Open-access Políticas de fronteiras e saúde de populações refugiadas

Políticas de fronteras y salud de poblaciones refugiadas

A atual “crise de refugiados” tem sido considerada a mais grave crise humanitária das últimas décadas, com mais de 22 milhões de refugiados ao redor do mundo, a maioria deles originária da Síria (5,5 milhões), Afeganistão (2,5 milhões) e Sudão (1,4 milhão) 1. Muita atenção midiática foi dedicada, nos últimos anos, à chegada de refugiados às fronteiras europeias - em especial, à Grécia e à Itália. No entanto, as cerca de 2 milhões de pessoas que chegaram à Europa são proporcionalmente poucas se comparadas às que estão no Líbano (1,1 milhão), no Paquistão (1,4 milhão) ou na Turquia (2,9 milhões) 1. Atualmente, a vasta maioria de pessoas em situação de deslocamento forçado (internacional ou nacional) se encontra em países do Sul global, 67% delas na África, Ásia e Oriente Médio 1.

Embora o deslocamento forçado de populações provavelmente seja tão antigo quanto a própria guerra, a maioria de mecanismos legais sobre o tema é recente, originados pouco depois da Segunda Guerra Mundial. A convenção da Organização das Nações Unidas sobre refugiados, do ano 1951, continua a ser a principal referência, e define um refugiado como alguém que precisa cruzar fronteiras internacionais por um medo fundamentado de sofrer perseguição com base na sua raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em determinado grupo social 2. A convenção foi criada em um contexto histórico em que milhões de europeus haviam buscado asilo ao redor do mundo; porém, nos anos 1980, a direção inverteu, com um aumento acentuado dos fluxos originados de países do Sul para o Norte do mundo 3,4,5.

Consolidou-se, a partir dali, o chamado regime de “não-entrada”. Uma vez que muitas das práticas iniciais desse regime foram contestadas legalmente - e condenadas - ao longo das últimas décadas, vários dos países ditos desenvolvidos passaram a esquivar-se destas derrotas ‘terceirizando’ as suas políticas de controle fronteiriço. A última geração de políticas está ancorada nos territórios ao redor da Europa e se foca na contenção de refugiados - e migrantes - nas suas regiões de origem ou em países de trânsito, por intermédio da colaboração cada vez mais intensa com países como a Turquia ou a Líbia 6. Para isso, mobilizam-se diversas estratégias: construção de prisões, assistência técnica, transferência de tecnologia, entre outras. Tais políticas dão forma ao trajeto que é preciso percorrer para a obtenção de asilo. Ter em mente esses trajetos quando falamos de saúde da população refugiada é essencial, pois muitos dos riscos e desfechos de saúde estão relacionados aos espaços, tempos e instituições que compõem o regime de “não-entrada”: países de origem e de trânsito, a fronteira, o campo, o “asylum office”, por vezes o centro de detenção ou a deportação.

Contextos que levam a migrações forçadas - tanto internas como internacionais - estão associados a violências que resultam em problemas de saúde específicos; em meio a uma guerra, como é o caso da Síria, o aumento de casos de feridos ocorre em paralelo com a rápida degradação ou mesmo destruição do sistema de saúde, na medida em que hospitais e outras infraestruturas são atingidos pelas hostilidades, de forma que por vezes o equipamento de saúde mais próximo passa a estar no país vizinho. Entre 2011 e 2015, o sistema de saúde turco prestou atendimento a mais de 7,5 milhões de sírios; estima-se que o custo total dos cuidados de saúde prestados a refugiados durante estes quatro anos ascenda a mais de 880 milhões de dólares 7. Não é surpreendente que problemas de saúde mental tais como depressão, ansiedade e estresse pós-traumático sejam comuns entre refugiados ao redor do mundo 8.

Sob uma política de “não-entrada” cada vez mais restritiva, cruzar fronteiras implica, além do agravamento das condições de saúde e dos obstáculos ao acesso aos serviços, uma série de riscos. Refugiados e migrantes que tentam chegar à Europa normalmente fazem uma travessia extremamente perigosa do Mar Mediterrâneo, situação que culminou em 2015, com mais de um milhão de chegadas e 3.771 pessoas (0,3%) desaparecidas ou mortas no mar 9. Nos anos seguintes, as chegadas decresceram abruptamente (cerca de 360 mil em 2016 e 170 mil em 2017), como consequência dos acordos assinados entre a União Europeia e a Turquia, a Itália e a Líbia, que endureceram a patrulha marítima e colocaram obstáculos substanciais às ONGs dedicadas ao resgate. A mortalidade no mar, então, disparou: pelo menos 5.096 pessoas em 2016 (1,4% das chegadas) e 3.081 em 2017 (1,8%) 9.

