Open-access Coordenação, uniformidade e autonomia na formulação de políticas públicas: experiências federativas no cenário internacional e nacional

Coordination, uniformity, and autonomy in the formulation and implementation of public policies: the federal experience in Brazil and internationally

Coordinación, uniformidad y autonomía en la formulación e implementación de políticas públicas: la experiencia federal en el escenario internacional y nacional

Resumo:

O artigo analisa os desafios da formulação e da implementação de políticas públicas no Brasil e em outras federações e destaca as estratégias e os mecanismos desenvolvidos para garantir princípios e parâmetros de políticas públicas nacionais e do federalismo. O artigo discute a adoção de políticas públicas nacionais frente aos principais dilemas das federações: coordenação versus cooperação intergovernamental, uniformidade versus diversidade, autonomia versus compartilhamento de autoridade e centralização versus descentralização. A questão que guia o artigo é se em países federais as diversas esferas de governo são pontos de veto para a adoção de políticas públicas nacionais. Argumento que, na federação brasileira, a engenharia constitucional de 1988 foi capaz de contornar os principais dilemas federativos e os possíveis vetos à adoção de políticas nacionais. Argumenta-se ainda e complementarmente que federações são constituídas de múltiplas dimensões que precisam ser combinadas e analisadas para seu melhor entendimento.

Palavras-chave: Federalismo; Políticas Públicas; Constituição e Estatutos; Governo

Abstract:

This article analyzes the challenges in the formulation and implementation of public policies in Brazil and in other federations and highlights the strategies and mechanisms for guaranteeing principles and parameters for national public policies and federalism. The article discusses the adoption of national public policies in the face of the federations’ principal dilemmas: intergovernmental coordination versus cooperation, uniformity versus diversity, autonomy versus shared authority, and centralization versus decentralization. The article’s guiding question is whether in federal countries the various spheres of government act to veto the adoption of national public policies. I argue that in the Brazilian federation the Constitutional engineering of 1988 was capable of resolving the main federative dilemmas and the possible vetoes to the adoption of national policies. I further argue that the federations are constituted of multiple dimensions that need to be combined and analyzed in order to better understand them.

Keywords:  Federalism; Public Policy; Constitution and Bylaws; Governments

Resumen:

El artículo analiza los desafíos de la formulación e implementación de políticas públicas en Brasil y en otros estados federales, además de destacar las estrategias y los mecanismos desarrollados para garantizar principios y parámetros de políticas públicas nacionales y federales. El artículo discute la adopción de políticas públicas nacionales frente a los principales dilemas de los estados federales: coordinación versus cooperación intergubernamental, uniformidad versus diversidad, autonomía versus autoridad compartida y centralización versus descentralización. La cuestión que sirve de guía al artículo es si en los países federales las diversas esferas de gobierno son puntos de veto para la adopción de políticas públicas nacionales. Se debe señalar que en el estado federal brasileño, con la creación de la Constitución de 1988, se consiguieron superar los principales dilemas federales, así como los posibles vetos a la adopción de políticas nacionales. No obstante, y de forma complementaria, hay que recalcar que los estados federales están constituidos por múltiples dimensiones que necesitan ser combinadas y analizadas para su mejor comprensión.

Palabras-clave:  Federalismo; Política Pública; Cosntitución y Estatutos; Gobierno

Introdução

Federações são instituições políticas sujeitas a inúmeros dilemas, que giram em torno de encontrar o equilíbrio entre autonomia regional e autoridade federal. Algumas vezes, as federações não sobrevivem a esses dilemas. Em outras, como o Brasil, são longevas. Por serem instituições sujeitas a inúmeros dilemas, seu desenho é crucial para sua sobrevivência, requerendo técnica para agregar grandes áreas sob um só governo 1; salvaguardas que sustentem, mediante incentivos, a estrutura federal 2; soberania partilhada 3 e autossustentação política e econômica que consolide os objetivos iniciais de criação da federação 4.

