela classe letrada ocidental para justificar todo um repertório de decrepitudes e degenerações que atingiam as populações não-arianas. Os referenciais clássicos dessa corrente de pensamento, como Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), o Conde de Gobineau, Cesare Lombroso (1835-1909) ou Benedict-Augustin Morel (1809-1873), tiveram uma acolhida acalorada pelos intelectuais no período entre o Segundo Reinado e os primeiros anos da República, manifestando-se em diversos ramos do conhecimento, em especial a literatura e as ciências, tendo em Nina Rodrigues - no caso da antropologia, das ciências médicas e jurídicas - um de seus difusores.
Tylor, em companhia de Lewis Henry Morgan (1818-1881) e Sir James George Frazer (1854-1941), tornou-se um dos pais da também chamada antropologia evolucionista (CASTRO, 2005CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural/ textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 128 p.). O triunvirato defendia, grosso modo, que, por baixo da “fina camada” de civilização erigida pelas elites brancas, havia um vasto sedimento de selvageria e barbarismo, estágios rudimentares pelos quais todas as raças do planeta teriam passado, inclusive os arianos, pouco importando as variações físicas ou os “estigmas” degenerativos. Tomando, entretanto, de acordo com vários especialistas, a ideia de civilização como sinônimo de uma forma superior de cultura, o modelo final a ser alcançado era o dos europeus ocidentais, em especial ingleses vitorianos, visão que influenciou gerações de intelectuais ocidentais - incluindo historiadores.
Para Nina Rodrigues, Tylor, em especial, era uma referência obrigatória, responsável por duas grandes obras, de acordo com estudiosos do tema: Researches Into the Early History of Mankind and the Development of Civilization4 4 Utilizamos neste artigo a versão mais recente: TYLOR, 2005. , de 1865, e sua obra-prima, Primitive Culture, de 1871, dividida em dois volumes, o primeiro The Origins of Culture e o segundo Religion in Primitive Culture.5 5 Os livros não possuem tradução para o português. Nesta ocasião, nos servimos das traduções para o espanhol: TYLOR, 1977a e 1977b. O inglês apresenta uma perspectiva particular do progresso da humanidade e que se distinguia vividamente do molde racialista ao qual o médico maranhense havia se vinculado.
Tarde, por sua vez, pode ser apontado como um dos marcos da sociologia francesa do século XIX. Tornou-se presidente da Société de Sociologie de Paris e professor do Collège de France, firmando-se em seu tempo e publicando obras em toda a Europa. Após sua morte, porém, seu legado permaneceu à sombra de Émile Durkheim (1858-1917) e apenas muito recentemente, nas quatro últimas décadas do século XX, surgiu um renovado interesse em seus trabalhos que ganharam novas edições e reimpressões.
Autor das obras clássicas Les lois de l’imitation, de 1890TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Félix Alcan, 1890., Monadologie et sociologie, de 1893, L’opinion et la foule, de 1901, Tarde elabora uma espécie de microssociologia da existência de crenças e desejos.6 6 Aqui utilizamos as traduções mais recentes para o português: TARDE, 2005 e 2007. Ele procura entender como se dá a sua perpetuação e/ou desaparecimento no meio social. Tal explicação ocorre, por exemplo, pela analogia que é estabelecida entre a repetição de fenômenos em áreas como a física e suas ondas vibratórias continuadas, com aqueles da transformação social que, por sua vez, funcionariam pela sugestão, imitação e repetição (VARGAS, 1995VARGAS, Eduardo Viana. A microssociologia de Gabriel Tarde. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 27, p. 93-110, 1995.; 2001VARGAS, Eduardo Viana. Antes tarde do que nunca: Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001.).
Nossa hipótese é de que Nina Rodrigues acomodou as propostas desses pensadores - entre outros citados em seus trabalhos que merecerão um estudo à parte, como o alemão Theodor Waitz (1821-1864) e o francês Julien Girard de Rialle (1841-1904) -, tensionando o enquadramento racial tradicional ao qual normalmente é associado. Para um entendimento adequado em torno das fissuras que essas leituras promoveram em suas reflexões é preciso uma atenção aos conceitos por ele utilizados e reorientados, que o fizeram erigir uma interpretação própria, particular e intrincada da realidade brasileira.
Pensamento Social e Nina Rodrigues
No último quartel do século XIX - época de formação e atuação de Nina Rodrigues - distintas teorias raciais surgiram à luz da visão darwiniana da evolução. A noção de “perfectibilidade” do século XVIII, advinda do Iluminismo, era então subvertida, implicando não em uma qualidade intrínseca a qualquer homem, mas atributo apenas das raças “civilizadas” europeias, em contraste com as raças “degradadas” das Américas, da África e do Oriente (SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras , 1993. 296 p.). Ricardo Benzaquen de Araújo sinaliza que foi a partir dos ideais iluministas que, irônica e surpreendentemente, a concepção de uma “unidade efetiva e absoluta do gênero humano” se pulveriza, multiplicando-se em uma infinidade de sub-raças, como as “negroides”, limitadas física e intelectualmente, impedidas do acesso às conquistas do espírito, reservadas aos arianos.
Em solo brasileiro, informa-nos Jair de Souza Ramos, as representações sobre a diferença racial, no período imediato ao pós-independência, estavam atreladas à construção da nova nação e de uma nova orientação “civilizacional” que se queria impor. Assim,
(...) a desqualificação do negro recaiu menos sobre uma leitura biológica do que sobre o fato de ele portar em si as marcas da selvageria africana, expressa nos hábitos bárbaros, na violência de suas vidas, nos crimes passionais, nos assassinatos dos senhores, enfim, na não incorporação daqueles pressupostos hierárquicos, que sustentavam política e hierarquicamente o Império Brasileiro, expressos na ideia de civilização. (RAMOS, 2002RAMOS, Jair de Souza. O Brasil sob o paradigma racial. Sociologia histórica de uma representação. In: PENA, Sergio D. J. (org.). Homo Brasilis: aspectos genéticos, linguísticos, históricos e socioantropológicos da formação do povo brasileiro. Ribeirão Preto: FUNPEC-RP, 2002. p. 131-148., p. 136).
