Open-access "PRESSÃO ALTA" NO COTIDIANO: REPRESENTAÇÕES E EXPERIÊNCIAS

"PRESSÃO ALTA" NO COTIDIANO: REPRESENTAÇÕES E EXPERIÊNCIAS.Canesqui, AM. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. 306 p. ISBN 9788575414699.

As doenças crônicas são atualmente um grande desafio para a saúde pública. A recorrência dessas enfermidades em grande número de pessoas, sua associação com o aumento da expectativa de vida e com transformações nos hábitos de consumo, exige reflexões mais densas sobre os processos macroestruturais (acesso a bens de saúde, segurança alimentar, distribuição de renda) e microssociais (emoções, moralidades), que se conectam à experiência das pessoas acometidas pelas também chamadas doenças de longa duração.

Nesse sentido, o livro de Ana Maria Canesqui é uma contribuição importante para estimular, no cenário brasileiro, maior reflexão socioantropológica sobre uma das doenças crônicas mais comuns em nossa população e, ao mesmo tempo, uma das menos investigadas desde as ciências humanas e sociais: a hipertensão.

Com nove capítulos, o livro é resultado de pesquisa realizada em um município do interior do Estado de São Paulo, em uma unidade básica de saúde. Foram entrevistadas vinte mulheres e 17 homens com idades entre 50 e 65 anos, diagnosticados como hipertensos, usuários exclusivos do Sistema Único de Saúde. Onze agentes comunitárias de saúde (ACS) também foram entrevistadas, no entanto esse material foi pouco explorado no livro, mantendo-se o foco nos pacientes. Todos os interlocutores da pesquisa são classificados como pertencentes aos segmentos populares.

Com a proposta de articular as representações sociais sobre a hipertensão com as experiências concretas dos sujeitos com a enfermidade, a autora se debruça durante boa parte do livro sobre uma vasta literatura socioantropológica para situar o escopo teórico e metodológico que orientou sua pesquisa. O primeiro capítulo traz uma revisão de autores da sociologia e antropologia médica norte-americana e inglesa, que realizaram análises sobre doenças crônicas. A autora percorre uma série de conceitos e problematiza suas possibilidades e limites para articulação entre representação e experiência, par analítico norteador de sua obra. A revisão, que não se pretende exaustiva, é, contudo, bastante ampla, indo dos modelos explanatórios leigos para as doenças até a análise de narrativas e o conceito de experiência.

No segundo capítulo, Canesqui reduz seu foco para parte dessa literatura que trata especificamente da hipertensão, acrescentando algumas poucas pesquisas nacionais que também se debruçaram sobre o tema. Aqui emergem algumas questões que serão mais bem abordadas em outros capítulos, como a relação estabelecida entre os termos "pressão alta", hipertensão e "nervoso", comuns nas camadas populares e que fazem parte da percepção físico-moral da doença nesses grupos sociais.

No capítulo seguinte, a autora apresenta o desenho metodológico da pesquisa, colocando ênfase na necessidade de se articular micro e macroanálise a fim de superar tanto os investimentos exclusivos na perspectiva subjetiva da experiência (numa crítica à fenomenologia) quanto as abordagens exclusivamente macroestruturais sobre doenças de longa duração. Para alcançar esse propósito, Canesqui elege a análise de narrativas e estudos de caso para orientar a pesquisa. Contudo, antes de chegar ao conteúdo das entrevistas, a autora apresenta nos capítulos 4 e 5, respectivamente, os modelos biomédico e leigo para compreender a hipertensão. Do primeiro, destaca a explicação da enfermidade centrada nas noções de risco e estilo de vida, o foco no tratamento medicamentoso e mudança de condutas, e as políticas públicas desenvolvidas para o controle da hipertensão no Brasil, a exemplo da assistência farmacológica e de ações específicas da Estratégia Saúde da Família.