Entre os dilemas federativos, encontrar o equilíbrio entre cooperação versus coordenação, uniformidade versus diversidade, autonomia versus compartilhamento de autoridade e centralização versus descentralização na formulação e implementação de políticas é um dos menos triviais. Tais dilemas estão no centro do debate da literatura teórica e empírica sobre o federalismo. Esse equilíbrio é particularmente importante em federações como a brasileira, que foi redesenhada em 1988 para conciliar políticas públicas nacionais com a autonomia dos entes constitutivos da federação 5. Essa conciliação remete a questões de pesquisa que por vezes têm respostas contraditórias ou são ainda pouco debatidas.

A despeito de sua complexidade, a organização federativa vigora hoje em cerca de 25 países de todos os continentes, que abrigam mais de 40% da população mundial. Fazem parte desse grupo de países desde alguns de dimensão continental, como Estados Unidos, Canadá, Rússia, Brasil, Índia e Austrália, até outros de pequenas dimensões territoriais, como Suíça e Bélgica. Na América Latina, Argentina, México e Venezuela, além do Brasil, optaram pela organização federativa. Na Europa, onde a maioria dos países segue o sistema unitário, a Alemanha e a Áustria adotaram o sistema federal logo após a Segunda Guerra Mundial e a Bélgica trocou o sistema unitário pelo federal no final do século XX. A África do Sul também adotou o federalismo quando elaborou uma nova constituição depois do fim do regime do Apartheid.

A literatura sobre federalismo é unânime em afirmar que não há modelo único de federação e que existe grande variedade de arranjos federativos. No entanto, muitas das tensões enfrentadas pelos países que optaram por esse sistema são comuns e revolvem em torno de como distribuir poder, autoridade e recursos dentro de um mesmo território e como conciliar o objetivo último das federações: preservar a unidade territorial e assegurar a diversidade. Se as questões são comuns, as soluções são diversas e dependentes das características de cada país.

Diferentemente de outras federações, o federalismo no Brasil não foi uma resposta às clivagens sociais decorrentes de etnia, língua ou religião, mas sim de disputas regionais quando da adoção do sistema republicano. Nesse sentido, a federação brasileira seria, na expressão de Stepan 6, uma federação constituída para “manter a união”, tal como a Índia, e não uma federação para “unir”, como os Estados Unidos. Distintamente da América Espanhola, a unidade territorial do Brasil Colônia nunca foi efetivamente ameaçada. Interessante notar que pressões por subdivisões territoriais sempre foram mais afetas aos municípios do que aos estados.

O federalismo se manifesta e influencia não só a divisão de poder entre níveis de governo, mas também a atividade legislativa, o papel do Judiciário e dos partidos políticos, a alocação de recursos tributários e de competências e as garantias constitucionais dos entes que compõem a federação. Dito de outra forma, o desenho do federalismo tem influência sobre a política, a prática democrática, a governabilidade, a dinâmica da economia política e da competição partidária, assim como a política pública. Por essas razões, o sistema é complexo e muitas vezes objeto de análises que desconsideram essa complexidade e tendem a refletir o senso comum.

