Resumos
Descrevem-se os aspectos clínicos da dilatação cística do úraco e uroperitônio em cinco touros. Os animais apresentaram, em datas distintas, distensão abdominal e diminuição da ingestão de alimentos e água, até culminar com inapetência, cerca de duas semanas após o aparecimento dos primeiros sintomas. Ocorreu distensão abdominal bilateral progressiva, que, no início do processo, era discreta e restrita ao quadrante inferior do abdômen; com cerca de duas semanas de evolução, o abdômen assumiu forma arredondada semelhante à pera. Observou-se bruxismo, atonia ruminal e desidratação. A abdominocentese revelou a presença de líquido amarelado com concentração de ureia superior a 200mg/dL. A concentração de ureia no soro sanguíneo variou de 220 a 280mg/dL e a creatinina de 65 a 82mg/dL. A ligadura do divertículo do úraco próximo ao vértex da bexiga foi eficaz nos quatro touros operados
bovino; úraco; dilatação cística; uroperitônio
The clinical findings and outcomes in five bulls with a perforation or rupture of the urachal diverticulum are described. All the bulls had a dilated round or pear-shaped abdomen, bruxism, ruminal atony, and dehidration. In all the bulls, abdominocentesis yielded a stream fluid and the serum concentrations of urea and creatinine were 220 to 280mg/dL and 65 to 82mg/dL, respectively. Peritoneal fluid concentration of urea was higher than 200mg/dL. In fours bulls, urachal diverticulums were closed next to the cranial pole of the bladders. After the surgery, the recovery was effective
cattle; urachus; cystic dilatation; uroperitoneum
MEDICINA VETERINÁRIA
Dilatação cística do úraco e uroperitônio em touros: relato de cinco casos
Cystic dilatation of the urachus and uroperitoneum in bulls: report of five cases
L.C. MarquesI; J.A. MarquesI; I.C.S. MarquesII; M.C.A. TeixeiraII
IFaculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias - UNESP. Via de Acesso Prof. Paulo Donato Castellane, s/n, 14870-000 - Jaboticabal, SP
IIAluna de pós-graduação - FCAV-UNESP - Jaboticabal, SP
RESUMO
Descrevem-se os aspectos clínicos da dilatação cística do úraco e uroperitônio em cinco touros. Os animais apresentaram, em datas distintas, distensão abdominal e diminuição da ingestão de alimentos e água, até culminar com inapetência, cerca de duas semanas após o aparecimento dos primeiros sintomas. Ocorreu distensão abdominal bilateral progressiva, que, no início do processo, era discreta e restrita ao quadrante inferior do abdômen; com cerca de duas semanas de evolução, o abdômen assumiu forma arredondada semelhante à pera. Observou-se bruxismo, atonia ruminal e desidratação. A abdominocentese revelou a presença de líquido amarelado com concentração de ureia superior a 200mg/dL. A concentração de ureia no soro sanguíneo variou de 220 a 280mg/dL e a creatinina de 65 a 82mg/dL. A ligadura do divertículo do úraco próximo ao vértex da bexiga foi eficaz nos quatro touros operados.
Palavras-chave: bovino, úraco, dilatação cística, uroperitônio
ABSTRACT
The clinical findings and outcomes in five bulls with a perforation or rupture of the urachal diverticulum are described. All the bulls had a dilated round or pear-shaped abdomen, bruxism, ruminal atony, and dehidration. In all the bulls, abdominocentesis yielded a stream fluid and the serum concentrations of urea and creatinine were 220 to 280mg/dL and 65 to 82mg/dL, respectively. Peritoneal fluid concentration of urea was higher than 200mg/dL. In fours bulls, urachal diverticulums were closed next to the cranial pole of the bladders. After the surgery, the recovery was effective.
Keywords: cattle, urachus, cystic dilatation, uroperitoneum
INTRODUÇÃO
No feto as estruturas umbilicais intra-abdominais consistem de uma veia, duas artérias e o úraco. Essas estruturas atravessam a cavidade abdominal para o exterior, através de um anel epitelial localizado na musculatura. Na porção extra-abdominal, existem duas veias, que, ao penetrarem na cavidade abdominal, se unem, dirigindo-se cranialmente ao fígado. Em sentido caudal, as artérias dirigem-se à artéria hipogástrica, e o úraco à bexiga. O úraco é uma estrutura tubular que liga a bexiga ao alantoide durante o desenvolvimento fetal.
Em partos normais, o cordão umbilical exterioriza-se aproximadamente 10cm fora da parede abdominal, e não existe, nos bovinos, um ponto extra-abdominal de ruptura do cordão, o que faz variar o tamanho do umbigo que fica exposto. Dentre as transformações anatomorfisiológicas que ocorrem a partir da ruptura do cordão umbilical, destaca-se a excreção urinária que era feita pelo úraco e passa a ser realizada pela uretra. Assim, o úraco, após o nascimento, se fecha e se transforma no ligamento médio da bexiga (Noden e De Lahunta, 1985).