A estadia em um campo de refugiados pode ocorrer enquanto o pedido de asilo é tramitado e/ou converter-se em uma situação quase permanente. Em casos como o grego, as más condições de salubridade e de segurança das instalações provocam situações de risco 10,11. No verão de 2016, vários agentes de ONGs no norte da Grécia denunciaram, em uma reunião de coordenação regional, que a prevalência de estupros dentro dos campos estava de tal maneira alastrada que os kits de profilaxia tinham esgotado em todos os hospitais da região - afetando as vítimas no geral, migrantes, refugiadas e locais. Durante o inverno, as temperaturas baixaram a -17ºC, e várias mortes foram registradas como consequência do frio: suicídios e envenenamentos por monóxido de carbono de sistemas de aquecimento improvisados. Só então, em alguns campos, as tendas de lona foram substituídas por containers com chave, uma intervenção relativamente simples e de baixo custo, mas eficiente para a melhoria das condições de vida e que poderia ter sido realizada muito antes.

Em alguns campos, a situação favoreceu a instalação de máfias de tráfico de drogas, que revendem medicação psiquiátrica no mercado clandestino, junto com outras substâncias ilegalizadas. A incapacidade tanto do exército como das ONGs de lidar com a situação levou a que mais de uma vez o fornecimento da medicação fosse interrompido, e mesmo a que alguns pacientes fossem presos por não disporem da receita médica durante controles policiais, questões que vão mais além das fronteiras do campo. Apesar do isolamento que o campo militarizado simboliza, as conexões entre saúde dos refugiados e da população local são complexas: por exemplo, internações hospitalares prolongadas devido a ferimentos de guerra, com uso intensivo de antimicrobianos, podem promover o desenvolvimento de bactérias multirresistentes, afetando as regiões de fronteira de forma ampla 7.

Na Turquia, a reaparição de infeções como sarampo, tuberculose e poliomielite foi associada à Guerra Civil Síria, em parte porque uma vez iniciado o conflito, o serviço de saúde sírio perdeu a capacidade de prosseguir com os seus programas de vacinação 7. Crianças refugiadas que entraram na Europa através da Grécia passaram quase que invariavelmente pela Turquia; no caso dos sírios, para muitos, isto significa ter recebido as vacinas necessárias em um campo de refugiados turco. Porém, as barreiras linguísticas, a dificuldade de guardar documentos durante a travessia, entre outros obstáculos, fazem com que muitos responsáveis não possam assegurar se as crianças foram vacinadas, que vacinas receberam, e quantas vezes. Já na Grécia, a vacinação de crianças refugiadas foi organizada pela ONG Médicos sem Fronteiras, porém, a eficiência da campanha foi limitada pelas dificuldades de organização e pelo alto preço das vacinas no mercado, já que as companhias farmacêuticas chegaram a cobrar dez vezes o valor do menor preço disponível 12.

Pesquisas existentes sobre a saúde de populações refugiadas tendem a reproduzir o enfoque predominante que prioriza o desenvolvimento e a avaliação de políticas de intervenção humanitária 13, praticamente sem abordar os contextos macropolíticos nos quais os deslocamentos populacionais estão inseridos - dentro dos quais a maquinaria da ajuda humanitária é peça integrante. No entanto, a evolução das políticas relacionadas a refugiados é indissociável do contexto mais amplo das formas de organização políticas 14, e da mesma forma, as questões de saúde de populações refugiadas e migrantes estão relacionadas a este contexto amplo e ao lugar que o corpo ocupa em conflitos, projetos políticos e disputas pelo território. Políticas de contenção têm impactos sobre a saúde, sobre a vida e a morte, de refugiados e migrantes; isto se materializa nas milhares de mortes no Mar Mediterrâneo, na prolongada exposição a fatores de risco em campos de refugiados, nas barreiras ao acesso ao atendimento adequado em saúde, no estresse crônico resultante do processo burocrático para obter a proteção prevista pelo estatuto de refugiado.

Processos de migração forçada, de contenção territorial de populações e o controle - cada vez mais eficiente e burocratizado - dos fluxos migratórios, podem ser analisados como parte da dinâmica espacial do racismo, definido pela geógrafa Ruth W. Gilmore como “produção e exploração extra-legal e/ou sancionada pelo Estado de uma vulnerabilidade diferenciada de grupos à morte prematura” (2007, apud Cheng & Shabazz 15). Nesse sentido, um diálogo é possível entre os processos de saúde e doença de populações refugiadas e migrantes e os processos que afetam populações racializadas em outras escalas: o corpo, a cidade, as regiões de um país ou as migrações internacionais. Em um contexto em que a dimensão das migrações forçadas no mundo faz da saúde de populações refugiadas um tema central, é preciso ir mais além do enfoque limitado a situações pontuais e pensar a própria política de fronteiras como um tema de saúde global.