Civilizar-se tornava-se, logo, uma característica inacessível por aqueles trazidos como escravos ou seus descendentes. Fosse de uma perspectiva “romântica” como a do naturalista Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), que, em Como se deve escrever a história do Brasil, de 1847, descreveu a importância do cruzamento das três raças - branca, indígena e negra -, enaltecendo o branco, mistificando o nativo e relegando ao negro o lugar de mero coadjuvante. Fosse a de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), que, com sua História Geral do Brasil, publicada entre 1854 e 1857, defendeu uma interpretação rigorosamente branca e elitista, em que a miscigenação permaneceu praticamente oculta (VAINFAS, 1999VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. Revista Tempo, Rio de Janeiro, n. 8, p. 1-12, ago. 1999.).
Já na segunda metade do século XIX, como lembram Roberto Ventura e Lilia Schwarcz, o enredo sobre a desigualdade das raças humanas transmuta-se em um discurso pretensamente cientifico, a partir da concepção de que as raças constituiriam “fenômenos finais”, “resultados imutáveis”, sendo todo o cruzamento condenável. Os adeptos dessa corrente enalteciam o “tipo puro”, único elemento capaz de estimular o progresso ocidental, e condenavam a “mistura” ou, para utilizar um termo técnico da época, a entropia social, que desaguava em um processo de degeneração coletiva (SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras , 1993. 296 p.; VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 1991. 208 p.).
Não obstante, o Brasil, considerado como uma espécie de “laboratório” de experimento racial, desafiava as concepções biológico-essencialistas, quando pensadas em função da realidade do país, definida pela mestiçagem (SKIDMORE, 1991SKIDMORE, Thomas. Fato e mito: descobrindo um problema racial no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 79, p. 5-16, nov. 1991.). Aqui, tal fenômeno não era apenas um exercício de imaginação, como em grande parte do velho continente, mas vivenciado cotidianamente pela população. O tema “racialista” estava presente nos enfrentamentos intelectuais, mas não de forma homogênea. Era uma das questões candentes que permeavam o pensamento social no contexto da virada do século, todavia apenas para deixar mais turvo o quadro de um país que se repensava em um momento sensível da vida nacional.
Ventura é enfático quanto a essa originalidade da recepção do racialismo no Brasil ao criticar Dante Moreira Leite, Nelson Werneck Sodré e Roberto Schwarz. Tais autores, entre outros, como o brasilianista Thomas Skidmore, argumentam a favor de uma espécie de “dependência cultural” do Brasil em relação aos países europeus, refletida na adoção acrítica das teorias cientificas, alienadas em relação à produção intelectual dos trópicos. Diz Ventura que o contrário é que é verdadeiro:
(...) os sistemas de pensamento europeus foram integrados de forma critica e seletiva, segundo os interesses políticos e culturais das camadas letradas, preocupadas em articular os ideários estrangeiros à realidade local. O racismo científico assumiu uma função interna, não coincidente com os interesses imperialistas, e se transformou em instrumento conservador e autoritário de definição da identidade social da classe senhorial e dos grupos dirigentes, perante uma população considerada étnica e culturalmente inferior. (VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 1991. 208 p., p. 7).
Frente a uma miríade de doutrinas e concepções de mundo, os brasileiros selecionaram aquelas que viabilizaram um tipo de “sincretismo” com a realidade, ligado à construção do Estado-nação e à identidade das camadas “superiores”. Homens “letrados”, como Nina Rodrigues, pinçavam no exterior conceitos e significados que, ora aproximava-os, ora distanciava-os, de determinadas “famílias intelectuais”, como pontuou o sociólogo Gildo Marçal Brandão. O estudo do Pensamento Social é uma tentativa de tratar esses autores e suas propostas não como “uma preciosidade arqueológica”, mas com o intuito de demarcar a existência “no plano das ideias e das formas de pensar, de continuidades, linhagens, tradições”, o que não é de pouca monta, diz, em um país que sempre menosprezou a vida intelectual, caracterizada como uma tarefa de “senhores ociosos” (BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 2, p. 231-269, 2005.).
Brandão, entretanto, é muito cuidadoso ao dizer que essa estratégia analítica abrangente nada tem a ver com a busca de constelações ideológicas transcendentais. Pensar numa história imóvel, ou seja, em uma teoria cuja sociedade brasileira já estava prefigurada desde a formação colonial seria absurdo. Ao contrário, diz, trata-se de partir da “altíssima taxa de mortalidade das iniciativas intelectuais”, sepultadas nesse vasto cemitério de ideias, mas que, exumadas, formam “padrões que se constituem ao longo de reiteradas tentativas, empreendidas aos trancos e barrancos, por sujeitos e grupos sociais distintos, de responder aos dilemas postos pelo desenvolvimento social” (BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 2, p. 231-269, 2005., p. 251).
Renato Ortiz observa que a questão racial, tal como foi colocada pelos precursores das Ciências Sociais no Brasil em fins do século XIX, aponta para a problemática do “caráter”, da “identidade”, enfim, da “especificidade” que marcava o país:
O evolucionismo fornece à intelligentsia brasileira os conceitos para a compreensão desta problemática; porém, na medida em que a realidade nacional se diferencia da europeia, tem-se que ela adquire no Brasil novos contornos e peculiaridades. A especificidade nacional, isto é, o hiato entre teoria e sociedade, só pode ser compreendido quando combinado a outros conceitos que permitem considerar o porquê do atraso do país. Se o evolucionismo torna possível a compreensão mais geral das sociedades humanas, é necessário porém completá-lo com outros argumentos que possibilitem o entendimento da especificidade social. O pensamento social da época vai encontrar tais argumentos em duas noções particulares: o meio e a raça. (ORTIZ, 2012ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012., p. 15).
O processo de importação de ideias pressupõe, logo, uma escolha consciente daqueles que as consomem. Autores clássicos, como o naturalista suíço Jean Louis Rodolphe Agassiz (1807-1873) são recorrentemente citados, mas não foram apropriados aleatoriamente - sobretudo por Nina Rodrigues. Este, a partir de suas diferentes tentativas de classificação racial a nível regional e nacional, colocou-se “face a face com essa esfinge do nosso futuro - o problema ‘do Negro’ no Brasil” (RODRIGUES, 2010RODRIGUES, Raimundo Nina. Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. 303 p., p. 9).
Nas duas últimas décadas dos Oitocentos, o discurso cientifico sobre a moldura racial tomou força, impulsionado, entre outros motivos, pelo desejo da intelectualidade de “(...) inserir o país, pela construção de sua história, na marcha temporal da civilização” (DOMINGUES; SÁ, 2003DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol; SÁ, Magali Romero. Controvérsias evolucionistas no Brasil do século XIX. In: DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol (org.). A recepção do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 97-123., p. 98). Tão importante quanto, talvez fosse o medo da elite, à qual Nina Rodrigues ascendeu, frente à massiva presença de negros no conjunto da população. Considerados violentos e perigosos, capazes de produzir eventos como a temida insurreição no Haiti, passou-se a uma “releitura” de seus costumes e hábitos, agora classificados como fetichistas, animistas, atávicos.
Tal agenda marcou as interpretações de diversos estudos sobre a obra de Nina Rodrigues. Não entraremos no amplo repertório de autores que se diziam seus sucessores, porém se distanciavam consideravelmente de suas teses. A análise e crítica da chamada “Escola Baiana” ou “Escola Nina Rodrigues” pode ser encontrada nos clássicos de Edison Carneiro e Mariza Corrêa, além de teses e dissertações mais recentes, no campo da história, sociologia e antropologia. Para a finalidade deste texto, é preciso recordar, todavia, uma bibliografia que ganhou ressonância na segunda metade do século XX.
Nos referimos, entre outros, ao já citado Thomas Skidmore que publicou Black into White (Preto no Branco) em 1974, livro que ganharia sua primeira edição brasileira em 1976. O brasilianista cai num equívoco recorrente de anacronismo ao afirmar que Nina Rodrigues foi o mais “prestigiado doutrinador racista brasileiro de sua época” (SKIDMORE, 2012SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras , 2012. 393 p., p. 103). O médico, envolvido com a causa científica - ou pelo menos com o que à época assim se entendia -, nunca fez proselitismo e, amparado em uma bibliografia considerada de ponta em seu tempo, nunca procurou fazer de suas teses “uma questão pessoal”, como bem afirma Schwarcz.Esta, antropóloga e historiadora, por sua vez, tratou de Nina Rodrigues no clássico O Espetáculo das Raças, de 1993. Schwarcz o classifica como o porta-voz extremado do darwinismo-social, um autêntico “arauto da diferença”, “um radical do pessimismo” - este último, título de um capítulo da coletânea sobre Pensamento Social Brasileiro, organizada junto com André Botelho, em 2009. Já o sociólogo Marcos Chor Maio, no prestigiado artigo A Medicina de Nina Rodrigues: Análise de uma Trajetória Científica, de 1995, compõe um retrato semelhante, ou seja, o de um racialista que não acreditava no progresso civilizacional dos negros, “já que seriam inferiores biologicamente e, portanto, incapazes de se conduzirem como cidadãos em seus plenos direitos” (MAIO, 1995MAIO, Marcos Chor. A Medicina de Nina Rodrigues: Análise de uma Trajetória Científica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 226-237, abr./jun. 1995., p. 232).
Em tempos recentes, duas leituras distintas nos serviram de inspiração, a realizada pela historiadora da medicina e da psiquiatria, Ana Maria Galdini Raimundo Oda, e pela historiadora Vanda Fortuna Serafim. A primeira, em sua tese de doutorado intitulada Alienação mental e raça: a psicopatologia comparada dos negros e mestiços brasileiros na obra de Raimundo Nina Rodrigues, de 2003ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. Alienação mental e raça: a psicopatologia comparada dos negros e mestiços brasileiros na obra de Raimundo Nina Rodrigues. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) - Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, SP, 2003. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/Acervo/Detalhe/295515 . Acesso em: 13 mar. 2020
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, e em outros trabalhos frutos desta pesquisa, explora as práticas clínicas e as investigações etnográficas rodrigueanas, a partir de um olhar apurado das fontes. Ao caracterizar o racialismo tal como praticado por seu autor-objeto, traz à atenção o questionamento, por Nina, de escolas alienistas europeias e americanas que o possibilitaram matizar a inferioridade negra sem negar, necessariamente, sua autenticidade científica (ODA, 2004ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. Uma preciosidade da psicopatologia brasileira: A paranóia nos negros, de Raimundo Nina Rodrigues. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, ano VII, n. 2, p. 133-144, jun. 2004.; 2009ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. Passado e presente na psicopatologia da paranoia. Revista Latinoamericana Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 759-765, dez. 2009.).
Já Serafim, em sua tese de 2013SERAFIM, Vanda Fortuna. Edward Burnnet Tylor e a contribuição inglesa ao estudo das religiões. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 6, p. 173-198, 2013b., Nina Rodrigues e as religiões afro-brasileiras: a “formalidade das práticas” católicas no estudo comparado das religiões (Bahia - século XIX), assim como em artigos decorrentes desta, propõe uma nova hipótese centrada no discurso monoteísta católico do autor como matriz de suas análises etnológicas. A pesquisadora faz uma ponte entre a antropologia rodrigueana de fundo católico com o evolucionismo inglês protestante - representado por Edward Burnett Tylor -, tendo por objetivo compreender como ambos interpretavam os povos ditos “primitivos”. Nina Rodrigues, em especial, ao optar por esse caminho, não sai “ileso” dos estudos que realiza, questionando o racismo científico, ou, ao menos, a crença na ciência positiva que executava, como afirma a autora (SERAFIM, 2013aSERAFIM, Vanda Fortuna. Nina Rodrigues e as religiões afro-brasileiras: a “formalidade das práticas” católicas no estudo comparado das religiões (Bahia - século XIX). 333 f. Tese (Doutorado em História) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2013a. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/107536/318769.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Aceso em: 17 nov. 2020.
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; 2013bSERAFIM, Vanda Fortuna. Edward Burnnet Tylor e a contribuição inglesa ao estudo das religiões. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 6, p. 173-198, 2013b.).