Quando o úraco não se fecha após o nascimento, o lúmen permanece aberto, deixando uma abertura anormal entre a bexiga e o umbigo, levando ao gotejamento de urina, com riscos de infecções. As causas não estão bem definidas, mas parece não ter correlação com anomalias congênitas ou hereditárias. Desempenha papel importante no processo o desprendimento prematuro do cordão umbilical, agravado pelas lambidas e puxadas realizadas pela vaca. É um achado frequente e tem importância clínica na presença de infecções, neoplasias ou dilatação cística.
Assim, a única malformação da bexiga com importância em animais é a falha no fechamento do úraco. Ocasionalmente, a obliteração é parcial, o endotélio do úraco permanece intacto e desenvolve cisto em algum ponto entre a bexiga e o umbigo. Os divertículos da bexiga podem ser secundários à obstrução parcial do fluxo urinário ou da pressão normal de contrações em área anatomicamente fraca. Esta anomalia usualmente ocorre no vértex da bexiga onde há descontinuidade da musculatura, quando o fechamento do úraco é incompleto. Estase urinária, desenvolvendo persistente inflamação e formação de cálculos, pode ocorrer no divertículo (Jubb e Kennedy, 1970). A ruptura do úraco ocorre frequentemente em animais jovens e raramente em adultos (Baxter et al., 1992; Braun et al., 2006). O objetivo deste trabalho foi descrever divertículos do úraco perfurados em cinco touros.
CASUÍSTICA
Cinco touros, com idades entre cinco e sete anos, dois da raça Nelore, dois da Gir e um da Red Angus, apresentaram, em datas distintas, distensão abdominal e progressiva diminuição da ingestão de alimentos e água, até culminar com inapetência cerca de duas semanas após o aparecimento dos primeiros sintomas. A distensão abdominal bilateral, que no início do processo era discreta, foi progressiva e restrita ao quadrante inferior do abdômen; com cerca de duas semanas de evolução, o abdômen assumia aspecto pendulado (Fig. 1 e 2). Ainda, observou-se bruxismo, com produção de saliva espessa e espumosa. Desenvolveu-se desidratação progressiva, a despeito da manutenção da ingestão de água. Quando a distensão abdominal era extrema, o fluxo urinário foi preservado, entretanto verificou-se, alternadamente, gotejamento continuo ou em fluxo fraco. À auscultação/sucção dos flancos, notou-se interface líquida e ausência de movimentos ruminais. A punção do abdômen, realizada no flanco direito entre a linha branca e a prega do godinho, deixou fluir abundante quantidade de líquido (Fig. 3) de odor ligeiramente amoniacal e amarelo cítrino. Exames laboratoriais, realizados cerca de duas semanas após o início da evolução, demonstraram, no soro sanguíneo, taxas de ureia e de creatinina entre 220 e 280mg/dL e entre 65 e 82mg/dL, respectivamente. Exames do líquido peritoneal revelaram taxas de ureia superiores a 200mg/dL. Verificaram-se hematócrito e contagens de hemácias elevados, sugestivos de hemoconcentração.
Quatro touros foram submetidos à laparotomia exploratória, e outro foi abatido e necropsiado. Para os procedimentos cirúrgicos, os animais foram contidos em tronco em posição quadrupedal. Realizou-se tricotomia na região do flanco esquerdo, no quadrante compreendido entre as apófises transversas das vértebras lombares, 13a costela, tuberosidade do íleo e região ventral do músculo transverso abdominal. Após assepsia e antissepsia com álcool iodado a 5%, procedeu-se à anestesia local infiltrativa do flanco esquerdo em "L" invertido, com solução de lidocaína 2%, utilizando-se agulha tipo raquidiana 150x10mm. O anestésico foi introduzido no tecido celular subcutâneo, músculo oblíquo abdominal externo, músculo oblíquo abdominal interno, músculo reto abdominal na sua porção dorsal e tecido retroperitonial. Uma incisão magistral foi realizada na pele com auxílio de bisturi número 4, incisão magistral dos músculos oblíquo abdominal externo e interno, músculo reto abdominal na sua porção dorsal e peritônio, sendo que as incisões foram de aproximadamente 20cm, distando 4cm das apófises transversas das vértebras lombares e de 3 a 4cm da 13ª costela. Após drenagem do conteúdo líquido da cavidade abdominal, fez-se identificação dos divertículos da bexiga. Em dois touros, foi possível identificar pequeno orifício distando 4 a 5cm do vértex da bexiga, onde fluía urina. Em quatro touros, procedeu-se à ligadura dos divertículos do úraco, próximos ao vértex da bexiga (Fig. 4), utilizando-se fio de algodão 000. Em seguida, procedeu-se ao fechamento da cavidade abdominal realizando-se sutura com categute cromado 3 em pontos em X do peritônio e dos músculos descritos em um único plano. Fez-se sutura do tecido subcutâneo com pontos tipo Shimiden, com categute cromado nº 2. A pele foi suturada com fio de náilon nº 2 em pontos simples separados. No pós-operatório, empregou-se diariamente a associação de penicilinas G na dose de 30.000UI/kg de peso corporal, além de curativos da ferida cirúrgica com iodopovidona 1%. Os pontos da pele foram retirados no 10º dia do pós-operatório.
DISCUSSÃO
Identificou-se a presença de divertículos do úraco, com extravasamento da urina causando uroperitônio. Não houve uma causa aparente para que ocorresse a ruptura ou perfuração dos divertículos. Sabe-se que, nestes animais, o fechamento do úraco era parcial e ocorreu formação de divertículos. Em função da idade e do grande porte dos animais (pesos entre 600 e 1250kg), os divertículos em forma de funil (Fig. 5), com pelo menos 60cm de comprimento, localizados entre o vértex da bexiga e o umbigo, propiciaram o acúmulo de urina em uma coluna relativamente extensa, em posição quase que vertical. Ainda, há indícios de que o esvaziamento dos divertículos não ocorria totalmente durante a micção, e de que a urina residual exercia pressão contínua no lúmen do úraco patente, particularmente mais acentuada na extremidade distal ao vértex da bexiga, levando à distensão das paredes, tornando-as delgadas e frágeis. Possivelmente, movimentos bruscos, tais como montas, colheitas de sêmen, ou o aumento da prensa abdominal de origem alimentar, seriam os fatores predisponentes para que ocorressem as rupturas, permitindo o extravasamento da urina para o peritônio, embora, em dois touros, durante a laparotomia exploratória, não tenha sido possível identificar os pontos de ruptura e/ou perfuração.
A distensão abdominal lenta e progressiva, em média de duas semanas, permite inferir que os orifícios de extravasamento da urina eram de pequeno calibre. Em dois touros, um Nelore e outro Gir, evidenciou-se, por meio da laparotomia exploratória, que as perfurações estavam localizadas cerca de 5cm no vértex da bexiga. Jubb e Kennedy (1970) afirmaram que as contrações da bexiga tendem a distender o divertículo, porém não ocorrem rupturas.
Relativamente ao volume de urina contido na cavidade peritoneal, foi difícil aquilatar a extensão da retenção. Um touro Nelore, quando admitido, pesava 846kg e, após laparotomina exploratória e drenagem da urina através da ferida cirúrgica (Fig. 6) e também com auxílio de sifão (Fig. 7) e após o procedimento cirúrgico, pesava 605kg. Assim, pode-se estimar que, nos touros estudados, o volume de urina acumulada na cavidade peritonial, em um período de aproximadamente duas semanas de evolução, foi superior a 240kg.
Os quatro touros submetidos à ligadura dos divertículos próxima ao vértex da bexiga apresentaram sintomas de desconforto abdominal (cólica) por pelo menos três dias após o procedimento cirúrgico (Fig. 8), a despeito da cura.
Ruptura de bexiga em touros é um achado relativamente frequente e está correlacionado com obstrução total da uretra por cálculos. Entretanto, pouco se sabe acerca da ruptura do divertículo do úraco causando uroperitônio em touros. Possivelmente, este é um relato pioneiro, não se encontrando na literatura consultada dados semelhantes, o que dificulta uma discussão mais acurada. Aparentemente, a dilatação cística do úraco é assintomática até que ocorra uroperitônio, que causa distensão sequencial nas porções ventral, média e alta do abdômen, em função do acúmulo de urina, e, ainda, devido à uremia que se estabelece gradativamente pelo menos em duas semanas de evolução.
Conclui-se que o diagnóstico de divertículo do úraco em touros requer laparotomia exploratória, e que nem sempre é possível identificar o ponto de perfuração ou ruptura durante o procedimento. O tratamento cirúrgico preconizado mostrou-se eficaz.
Recebido em 8 de março de 2010
Aceito em 20 de dezembro de 2010
E-mail: lmarques@fcav.unesp.br
- BAXTER, G.M.; ZAMOS, D.T.; MUELLER, P.O. Uroperitoneum attributable to ruptured urachus in a yearling bull. J. Am. Vet. Med. Assoc., v.200, p.517-520, 1992.
- BRAUN, U.; NUSS, K.; WAPF, P. et al. Clinical and ultrasonographic findings in five cows with a ruptured urachal remnant. Vet. Rec., v.159, p.780-782, 2006.
- JUBB, K.V.F.; KENNEDY, P.C. (Eds). Pathology of domestic animals 2.ed. New York: Academic, 1970.
- NODEN, P.N.; De LAHUNTA, A. Derivatives of the intermediate mesoderm: urinary system, adrenal gland. In: NODEN, P.N.; De LAHUNTA, A. (Eds). Embryiology of domestic animals: developmental mechanisms and malformations. Baltimore:Williams and Wilkins, 1985. p.312-321.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2010
Histórico
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Aceito
20 Dez 2010 -
Recebido
08 Mar 2010