Open-access Um estudo longitudinal da associação do capital social e mortalidade entre idosos brasileiros residentes em comunidade

Un estudio longitudinal sobre la asociación del capital social y mortalidad entre ancianos brasileños residentes en comunidades

Resumo:

O objetivo do estudo foi verificar se o capital social seria um preditor da mortalidade por todas as causas entre idosos brasileiros residentes em comunidade. Participaram 935 idosos sobreviventes da coorte idosa do Projeto Bambuí em 2004, que foram acompanhados até 2011. O desfecho foi a mortalidade por todas as causas e a exposição de interesse foi o capital social, mensurado em seus dois componentes, o cognitivo (coesão social e o suporte social) e o estrutural (participação social e satisfação com a vizinhança). Variáveis sociodemográficas, de condições de saúde e tabagismo foram incluídas na análise para o propósito de ajuste. A análise dos dados baseou-se no modelo dos riscos proporcionais de Cox, que fornece hazard ratios (HR) e intervalos de 95% de confiança (IC95%). O componente estrutural do capital social, na dimensão da participação social, foi o único independentemente associado à mortalidade: os idosos que não participavam de grupos sociais ou associações apresentaram um risco de morte duas vezes maior (HR = 2,28; IC95%: 1,49-3,49) que suas contrapartes. Os resultados desta investigação evidenciam a necessidade de estender as intervenções direcionadas à promoção da longevidade para além do campo específico de atuação da saúde, voltando-se também para características ambientais e sociais.

Palavras-chave: Capital Social; Mortalidade; Idoso; Participação Social; Estudos de Coorte

Resumen:

El objetivo del estudio fue verificar si el capital social sería un predictor de la mortalidad por todas las causas entre ancianos brasileños residentes en comunidades. Participaron 935 ancianos, supervivientes de la cohorte de ancianos del Proyecto Bambuí en 2004, a quienes se les realizó un seguimiento hasta 2011. El desenlace fue la mortalidad por todas las causas y la exposición de interés fue el capital social, medido en sus dos componentes, el cognitivo (cohesión social y apoyo social) y el estructural (participación social y satisfacción con el vecindario). Las variables sociodemográficas, de condiciones de salud, el tabaquismo, se incluyeron en el análisis para el propósito de ajuste. El análisis de los datos se basó en el modelo de riesgos proporcionales de Cox, que proporciona hazard ratios (HR) e intervalos de 95% de confianza (IC95%). El componente estructural del capital social, en su dimensión de la participación social, fue el único independientemente asociado a la mortalidad: los ancianos que no participaban en grupos sociales o asociaciones presentaron un riesgo de muerte dos veces mayor (HR = 2,28; IC95%: 1,49-3,49) que sus contrapartes. Los resultados de esta investigación evidencian la necesidad de extender las intervenciones dirigidas a la promoción de la longevidad hacia más allá del campo específico de actuación de la salud, dirigiéndose también hacia características ambientales y sociales.

Palabras-clave:  Capital Social; Mortalidad; Anciano; Participación Social; Estudios de Cohortes

Abstract:

The aim of this study was to verify whether social capital is a predictor of all-cause mortality in community-dwelling elderly Brazilians. Participation included 935 surviving elderly from the elderly cohort of the Bambui Project in 2004, who were followed until 2011. The outcome was all-cause mortality and the exposure of interest was social capital, measured in its two components, cognitive (social cohesion and social support) and structural (social participation and neighborhood satisfaction). Sociodemographic variables, health conditions, and smoking were included in the analysis for adjustment purposes. Data analysis was based on the Cox proportional hazards model, providing hazard ratios (HR) and 95% confidence intervals (95%CI). The social participation dimension of social capital’s structural component was the only dimension independently associated with mortality: elderly Brazilians that did not participate in social groups or associations showed a two-fold higher risk of death (HR = 2.28; 95%CI: 1.49-3.49) compared to their peers. The study’s results reveal the need to extend interventions beyond the specific field of health in order to promote longevity, focusing on environmental and social characteristics.

Keywords: Social Capital; Mortality; Aged; Social Participation; Cohort Studies

Introdução

A noção de que as relações sociais e a participação em grupos têm consequências positivas sobre o indivíduo e a comunidade sustenta-se na ideia de que as interações sociais criam redes, estimulam a confiança, influenciam a formação de valores, apoiam as normas e a cultura e geram o sentido de comunidade 1. Nesse contexto, emerge o capital social, entendido como um recurso acessível aos indivíduos com base em suas redes sociais 2. A sociedade organizada tem redes e normas que podem melhorar a sua eficiência ao facilitar ações coordenadas, benéficas aos membros de um grupo social 3.