O “racialista vacilante”: uma nova leitura sobre Nina Rodrigues
Raça e Progresso (a porvir ou não) sempre caminharam juntos nos escritos de Nina Rodrigues que concluiu sua formação universitária e iniciou sua carreira no momento mesmo da abolição da escravidão, do ocaso da Monarquia e da instauração da República. Este período singular e tumultuado da vida brasileira, está estampado em muitos de seus escritos, alguns dos quais voltados imediatamente para temas técnicos, relacionados à saúde pública:
No Brazil, desde os seus limites geográphicos, ainda litigiosos, desde a sua composição ethnica que ainda não esta definida, desde a sua forma fundamental de governo, em que a republica ainda se acha no berço, até a direcção dos serviços administrativos os mais simples e insignificantes, tudo se agita como que n’um mar de duvidas e de incerteza. (RODRIGUES, 1894aRODRIGUES, Raimundo Nina et al.Serviço demógrafo-sanitário no Estado da Bahia. Parecer do Conselho Geral de Saúde Pública. Gazeta Médica da Bahia, ano XXV, n. 7/8, jan./fev. 1894a.).
Sobre o tema da formação étnica, em seus textos antropológicos, Nina Rodrigues publicou, em 1896, na Revista Brazileira, em forma de “capítulos”, O animismo fetichista dos negros baianos, que resultaria em seu segundo livro.7 7 A última reimpressão dessa obra, na qual o original é reproduzido em fac-símile, é a referenciada por nós: RODRIGUES, 2006a. Neste estudo, que recebeu menção elogiosa do sociólogo Marcel Mauss (1872-1950) e do folclorista Frederick Starr (1898-1933)8 8 Cf.MAUSS, 2005 e STARR, 1902. , o autor traça um panorama da regularidade das práticas animistas e fetichistas da população “áfrico-bahiana” em Salvador.9 9 O “animismo fetichista” é um conceito típico da etnografia dos oitocentos que agrega duas características das populações consideradas “primitivas”. A primeira, esboçada por Tylor (inspirado pelo médico e químico Georg Ernst Stahl (1659-1734)) é a noção de que minerais, vegetais e animais possuem uma espécie de energia intangível, uma alma, um espirito animado. A segunda diz respeito - sobretudo no que toca aos africanos e seus descendentes - à adoração de coisas, objetos, eventos naturais, enfim, fetiches de toda sorte. Cf.BIRD‐DAVID, 1999 e SANSI, 2008.
A edição original de O animismo... trazia um texto complementar (pouco destacado pela bibliografia tradicional sobre o autor, citada acima) intitulado Illusões da catequese no Brasil, em que ele salienta a miscigenação presente em alguns ritos religiosos e “exaltações delirantes” da população negra e como essa característica representou, na prática, o fracasso da conversão católica daqueles traficados para o Brasil10 10 Esse texto apareceu como uma espécie de “apêndice” na coletânea de 1896, publicada na Revista Brazileira. Nina afirma, em nota de pé de página, que se tratava apenas de um “extrato” da edição francesa L’animisme fétichiste des négres de Bahia. Essai de éthnographie religieuse et de psychologie crminelle que estava sendo preparada pela casa editorial Wilke, Picard & Cia. Segundo os organizadores da última edição, de 2006, Yvonne Maggie e Peter Fry, esse livro nunca foi editado e o texto referido, sob o título de La conversion des áfrico-bahianais au catholicisme, apareceu, isto sim, em outra versão francesa, mas publicada no Brasil, em Salvador, pela Reis e Comp. Éditeurs, em 1900. Na edição de O Animismo..., de 1935, o texto foi incorporado por Arthur Ramos, como capítulo, com o título de A conversão dos Áfrico-baianos ao catolicismo. . Para Nina Rodrigues, foi o próprio catolicismo que se adaptou à religiosidade “rudimentar” para tornar-se assimilável ao grosso da população. Aliás, não só o catolicismo, como se observa:
O animismo fetichista africano, diluído no fundo supersticioso da raça branca e reforçado pelo animismo incipiente do aborígene americano, constitui o sub-solo ubérrimo de que brotam exuberantes todas as manifestações ocultistas e religiosas da nossa população. As crenças catholicas, as praticas spiritas, a cartomancia, etc., todas recebem e reflectem por igual o influxo da feitiçaria e da idolatria fetichista do negro. (RODRIGUES, 2006aRODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Editora UFRJ , 2006a., p. 107).
As manifestações ocultas e exuberantes de que fala Nina Rodrigues é resultado do também chamado mulattoism (mulatismo) que se atestava na mistura de povos distintos com a raça “negroide”, compartilhando ideias similarmente supersticiosas: “(...) para nos servir da expressão de Tylor ou melhor da expressão consagrada na Costa D’Africa, pode-se affirmar que na Bahia todas as classes, mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem negras” (RODRIGUES, 2006aRODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Editora UFRJ , 2006a., p. 116). Tendo a leitura completa da obra-prima de Tylor em perspectiva, talvez seja possível afirmar que, ao deparar-se com os seres primitivos da África, Ásia e Américas, o inglês identificou semelhanças evidentes que estes exibiam ao serem comparados com as populações ditas “civilizadas” do continente europeu.
O desafio foi encontrar uma fórmula para interligar, em um único processo de evolução social, sociedades que se encontravam em etapas distintas de desenvolvimento. Daí a identificação de estágios, comuns a todas as raças no planeta, que irá resultar na elaboração da clássica tríade: selvagerismo - barbarismo - civilização (RATNAPALAN, 2008RATNAPALAN, Laavanyano. E. B. Tylor and the Problem of Primitive Culture. History and Anthropology, v. 19, n. 2, p. 131-142, 2008.). Segundo Roque de Barros Laraia, Tylor não estava apenas preocupado com a “diversidade” da humanidade, mas em identificar, a seu modo, a “igualdade” na humanidade. Estabeleceu, assim, uma “escala de civilização”, tripartite, com as nações europeias em um dos extremos e os povos selvagens em outro (LARAIA, 2014LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2014., p. 32-33). Assim, escreveria o vitoriano: “Few educated europeans ever throughly realize the fact that they have once passed through a condition of mind from witch races at a lower stage of civilization never fully emerge” (TYLOR, 2005TYLOR, Edward Burnett. Researches Into the Early History of Mankind and the Development of Civilization. New York: Elibron Classics, 2005., p. 107).
Há embutida nessa proposta uma homogeneização das culturas e civilizações que contradiz frontalmente os princípios do racismo científico. Tratar as diferentes raças em uma única progênie, criar um prospecto escalonado de progressão humana, tem, portanto, implicações diretas no significado do termo “raça”. Este deixa de ser sinônimo de diferenças inatas entre os homens e passa a configurar-se como um artificio ilustrativo das analogias e equivalências entre povos que se encontram em fases iguais ou distintas da evolução social.
Se negros e “vermelhos” encontram-se em um estado classificado como “animista-fetichista” na escala de desenvolvimento humano, os arianos ou braquicéfalos - e aqui a referência seriam os espécimes incultos e ignorantes do mundo rural inglês - situam-se na mesma etapa. Pressupõe-se, assim, de acordo com Tylor, que os europeus civilizados, citadinos, urbanizados, já passaram pelos níveis inferiores de progressão e avançaram ao extremo da escala social, posição à qual os selvagens teriam condições de almejar, respeitadas certas condições favoráveis.
Essa eloquente relativização do “finalismo estático”, do qual Nina Rodrigues seria devedor, é praticada, também, por Gabriel Tarde. A análise tardiana se dá pela via das chamadas “coletividades” - as massas anárquicas da Terceira República francesa (1870-1940), por exemplo, formadas por socialistas, sindicalistas, trabalhistas, sufragistas, entre outros, que tanto horrorizava a aristocracia. O sociólogo afirma que o que determina para qual lado se inclina um agrupamento humano é um conjunto multifatorial de causas psicológicas e sociais (TARDE, 2005TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 209 p.).
O sociólogo é categórico: nada “brota do chão por geração espontânea”. Para que uma multidão seja capaz de pôr em prática uma ideia considerada descabida, que em outros tempos muito bem poderia ter recrutado não mais que dez adeptos, as “influências sociais” prevalecem sobre as “predisposições naturais”. Notemos que estas últimas não são descartadas, mas são requeridas apenas “numa certa medida”. Fatores esses classificados por ele como “naturais”, “etnológicos” ou “antropológicos” - sobretudo aqueles ligados à “antropologia física” -, vinculados ao fundo hereditário dos participantes das coletividades, existem e são parte de um todo, mas não se evidenciam como fatores de primeira grandeza.
Tarde antagoniza aqui com outro psicólogo e sociólogo, o francês Gustave Le Bon (1841-1931). Com Le Bon, a palavra multidão adquiriu significação particular nos novos estudos de psicologia coletiva, uma área do conhecimento impactada pelo enorme alcance de seus trabalhos (NYE, 1975NYE, Robert. The origins of crowd psychology: Gustave Le Bon and the crisis of the mass democracy in the Third Republic. London: Sage, 1975. 225 p.). O “caos” conduzido pelas massas descontroladas na França republicana poderia levar à degeneração e, para ele (com quem aliás, Nina também dialoga), filho de uma arraigada aristocracia francesa, o maior temor era o possível “império das raças inferiores” (LE BON, 1954LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia. Editores, 1954.). O escritor foi, de certa forma, a voz contrariada das elites políticas. Tarde, por sua vez, afirma:
Esses desvarios são de todas as épocas: multidões de qualquer raça e clima, multidões romanas acusando os cristãos pelo incêndio de Roma ou por uma derrota da legião e lançando-os às feras, multidões da Idade Média acolhendo contra albigenses, contra os judeus, contra um herético qualquer as suspeitas mais absurdas, cuja propagação faz, para elas, as vezes de demonstração, multidões alemães de Munzer sob a Reforma, multidões francesas de Jourdan sob o Terror, é sempre o mesmo espetáculo. Todas “terroristas por medo” como Madame Roland dizia de Robespierre. (TARDE, 2005TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 209 p., p. 166-167).
Para Nina Rodrigues há, sim, lógica e coerência na ideia de que as paixões se transmutam em estados de excitação e violência a partir de um painel multifatorial. Supreendentemente, ele indica elementos que ultrapassam a predisposição e a hereditariedade no sentido de explicar a existência desses mesmos estados11 11 Importante fazer notar que Nina Rodrigues dedicou muitos de seus trabalhos à valorização e institucionalização da medicina-legal ou forense no Brasil. Algumas de suas conclusões - como a análise do crânio de Antônio Conselheiro, líder religioso de Canudos, que não demonstrou nenhuma deformidade ou “estigma” degenerativo - também serviram para mitigar muitas de suas certezas e, acima de tudo, sua, até então, “cega” confiança nas escolas criminalistas italiana e francesa. . Logo, sendo ele um leitor assumido de Tarde, é possível imaginar o impacto que tal discurso antideterminista teve em seu imaginário. Ao comentar sobre os indivíduos diretamente ligados aos acessos coletivos, chega ao limite de afirmar sobre as tais paixões: “Não a trouxeram do berço.” (RODRIGUES, 2006bRODRIGUES, Raimundo Nina. As coletividades anormais. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2006b., p. 99).
Esse breve trecho nos dá uma medida de como Nina Rodrigues questionou suas certezas, posto que é uma antítese do racialismo. Em seu quadro teórico, a raça está, de fato, presente e continua a ser um de seus pilares, entretanto não é mais tomada de forma literal como único fator de explicação. A antropóloga Mariza CorrêaCORRÊA, Mariza. As ilusões da Liberdade. A Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista: EDUSF, 1998. - autora do clássico Ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil (defendido como tese de doutorado em 1982 e publicado como livro apenas em 1998) - havia notado cedo esse giro epistemológico do autor e lembra com acuidade que ele gradativamente deslocou “sua atenção dos aspectos fisiológicos para os aspectos psíquicos do comportamento humano” (CORRÊA, 2006CORRÊA, Mariza. Os livros esquecidos de Nina Rodrigues. Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n. 76, sup. 2, p. 60-62, 2006., p. 113).
Cabe notar que ele o fez, note-se, sem abrir mão do conhecimento pretérito adquirido, a única solução que encontrou para explicar a organização e o funcionamento das multidões ou, como ele preferia, inspirado por Tarde, as “coletividades anormais”12
12
Nina Rodrigues irá se apropriar dessa denominação que será título de um de seus mais notáveis trabalhos, cuja última reimpressão (2006b) é a de que nos servimos aqui.
. É neste domínio tensionado do conhecimento que o Nina racialista, comumente retratado nos estudos acadêmicos, encontra-se com um Nina incomum, aberto a novas teorizações. Há, por parte dele, uma tentativa de mobilizar dois argumentos excludentes entre si. De um lado, o fundo vicioso e contaminado das raças degeneradas e de outro os agentes comportamentais, sentimentais, “culturais” que, no limite, tornariam possíveis manifestações coletivas em qualquer sociedade formada por qualquer substrato racial (MONTEIRO, 2016MONTEIRO, Filipe Pinto. O “Racialista Vacilante”: Nina Rodrigues sob a luz de seus estudos sobre multidões, religiosidade e antropologia (1880 - 1906). 241 f. 2016. Tese (Doutoradoem História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: http://www.ppghcs.coc.fiocruz.br/images/dissertacoes/teste/tese_filipe_monteiro.pdf . Acesso em: 21 abr. 2020.