Já quando remete ao que chama de "representações não eruditas da 'pressão alta'", a autora aborda a compreensão dos modelos físico-morais usados pelas pessoas para significar sua experiência com a doença. Enfoca, nesse sentido, o uso dos termos "pressão alta" ou "pressão" em lugar de hipertensão. Enquanto a categoria biomédica "hipertenso" tornaria fixa a identidade de pessoa doente, o termo "pressão alta" permitiria flexibilizar essa identidade quando a alteração da pressão arterial é relacionada com situações vividas, que são negociadas para se manter o controle da "pressão". Tais cuidados articulam conhecimentos apropriados do saber médico com os valores próprios do segmento investigado.

Nessa abordagem, poderia ter sido mais proveitoso destacar como ambos os conhecimentos, "erudito" e "leigo", se constituem mutuamente, em lugar de separá-los em polos distintos. Embora a intenção da autora seja valorizar os significados atribuídos pelas pessoas à hipertensão, a separação entre "erudito" e "leigo", constante em todo o texto, alça o conhecimento biomédico a um patamar hierárquico superior quando não se observa que os dois saberes se constituem reciprocamente. É preciso lembrar que a medicina, como todo sistema de saúde, é também um sistema moral, sendo assim, reflete em suas premissas valores que estão presentes no senso comum.

Os quatro capítulos seguintes terão como foco os depoimentos dos entrevistados. O capítulo 6 apresenta o momento de descoberta da doença, geralmente realizada por meio de um evento dramático, como um derrame, um sangramento ou mal-estar súbito. No capítulo seguinte, Canesqui explora as explicações dos pacientes sobre a gênese da "pressão alta". É aqui que emerge com força a categoria do "nervoso", bastante analisada nas ciências sociais para tratar das perturbações físico-morais nas camadas populares 1. O "ser nervoso" ou "passar nervoso" torna-se uma das principais explicações para o surgimento da doença, mostrando as complexas articulações feitas pelas pessoas entre as explicações biomédicas para a hipertensão (hereditariedade, alimentação, estilo de vida, uso de álcool e tabaco) com as experiências relacionais cotidianas.

No capítulo 8, Canesqui analisa como as pessoas hipertensas negociam a adesão aos tratamentos e condutas prescritas pelos médicos. Embora reconheçam que a medicina é detentora de um conhecimento especializado sobre o corpo e as doenças, os entrevistados revelam como é complexo seguir orientações que interferem diretamente nas relações do sujeito consigo mesmo, a família e a comunidade. As restrições alimentares, a recomendação para não beber e não fumar, o apelo para a realização de atividades físicas regulares, os afastamentos do trabalho são analisados à luz do cotidiano das pessoas e suas relações.

Fica evidente pela leitura desse capítulo e do seguinte, em que são apresentados quatro estudos de caso (dois homens e duas mulheres), que a dimensão de gênero é crucial para se compreender a adesão ou não ao tratamento médico. Para os homens, as mudanças na conduta são vistas como mais drásticas, pois significam em alguns casos a quebra de padrões de masculinidade valorizados socialmente (atuação no mundo do trabalho e uso de bebida alcóolica, por exemplo). No caso das mulheres, são as restrições alimentares que podem levar a conflitos no espaço doméstico quando a mulher hipertensa implementa as mudanças prescritas pelo médico na alimentação da família.

Ainda sobre o último capítulo, é preciso dizer que surpreende a ausência da pesquisadora no texto ou uma pequena reflexão sobre como se deu a interação entre a equipe coordenada por ela e os/as entrevistados/as. Fica a pergunta sobre que estratégias foram usadas para que a equipe de pesquisa não fosse considerada parte da equipe de saúde, situação comum a pesquisadores/as das ciências sociais que fazem investigação em serviços de saúde.

Apesar dessas observações, o livro certamente preenche uma lacuna nos estudos sociais brasileiros sobre a hipertensão, e esperamos que inspire mais pesquisas de mesmo fôlego sobre essa condição tão comum à modernidade.

Referências bibliográficas

  • 1 Duarte LFD. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores; 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016
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