O federalismo brasileiro redesenhado em 1988 gerou interpretações divergentes. Uns concluíram que a federação era dominada por interesses estaduais, pelo poder informal que poderia ser exercido pelos governadores sobre os parlamentares de seus estados no Congresso Nacional 7,8,9. Essa tese teve grande influência na interpretação do funcionamento do federalismo no Brasil, sendo também partilhada por vários cientistas políticos norte-americanos 10,11,12. Outra corrente analisou a divisão de poder dentro da federação como fragmentada entre vários centros de poder, embora com capacidades desiguais, ou seja, não haveria o comando de apenas uma ou de poucas unidades constitutivas da federação. A despeito da centralização legislativa, de recursos financeiros e de formulação de políticas, os governos subnacionais não são atores passivos no jogo federativo 13,14,15. No mesmo veio, Arretche 16,17 mostrou, de forma convincente, que o federalismo não foi um empecilho para a adoção das novas políticas públicas pela existência de incentivos e/ou sanções que estimularam a adesão das esferas subnacionais. Esses argumentos contradizem parte da literatura sobre a provisão de políticas sociais em estados federais, que argumenta que nesses países as políticas são menos redistributivas do que nos unitários e que o federalismo diminui a capacidade redistributiva do estado 18. Parte dessa literatura alega que nas federações iniciativas sobre políticas sociais são interdependentes, mas precariamente coordenadas 19. Esse não é o caso do Brasil desde o final dos anos 90 do século passado, com a edição de várias emendas constitucionais que tratam das políticas de educação e saúde, de leis que normatizaram a política de assistência social e de regras que institucionalizaram os principais sistemas objetos de competências concorrentes, assim como seus fundos de financiamento e a vinculação de recursos das três esferas de governo para a provisão das políticas de saúde e educação 20,21,22. Nesse sentido, a experiência brasileira se aproxima mais das conclusões de Congleton et al. 23 que questionaram recentes análises sobre o federalismo que enfatizam a importância da competição entre governos locais como forma de prover de forma mais eficiente os serviços governamentais. Aproxima-se também, e como se verá adiante, das federações cooperativas, em que os diferentes níveis de governo compartilham a provisão de políticas públicas nacionais.

Este artigo trata da coordenação, uniformidade, autonomia e do continuum centralização/descentralização na formulação e na implementação de políticas públicas no Brasil pós-1988 como parte da divisão de poder e autoridade entre os níveis de governo. A questão de pesquisa que guia o artigo é como os principais dilemas federativos são contornados para que as diversas esferas de governo cooperem na formulação e implementação de políticas públicas nacionais e como, consequentemente, são restringidos os vetos das instâncias subnacionais à adoção dessas políticas.

Por um lado, se o veto das esferas subnacionais foi objeto de controvérsia logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, como discutido acima, existe hoje um consenso de que no caso brasileiro existem mecanismos capazes de incentivar a adesão das esferas subnacionais às políticas nacionais 15,17. Por outro lado, sabe-se pouco como os dilemas acima mencionados são resolvidos nas federações em geral e na brasileira em particular.

O artigo analisa o federalismo brasileiro refundado após a Constituição Federal de 1988 e de várias emendas constitucionais posteriores que regulamentaram a provisão de políticas públicas. Os dilemas das federações serão analisados à luz dos principais modelos teóricos sobre o federalismo. Sempre que possível, o modelo brasileiro de federação será cotejado com o de outros países. O artigo mostra também que federações são constituídas por múltiplas dimensões que vão além das suas características mais conhecidas. Por fim, o artigo busca refutar alguns sensos comuns tanto sobre o federalismo quanto sobre a federação brasileira.

Além desta introdução, o artigo está organizado da seguinte forma. A primeira seção sintetiza os arranjos institucionais adotados após a redemocratização. As seções seguintes desdobram e debatem os principais dilemas que cercam as federações: cooperação versus coordenação, uniformidade versus diversidade, autonomia versus compartilhamento de autoridade e centralização versus descentralização. A última apresenta algumas considerações.

A engenharia constitucional da federação brasileira pós-1988

O Brasil adotou o sistema federal desde a proclamação da República, há quase um século e meio. Foi relativamente comum até pouco tempo atrás afirmar-se que o federalismo brasileiro era uma mera cópia do dos Estados Unidos. Isso porque o federalismo moderno, enquanto sistema, foi formulado pela primeira vez em 1787 pelos fundadores da nação norte-americana. Os historiadores, porém, mostraram que não foi bem isso que ocorreu, o que não significa que parte do modelo dos Estados Unidos não tenha sido adotado nas federações que se seguiram a ele. Nossos historiadores mostraram que as elites políticas brasileiras defendiam o federalismo como forma de controlar um governo central que subjugasse os estados. O slogan do movimento republicano era “centralização = secessão; descentralização = união”. Após a República, a chamada Revolução Federalista de 1893 a 1895, liderada pelo Rio Grande do Sul, tinha entre suas bandeiras maior descentralização. Ainda que derrotada, a Revolução mostrou que o debate federativo sempre esteve presente na construção das instituições brasileiras.