Na operacionalização do capital social, é frequente considerar dois componentes: o cognitivo e o estrutural. O capital social cognitivo diz da percepção dos indivíduos sobre o nível de confiança interpessoal e satisfação com os relacionamentos, bem como sobre as normas de reciprocidade (solidariedade e controle social) estabelecidas para o convívio no interior do grupo social. Em contraste, o capital social estrutural refere-se aos comportamentos observáveis externamente e às ações participativas dos indivíduos dentro do grupo social, como por exemplo, satisfação com a vizinhança e padrões de envolvimento cívico 4,5.

A existência de uma relação entre capital social e saúde tem aguçado a curiosidade da comunidade científica há algum tempo. Kawachi et al. 6 foram os primeiros a evidenciar, na perspectiva quantitativa, as relações entre o capital social e saúde, em um estudo ecológico junto à população adulta (18+ anos) estadunidense. Eles suspeitavam que o capital social desempenhava um importante papel mediador na relação entre desigualdade econômica e mortalidade (geral e específica por causas). Os autores concluíram que o efeito da desigualdade socioeconômica sobre a mortalidade aconteceu por meio da falta de investimento em capital social 6. Desde então, a produção científica a respeito tem crescido consideravelmente, não se restringindo à mortalidade 2.

No Brasil, a produção científica recente sobre essa relação (capital social e saúde) tem abarcado um espectro temático diversificado, envolvendo comportamentos em saúde 7, incapacidade funcional 8, saúde bucal 9 e mental 10, além de autoavaliação da saúde 11, para mencionar alguns. Apesar disso, estudos brasileiros que investigam o papel do capital social na predição da mortalidade ainda são incipientes. Ao nosso conhecimento, somente um trabalho foi desenvolvido com tal propósito, junto a 846 adultos (≥ 18 anos) residentes em uma cidade de médio porte da Região Sul do Brasil. Nesse estudo, observou-se um efeito contextual (mas não individual) do capital social sobre a mortalidade geral. Os adultos de baixa atividade social (engajamento ativo na busca de melhorias da sua vizinhança) apresentaram maior risco geral de morte 12. Não identificamos nenhum estudo brasileiro que tenha investigado essa associação, especificamente entre idosos.

Neste trabalho, dados longitudinais da coorte idosa do Projeto Bambuí foram utilizados para investigar se o capital social seria um preditor da mortalidade por todas as causas entre idosos brasileiros residentes em comunidade.

Métodos

Área e população de estudo

O Projeto Bambuí (Estudo de Coorte de Idosos de Bambuí) é um estudo longitudinal de base populacional desenvolvido na sede do Município de Bambuí, Sudeste do Brasil. À época do início do projeto, a cidade contava com 15 mil habitantes, com um histórico de estabilidade nas três décadas (anos 1970 a 1990) que precederam o início do estudo. Bambuí apresentava um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) igual a 0,74, com predomínio de baixa escolaridade e baixa renda na população. As principais causas de morte eram acidente vascular encefálico (AVE), doença de Chagas, doença isquêmica do coração e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). A estabilidade populacional (com potencial de minimizar a taxa de atrição do estudo), as características sociodemográficas e o perfil de mortalidade da população, além da familiaridade da população com as investigações sobre a doença de Chagas (um facilitador da cooperação dos residentes) foram os critérios que levaram à escolha da área do estudo 13.

A linha de base da coorte foi constituída em 1997 e os participantes da pesquisa foram identificados por meio de um censo completo realizado no município pela equipe do projeto. Todos os moradores com sessenta anos ou mais de idade em 1º de janeiro de 1997 (n = 1.742) foram convidados a participar do estudo, e 1.606 (92,2%) constituíram a linha de base da coorte. Os participantes foram abordados anualmente, entre 1997 e 2011, para a coleta de dados e verificação do status vital.

Como no Projeto Bambuí uma medida mais abrangente de capital social foi introduzida somente a partir do 7º seguimento (2004), foram considerados elegíveis para o presente trabalho os idosos sobreviventes neste seguimento, para os quais foi possível obter informação completa sobre todos os itens de capital social investigados.

Variáveis de estudo

Em todos os seguimentos (2004-2011), foi verificado o status vital de cada participante e os indivíduos sobreviventes foram entrevistados domiciliarmente, com aplicação de questionário padronizado por entrevistadores e técnicos de saúde treinados pela equipe de pesquisadores do Projeto Bambuí 13.