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).
O resgate, a exploração e a expansão de um novo olhar sobre o paradigma rodrigueano já alcança também círculos de estudo estrangeiros, como ilustra o trabalho recente da historiadora norte-americana Anadelia Romo. Diz ela que Nina Rodrigues possuía um ideal “surprisingly multivalent: his anxieties often centered as much on these environmental factors as on matters of race” (ROMO, 2010ROMO, Anadelia. Brazil’s Living Museum. Race, reform and tradition in Bahia. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2010. 240 p., p. 29). Outrossim, o que pareceria a nós hoje como uma discrepância, talvez não tenha sido para ele. Convicto pessimista em relação à “população de cor”, teve suas crenças mais arraigadas lentamente revolvidas e questionadas ao conhecer uma nova literatura acadêmico-cientifica.
Não fosse esse o caso, Nina Rodrigues não teria - para nos utilizarmos de um exemplo contundente, entre outros - dividido os mestiços em: superiores (homens de educação mental feliz, organização hereditária adequada à civilização e plenamente capazes de responder por seus atos perante a justiça); degenerados (indivíduos com suas faculdades mentais e afetivas comprometidas, deveriam ter responsabilidades penais totais ou parciais); e comuns/instáveis (produtos “socialmente aproveitáveis”, mas suscetíveis de crimes e ações antissociais, deveriam ter a sua responsabilidade ante a justiça atenuada) (RODRIGUES, 1894bRODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1894b.).
Tal posicionamento responde justamente a uma fórmula que possui duas variantes: a “biológica” (naturalista, racialista e hereditária) e a “cultural” ou “social” (sociológica, psicológica, antropológica e evolucionista-social). O autor explica que “a escala vai aqui do produto inteiramente inaproveitavel e degenerado ao producto valido e capaz de superior manifestação da actividade mental” (RODRIGUES, 1894bRODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1894b., p. 141). A raça (e o clima) de um lado, as tradições, os valores, entre outros significantes, de outro, são elementos importantes em sua equação - ainda que, do ponto de vista atual, mostrem-se incompatíveis - e possuíam, cada qual, seu devido lugar no plano de teorização que propunha.
Ainda segundo Anadelia, Nina Rodrigues definiu essa equação “in terms that moved between biology, culture, and the environment in often contradictory and interesting ways” (ROMO, 2010ROMO, Anadelia. Brazil’s Living Museum. Race, reform and tradition in Bahia. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2010. 240 p., p. 33). A desigualdade das raças humanas, aliás, nunca foi o principal e nem o único tema de sua produção acadêmica, embora tenha sido o mais aclamado, segundo alguns pesquisadores. Levantamentos históricos quantitativos indicam que ele estava mais preocupado com questões voltadas à Saúde Pública, como pode-se depreender de sua participação proativa em comissões institucionais de higiene urbana, na Bahia e no âmbito federal (MONTEIRO, 2018MONTEIRO, Filipe Pinto. The “sick dancers”: The construction of medical knowledge about the “epidemic of dance” in Itapagipe, Salvador, Bahia (1882-1901). Studies in History and Philosophy of Science Part C: Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, v. 71, p. 32-40, 2018.), tornando-o um dos precursores do sanitarismo dos anos 1920.
Percebe-se, portanto, que Nina Rodrigues situava-se em uma posição singular, se movendo entre forças antagônicas, com visões distintas sobre qual caminho o país devia seguir para “civilizar-se”. No ardor de tentar encontrar uma solução viável, porém conveniente a si e aos seus, a obra do médico evidencia um “equilíbrio de tensões”. Tal conceito, pensado por Norbert Elias no clássico A Sociedade de Corte, nos auxilia a entender a multipolaridade de tensionamentos no seio da elite de uma sociedade - da qual Nina Rodrigues fazia parte e era voz de autoridade - e como esta, no caso específico da formação nacional brasileira, ora se complementava, ora se distanciava (ELIAS, 2001ELIAS. Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed itor, 2001. 316 p.).
Apontamentos finais
Tais incongruências e dubiedades permaneceram ocultas ou, quando muito, abordadas timidamente por autores que trataram do pensamento rodrigueano, muito embora seja curioso notar que havia sinais por toda a parte. Antes mesmo de Mariza Corrêa, o etnólogo Edson Carneiro já apontava, muito apropriadamente, em 1956:
Sob discreta correção do cientista, o cidadão às vezes se apresenta, revelando convicções que destoam das teorias com que orientava o seu pensamento. Como compreender, por exemplo, o seu trabalho sôbre a responsabilidade penal de negros e índios dentro do esquema lombrosiano? (...) Poder-se-ia ver nisto uma crise de consciência, mas provàvelmente estamos diante de um forte indício de sua insatisfação ante a análise que a ciência do tempo lhe proporcionava. (CARNEIRO, 1964CARNEIRO, Edison. Ladinos e Crioulos. Estudos sobre o Negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. (Retratos do Brasil, v. 28)., p. 210-211).
“Que Nina Rodrigues não tenha chegado a questionar o paradigma no qual tinha construído sua carreira não deve nos surpreender”, afirmam Yvonne Maggie e Peter Fry na apresentação da última edição de O animismo... (2006MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter. Introdução. In: RODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Editora UFRJ, 2006. p. 9-26., p. 9). Os dados que coletava para seus estudos contradiziam distintamente as correntes fixistas que predominavam no meio cientifico de seu tempo. O médico, entretanto, não encampou uma reavaliação completa de seus esquemas teóricos. Dito de outra forma, ele promoveu uma aproximação delicada com autores como Tylor e Tarde, mas ficou a meio caminho desta empreitada.
Como bem afirma Lilia Schwarcz, a obra rodrigueana é um “paradoxo” que se evidencia, “mesmo sem pretender” (SCHWARCZ, 2009SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nina Rodrigues: um radical do pessimismo. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras , 2009. p. 90-103., p. 98). Mas é preciso recordar que, embora interpretadas hoje como frustradas e mal direcionadas, a aparente incoerência de suas reflexões ocorreu no contexto de um esforço particular, próprio, de formular um constructo teórico admissível e versátil que reflete a reunião inesperada entre teorias divergentes.