Como é sabido, a história política brasileira tem sido marcada por períodos de regimes autoritários, seguidos de restauração da ordem democrática. A última e mais longeva redemocratização teve início no final dos anos 1980 do século passado, embora desde 1982 o regime militar tivesse autorizado o retorno do voto popular para a eleição dos governadores. Em 1988, foi promulgada uma nova constituição, resultado de um momento político que buscava tornar crível e legítimo o novo regime democrático. Incluído nesse objetivo, estava o fortalecimento das unidades subnacionais.

Do ponto de vista político, foram restauradas as eleições por voto popular para todos os cargos do executivo e aumentado o número de representantes dos estados na Câmara dos Deputados.

Do ponto de vista da federação propriamente dita, a convocação da Assembleia Nacional Constituinte pelo Presidente José Sarney determinava que a Assembleia Nacional Constituinte não faria restrição a nenhum tema, inclusive ao da manutenção da República e do sistema federativo, ambos proibidos na Constituinte de 1946. Mais tarde, a própria Constituição não só manteve a forma federativa de Estado como reforçou o compromisso federativo, ao estabelecer que nenhuma emenda constitucional pode aboli-la. Além do mais, os constituintes incorporaram os municípios como parte integrante da federação, tornando o Brasil um país de triplo federalismo. Contudo, e contrariamente aos que muitos ainda repetem, essa não é uma peculiaridade brasileira. Índia, México, África do Sul e algumas comunidades belgas adotaram a mesma fórmula em suas revisões constitucionais mais recentes 24.

Mesmo muito festejada, a incorporação do município na barganha federativa importa mais por distanciar o Brasil de outras federações em que os municípios são criações dos estados. Isso porque, apesar do triplo federalismo, os municípios não contam com o acesso ao Supremo Tribunal Federal (STF) para dirimir questões de invasão de competência em matérias sob sua jurisdição, como contam os estados. A literatura sobre federalismo é quase unânime ao considerar essa prerrogativa uma das características de uma federação robusta. Por fim, e com exceção dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Suíça, a maioria das federações concede aos seus municípios o direito de legislar sobre questões locais e alguma autonomia financeira, assim como o fizeram as constituições brasileiras anteriores à de 1988. Na prática, entretanto, os municípios e não os estados se tornaram nos principais parceiros do Governo Federal na implementação de políticas sociais.

Do ponto de vista da distribuição de recursos tributários, ocorreu não só crescimento da receita tributária global, como, logo após a promulgação da Constituição, maior parcela dos recursos foi deslocada para estados e municípios, em detrimento da União vis-à-vis o regime militar. Posteriormente, e a partir de emendas constitucionais, os estados diminuíram sua participação na receita tributária total e os municípios foram, e continuam sendo, os maiores ganhadores relativos do jogo tributário vis-à-vis as constituições anteriores. Cumpre ressaltar que os estados não perderam recursos em termos absolutos uma vez que a arrecadação tributária global não parou de crescer desde o início dos anos 2000 até recentemente, mas os estados tiveram percentuais de suas receitas próprias vinculadas às políticas de saúde e de educação básica; esta última provida majoritariamente pelos municípios e, portanto, a eles transferidos. A Tabela 1 mostra a trajetória da distribuição de recursos tributários em três grandes períodos: na vigência da Constituição de 1946, no regime militar e na redemocratização.

Tabela 1
Distribuição de recursos tributáveis entre esferas de governo, incluindo transferências intergovernamentais. Brasil, 1960/2015.

Se existem evidências robustas da perda relativa de recursos à disposição dos estados, eles têm autoridade exclusiva sobre o maior imposto em termos de volume de arrecadação, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), cuja base de cálculo foi ampliada na Constituição de 1988 com a incorporação de vários impostos federais. Esse é um ponto importante e em geral pouco considerado pelos analistas. Importa porque uma coisa é arrecadar e/ou gastar recursos disponíveis e outra é ter autoridade exclusiva para fixar alíquotas de impostos, como ocorre com o ICMS, dado que 25% da sua cota-parte são objeto de livre disposição por lei estadual. Como se sabe, os estados usaram essa prerrogativa para incentivar a atração de investimentos, o que ficou conhecido como “guerra fiscal” 25. O governo estadual também passou a arrecadar e a determinar as alíquotas do imposto sobre heranças e doações. Embora existam regras federais sobre tais impostos estaduais, a margem de autonomia para determinar suas alíquotas é relativamente alta.