A mortalidade dos idosos foi determinada pelos óbitos por todas as causas, ocorridos entre 1º de janeiro de 2004 e 31 de dezembro de 2011. As mortes foram relatadas pelo respondente próximo durante o seguimento anual e confirmadas por meio do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. A variável exposição de interesse foi o “capital social”, mensurado na linha-base (em 2004) em seus dois componentes, o cognitivo e o estrutural.

O componente cognitivo incluiu as dimensões coesão social e suporte social. A coesão social foi medida por meio de quatro perguntas: (1) “Seus vizinhos ajudam uns aos outros?”; (2) “O(a) senhor(a) acredita que pode confiar na maioria das pessoas?”; (3) “O(a) senhor(a) acha que as pessoas se aproveitariam do(a) senhor(a), se pudessem?”; e (4) “Considerando tudo, como você se sente em relação aos seus relacionamentos?”. As três primeiras perguntas admitiam respostas sim/não, ao passo que as respostas à quarta pergunta diziam respeito ao grau de satisfação com os relacionamentos (muito insatisfeito; insatisfeito; indiferente; satisfeito; muito satisfeito). Pelo menos uma resposta negativa às três primeiras perguntas ou declarar-se indiferente/insatisfeito/muito insatisfeito com seus relacionamentos indicou baixa coesão social.

A dimensão de suporte social referiu-se à existência de uma ou mais pessoas que o entrevistado considerava próxima, em quem podia confiar e de quem poderia obter apoio, incluindo parentes e amigos. Foram utilizadas quatro perguntas: (1) “Nos últimos 12 meses, essa pessoa lhe ofereceu informações, sugestões e orientações que lhe foram úteis?”; (2) “Nos últimos 12 meses, você pôde contar com essa pessoa (essa pessoa estava presente quando você precisou dela)?”; (3) “Nos últimos 12 meses, você fez confidências a essa pessoa?”; e (4) “Nos últimos 12 meses, essa pessoa falou com você sobre os problemas dela?”. Todas as quatro perguntas tinham respostas dicotomizadas em categorias sim/não e a resposta negativa em ao menos uma das perguntas revelou baixo nível de suporte social.

Já o componente estrutural do capital social foi composto pelas dimensões participação social e satisfação com a vizinhança. A participação social foi verificada com duas perguntas do questionário: (1) “Você tem amigos, conhecidos ou vizinhos que visitam você ou que você visita?”, tendo em vista a frequência (pelo menos uma vez por mês) com que essas visitas ocorriam; e (2) “Você pertence a alguma associação ou grupo social?”, com resposta sim/não. O idoso que relatou uma frequência de visitas inferior a uma vez por mês e/ou que respondeu negativamente à pergunta sobre o pertencimento à associação ou grupo social foi classificado como detentor de baixa participação social.

A outra dimensão do capital social estrutural investigada foi a satisfação com a vizinhança, avaliada por meio de respostas sim/não a quatro perguntas: (1) “O(a) senhor(a) se sente confortável no bairro ou quarteirão onde mora, ou seja, o(a) senhor(a) se sente em casa?”; (2) “O seu bairro ou quarteirão é um bom lugar para viver?”; (3) “O(a) senhor(a) gosta de sua vizinhança e de sua casa?”; e (4) “O(a) senhor(a) gostaria de se mudar de onde mora?”. Uma resposta negativa a pelo menos uma das três primeiras perguntas e/ou a resposta positiva à quarta pergunta indicou baixo capital social nessa dimensão.

Para efeito de ajuste, na avaliação da associação entre capital social e a mortalidade foram utilizadas variáveis sociodemográficas, de condições de saúde e tabagismo. As características sociodemográficas incluíram sexo, idade (contínua), escolaridade (nenhuma; 1-3 anos; 4-7 e 8+ anos) e situação conjugal (casado/mora junto; viúvo; solteiro/divorciado). As variáveis descritoras da condição de saúde foram autoavaliação da saúde (muito boa/boa; razoável; ruim/muito ruim) e incapacidade funcional (para atividades instrumentais da vida diária - AIVD e para atividades básicas da vida diária - ABVD). A incapacidade funcional admitiu três categorias: independente, incapaz para AIVD e incapaz para ABVD, sendo considerado incapaz quando relatou muita dificuldade ou impossibilidade de realizar pelo menos uma AIVD ou ABVD. A variável tabagismo classificou os participantes em “não fumantes” (nunca fumou na vida), “ex-fumantes” (já fumou 100 cigarros ao longo da vida e não fuma atualmente) e “fumantes” (já fumou 100 cigarros ao longo da vida e fuma atualmente).

Análise dos dados

Analisou-se a distribuição do capital social e das covariáveis na população total por meio de frequências relativas. Foram calculadas taxas de mortalidade por 1.000 pessoas/ano. As censuras ocorreram por perdas durante o seguimento e no encerramento do acompanhamento, ao final de 2011. Curvas de Kaplan-Meier foram utilizadas para descrever a sobrevida dos participantes em função de cada uma das dimensões do capital social investigadas. A análise do capital social como preditor da mortalidade baseou-se no modelo dos riscos proporcionais de Cox, que fornece hazard ratios (HR) e intervalos de 95% de confiança (IC95%), com verificação da premissa de proporcionalidade dos riscos (análise de resíduos de Schoenfeld). Foram usadas análises sequenciadas, com as variáveis introduzidas em blocos, na seguinte sequência: (1) modelo múltiplo, com ajuste mútuo das dimensões de capital social; (2) acréscimo das variáveis sociodemográficas; e (3) acréscimo das variáveis descritoras da condição de saúde e do tabagismo. Nenhum critério estatístico foi considerado na inclusão das variáveis nos modelos multivariados. O nível de significância adotado foi de 5% e todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o programa Stata, versão 13 (https://www.stata.com).

Considerações éticas

O estudo original do Projeto Bambuí foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Procedimentos não descritos no Projeto inicial foram revisados e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto René Rachou, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido no início do projeto e em cada visita subsequente, e os familiares autorizaram a verificação dos certificados de óbito e registros médicos.

Resultados

Foram identificados 1.084 sobreviventes da coorte idosa de Bambuí no seguimento de 2004, considerados elegíveis para o estudo. Os idosos incluídos neste trabalho foram aqueles que apresentaram informações completas para todas as variáveis analisadas (n = 935). A proporção de óbitos foi significativamente (p < 0,05) maior entre os excluídos (n = 149) do estudo. Em comparação aos participantes, os excluídos apresentavam uma idade média mais elevada, uma proporção significativamente maior de solteiros/divorciados e de incapacidade para AIVD e ABVD, e o hábito de fumar foi menos frequente entre eles (p < 0,05).

Entre 2004 e 2011 (período de acompanhamento), a taxa de mortalidade foi de 51/1.000 (IC95%: 45,7-57,0) pessoas/ano. Ao longo do estudo, ocorreram 60 (6,4%) censuras por perda, e ao final dele, 619 (66,2%) idosos eram sobreviventes (censura administrativa). A Tabela 1 apresenta as características da população de estudo, bem como suas taxas de mortalidade por 1.000 pessoas/ano. A maior parte da população de estudo era do sexo feminino (64,3%), com idades entre 67-74 anos (58,7%), de baixa escolaridade (51,9% tinham menos de quatro anos) e não era casada (58,8%). No que concerne às variáveis relacionadas à saúde, 13,6% avaliaram negativamente a própria saúde; a maioria dos participantes (64,8%) nunca fumou. As taxas de mortalidade foram mais elevadas entre os homens, aumentaram com a idade, diminuíram com o aumento da escolaridade e foram menores entre os casados. Os participantes em piores condições de saúde apresentaram taxas de mortalidade mais elevadas, assim como os fumantes (em relação aos ex-fumantes e não fumantes) (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição da população de estudo e taxas de mortalidade (por 1.000 pessoas/ano). Projeto Bambuí, Minas Gerais, Brasil, 2004-2011.

A Tabela 2 mostra a distribuição da população de estudo e da taxa de mortalidade de acordo com as dimensões do capital social. Apenas na dimensão de satisfação com a vizinhança a maioria dos participantes (86%) apresentou melhor capital social; nas demais dimensões, aqueles idosos com pior capital social foram maioria. No que se refere à taxa de mortalidade, elas foram mais elevadas entre os idosos de baixa coesão social (55,2/1.000 pessoas/ano) e com baixa participação social (58,3/1.000 pessoas/ano). Por outro lado, os participantes satisfeitos com a vizinhança (51,7/1.000 pessoas/ano) e com suporte social (51,9/1.000 pessoas/ano) apresentaram taxas de mortalidade mais elevadas que suas contrapartes. A Figura 1 descreve os resultados da curva de sobrevida de Kaplan-Meier para cada uma das quatro dimensões do capital social. Ao longo do período de acompanhamento, a sobrevida foi maior entre os idosos com participação social, em comparação às demais dimensões avaliadas (coesão social, suporte social e satisfação com a vizinhança). Entre os idosos com avaliação positiva para as dimensões de suporte social e satisfação, 75% sobreviveram seis anos, entre aqueles com elevada coesão social esta proporção de sobreviventes foi observada aos sete anos, já entre os idosos com participação social, cerca de 85% eram sobreviventes ao final do estudo (8 anos).

