Open-access Negras formas de atuar artística e politicamente no Pós-Abolição: A trajetória da atriz Léa Garcia pela ótica historiográfica de Julio Claudio da Silva

Black Ways of Acting Artistically and Politically in the Post-Abolition Period: The Trajectory of Actress Léa Garcia in the Historiographical Perspective of Julio Claudio da Silva

SILVA, Julio Claudio da. . Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita: a trajetória e o protagonismo de Léa Garcia. Manaus: Editora UEA, 2023.

Entre os fatores que definem a relevância de um trabalho historiográfico estão a originalidade do objeto e a capacidade de o historiador operar em lugares que ainda demandam investimento de investigação, e/ou que ainda são pouco explorados. É por essas e outras razões que as pesquisas de Julio Claudio da Silva, docente do Colegiado de História daUniversidade do Estado do Amazonas, podem ser consideradas exemplares. Movido por inquietações históricas que tratam de passados ainda muito presentes e que levantam problemas estruturais da história do Brasil, como o racismo e as desigualdades de gênero, classe e raça - fatores que se relacionam de forma direta com o fato de ser, Julio Claudio, um homem negro -, o historiador tem pesquisado, há mais de uma década, o protagonismo negro no Pós-Abolição, a partir da trajetória de atrizes negras. A opção pelo tema pode ser vista, dessa forma, como uma escolha historiográfica, mas também política, de modo que suas pesquisas buscam discutir questões que, longe de estarem resolvidas, permanecem abertas.

Lançando-se a um desafiador exercício de operação historiográfica, que é a elaboração de biografias históricas de pessoas vivas, o historiador tornou-se biógrafo das atrizes Ruth de Souza e Léa Garcia. Ambas já falecidas, quando no momento da elaboração de suas biografias pelo autor ainda estavam vivas, o que faz de seus trabalhos verdadeiros empreendimentos de história do tempo presente, abordagem para a qual a contemporaneidade entre o historiador e os sujeitos que estuda se mostra singular. Tal particularidade se coloca não somente pela presença das testemunhas vivas e da vivacidade de suas memórias, mas, sobretudo, das relações conscientes e inconscientes que se estabelecem entre os historiadores e os atores que falam (Delacroix, 2018).

Outra dimensão que diferencia seus trabalhos é a escolha em abordar historicamente trajetórias artísticas as quais, de modo geral, ainda são pouco estudadas na historiografia brasileira. A escrita de biografias de personagens famosos vinculados ao campo artístico e de pessoas vivas é mais comum entre os jornalistas, sendo, como bem observam Santhiago e Borges (2022), não raro produzidas nas chaves do sensacional e do espetacular, fomentando narrativas a-históricas. Não cabe aqui sumarizá-las, cabe tão somente destacar que a escolha por biografar personagens já falecidos parece revelar um certo desconforto dos historiadores, o qual comumente se associa aos desafios éticos que se impõem para a escrita biográfica no tempo presente. Os trabalhos de Julio Claudio da Silva acabam por romper essas barreiras.

Entre os poucos exemplos de trabalhos dessa natureza destacam-se a pesquisa de Benito Schmidt (2017), que escreveu a biografia do militante de esquerda gaúcho Flávio Koutzii, personagem vivo com quem teceu relação direta, e a polêmica biografia sobre Roberto Carlos escrita por Paulo César Araújo (2006), que, na época, acabou sendo tirada de circulação por problemas de autorização com o biografado, levando a processos judiciais. Vale referenciar, também, o livro que Araújo (2014) lançou posteriormente sobre a situação conturbada desencadeada pela elaboração da biografia do artista, e, mais recentemente, a nova biografia que Araújo (2021) elaborou sobre o mesmo cantor, sob uma nova ótica.

Tais problemas, como a autorização ou a contestação por parte das biografadas, não foram, nem de longe, dificuldades enfrentadas por Julio Claudio da Silva. Pelo contrário, Silva (2011) teve o privilégio de não somente entrevistar, mas de receber documentação inédita de Ruth de Souza, ao elaborar a biografia sobre a atriz, quando da escrita de sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense, em 2011. Uma pesquisa de fôlego que foi transformada em livro cuja primeira edição foi lançada em 2015, obra republicada em versão revisada em 2017, em ambos os casos pela Editora UEA, com o título de Uma Estrela Negra no teatro brasileiro: relações raciais e de gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952).