No plano municipal, também ocorreu aumento das receitas diretamente arrecadadas pelas esferas locais, além da manutenção e ampliação dos mecanismos de compensação. Houve aumento de 20% para 25% do percentual de partilha do ICMS para as esferas locais e o compartilhamento com o estado da arrecadação do antigo imposto sobre a transmissão de bens imóveis. Os governos municipais também arrecadam o imposto de transmissão “intervivos” de bens imóveis, mantiveram o Imposto sobre Serviço (ISS) e o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e, em 2002, foram autorizados a cobrar contribuição sobre iluminação pública. Assim como ocorre com os estados, os municípios são livres para determinar as alíquotas desses tributos, mesmo que alguns sejam regulados por legislação federal.

Questão também pouco observada pelos analistas, especialmente por aqueles que viram a Constituição de 1988 como um entrave à governabilidade pelo que consideraram um fortalecimento dos governadores vis-à-vis os presidentes, foi que ao longo do processo constituinte os municípios foram ganhando espaço na distribuição de recursos enquanto os estados e a União o perdiam. Os arquivos e os relatórios das diversas subcomissões e comissões em que o tema foi tratado mostram, com clareza, essa decisão 13,14.

A questão da distribuição dos recursos tributários e de competências entre esferas de governo é uma das mais sensíveis em todas as federações e objeto de muita controvérsia. Para muitos analistas, particularmente os filiados à teoria do federalismo fiscal, que envolve a distribuição da competência no que concerne a receitas e despesas, quanto mais descentralizada essa distribuição, maior a eficiência econômica e política do sistema. Para outros, a centralização de recursos na esfera federal permite entre outras coisas, a adoção de políticas nacionais, sobretudo em países com grande desigualdade social e regional como o Brasil. No entanto - e como argumentam vários autores (Souza 13; Arretche & Schlegel 26; Osterkatz et al. 27) -, examinar o papel dos governos subnacionais nas federações envolve múltiplas dimensões, às vezes aparentemente paradoxais. Isso significa que a distribuição de recursos financeiros e de gastos não diz tudo sobre uma federação.

Do ponto de vista da produção legislativa, todas as unidades constitutivas possuem poderes e competências iguais, tal como ocorre nos Estados Unidos e no México. Nesse sentido, o Brasil adotou um modelo de federalismo simétrico em uma federação assimétrica. Dois fatores fortalecem ainda mais esse modelo simétrico. O primeiro é que as regras sobre as competências, autoridade, recursos e políticas públicas das entidades subnacionais são capítulos detalhados da Constituição, deixando margem limitada de manobra para iniciativas específicas. Embora limitada, persiste a autoridade dos governos subnacionais, inclusive do ponto de vista da receita e do gasto de seus tributos próprios, como mostrado acima. O segundo é que o STF vem decidindo sistematicamente que as constituições e as leis estaduais reflitam os dispositivos federais, o que impõe uma hierarquia das normas constitucionais e legais. Em outras palavras, todo direito relevante é um direito federal e os estados acabam sendo quase que entes gestores do direito federal. Essa tendência de interpretação torna o STF um ponto de veto potencial que favorece um federalismo centralizador no que se refere à produção legislativa, como argumenta Canello 28.