Tabela 2
Distribuição da população de estudo segundo as dimensões do capital social e taxas de mortalidade (por 1.000 pessoas/ano). Projeto Bambuí, Minas Gerais, Brasil, 2004-2011.

Figura 1
Curva de sobrevida Kaplan-Meier para as diferentes dimensões do capital social. Projeto Bambuí, Minas Gerais, Brasil, 2004-2011.

Os resultados das análises univariadas e multivariadas da associação entre capital social e mortalidade estão apresentados na Tabela 3. A única dimensão do capital social independentemente associada à mortalidade foi a participação social: os idosos que não participavam de grupos sociais ou associações apresentaram um risco de morte duas vezes maior (HR = 2,28; IC95%: 1,49-3,49) do que o observado entre os idosos com participação social, após o ajustamento pelas outras dimensões de capital social e todas as covariáveis do trabalho.

Tabela 3
Harzard ratios (HR) e intervalos de 95% de confiança (IC95%) da associação entre capital social e mortalidade. Projeto Bambuí, Minas Gerais, Brasil, 2004-2011.

Discussão

Pelo nosso conhecimento, este é o primeiro estudo brasileiro a investigar, exclusivamente entre idosos, a associação de capital social e mortalidade. No presente trabalho, somente o componente estrutural do capital social (na dimensão participação social) revelou-se um preditor da mortalidade. Nenhuma das dimensões do componente cognitivo do capital social mostrou-se associada à mortalidade. Mesmo após o ajustamento múltiplo por outras variáveis explicativas, a participação social manteve-se associada à mortalidade por todas as causas. Os idosos que não participavam de grupos ou associações sociais, ou que não tinham amigos, conhecidos ou vizinhos que os visitavam ou que eram visitados por eles pelo menos uma vez ao mês, apresentaram um risco de morte equivalente a mais de duas vezes o observado entre as suas contrapartes.

Os achados relativos à associação entre capital social e mortalidade em idosos são controversos. Nossos resultados estão alinhados a alguns trabalhos que observaram associação longitudinal entre participação social e mortalidade 14,15,16, mas divergem daqueles em que esta associação não foi detectada 17. No entanto, a comparação direta dos resultados é dificultada por questões metodológicas, ligadas à forma como o capital social é mensurado e às estratégias de análise adotadas nos diferentes estudos. Entre idosos suecos, por exemplo, a avaliação do capital social baseou-se em um único item (envolvimento cívico), medido no nível agregado (taxa de votação na área de residência do participante). Os idosos com mais baixo nível de capital social apresentaram maior risco de morte 14. De maneira distinta, em Bambuí medimos o capital social no nível individual e captamos melhor o caráter multidimensional desse recurso por incluirmos suas diferentes dimensões, além de minimizarmos a possibilidade de confusão quando consideramos medidas subjetivas e objetivas de condições de saúde para ajuste, o que não foi contemplado no estudo sueco.

Nos estudos asiáticos, as associações entre participação social e mortalidade foram observadas no interior dos estratos por sexo. No Japão 15, a menor frequência de visitas recebidas ou feitas a amigos representou um maior risco de morte entre os homens, e a carência de amizades elevou o risco de morte entre as mulheres. Já em Taiwan 16, idosos do sexo feminino com menor participação em grupos religiosos apresentaram maior risco de morte. Em nosso trabalho, a associação foi observada para toda a população idosa, mas não estratificamos a análise por sexo.

Diferentemente do observado em nosso estudo, entre idosos dinamarqueses 17 o capital social e a mortalidade não estiveram associados. Todavia, nesse estudo, a medida do capital social foi baseada em escores, valendo-se das respostas a um conjunto de itens do componente estrutural. Em nosso estudo, utilizamos uma medida com um maior poder discriminatório (a mensuração chegou ao nível das dimensões do capital social), porém, mais sensível: a resposta a um único item foi suficiente para classificar negativamente o capital social. Além disso, no estudo dinamarquês, o escore de capital social atribuído ao participante referia-se àquele calculado para o município onde ele residia, ao passo que em Bambuí foram usadas medidas obtidas no nível individual.