Em meados de 2023, o historiador publica, pela mesma editora, Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita: a trajetória e o protagonismo de Léa Garcia, obra da qual esta resenha trata. A personagem dessa biografia é a carioca Léa Lucas de Aguiar, mais conhecida como Léa Garcia, nascida na capital do Rio de Janeiro em 1933 e falecida em 15 de agosto de 2023, em Gramado (RS), com 90 anos de idade. Desses, pelo menos 70 foram divididos entre o ofício de atriz e o trabalho como servidora pública. Trata-se de uma das principais e mais longevas atrizes negras brasileiras, cujos papéis interpretados marcaram a memória de diferentes gerações, com destaque para a personagem Rosa, na telenovela Escrava Isaura.

A pesquisa que resultou no livro começou em 2015, quando o historiador realizou a primeira entrevista com a atriz nas dependências do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio de Janeiro - SATED-RJ. Na ocasião, a própria Léa Garcia mencionou, antes mesmo de ser um projeto concreto, que o historiador escreveria sua biografia assim como havia escrito a biografia de sua amiga, Ruth de Souza. Houve, portanto, uma vontade que partiu da própria biografada para que sua trajetória fosse contada pelo historiador, o que revela uma certa relação de confiança. Vale lembrar que Léa Garcia acabou falecendo pouco tempo após a publicação da biografia, tendo a oportunidade de autografar a obra junto do autor em evento promovido pelo Itaú Cultural, entre outros1.

Em Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita, ao traçar aspectos da trajetória artística e profissional de Léa Garcia, o autor buscou problematizar “a História das relações raciais na sociedade brasileira em articulação com a História do teatro e cinema na conjuntura republicana na década de 1950” (Silva, 2023, p. 21). Não se trata, portanto, de uma história de vida, mas de uma pesquisa que opera em função de um recorte que abrange, mais especificamente, os anos entre 1952 e 1959, período em que a atriz participou do Teatro Experimental do Negro (TEN), e que remonta à sua atuação no longa metragem Orfeu Negro, ou Orfeu do Carnaval (Marcel Camus, 1959).

Para isso, o autor estabelece um diálogo com os estudos do Pós-Abolição, elegendo “o universo das artes cênicas como lócus privilegiado de observação do racismo” (Silva, 2023, p. 23). Seu argumento é o de que, se este universo é revelador do racismo estrutural brasileiro, é nele também que atrizes como Ruth de Souza e Léa Garcia, ao constituírem suas trajetórias, promoveram enfrentamentos e rupturas em relação aos padrões de exclusão. Trajetórias que acabaram por denunciar o racismo nos palcos brasileiros, por isso, o autor compreende o Teatro Experimental do Negro como um dos mais importantes espaços institucionais do Movimento Negro na História do Brasil.

Orientado pelos pressupostos teórico-metodológicos de Pierre Bourdieu e munido, portanto, dos cuidados necessários no que diz respeito à “ilusão biográfica”, o autor busca a todo momento relacionar sua biografada com o contexto social e histórico no qual esteve inserida, destacando os papéis por ela desempenhados. A principal categoria analítica que norteia a abordagem é a interseccionalidade, trabalhada por Kimberlé Crenshaw e utilizada para a problematização das estruturas de subordinação. A noção de geração proposta por François Sirinelli, de igual modo, se mostra elementar na discussão de Silva (2023), quando ainda no início do livro o autor trata da relação da pequena Léa com a mãe e a avó, e como o tipo de educação que recebeu dessas mulheres negras em sua infância e adolescência ajuda a explicar a maneira como a atriz construiu sua existência enquanto mulher negra.

Dividido em cinco capítulos, o livro começa com um comentário intitulado Léa Garcia: espelho, régua e compasso, de Maria Claudia Cardoso Ferreira, professora da Unilab, seguido de uma apresentação da professora Martha Abreu, da Universidade Federal Fluminense, e de um instigante prefácio escrito por Hebe Mattos, docente da mesma instituição que foi, durante longa data, orientadora do autor. Conta, ainda, com um anexo, com dados da trajetória da atriz, como cursos de aperfeiçoamento, histórico profissional e artístico na televisão, teatro e cinema, idiomas falados, depoimentos, leituras em teatro, eventos de que participou, participações em emissoras de rádio, direções, as ocasiões em que foi jurada, homenagens e condecorações. O livro termina com uma galeria de fotos da atriz, que retratam diferentes momentos de sua vida artística, e que estão presentes no Acervo Privado Léa Garcia, vinculado ao Grupo de Estudos Históricos do Amazonas (GEHA/UEA).

No primeiro capítulo, intitulado Você não vai ser uma negrinha de pé no chão: a respeitabilidade como projeto, que carrega em seu título a própria fala da atriz, o autor busca traçar uma historicidade da personagem. São as memórias de Léa Garcia que dão o tom dessa primeira parte, mobilizadas por meio de entrevistas concedidas ao autor em 2015 e 2016, a partir da metodologia da história oral temática. Foi utilizada, de igual modo, uma entrevista realizada por Sandra Almada, que está disponível no livro Damas Negras: sucesso, lutas, discriminação: Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta (1995).

Silva (2023) demonstra como, ainda na infância, a pequena Léa, criada pela avó - uma doméstica que trabalhava para uma família da burguesia carioca -, ao crescer em um ambiente de pessoas brancas que residiam em Copacabana buscava construir códigos de respeitabilidade. Apesar de pertencerem ao subúrbio e de serem mulheres negras, tanto a mãe como a avó ensinavam a menina para que adquirisse respeito, para que não fosse uma “negrinha de pé descalço”. O “negrinha” a que se referiam a avó e a mãe de Léa, de forma um tanto quanto pejorativa, diz respeito às diminuições e subordinações sofridas por pessoas negras, especialmente mulheres trabalhadoras.

Essas mulheres de outras gerações queriam criar uma mulher negra que não se sujeitasse. A questão geracional é trabalhada, dessa forma, atrelada à discussão acerca da interseccionalidade, numa narrativa que não carrega discussões teóricas densas, mas que faz com que a memória da entrevistada seja o centro do texto. Uma memória que traz à tona a descoberta, ainda na infância e juventude, da negritude de Dona Léa Garcia, como nomeia respeitosamente o autor, e de suas estratégias de insubordinação como criança negra que cresceu em um ambiente branco e elitizado.

São aspectos recuperados pelo autor para explicar a atuação da atriz em sua vida adulta, e que revelam, de igual modo, o que podia ou não ser feito “por uma mulher negra e pobre no Rio de Janeiro de 1940” (Silva, 2023, p. 46), as relações e os serviços prestados por mulheres negras que eram empregadas domésticas em casas de famílias brancas, e as (im)possibilidades de projeção profissional dessas mulheres para além do espaço doméstico. Desse modo, um fator interessante que o autor trabalha é, por exemplo, como a pequena Léa encontrava, nos livros e na leitura, formas de diferenciar-se, como se a leitura, pouco praticada por mulheres negras, fosse uma porta de entrada para romper com aquele “destino”.

Ainda neste primeiro capítulo, o autor nos brinda com particularidades da biografada. Léa não queria ser atriz, seu sonho era ser escritora. A paixão em atuar veio somente depois da primeira vez em que pisou em um palco, segundo suas memórias. Foi Abdias Nascimento, dramaturgo, ator e ativista negro que na época era diretor do TEM - que foi seu companheiro por um tempo e pai de dois de seus filhos - que a convenceu de seu potencial como atriz negra. Léa fala com respeito e admiração de Abdias Nascimento, atribuindo a ele o grande incentivo para o início de seu trabalho como atriz. Outro aspecto tratado pelo autor é a forte influência da atriz Ruth de Souza sobre Léa Garcia e a admiração que a segunda tinha pela primeira. Léa relata os encontros que teve com Ruth de Souza ainda em sua juventude, e como ela atuou como mediadora para que Léa entrasse no TEN como sua substituta quando, na década de 1950, Ruth passou um tempo nos EUA especializando-se. Assim, ao longo de todo o enredo, as trajetórias de ambas as atrizes são trabalhadas pelo autor de forma entrecruzada.

Em A estrela egressa no Teatro Experimental do Negro, segundo capítulo, o historiador analisa a atuação de Léa Garcia nos primeiros anos de seu ingresso no TEN, utilizando-se tanto das fontes orais já mencionadas e de outras entrevistas concedidas por pessoas relacionadas ao universo cênico, como de publicações em periódicos que tratam sobre seus trabalhos no período. Estes últimos são documentos que, como nos conta o autor, tratam da memória pública do TEN, em sua maioria periódicos do Acervo Abdias Nascimento, e cujas cópias foram doadas pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO-RJ) ao Grupo de Estudos Históricos do Amazonas (GEHA/UEA). Fazem parte desse capítulo também alguns periódicos do acervo da Fundação Biblioteca Nacional que fizeram cobertura de alguns dos principais trabalhos da atriz. O autor chama a atenção para o fato de que, diferente de sua colega Ruth de Souza e do próprio Abdias Nascimento, Léa Garcia não se dedicou ao exercício de arquivamento da própria vida, por isso a importância de tais documentos para a elaboração de sua trajetória.

Neste capítulo, Silva (2023) demonstra como a inserção da atriz no TEN revela aspectos de uma artista engajada politicamente, ou seja, que fez de seu protagonismo artístico um espaço de ativismo social desde os primeiros trabalhos. Nele, o leitor tem a oportunidade de conhecer diferentes trabalhos da atriz a partir de suas memórias. Talvez o grande destaque do capítulo, que traz as memórias da atriz sobre as críticas aos trabalhos do TEN no recorte estabelecido pelo autor, seja a ênfase nos desafios enfrentados por seus participantes frente ao preconceito dos brancos em relação ao teatro negro e o posicionamento antirracista de seus atuantes, na medida em que “escrever, montar, dirigir espetáculos, denunciar e combater o racismo estrutural através de espetáculos com atrizes, atores e temáticas negras é e foi uma tomada de posição política” (Silva, 2023, p. 85).

O terceiro capítulo, intitulado Léa Garcia, o TEN e Orfeu da Conceição, trata desse que é considerado um dos momentos mais marcantes de sua trajetória artística e profissional, em que interpretou a personagem Mira. São mobilizadas entrevistas com a atriz e com outros sujeitos sobre a montagem, o impacto e a repercussão da peça na época, assim como também são utilizados diferentes periódicos para a sustentação do argumento. Como aborda o autor, a atuação de Léa Garcia na peça teatral Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, encantou e convenceu diferentes críticos e cineastas sobre a qualidade de seu trabalho, de modo a levar o cineasta francês Marcel Camus a contratá-la para compor o elenco de Orfeu Negro, trabalho que marcou sua estreia no universo cinematográfico.

O quarto capítulo, intitulado Orfeu Negro: a dupla estreia, trata, justamente, desse momento em que sua trajetória ganha projeção nacional e internacional. Na ocasião, Léa deu vida à personagem Serafina, e foi por conta deste trabalho que a atriz foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes, em 1957, sendo classificada em segundo lugar. Nessa parte, o autor trabalha a narrativa da personagem sobre o processo de seleção para a premiação e como esse acontecimento significou um marco em sua trajetória, por evidenciar o reconhecimento do mérito profissional da atriz, colocando-a entre as principais estrelas do cinema internacional da época. Vale dizer que, como pontua o autor, Léa foi a primeira entre os brasileiros a concorrer a este prêmio.

Outro ponto interessante do capítulo são os comentários de Léa acerca das representações da mulher negra na cobertura e na repercussão de Orfeu Negro na imprensa, haja vista que a maioria das notas de imprensa se referiam a ela e a outras mulheres negras, na época, como “mestiças” e “morenas”. Sobre isso, o autor problematiza o uso de eufemismos para se referir a essas atrizes como uma forma de reprodução de um fenótipo branco que revela as hierarquias raciais estabelecidas, na medida em que a imprensa não se referia a essas mulheres como “mulheres negras”.

Em Narrativas de si: experiências com a discriminação racial, quinto e último capítulo, o autor destaca a vontade de sua personagem de tecer uma narrativa de si, no presente, avaliando e rememorando a historicidade de sua trajetória. Assim, o capítulo enfatiza uma retrospectiva de vida de Dona Léa Garcia, e também pode ser visto como uma certa avaliação da mesma sobre seu itinerário profissional. Nessa avaliação, ao falar de seus trabalhos ao longo do século XX na condição de mulher negra, o autor aborda como a biografada considera que o racismo ainda é muito presente, e como os estereótipos muitas vezes são reproduzidos, quando, por exemplo, a maioria de papéis destinados a atrizes negras são sobre personagens escravas e empregadas domésticas. Ao abordar também situações de discriminação racial vividas pela atriz, o autor salienta que o recorte para seu itinerário se justifica na medida em que “a narrativa de Dona Léa Garcia sobre seu exercício profissional compara suas experiências com o racismo vividas por dezenas de milhões de profissionais negros e negras” (Silva, 2023, p. 162).

Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita é uma obra que se centra na trajetória de Léa Garcia, mas que pode ser interpretada também como uma obra que problematiza e retrata aspectos da história do Teatro Experimental do Negro. É também uma história do lugar ocupado por homens e mulheres negros no interior do universo brasileiro das artes cênicas ao longo do século XX, que levanta questões as quais excedem o recorte cronológico estabelecido pelo autor. A trajetória de Léa Garcia tal como foi abordada por Julio Claudio da Silva demonstra como seu ofício de atriz foi desempenhado como exercício político, e como sua inserção no campo artístico desafiou o lugar destinado para mulheres “de cor”. Portanto, uma história singular que reflete lutas coletivas do passado e do presente. Lutas não encerradas.

Tanto a biografia de Ruth de Souza como a de Léa Garcia contribuem para diferentes âmbitos da historiografia. Entre esses, a história das mulheres, os estudos biográficos, de gênero, Pós-Abolição, teatro, cinema, televisão, história oral, história do tempo presente e história pública. Vale dizer que, se ainda são raros os trabalhos biográficos sobre pessoas vivas na História, são ainda mais raras pesquisas de dimensão biográfica que tomem trajetórias de atores e atrizes como objetos de estudo, o que torna as pesquisas desse autor bastante originais.

Um aspecto que merece destaque é o potencial de história pública de suas pesquisas biográficas sobre tais atrizes. A ênfase para a dimensão artística e o estudo sobre trajetórias públicas de atrizes podem despertar o interesse de um público mais amplo, fazendo com que a pesquisa circule e seja consumida para além da universidade. Além de que, conforme salientam Santhiago e Borges (2022, p. 87), “esse interesse público por vidas individuais, atrelado à conformação de um nicho específico no mercado editorial, abriria um espaço pelo qual os historiadores, sobretudo os afinados com a história pública, poderiam transitar”. É nesse sentido que a biografia, segundo os mesmos historiadores, torna-se um profícuo canal de comunicação e democratização da história.

Pesquisar trajetórias artísticas se mostra, dessa forma, uma estratégia interessante também para que o próprio historiador possa circular em ambientes outros para além do acadêmico. Sobre isso, vale dizer que Julio Claudio da Silva teve a oportunidade de participar de eventos de lançamento, e de ter seu nome e suas obras em diferentes matérias midiáticas por tratar dessas trajetórias públicas. Basta procurar sobre a biografia de Léa Garcia no Google e uma série de reportagens mencionam seu trabalho, projeção que geralmente não acontece com obras que tratam de temas mais tradicionais, os quais são abordados com alto teor academicista, acabando por ter uma repercussão puramente acadêmica por apresentarem linguagens mais engessadas. E se tem uma coisa de que o autor foge é da narrativa academicista. A biografia de Léa Garcia apresenta uma escrita fluida e didática, que demonstra a preocupação de seu autor em trazer ao leitor um contato direto com as fontes, apresentando trechos curtos das falas da personagem principal sem, contudo, deixar de problematizá-las, conforme se espera de um bom historiador que sabe que os documentos não falam por si. E que, mais do que se ocupar em discutir conceitos, categorias e noções, os/as aplica no trato documental.

O próprio processo de elaboração das biografias, realizado a partir de um contato direto com as biografadas, aponta o caráter de história pública de suas pesquisas, por se tratar de trabalhos em que a autoridade entre pesquisador e pesquisadas foi compartilhada. Essa noção de “autoridade compartilhada”, elaborada por Michael Frisch (1990) e tão cara à história pública, pode ser percebida desde a feitura das entrevistas até o acesso aos arquivos (Werle, 2017), como também no lançamento da biografia, quando, ao autografar os livros, Léa Garcia assume, ao lado do historiador, o papel de colaboradora da obra. O livro ainda pode ser visto na chave da histórica pública, pelo fato de a discussão nele mobilizada responder a demandas por história e memória apresentadas pelo Movimento Negro no tempo presente.

Vale dizer que o autor repete diversas vezes ao longo do livro que a ênfase de seu trabalho recai sobre o “processo de construção de memória” da atriz. Por se tratar de uma obra que se volta, em grande medida, para narrativas orais realizadas com a biografada em um momento em que a atriz vivenciava a velhice, a discussão poderia valer-se desse aspecto para abordar esse trabalho de memória não somente para pensar a construção de si no presente, mas também a vontade de perpetuação da imagem de si no futuro. O olhar para essa dimensão poderia promover uma profícua discussão acerca do imbricamento das temporalidades passado, presente e futuro no processo de construção autobiográfica da atriz.

Em outras palavras, havia, por se tratar de uma atriz já idosa, a possibilidade de o autor interpretar em que medida a velhice e a ciência de finitude da vida contribuíram, ou não, para que ela construísse determinada imagem de si para a posteridade, percebendo, por exemplo, de que forma e por que motivos a atriz gostaria, ou não, de ser lembrada, haja vista que essa foi sua única biografia histórica, e pelo fato de que, muito provavelmente, ainda em vida, sua trajetória não seria abordada como objeto de estudo em outro trabalho dessa natureza. O que quero dizer é que, quando os historiadores se debruçam sobre trajetórias de pessoas já bastante idosas, as quais vivenciam as últimas décadas/anos de suas vidas, a velhice e a proximidade da finitude deveriam ser colocadas como elementos centrais da abordagem biográfica.

Entretanto, como se sabe, é necessário fazer escolhas, e não ter abordado esse aspecto não tira o mérito da obra, que constitui um excelente exemplo de biografia como escrita da História, ao eleger a trajetória de uma atriz negra como gancho para problematizar questões maiores, dando ênfase à singularidade de seu trajeto no campo artístico brasileiro. Trata-se de uma biografia que pode ser utilizada para o ensino da História do Brasil, seja na formação básica, seja como referência no ensino superior. Por fim, diria que, de modo geral, o livro tem a capacidade de demonstrar qual é a função e a utilidade da História, e no que reside o ofício do historiador. Seu autor merece elogio por saber falar “aos doutos e aos escolares”, simplicidade que, como bem salientou Marc Bloch (2001, p. 41), “é privilégio de raros eleitos”.

REFERÊNCIAS

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  • ARAÚJO, Paulo César de. O réu e o rei: Minha história com Roberto Carlos, em detalhes. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • ARAÚJO, Paulo Cesar de. Roberto Carlos em Detalhes. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2006.
  • ARAÚJO, Paulo Cesar de. Roberto Carlos outra vez: 1941-1970. Rio de Janeiro: Editora Record, 2021.
  • BORGES, Viviane. Entre redescobertas e emergências: história pública e escritas biográficas no tempo presente. In: RODRIGUES, Rogério Rosa et al. (Orgs.). Fio que se faz trama: a história do tempo presente e a responsabilidade na pesquisa histórica. Vitória: Editora Milfontes, 2022. pp. 83-112.
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  • DELACROIX, Christian. A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras? Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, pp. 39‐79, jan./mar. 2018.
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  • JORNAL DO BRASIL. Atriz Ruth de Souza se emociona durante lançamento de sua biografia. 26 set. 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.geledes.org.br/atriz-ruth-de-souza-se-emociona-durante-lancamento-de-sua-biografia/ Acesso em: 27 nov. 2023.
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  • RODRIGUES, Roberto. Aos 90 anos, atriz Léa Garcia é homenageada em livro. 24 jun. 2023. Disponível em: <Disponível em: https://observatoriodosfamosos.uol.com.br/colunas/roberto-rodrigues/aos-90-anos-atriz-lea-garcia-e-homenageada-em-livro >. Acesso em: 27 nov. 2023.
    » https://observatoriodosfamosos.uol.com.br/colunas/roberto-rodrigues/aos-90-anos-atriz-lea-garcia-e-homenageada-em-livro
  • SCHMIDT, Benito Bisso. Flavio Koutzii: biografia de um militante revolucionário. De 1943 a 1984. Porto Alegre: Libretos, 2017.
  • SILVA, Julio Claudio da. Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita: a trajetória e o protagonismo de Léa Garcia. Manaus: Editora UEA, 2023.
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  • SILVA, Julio Claudio da. Uma estrela negra no teatro brasileiro: relações raciais e de gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: Editora UEA , 2017.
  • WERLE, Bibiana. Acessibilidade documental e autoridade compartilhada: pela construção de uma história pública. RevistaTempo e Argumento , v. 9, n. 21, pp. 429-449, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2023
  • Aceito
    30 Abr 2024
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