Do ponto de vista das políticas públicas e seu impacto sobre a federação, várias inovações ocorreram. A primeira foi o reconhecimento dos direitos sociais, tendência também encontrada em constituições recentes de outros países. A segunda foi a universalização do acesso à saúde, antes restrita aos detentores de emprego formal. A terceira foi um significativo aumento das competências concorrentes entre os três níveis de governo vis-à-vis as constituições anteriores, decisão pouco notada por muitos analistas. Isso criou as bases para o desenho atual das políticas públicas, notadamente as sociais, com regulação federal e implementação quase sempre local. A quarta inovação foi a diminuição do quorum para emendas constitucionais, de 2/3 nas constituições dos militares, para 3/5. Isso deu espaço para a promulgação de emendas constitucionais que permitiram a regulamentação de várias, mas não todas, políticas sociais constitucionalizadas. Essas inovações foram responsáveis pela capacidade de a União de contornar os dilemas federativos, conseguir a adesão das demais esferas à implementação e ao financiamento de políticas nacionais, também estimuladas por incentivos para sua adesão, e pela aprovação de emendas constitucionais que colocaram em prática alguns direitos sociais. Nesse sentido, pode-se explicar o contorno dos dilemas federativos no Brasil tanto por variáveis institucionais - as regras da Constituição de 1988 15 -, como por variáveis de políticas públicas, isto é, políticas com incentivos para sua adesão 17.

Os parágrafos anteriores desta seção mostraram que, desde a promulgação da Constituição de 1988 outorgar rótulos como centralizado ou descentralizado ao federalismo brasileiro, parece não dar conta da sua complexidade. A federação tem sido marcada por políticas públicas federais que se impõem às instancias subnacionais, mas são aprovadas pelo Congresso, e por limitações na capacidade das esferas subnacionais de legislar sobre políticas próprias. Além do mais, poucas competências constitucionais exclusivas são alocadas aos estados e municípios, como também ocorre em outros países em desenvolvimento, tais como o México e a África do Sul. Por outro lado, estados e municípios possuem autonomia administrativa considerável, autoridade para determinar alíquotas de seus impostos exclusivos, responsabilidades pela implementação de políticas nacionais e uma parcela dos recursos públicos poucas vezes concedida pelas constituições anteriores, em particular para os municípios, e superior a outros países em desenvolvimento.

Pelas razões acima e porque não se rotulam facilmente federações que fogem ao padrão norte-americano ou classificá-las apenas por uma de suas várias dimensões, a federação brasileira é avaliada por um dos mais importantes índices sobre autoridade regional desenvolvido por Hooghe et al. 29 - o Regional Authority Index (RAI) - como uma federação mais cooperativa do que competitiva. O RAI incorpora duas dimensões: self-rule (regras próprias) e shared-rule (regras partilhadas). Na primeira estão incluídas federações que optaram pela adoção de políticas nacionais comuns e a segunda diz respeito à capacidade da esfera subnacional - no caso do RAI apenas os estados - de participar de decisões que afetam seus interesses. Essas dimensões são eminentemente institucionais e apontam para a importância do desenho das federações. No caso brasileiro e como visto acima, os estados (e também os municípios) têm autoridade para determinar questões cruciais tais como cobrar e como gastar seus impostos exclusivos e participam da implementação de políticas públicas nacionais.

A partir de 1988 e de emendas constitucionais posteriores, o Brasil, pela metodologia do RAI, é uma federação do tipo cooperativa, aproximando-o de países como a Alemanha, a Áustria e a Austrália e distanciando-o dos Estados Unidos. Já na segunda dimensão - regras partilhadas - a autoridade das esferas subnacionais é limitada, dada a centralização do executivo e do legislativo federais na determinação de preferências, particularmente sobre políticas públicas, e pela ausência de instâncias formais que os torne partícipes dessas decisões. Fariam parte dessas instâncias o Senado, os conselhos intergovernamentais e a aprovação, ou dos eleitores ou das assembleias legislativas, de mudanças constitucionais. No primeiro caso, pesquisas têm demonstrado que os senadores estão mais alinhados aos interesses dos seus partidos do que dos estados que representam. Isso, no entanto, não é uma peculiaridade brasileira. Pesquisa de Kincaid & Tarr 24 em 12 países federais mostrou ser essa a regra, a despeito de o modelo teórico do federalismo inserir o Senado como representante dos interesses dos estados. Já os conselhos intergovernamentais são raros, diferentes, por exemplo, da Alemanha e da Austrália.