Em nosso trabalho, uma única dimensão do componente cognitivo (coesão social) apresentou-se associada à mortalidade, mas apenas quando analisada individualmente. Os idosos com menor coesão social apresentaram maior risco geral de morte. Quando as demais medidas de capital social foram consideradas (modelo ajustado 1), a associação deixou de ser significativa. Análises em separado demonstraram que a perda de significância estatística aconteceu quando se ajustou pela participação social. É possível que nessa população as medidas de coesão social e participação social estejam de certa forma imbricadas. Nossas medidas de coesão social envolveram percepção de confiança, solidariedade entre membros do grupo social e grau de satisfação com os relacionamentos. São aspectos provavelmente considerados quando da inserção, permanência ou afastamento de grupos ou associações comunitárias. Nossos resultados mostraram que, nessa população, a participação social foi um preditor mais importante da mortalidade do que a coesão social.

Uma explicação mais direta da conexão entre capital social e mortalidade não parece simples. O mais plausível é que o efeito do capital social sobre a mortalidade se dê indiretamente, por meio do seu impacto sobre a saúde, mediado por uma série de componentes psicossociais 11 e econômicos 6, que podem variar entre populações. O capital social se liga à saúde por mecanismos variados. Ele estimula a adoção de comportamentos saudáveis e fomenta o controle social sobre os comportamentos desviantes, potencializa maior acesso a serviços de saúde, ameniza os efeitos do sofrimento mental e promove um padrão mais igualitário de participação política, com resultados positivos em relação à implantação de políticas públicas voltadas para o bem comunitário 15. Especificamente em relação à participação social, os seus benefícios à saúde estão relacionados ao pertencimento a um determinado grupo, por aumentar o acesso à informação relacionada à saúde e reduzir o estresse, bem como ao papel que o indivíduo passa a ter ou a exercer na sociedade, reforçando o significado da sua vida e do seu valor 18. Conjectura-se até mesmo que a participação social possa trazer consequências fisiológicas por reduzir biomarcadores conhecidos de doenças, como a inflamação 19.

O presente estudo apresenta limitações e vantagens. Uma das limitações é o fato das medidas de exposição de interesse (capital social) restringirem-se à linha-base, o que impossibilitou que eventuais mudanças de status de exposição não pudessem ser detectadas. Isso aconteceu em razão de o capital social não ter sido medido da mesma maneira nos seguimentos seguintes. Além disso, as perdas diferenciadas em relação ao evento e a algumas das características investigadas podem ter alterado nossos resultados. Por fim, cabe mencionar a dificuldade em generalizar nossos resultados para toda a população idosa de mesma faixa etária, residente à época em Bambuí, já que a população de estudo são os sobreviventes (em 2004) da coorte idosa formada em 1997.

Pode-se destacar como pontos positivos desse trabalho a utilização de medidas que permitiram a produção de resultados mais refinados, no nível das diferentes dimensões dos componentes estrutural e cognitivo do capital social. Isso constitui uma vantagem em relação a estudos que consideraram um único aspecto do capital social ou o seu conceito global, sem discriminação de seus componentes/dimensões. Dessa forma, foi possível detectar as especificidades que ligam diferentes dimensões do capital social à mortalidade. Outra força do estudo repousa no seu desenho, longitudinal, que permite elucidar relações temporais entre exposição e evento. Acrescente-se, por fim, o caráter de ineditismo do presente trabalho, dado que inexistem estudos brasileiros que investigaram essa associação especificamente entre idosos.

Nossos resultados mostraram que, nessa população, o capital social foi um preditor independente da mortalidade, ainda que restrito ao seu componente estrutural. A presente investigação aponta para a necessidade de que os serviços de saúde considerem fortemente a promoção de ações que incentivem ou potencializem o capital social dos idosos, como forma de ampliar a sua longevidade. Assim, as intervenções para reduzir a mortalidade por todas as causas devem ser estendidas para além do campo específico de atuação da saúde, voltando-se também para características ambientais e sociais que, de alguma forma, contribuam para a melhoria da qualidade de vida do idoso e promovam a sua saúde.

Agradecimentos

À Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) pelo apoio financeiro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2018
  • Revisado
    27 Jun 2018
  • Aceito
    23 Ago 2018
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