Agradecimentos

Agradeço aos amigos sírios, curdos, egípcios, iranianos, marroquinos, algerianos, gregos e turcos que compartilharam comigo suas experiências e com os quais, ao longo dos últimos meses, discuti as questões aqui apresentadas.

Referências bibliográficas

  • 1 United Nations High Commissioner for Refugees. Figures at a glance. http://www.unhcr.org/figures-at-a-glance.html (acessado em 10/Jan/2018).
    » http://www.unhcr.org/figures-at-a-glance.html
  • 2 United Nations High Commissioner for Refugees. Convention and protocol relating to the status of refugees. http://www.unhcr.org/3b66c2aa10 (acessado em 10/Jan/2018).
    » http://www.unhcr.org/3b66c2aa10
  • 3 Chimni BS. The birth of a "discipline": from refugee to forced migration studies. J Refug Stud 2008; 22:11-29.
  • 4 Chimni BS. The geopolitics of refugee studies: a view from the south. J Refug Stud 1998; 11:350-74.
  • 5 Orchard P. A right to flee: refugees, states, and the construction of international cooperation. Cambridge: Cambridge University Press; 2014. http://ebooks.cambridge.org/ref/id/CBO9781139923293 (acessado em 07/Ago/2017).
  • 6 Gammeltoft-Hansen T. The law and politics of non-entrée. https://www.rsc.ox.ac.uk/news/the-law-and-politics-of-non-entree-thomas-gammeltoft-hansen (acessado em 10/Jan/2018).
    » https://www.rsc.ox.ac.uk/news/the-law-and-politics-of-non-entree-thomas-gammeltoft-hansen
  • 7 Doganay M, Demiraslan H. Refugees of the Syrian Civil War: impact on reemerging infections, health services, and biosecurity in Turkey. Health Secur 2016; 14:220-5.
  • 8 Kane JC, Ventevogel P, Spiegel P, Bass JK, van Ommeren M, Tol WA. Mental, neurological, and substance use problems among refugees in primary health care: analysis of the Health Information System in 90 refugee camps. BMC Med 2014; 12:228.
  • 9 United Nations High Commissioner for Refugees. Refugees/migrants response - Mediterranean. http://data.unhcr.org/mediterranean/regional.php (acessado em 10/Jan/2018).
    » http://data.unhcr.org/mediterranean/regional.php
  • 10 Human Rights Watch. Greece: refugee "hotspots" unsafe, unsanitary. https://www.hrw.org/news/2016/05/19/greece-refugee-hotspots-unsafe-unsanitary (acessado em 12/Mar/2017).
    » https://www.hrw.org/news/2016/05/19/greece-refugee-hotspots-unsafe-unsanitary
  • 11 Amnesty International. Greece: refugee women coping with fear and violence in the camps. https://www.amnesty.ie/greece-refugee-women-coping-fear-violence-camps/ (acessado em 12/Mar/2017).
    » https://www.amnesty.ie/greece-refugee-women-coping-fear-violence-camps/
  • 12 Médecins Sans Frontières. Greece: MSF denounces high price of vaccines for refugee children. http://www.doctorswithoutborders.org/article/greece-msf-denounces-high-price-vaccines-refugee-children (acessado em 10/Jan/2018).
    » http://www.doctorswithoutborders.org/article/greece-msf-denounces-high-price-vaccines-refugee-children
  • 13 Black R. Fifty years of refugee studies: from theory to policy. Int Migr Rev 2006; 35:57-78.
  • 14 Kleist JO. The history of refugee protection: conceptual and methodological challenges. J Refug Stud 2017; 30:161-9.
  • 15 Cheng W, Shabazz R. Introduction: race, space, and scale in the twenty-first century. In: Cheng W, Shabazz R, editors. Occasion. v. 8 - race, space, scale. Stanford: Stanford University; 2015. https://arcade.stanford.edu/occasion_issue/race-space-scale.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2018
  • Aceito
    23 Jan 2018
location_on
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rua Leopoldo Bulhões, 1480 , 21041-210 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.:+55 21 2598-2511, Fax: +55 21 2598-2737 / +55 21 2598-2514 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro