Open-access Avaliação da confiabilidade entre dois observadores em exames citopatológico e imunocitoquímico de aspirado de medula óssea no diagnóstico da leishmaniose visceral canina

Reliability evaluation between two evaluators in the cytopathologic and immunocytochemical exams from bone marrow aspirate in the canine visceral leishmaniasis diagnosis

ABSTRACT

Visceral leishmaniasis is a zoonosis in which the dog appears as the main source of infection in urban areas. Its diagnosis is complex and the cytopathological exam is a fast and cheap alternative to parasite direct visualization and its sensitivity can be increased by immunocytochemistry, though with a higher cost. The accuracy of such methods is dependent on the microscopist's experience and therefore, this study evaluated the reliability of such techniques between two observers, from bone marrow aspirates of 50 dogs from an endemic area for the disease. The parasitological culture in Novy-MacNeal-Nicolle medium was used as the reference standard. Among the main findings, the sensitivities obtained by observers I and II were respectively 62.5% and 37.5%, while specificities were 81.1% and 100%. On immunocytochemistry evaluation, the sensitivity was 0% for both evaluators and the specificity 97.3% and 100%. The agreement between evaluators was weak (κ = 0.167) for the cytopathological test and it could not be evaluated for immunocytochemistry, for which there was no detection by the evaluator II. The agreements among the diagnostic methods and the standard reference for the observer I were reasonable (κ = 0.364) for cytopathological examination and bad (κ = -0.041) for immunocytochemistry. For observer II, such agreement could be assessed only for the cytopathological test, being moderate (κ = 0.497). The results point to the possible expertise difference between evaluators, with the evaluator II demonstrating greater experience when interpreting the citopathological test. Although there was the expected sensitivity increase with immunocytochemistry, the technique used in this study was not effective for the diagnosis of infection, regardless of the evaluator.

Keywords: dog; Leishmania infantum; diagnostic; reliability

Keywords: dog; Leishmania infantum; diagnostic; reliability

Palavra-chave: cão; Leishmania infantum; diagnóstico; confiabilidade

A leishmaniose visceral é considerada, em níveis mundiais, um grave problema de saúde pública (Werneck, 2014). Possui características clínicas de evolução grave no ser humano (Brasil, 2009) e, na América do Sul, vem se expandindo para áreas urbanas de médio e grande portes, onde ocorre o ciclo zoonótico da doença (Brasil, 2009; Werneck, 2014).

Nessa região, Leishmania infantum (syn = Leishmania chagasi) é o agente etiológico envolvido, e o cão (Canis familiaris) apresenta-se como o principal reservatório (Werneck, 2014). A enzootia canina tem precedido a ocorrência de casos humanos (Brasil, 2009) e a eliminação do reservatório canino é uma das principais medidas de controle dessa zoonose (Brasil, 2009).

A disponibilidade de testes simples e rápidos de diagnóstico com alta acurácia e baixo custo é essencial para o manejo de casos de leishmaniose visceral (Boelaert et al., 2007). Nesse contexto, o exame citopatológico é uma alternativa rápida e barata de visualização direta do parasita (dos Santos, 2011; Solano-Gallego et al., 2011), podendo sua sensibilidade ser aumentada pela imunocitoquímica, porém com um maior custo (dos Santos, 2011).

A identificação de amastigotas requer a atuação de um patologista experiente, sendo a acurácia do método dependente do microscopista (Boelaert et al., 2007; dos Santos, 2011). Dessa forma, o presente trabalho objetivou avaliar a confiabilidade entre dois observadores na leitura dos exames citopatológico e imunocitoquímico de aspirado de medula óssea, apresentando ainda suas acurácias no diagnóstico da leishmaniose visceral canina.

Foi realizado um estudo seccional, utilizando-se uma amostra de conveniência de 50 animais oriundos de região endêmica para leishmaniose visceral do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Os cães foram selecionados por busca ativa, que realizou visitas de casa em casa, sem avaliação prévia do status clínico ou parasitológico do animal.

Após sedação do animal com cloridrato de quetamina (10mg/kg) associado a acepromazina (0,2mg/kg) por via intramuscular e anestesia local com lidocaína 2%, realizou-se aspirado de medula óssea, obtido do manúbrio do esterno, utilizando-se seringa de 20mL com agulha 40x12mm. Do material obtido, cerca de 0,2mL foi semeado em tubo contendo meio de cultura Novy-MacNeal-Nicolle (NNN) e Schneider acrescido de 10% de soro fetal bovino, na tentativa de isolamento parasitário e caracterização isoenzimática segundo Cuppolio et al. (1994). Com o restante do material, foram confeccionadas lâminas para a leitura dos exames citopatológico e imunocitoquímico por dois diferentes avaliadores.

Para a avaliação citopatológica, as lâminas de vidro foram submetidas à fixação e à coloração do tipo Romanowsky (Panótico/Giemsa) e foram examinadas em microscópio óptico para pesquisa de formas amastigotas.

Para o exame imunocitoquímico, lâminas silanizadas foram fixadas em metanol e posteriormente lavadas em água corrente filtrada por 10 minutos. Em seguida, foi realizado o bloqueio da peroxidase endógena, com solução de peróxido de hidrogênio 30%, na concentração v/v de 0,45mL/100mL em metanol por 40 minutos. Para finalizar a reação, as lâminas foram novamente lavadas com água corrente durante 10 minutos e, em seguida, com água destilada. Para a recuperação antigênica, foi preparada uma solução contendo tampão citrato com pH 6, em uma proporção 1:10 com água destilada.

Após a solução atingir 65ºC em banho-maria, as lâminas foram adicionadas e mantidas nessa temperatura por 30 minutos. Depois de resfriamento em temperatura ambiente, foi realizada nova lavagem em água corrente por cinco a 10 minutos, e, em seguida, o bloqueio inespecífico, utilizando-se solução contendo albumina sérica bovina (BSA), leite em pó e soro fetal bovino por 40 minutos. Posteriormente, foi aplicado o anticorpo primário na diluição de 1:500, e as lâminas foram incubadas em câmara úmida na geladeira, overnight. Após a incubação, o anticorpo foi desprezado e as lâminas foram lavadas em solução tampão de lavagem contendo Tris EDTA com pH 7,6, em proporção de 1:10 com água destilada, e mantidas por 10 minutos. O anticorpo secundário (biotinilado) foi aplicado sobre as lâminas, mantido por 30 minutos em temperatura ambiente, e, a seguir, foi realizada nova lavagem em solução tampão Tris EDTA por cinco a 10 minutos. Em seguida, as lâminas foram incubadas por 30 minutos em solução do complexo estreptavidina-biotina-peroxidase e, então, foram novamente lavadas com tampão, conforme foi feito na etapa anterior. Para a revelação, foi utilizado o cromógeno diaminobenzidina (DAB), com interrupção da reação no momento em que as formas amastigotas se destacassem acastanhadas no tecido. Para interromper a revelação, as lâminas foram colocadas em água destilada e, em seguida, contracoradas com hematoxilina por 15 segundos e lavadas em água corrente por cinco minutos. Por fim, as lâminas foram submetidas a banhos sequenciais em álcool e em xilol, para posterior montagem com lamínula e bálsamo.

As concordâncias entre observadores e metodologias diagnósticas foram calculadas com o auxílio do programa Statistical Package for the Social Science (SPSS), versão 19.0 (Reinato et al., 2015). Como padrão de referência, foi utilizado o resultado da cultura parasitológica mediante punção aspirativa de medula óssea. Foi empregado o índice Kappa (κ), conforme a classificação de Landis e Koch (1977): ruim (κ<0,00); fraca (0,00 a 0,20); razoável (0,21 a 0,40); moderada (0,41 a 0,60); substancial (0,61 a 0,80); quase perfeita (0,81 a 1,00). Os cálculos de sensibilidade e especificidade foram realizados no Microsoft Excel 2010.

O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética no Uso de Animais (Ceua- Fiocruz), sob o protocolo LW-47/12.

A cultura parasitológica permitiu a detecção e caracterização de L. infantum em oito indivíduos. Com base nessa referência, ao exame citopatológico, as sensibilidades obtidas pelos observadores I e II foram, respectivamente, de 62,5% e 37,5%, enquanto as especificidades foram de 81,1% e 100%. Já à avaliação imunocitoquímica, a sensibilidade de ambos os avaliadores foi de 0%, enquanto as especificidades foram de 97,3% e 100%, respectivamente.

A concordância entre os avaliadores foi fraca (κ= 0,167) para o exame citopatológico, não podendo ser avaliada para a avaliação imunocitoquímica, para qual não houve detecção de positividade pelo avaliador II.

Entre os métodos diagnósticos e o padrão referência, para o observador I, as concordâncias foram: razoável (κ= 0,364) para o exame citopatológico e ruim (κ= -0,041) para o imunocitoquímico. Para o observador II, tal concordância pode ser avaliada apenas para o exame citopatológico, tendo sido considerada moderada (κ= 0,497).

A concordância entre ambas as técnicas sob avaliação foi ruim (κ= -0,039).

A detecção de L. infantum em oito indivíduos pelo método referência e a cultura parasitológica, juntamente às especificidades reveladas pelos exames citopatológico e imunocitoquímico, refletem a esperada alta especificidade dos diagnósticos parasitológicos (de Vries et al., 2015). De fato, a associação de métodos parasitológicos distintos é sugerida por alguns autores em prol do aumento da sensibilidade diagnóstica (Boelaert et al., 2007).

Ao exame citopatológico, as diferentes sensibilidades e especificidades encontradas e a fraca concordância entre os avaliadores apontam para as diferenças de expertise entre eles, demonstrando diferenças individuais entre microscopistas (Boelaert et al., 2007; dos Santos, 2011).Vale salientar que a detecção direta do parasita em métodos como o citopatológico pode ser influenciada pela capacidade de a resposta imune do hospedeiro vertebrado controlar ou não a infecção parasitária. Uma resposta imune insuficiente poderia permitir a manutenção da carga parasitária e facilitar o encontro de formas amastigotas, enquanto o contrário permitiria maior destruição delas, dificultando sua detecção e diminuindo a sensibilidade do método (Moreira et al., 2007). Tal diferença exige maior expertise do avaliador quando os parasitas estão em menor número e livres de sua habitual célula-hospedeira (Solano-Gallego et al., 2011).

Entretanto, apesar de o resultado do exame citopatológico do observador I apresentar maior sensibilidade, sua menor especificidade e concordância razoável com a cultura parasitológica apontam para a menor experiência desse avaliador, o que também é observado no exame imunocitoquímico devido à ausência de concordância com o método referência (κ=-0,041). De fato, a presença de artefatos na amostra biológica também dificulta a interpretação do método imunocitoquímico, exigindo experiência por parte do microscopista (dos Santos, 2011).

O avaliador II demonstrou maior expertise quando da interpretação do exame citopatológico, pela obtenção de melhor índice de concordância (κ= 0,497) e 100% de especificidade, o que salienta a diferença entre microscopistas (Boelaert et al., 2007; dos Santos, 2011). A menor sensibilidade demonstrada por esse observador vai ao encontro ainda de relatos na literatura científica (Moreira et al., 2007; Solano-Gallego et al., 2011), sendo, portanto, esperada para o método. No entanto, cabe salientar que o exame citopatológico é utilizado de forma eficiente junto à pesquisa de diferentes agentes etiológicos, podendo alcançar também altas sensibilidades, como evidenciado por Pereira et al. (2011) e Silva et al. (2015), que obtiveram para tal medida de acurácia, respectivamente, 78.9% e 84.9% no diagnóstico de esporotricose felina.

Apesar de técnicas como a imunocitoquímica e a imuno-histoquímcia elevarem a sensibilidade de achados citopatológicos em trabalhos anteriores (Moreira et al., 2007; dos Santos et al., 2015), a técnica utilizada neste trabalho não se mostrou efetiva para o diagnóstico da infecção, independentemente de avaliador.

Portanto, o exame citopatológico foi eficaz na detecção do agente pesquisado, demonstrando alta especificidade. No entanto, evidencia-se diferença de expertise entre os observadores, o que salienta a necessidade de realização do exame por microscopista experiente. Já a técnica imunocitoquímica não foi eficaz para o diagnóstico parasitológico de L. infantum junto às amostras avaliadas.

AGRADECIMENTOS

Este estudo foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) - Jovem Cientista do Nosso Estado e o Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) chamada Universal. Figueiredo, FB detém uma concessão do CNPq para a produtividade em pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2015
  • Aceito
    08 Jan 2016
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