Mariza Corrêa, em resenha bibliográfica, denunciou, há mais de 10 anos, o que classifica, oportunamente, como “um escândalo epistemológico de grandes proporções na história das ciências sociais no Brasil” (CORRÊA, 2006CORRÊA, Mariza. Os livros esquecidos de Nina Rodrigues. Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n. 76, sup. 2, p. 60-62, 2006., p. 62). Ela refere-se ao quase completo desconhecimento de alguns trabalhos do médico - artigos publicados em francês e italiano, e outros tantos esquecidos nas gazetas e folhetins médicos -, além de importantes livros, que há muito não recebem novas e atualizadas edições, nem mesmo reimpressões.
Segundo a autora, essa situação configura “(...) o estranho caso de um pensador famoso cuja obra é praticamente desconhecida de grande parte dos pesquisadores brasileiros, e quase inacessível a eles” (CORRÊA, 2006CORRÊA, Mariza. Os livros esquecidos de Nina Rodrigues. Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n. 76, sup. 2, p. 60-62, 2006., p. 62). Tal quadro talvez possa vir a ser modificado com estudos renovados sobre os escritos de Nina Rodrigues e seus variados ângulos de interpretação que fogem à uma tradicional e rígida grade de leitura sobre o mesmo. A ideia aqui alentada segue essa proposição que, do ponto de vista teórico-metodológico, se mostra viável com a adoção de abordagens constitutivas do Pensamento Social Brasileiro.
Como tentamos demonstrar ao longo da narrativa, esse domínio se revela sintonizado com as práticas de pesquisa mais recentes da historiografia e mantém interlocução contínua e aberta com outros campos de conhecimento das humanidades - caso preferencial da sociologia e antropologia. A indeterminação que ainda marca todo seu escopo de análise poderia, em um relance, sugerir uma fragilidade ou um cenário teórico-metodológico difícil de transpor. Ao revermos a literatura sobre o tema (e os levantamentos recentes sobre esta), entretanto, é notável seu pleno estado de saúde, a vivacidade e a eficácia das propostas manifestas (BRASIL JR.; JACKSON; PAIVA, 2020BRASIL JR., Antonio; JACKSON, Luiz Carlos; PAIVA, Marcelo. O pequeno grande mundo do Pensamento Social no Brasil. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - Bib, v. 91, p. 1-38, 2020.).
A pesquisa aqui exposta em torno de Nina Rodrigues - um dos grandes intérpretes do Brasil e nome de ponta do Pensamento Social Brasileiro - faz parte desse esforço coletivo. Afeito, em muitas ocasiões, a prognósticos calamitosos e alarmistas, transmutou-se em um personagem que foge às mais cômodas classificações. Tal como mostramos em artigo recente, mais centrado nas fontes primárias e menos na metodologia que empregamos para a construção da tese aqui explanada, o médico adotou ideias de pensadores vários - identificados nas escolas evolucionista-social e tardiana - projetando em sua obra um pensamento elástico e ao mesmo tempo tensionado (MONTEIRO, 2020MONTEIRO, Filipe Pinto. O “racialista vacilante”: Nina Rodrigues e seus estudos sobre antropologia cultural e psicologia das multidões (1880-1906). Topoi, Rio de Janeiro, v. 21, n. 43, p. 193-215, 2020.).
Em vista desses apontamentos, classificar Nina Rodrigues como um pessimista radical, um obstinado pelo fatalismo, não é de todo verdadeiro. Sua pronta atuação, suas sugestões para a reforma do aparelho estatal (a nível regional e nacional), seu papel como médico na luta contra doenças e enfermidades e, acima de tudo, a relativização do fator racial - negro, mais apropriadamente (o indígena embora apareça em muitas de suas obras, ainda será tema de um estudo detalhado) -, apontam para uma posição distinta. Arriscamos dizer, apresenta-se até como uma visão positiva e confiante da sociedade brasileira. Impossível, entretanto, negar as suas várias facetas. Se não podemos, por um lado, ignorar seu desalento pelo país, ou, por outro, atestar de forma definitiva seu espírito esperançoso, talvez seja sensata a afirmação de que Nina, enquanto racialista, titubeou, hesitou, enfim, vacilou, frente à realidade de um país sempre imprevisível.
Referências - Livros, capítulos de livros, dissertações, teses, artigos e similares
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- BASTOS, Elide Rugai. Atualidade do pensamento social brasileiro. Sociedade e estado, v. 26, n. 2, p. 51-70, 2011.
- BIRD‐DAVID, Nurit. “Animism” Revisited: Personhood, Environment, and Relational Epistemology. Current Anthropology, v. 40, n. 1, p. 67-91, feb. 1999.
- BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 2, p. 231-269, 2005.
- BRASIL JR., Antonio; JACKSON, Luiz Carlos; PAIVA, Marcelo. O pequeno grande mundo do Pensamento Social no Brasil. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - Bib, v. 91, p. 1-38, 2020.
- BURKE, Peter. A revolução francesa na historiografia São Paulo: Unesp, 1993.
- CARNEIRO, Edison. Ladinos e Crioulos. Estudos sobre o Negro no Brasil Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. (Retratos do Brasil, v. 28).
- CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural/ textos de Morgan, Tylor e Frazer Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 128 p.
- CORRÊA, Mariza. As ilusões da Liberdade. A Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil Bragança Paulista: EDUSF, 1998.
- CORRÊA, Mariza. Os livros esquecidos de Nina Rodrigues. Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n. 76, sup. 2, p. 60-62, 2006.
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» https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/107536/318769.pdf?sequence=1&isAllowed=y - SERAFIM, Vanda Fortuna. Edward Burnnet Tylor e a contribuição inglesa ao estudo das religiões. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 6, p. 173-198, 2013b.
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- RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1894b.
- RODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Editora UFRJ , 2006a.
- RODRIGUES, Raimundo Nina. As coletividades anormais Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2006b.
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- TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation Paris: Félix Alcan, 1890.
- TARDE, Gabriel. A opinião e as massas São Paulo: Martins Fontes, 2005. 209 p.
- TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia e outros ensaios São Paulo: Cosac Naify, 2007. 286 p.
- TYLOR, Edward Burnett. Cultura Primitiva. Los Orígenes de la cultura (1) Madrid: Editorial Ayuso, 1977a.
- TYLOR, Edward Burnett. Cultura Primitiva. La religión en la cultura primitiva (2) Madrid: Editorial Ayuso , 1977b.
- TYLOR, Edward Burnett. Researches Into the Early History of Mankind and the Development of Civilization New York: Elibron Classics, 2005.
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Referimo-nos aqui, entre outros: MAIO, 1995MAIO, Marcos Chor. A Medicina de Nina Rodrigues: Análise de uma Trajetória Científica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 226-237, abr./jun. 1995.; SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras , 1993. 296 p.; SKIDMORE, 2012SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras , 2012. 393 p..
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Destacamos, como exemplo, os autores clássicos Charles Seignobos, Charles-Victor Langlois e Fustel de Coulanges. Cf.MALERBA (2015MALERBA, Jurandir. Ensaios: teoria, história e ciências sociais. Londrina: Eduel, 2015. 223 p., p. 21).
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Há uma denominação mais tradicional - embora muitos a considerem como um ramo diferente dos estudos conceituais -, conhecida como História das Ideias que tem sido progressivamente menos utilizada pelos historiadores. Um de seus principais difusores foi o historiador Quentin Skinner, nome maior da chamada Escola de Cambridge, que privilegiou as áreas de intersecção entre história e linguagem (o conhecido método do “contextualismo linguístico”), na conjuntura da chamada Linguistic Turn, nos anos 60/70 do século XX - não trataremos deste último fenômeno, pois foge aos objetivos primeiros deste texto. Cf.FALCON, 1997FALCON, Francisco Calazans. História das idéias. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da história: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 91-126.;SOUZA, 2018SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A história intelectual e o contextualismo linguístico em Quentin Skinner. In: SOARES, Fabricio Antonio Antunes; SILVA, Ricardo Oliveira da (org.). Diálogos: estudos sobre teoria da história e historiografia. Criciúma: EDIUNESC, 2018. p. 207-228..
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Utilizamos neste artigo a versão mais recente: TYLOR, 2005TYLOR, Edward Burnett. Researches Into the Early History of Mankind and the Development of Civilization. New York: Elibron Classics, 2005..
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Os livros não possuem tradução para o português. Nesta ocasião, nos servimos das traduções para o espanhol: TYLOR, 1977aTYLOR, Edward Burnett. Cultura Primitiva. Los Orígenes de la cultura (1). Madrid: Editorial Ayuso, 1977a. e 1977bTYLOR, Edward Burnett. Cultura Primitiva. La religión en la cultura primitiva (2). Madrid: Editorial Ayuso , 1977b..
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Aqui utilizamos as traduções mais recentes para o português: TARDE, 2005TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 209 p. e 2007TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 286 p..
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A última reimpressão dessa obra, na qual o original é reproduzido em fac-símile, é a referenciada por nós: RODRIGUES, 2006aRODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Editora UFRJ , 2006a..
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Cf.MAUSS, 2005MAUSS, Marcel. Nina Rodrigues, L’animisme fetichiste des nègres de Bahia. Caderno Pós Ciências Sociais, São Luís, v. 2, n. 4, p. 124-125, jul./dez. 2005. e STARR, 1902STARR, Frederick. L’animisme fétichiste des négres de Bahia. Dr. Nina Rodrigues; Metisage, degenerescense et crime. Dr. Nina Rodrigues; Des formes de L’Hymen. Dr. Nina Rodrigues. The American Antiquarian and Oriental Journal, Chicago, vol. XXIV, mar./apr. 1902..
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O “animismo fetichista” é um conceito típico da etnografia dos oitocentos que agrega duas características das populações consideradas “primitivas”. A primeira, esboçada por Tylor (inspirado pelo médico e químico Georg Ernst Stahl (1659-1734)) é a noção de que minerais, vegetais e animais possuem uma espécie de energia intangível, uma alma, um espirito animado. A segunda diz respeito - sobretudo no que toca aos africanos e seus descendentes - à adoração de coisas, objetos, eventos naturais, enfim, fetiches de toda sorte. Cf.BIRD‐DAVID, 1999BIRD‐DAVID, Nurit. “Animism” Revisited: Personhood, Environment, and Relational Epistemology. Current Anthropology, v. 40, n. 1, p. 67-91, feb. 1999. e SANSI, 2008SANSI, Roger. Feitiço e fetiche no Atlântico moderno. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 1, p. 123-153, 2008..
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Esse texto apareceu como uma espécie de “apêndice” na coletânea de 1896, publicada na Revista Brazileira. Nina afirma, em nota de pé de página, que se tratava apenas de um “extrato” da edição francesa L’animisme fétichiste des négres de Bahia. Essai de éthnographie religieuse et de psychologie crminelle que estava sendo preparada pela casa editorial Wilke, Picard & Cia. Segundo os organizadores da última edição, de 2006, Yvonne Maggie e Peter Fry, esse livro nunca foi editado e o texto referido, sob o título de La conversion des áfrico-bahianais au catholicisme, apareceu, isto sim, em outra versão francesa, mas publicada no Brasil, em Salvador, pela Reis e Comp. Éditeurs, em 1900. Na edição de O Animismo..., de 1935, o texto foi incorporado por Arthur Ramos, como capítulo, com o título de A conversão dos Áfrico-baianos ao catolicismo.
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Importante fazer notar que Nina Rodrigues dedicou muitos de seus trabalhos à valorização e institucionalização da medicina-legal ou forense no Brasil. Algumas de suas conclusões - como a análise do crânio de Antônio Conselheiro, líder religioso de Canudos, que não demonstrou nenhuma deformidade ou “estigma” degenerativo - também serviram para mitigar muitas de suas certezas e, acima de tudo, sua, até então, “cega” confiança nas escolas criminalistas italiana e francesa.
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Nina Rodrigues irá se apropriar dessa denominação que será título de um de seus mais notáveis trabalhos, cuja última reimpressão (2006b) é a de que nos servimos aqui.
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Declaração de financiamento:
A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento do PNPD/CAPES (Proc. 88882.315789/2019-01).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
17 Dez 2020 -
Aceito
21 Abr 2021