O novo livro de Bruno Feitler, além de confirmar suas já conhecidas qualidades de historiador, lança uma ponte muito significativa em direção à história do direito. A produção sobre a inquisição ibérica é enorme, mas não são muitas as investigações a respeito de sua natureza jurídica. De preferência há uma história largamente social ou política, isto é, dedicada a pesquisar os efeitos da instituição nas relações sociais ou nas relações formais de poder. Muito menos frequentes são os estudos a respeito de sua natureza jurídica, vale dizer, daquilo que a assemelha e diferencia de outras instituições judiciárias do Antigo Regime, tanto em termos de organização e razão de ser quanto em termos de formas de argumentar, debater, produzir decisões. Nessas duas vertentes, o livro de Bruno Feitler abre - ou, talvez melhor, amplia - um diálogo importante.
O trabalho dá continuidade à já larga e qualificada produção do autor a respeito da inquisição portuguesa, ela mesma parte da obra de uma geração que vai renovando os estudos a respeito do tema, de um lado afastando-se da “legenda negra”, de outro ampliando nosso conhecimento dos efeitos capilares daquele sistema de controle social, ou daquela espécie de “guerra de religião por outros meios”, prolongada por mais de duzentos anos. A Inquisição portuguesa foi, de certo modo e de maneira até paradoxal, um canteiro de experimentação do novo poder do soberano nacional, com direito a muitas idas e vindas. A proposta de Feitler é repensar sua história desde sua criação (1536) até a reforma de Pombal (1774), “de um ponto de vista jurídico”. Para tanto, encerrou sua pesquisa em alguns crimes do foro inquisitorial, as heresias, e, entre elas, principalmente as heresias judaizantes, embora também apareçam os casos de calvinismo e luteranismo, como os de Manuel Gomes e João Mayer (Feitler, 2022, p. 177). Foi seguramente uma escolha acertada, e que lhe permitiu desenvolver consistentemente sua análise.
Concentrado nesses crimes e na documentação respectiva, Feitler abriu seu horizonte para as discussões doutrinais. Ao fazer isso, escapou da leitura dos casos apenas pelo que continham os autos dos respectivos processos, tomando-os por exemplos singulares de controvérsias maiores a respeito das próprias regras constitutivas do sistema inquisitorial, vale dizer, da organização dos tribunais e de suas normas processuais e procedimentais, bem como de suas finalidades e razão de ser. Essas duas dimensões confluem naquilo que serviu de título ao trabalho de modo muito engenhoso: em que acreditavam os inquisidores (e deputados)? Qual a sua fé? Como e quanto acreditavam nos propósitos do sistema e nas regras que se viam obrigados a usar? Segundo o autor, as dúvidas a respeito do próprio regime estavam presentes na própria prática dos tribunais e de seus agentes, e se manifestavam nas dissensões e diferenças de opiniões. Essas diferenças, tão cotidianas para os juristas que vivem e respiram os modos de justificar leis gerais e decisões singulares, indicavam formas distintas de conceber suas próprias funções.
O núcleo da pesquisa concentra-se, a meu ver, no terceiro e no quarto capítulos da obra, em que Feitler relata duas controvérsias estendidas no tempo de vida do tribunal: a primeira sobre a readmissão dos hereges reconciliados à comunhão eucarística (“Inquisidores divididos: o debate em torno da proibição da eucaristia”), a segunda sobre a admissibilidade de provas não plenas para o sentenciamento de algum réu ou indiciado (“Da prova como objeto de análise das práxis inquisitorial: o problema dos testemunhos singulares”). Para fazer-nos chegar a esse miolo substantivo, a obra conta com uma introdução (“Lugares comuns” inquisitoriais), um primeiro capítulo sobre a “carreira” dos membros do tribunal (“Entre a cruz e a cátedra: hierarquias e mobilidade na carreira inquisitorial portuguesa”), e um último capítulo (“O Regimento pombalino (1774) como ponto de chegada dos debates internos à inquisição”).
A introdução, a mais breve seção do livro, é um importante convite ao diálogo com a perspectiva jurídica pela via de um gênero literário sempre relevante, o da literatura produzida como manual ou formulário. Consiste esta parte no exame da produção bibliográfica portuguesa a respeito do que se poderia chamar de direito inquisitorial, um ramo todo especial do direito, no qual se misturam tanto a tradição penitencial - e, portanto, sacramental - de uma vasta literatura dirigida aos confessores encarregados da cura d’almas quanto o núcleo mais importante do direito canônico propriamente dito, o ordo judiciorum, o direito processual. A pesquisa de Feitler confirma algumas coisas que já sabíamos: o caráter marginal e periférico da cultura jurídica portuguesa, da qual não saíram tratados relevantes ou de fôlego, capazes de empolgar o vasto campo do direito comum, nem mesmo da Europa meridional católica, com exceção do Juris ecclesiastici universi libri tres, de Agostinho Barbosa, publicado em Lião (1634). No lugar de obras de maior fôlego e do envolvimento de juristas de renome, Bruno Feitler aponta para a existência de uma coleção de Loci communes, breve antologia de princípios, adágios e brocardos organizados de forma tal que se pudesse prontamente encontrar alguma proposição capaz de solucionar uma dúvida ou ornamentar um juízo. Mas, atenção, apesar de ser gênero menor quanto a suas ambições doutrinárias, era de grande importância prática, como aliás continuou sendo no século XIX para os direitos nacionais, e mesmo até hoje, pois os livros de divulgação jurídica e os guias práticos mais simples são abundantes. Tratando-se de guias para a ação de fácil consulta, eram indispensáveis para grande número de pessoas envolvidas no dia a dia das operações de qualquer tribunal.
O capítulo primeiro, dedicado à carreira dos ministros, magistrados e oficiais, destaca alguns de seus aspectos a partir da análise minuciosa dos diversos inquisidores e deputados dos tribunais inquisitoriais portugueses (Lisboa, Évora, Coimbra e Goa). Os pontos mais relevantes são as relações entre inquisidores e deputados, as formas e os requisitos para a respectiva nomeação, o papel das relações sociais e de parentesco no ingresso e na progressão na carreira, bem como os contatos entre os órgãos do sistema inquisitorial e os outros corpos do Reino, a exemplo dos diversos tribunais, especialmente os grandes tribunais e conselhos de justiça (Casa da Suplicação, Mesa da Consciência e Ordens, Desembargo do Paço), ou da Universidade de Coimbra - a provedora de letrados por excelência. Como adverte o autor, trata-se mais de uma história institucional que, entretanto, não pode ser feita sem um forte elemento social.
O núcleo do trabalho, como explicitei acima, concentra-se nos dois capítulos que, a meu ver, justificam mais precisamente a intenção do autor de fazer uma obra “de um ponto de vista jurídico”, uma vez que neles são debatidas duas controvérsias doutrinais (alguns hoje diriam dogmáticas). Embora surjam a partir de casos concretos, são discutidas fora dos autos e apoiam-se em argumentos gerais e universais provenientes tanto de juristas quanto de teólogos. A primeira - analisada por Feitler no segundo capítulo - é mais propriamente teológica, pois se trata de saber o estatuto de um pecador (herege) tornado à plena comunhão da Igreja após renunciar à sua heresia. Essa reintegração ou reconciliação era real, era plena, deveria sê-lo? A segunda - tratada no capítulo terceiro - é especificamente jurídica, pois diz respeito à excepcionalidade procedimental que se podia admitir num tribunal já em si mesmo excepcional. As provas menos plenas poderiam servir para condenações, em especial a prova dos testemunhos singulares, reconhecidamente não plena, nos termos explicados no livro? Bastariam para fundamentar juízos de fato a respeito da existência dos crimes nos casos concretos?
Nos dois casos, Feitler relê e reproduz extensa e cuidadosamente os argumentos debatidos em fontes extra-autos, diretamente relacionadas com o que se passava em casos sub judice, que ele também apresenta. Combina, portanto, a pesquisa nos autos dos processos com debates circulando em outros esferas, como as consultas feitas pelo Conselho Geral aos tribunais locais (Lisboa, Évora e Coimbra), ou com as opiniões levadas mesmo até Roma para solução de alguma dúvida. Naturalmente, esses debates extra-autos eram eles também jurídicos, e de certo modo lembram as costumeiras consultas feitas a peritos acadêmicos, os jurisconsultos ou teólogos propriamente ditos, bem representadas e institucionalizadas nos Aktenversendung dos alemães, e hoje, porque não dizê-lo?, nas consultas que tribunais inferiores fazem às cortes constitucionais no regime europeu, ou na França pós-revolucionária se faziam ao Tribunal de Cassação, ou, no passado mais longínquo, as relações e consultas que se encaminhavam aos imperadores romanos e a seus prefeitos do pretório, para responderem a questões difíceis. Em resumo, a investigação de Bruno Feitler amplia os horizontes de todos os que fazemos história do direito.
A pesquisa conclui-se com uma síntese de sua interpretação, segundo a qual a reforma do regimento em 1774 não respondeu apenas a pressões contemporâneas da Ilustração, mas resultou também de um longo percurso no qual algumas ideias já elaboradas anteriormente se atualizaram. Para ele, o regimento pombalino deu voz a uma linha de pensamento que chamou de “seita da negociação”, um grupo de inquisidores e magistrados contrários à “seita rigorista”, conservadora.
O trabalho é, como já disse antes, original, tanto no método quanto na interpretação, e seus méritos são enormes. Escrito em prosa elegante, atrai pela narrativa e pela proposta de diálogo com muitas histórias possíveis, entre elas a história do pensamento jurídico no período que vai da primeira modernidade até as portas da Ilustração - o Sattelzeit de que falava Koselleck. Há também o bastante para dialogar com uma história das instituições e das organizações, dos corpos políticos e sociais do Antigo Regime, ou da monarquia sinodal, como diz Hespanha.
Como interessado na história do direito, gostaria de destacar alguns aspectos em particular, afinado à proposta do nosso autor de dialogar com o ponto de vista jurídico. Em primeiro lugar, creio que há espaço bastante grande a ser explorado na direção de uma história comparada em duas dimensões. Em primeiro lugar, uma comparação, ou, talvez, melhor ainda, uma inserção maior do regime inquisitorial e do direito local (do reino) naquele direito que Feitler chama de comum - o direito laico usado na cristandade latina em geral, com algumas modificações importantes na Inglaterra e na Escandinávia. Essa inserção do direito inquisitorial no direito comum deveria, no entanto, levar em conta não apenas o que se praticava na Península Ibérica, foco principal de Feitler, mas também no restante do continente. É claro que a inquisição moderna é um produto típico da Europa católica meridional, em cujo espaço houve uma relevante produção bibliográfica em boa parte espanhola. A inserção no direito comum, como pretende o autor, ganhará muito se estabelecermos um diálogo ampliado com a contribuição fundamental de autores como Ennio Cortese e Antonio Garcia y Garcia, sem falarmos no clássico Francesco Calasso e em sua herança. O direito comum consiste justamente no direito romano - essencialmente, um corpo de pensamento doutrinal, tratado como lei e imperativos de autoridade -, e o direito canônico, o direito da igreja, numa espécie de direito administrativo dessa instituição que se tem por universal. Digo direito administrativo, pois trata essencialmente da gestão dessa imensa corporação. É nesse âmbito que se pode dialogar com mais fruto com o chamado direito comum.
Falar desse âmbito é também fazer referência aos estudos a respeito da primeira modernidade jurídica, na qual a produção espanhola teve relevância inicialmente, mas foi logo suplantada, por razões que não é possível alinhavar aqui. É certo que essa passagem pode ser vista quando Bruno Feitler menciona o cardeal Caetano (Cajetano). Para além dele, contudo, a jurisprudência ganharia novo fôlego com Roberto Bellarmino e toda uma série de juristas mais influentes junto à Sé romana. É certo que a discussão em que se inserem esses novos jurisconsultos está ligada ao conceito de autoridade que se revê naquele período, muito especialmente o conceito de autoridade que se decanta em torno da ideia de soberano e soberania. Quanto ao restante do pensamento jurídico, a semente plantada por Francisco de Vitória e salmantinos, de pendor mais teórico, será logo superada em termos de reconhecimento geral pela reviravolta dos jusnaturalistas modernos, a começar por Hugo Grócio. Trata-se de um diálogo a ser feito, pois as obras de muitos desses novos juristas será conhecida, mas não divulgada no mundo ibérico, restrito seu alcance aos letrados obrigados a consultá-las em exemplares censurados. Nesse novo locus brotarão ideias a enfraquecerem a “fé dos juízes”. Trata-se, naturalmente, de outra pesquisa, mesmo que sua ideia seja inspirada pela leitura do livro de Feitler. É em meio a esse quadro ainda instável que se pode bem entender, no caso de Portugal, aquela permeabilidade, tão bem retratada no texto de Feitler, entre o sistema inquisitorial e os outros corpos do reino, notadamente os grandes tribunais e a universidade. Estamos em meio a uma transformação juridicamente relevante, qual seja, a legitimação do soberano moderno para interferir num corpo de direito - o direito comum - cuja fonte de legitimidade estava mais na tradição do que na positivação. Esse mesmo embate se nota no direito inquisitorial, quando se analisa a relação entre o Conselho Geral e os tribunais de distrito.
Um segundo aspecto relevante, e que se ilumina pela comparação, é também o da “carreira” dos magistrados. Hoje falamos em carreira e o que nos vem à mente imediatamente é a carreira dos funcionários, esses personagens muito típicos do estado burocrático. Ora, é justamente o funcionário típico que ainda não existe entre os séculos XVI e XVIII, e o cursus honorum que cumprem os pretendentes ao lugar de inquisidor não é propriamente uma carreira. Nesse caso, a comparação que precisa ser aprofundada é com os outros regimes de “recrutamento”. Não havendo funcionários propriamente, o que se encontram são os oficiais e os magistrados. Nestes termos, faz muito sentido a organização das listagens consultadas por Bruno, nas quais a summa divisio é entre ministros (os magistrados, aqueles que exercem a justiça de maneira delegada) e oficiais (os que põem em andamento a máquina, sem terem jurisdição propriamente dita). Assim, os magistrados incluem inquisidores e deputados, uma vez que os deputados eram figuras bem conhecidas nos tribunais do Antigo Regime, embora fossem muitas vezes magistrados temporários. Não havendo carreira, no sentido contemporâneo, os magistrados são chamados aos lugares por suas qualidades pessoais, e entre elas, no caso da inquisição, a pertença ao clero. Ora, no clero entrava-se não como se entra num cargo administrativo e gerencial, da Igreja ou do Estado, mas por um sacramento que imprime caráter. Como o batismo, a confirmação, e o matrimônio, as ordens sacras são permanentes e conferem um estado. O batismo confere o estado de cristão, ergo, de membro do corpo místico, a corporação Igreja. As ordens sacras - que eram várias, lembremos - conferiam um caráter e apartavam o cristão para a administração de sacramentos e a cura d’almas. Nessa ordem de ideias, encontramo-nos não no mundo da burocracia técnica e profissional do Estado moderno, mas numa paisagem povoada por gente que entra em estados em função de qualidades pessoais. A escolha desses agentes das instituições recai sobre pessoas de qualidade. Assim é que o presidente (regedor) do grande tribunal, a Casa da Suplicação, deve ter “as qualidades que para cargo de tanta confiança e autoridade se requerem”. Entre essas qualidades, aparece em primeiro lugar a técnica e profissional, pois ele deve ser letrado, diz a Ordenação, “se possível”, e os comentadores (como Manuel Alvarez Pegas) acreditam que as letras são absolutamente necessárias. Deve ser também “fidalgo, de limpo sangue, de sã consciência, prudente e de muita autoridade”. Nada disso se adquire na universidade ou por estudo formal. A essas qualidades acrescenta-se a virtude política por excelência, a da justiça: “sobretudo, tão inteiro que sem respeito de amor, ódio ou perturbação outra do ânimo, possa a todos guardar justiça igualmente.” (Ordenações Filipinas, I, 1). Em linha semelhante vão os tratadistas (doutrinadores), ao exaltarem as qualidades e virtudes pessoais, adquiridas na experiência da vida e controladas pela fama do candidato (cf. Diogo Camacho Aboim, Escola moral política, christã e jurídica; Domingos Antunez Portugal, Tractatus de donationibus Regius). Tudo isso assemelha-se aos critérios subjetivos exigidos para ser inquisidor, longamente tratados no capítulo 1 da pesquisa de Feitler.
As discussões doutrinais, núcleo de toda a atividade jurídica, permitem ainda mais diálogo. Primeiramente porque tanto no caso da eucaristia quanto no caso das provas vê-se como as discussões de lege lata transformam-se facilmente em problemas de lege ferenda. E dentro de um universo de direito tradicional, a posição do Conselho Geral vai se tornando mais proeminente e, ao mesmo tempo, mais questionável. Porque, se é fato que a lei pode inovar e corrigir costumes, para fazê-lo são necessárias muitas e muito fundamentadas razões. Tomás de Aquino, que tanto deveu aos estudos dos juristas de seu tempo, foi quem vulgarizou a expressão direito positivo, jus positum, e reconheceu expressamente que esse direito poderia mudar. Ao tratar do assunto (ST Ia IIae, q. 97 de mutatione legum, 1 - utrum lex humana debeat aliquo modo mutari), afirmava claramente que, sim, a lei pode mudar, porque “a lei imposta pelo homem contém alguns preceitos particulares, de acordo com os diversos casos que surgem” (ad 1). Por isso, “a lei pode ser justamente mudada em razão da mudança das condições dos homens” (respondeo). No entanto, como mostra claramente a forma do debate apresentado no livro, “nunca se deve mudar a lei humana, a não ser que se recompense a salvação comum tanto quanto a mudança lhe subtraiu.”. A favor de sua opinião cita o Digesto, I, 4, 2 (Ulpiano - Para constituir coisas novas e afastar-se daquele direito que durante longo tempo pareceu justo, evidens debet esse utilitas). Assim, contra os rigoristas, os laxistas podem justificar que não se deve restringir o acesso dos perdoados ao sacramento da eucaristia, e contra os laxistas, podem os rigoristas exigir que as provas para condenação continuem a ser plenas.
Para concluir, vale sugerir que, para historiadores do direito, o caráter híbrido e excepcional dos tribunais inquisitoriais modernos é tema de destaque, o que também ajuda a compreender a vulnerabilidade um pouco permanente de sua legitimação. De certo modo, Bruno Feitler dirige nossa atenção para isso, pois sua tese nos diz que a reforma pombalina deve ser entendida não apenas como uma inovação mais ou menos repentina devido ao reformismo ilustrado, mas como um decantado de discussões que se acumularam por longo tempo. Ora, essas discussões foram um traço permanente, bem ilustrado nos exemplos que A Fé dos juízes apresenta, pois sempre foi difícil combinar a dimensão penitencial e sacramental dos propósitos e princípios alegados pela Inquisição, e seu aspecto penal e punitivo.
Algumas observações pontuais podem contribuir para maior clareza do trabalho. Primeira, dado o caráter bastante específico da linguagem canônica e da tradição cristã ocidental, seria melhor não usar a palavra sacerdote quando se faz referência ao sacramento da ordem presbiteral. É especialmente relevante esse cuidado, pois às vezes pode-se entrar em dúvida a respeito das exigências para certos cargos. De fato, as ordens ditas maiores - diaconato, presbiterato - distinguem-se bem entre si, e distinguem-se ainda mais das ordens menores - leitorado, acolitado. Por vezes, a referência a ordens sacras não é tão clara. Segunda, a própria ideia de direito comum, que pode tanto referir-se à universalidade do direito romano e do direito canônico quanto ao fato de juntos pertencerem a uma tradição comum (a tradição dos dois direitos, utriusque iuris), poderia ser melhor explicitada. Esses dois usos poderiam ser esclarecidos inicialmente. Nesse sentido, a volta aos clássicos fundadores da historiografia jurídica contemporânea relativa ao direito romano e canônico medieval mencionados acima (Calasso, Cortese, Garcia Y Garcia, Landau, Brundage, Helmholz) ajudaria muito, mais talvez do que alguns estudos mais recentes menos inovadores. Finalmente, valeria muito a pena que o autor inserisse o processo e os procedimentos inquisitoriais mais amplamente no processo canônico geral, pois é a tradição processual da Igreja que colabora muito para o estabelecimento e a estabilização de regras sempre tratadas como de direito natural - o que equivale a regras constitutivas da própria ideia de justiça: a de que os juízes devem ser alheios aos interesses em jogo; de que todas as partes devem ser igualmente ouvidas (daí a importância da defesa dos acusados nos processos); a da possibilidade de recursos; bem como a concernente à redução dos termos a escrito para garantir exatamente que tudo o que se passou no juízo originário possa ser devidamente conhecido e apreciado no juízo de revisão (apelação, restitutio in integrum, gravamen, etc). Além dos institutos, sobreviveu, na retórica arquitetônica do foro brasileiro, a presença do promotor em posição diferente da do advogado de defesa. Isso se deve a uma inércia de longa data e vem dos tempos em que os promotores eram parte do próprio corpo colegiado encarregado do julgamento. A Constituição de 1824 havia já abolido a forma inquisitorial canônica, mas foi mantida essa arquitetura, assim como, durante muito tempo, o cargo de promotor de justiça era uma porta de entrada para a carreira da magistratura propriamente dita. Esse costume, que não tem mais qualquer razão de ser, é, hoje, televisionado diariamente, quando o Procurador Geral da República, tendo função apenas advocatícia de defensor de um dos lados que está em juízo, aparece sentado ao lado do Presidente do Supremo Tribunal Federal. Tal arquitetura fossilizada lembra-nos o tempo dessa Inquisição tão bem estudada no livro aqui apresentado.
Como se vê, a obra traz uma abertura importantíssima para os diálogos entre juristas, historiadores e historiadores do direito, e de sua leitura saímos não apenas mais instruídos, como também mais abertos e curiosos para outras tantas pesquisas, inclusive as que Bruno Feitler nos vai ainda trazer.
REFERÊNCIA
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
07 Ago 2022 -
Aceito
17 Ago 2022