A síntese desta seção é que federações são instituições complexas, compostas por múltiplas dimensões. A engenharia constitucional da federação brasileira inaugurada em 1988 tem sido capaz de equacionar os principais dilemas da federação brasileira, tema das próximas seções.

Cooperação versus coordenação de políticas públicas em países federais

Em países federais em que políticas públicas nacionais são partilhadas entre as esferas de governo, como é o caso do Brasil, Alemanha, Austrália e Áustria, a cooperação e não a coordenação seria o conceito mais adequado para tratar essa partilha, em razão da autonomia constitucional dos entes da federação. Não por acaso, o artigo 23 da Constituição Federal de 1988 (https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao1988.html) usa a palavra cooperação: “Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.

Existem diferenças entre os dois conceitos. A principal é o caráter voluntário de uma (cooperação) e hierárquico da outra (coordenação). A cooperação tende a manter a autonomia dos entes que dela participam e a coordenação tende a centralizar decisões. Todavia, cooperação e coordenação podem ocorrer simultaneamente. O que varia é a ênfase dada a cada uma.

Do ponto de vista formal, pode-se definir coordenação como a organização de todas as atividades, com o objetivo de alcançar consenso entre indivíduos e organizações para o atingimento dos objetivos de um grupo. Associado ao conceito de coordenação, está o de cooperação. No caso de um país federal, a coordenação seria típica das relações intragovernamentais (coordenação horizontal) e a cooperação das intergovernamentais (cooperação vertical). Porém, ambos os conceitos podem ser aplicados às políticas públicas no Brasil porque a Constituição de 1988 delegou à União o desenho de inúmeras políticas, o que pressupõe a coordenação do governo federal. Nas relações intergovernamentais, seja em países federais ou unitários, os conflitos de coordenação e a cooperação existem de forma simultânea e são a elas inerentes 30.

A cooperação e a coordenação, no entanto, não ocorrem de forma natural nas organizações nem entre os indivíduos, tendo de ser construída. Como nos diz a literatura, essa construção implica a proposição de incentivos que tornem racional a adesão dos participantes da política e de suas agências. Como demonstrado por Arretche 16, a existência de incentivos foi o que tornou possível a adesão das esferas subnacionais às políticas de saúde e educação. Além do mais, as regras dessas políticas foram desenhadas de forma clara, diminuindo, portanto, as incertezas dos atores envolvidos e minimizando os problemas de coordenação. Mas não só incentivos podem operar a favor da cooperação entre entes governamentais. Para Filippov et al. 31, por exemplo, o papel do sistema de partidos políticos integrados verticalmente nas federações é o de promover a cooperação entre níveis de governo, sendo a chave para gerar consentimento e promover a cooperação.

Na sequência da promulgação da Constituição e desde meados dos anos 1990, a União adotou ou apoiou uma série de medidas para colocar em prática os mandamentos constitucionais relativos às políticas sociais e aos princípios que as regem - descentralização, participação e universalização. A partir de então, dois grandes e complexos tipos de sistemas de políticas públicas foram constituídos, ambos regulados pela esfera federal. O primeiro tipo foi objeto de emendas constitucionais que definiram a participação dos entes federados nas políticas, assim como vincularam recursos das três esferas ao seu provimento. Esses sistemas abrangem as políticas de educação básica (Pré-escola e Ensino Fundamental) e saúde. O segundo tipo de sistema compreende grande variedade de políticas e é resultado das competências concorrentes definidas na Constituição de 1988: combate às drogas, turismo, cultura, assistência social, saneamento e habitação. Embora não sendo competência concorrente, foi também criado em 2012 o sistema nacional de segurança pública. Vale ressaltar que a Constituição de 1988 foi a primeira entre as sete constituições brasileiras que discriminou tais competências. Como se sabe, em todas as constituições brasileiras, assim como nas constituições da maioria dos países federais, a União tem capacidade para regular, mediante normas gerais, as competências definidas como concorrentes.

Os inúmeros sistemas criados após a Constituição de 1988 requerem a cooperação/coordenação vertical e a coordenação horizontal, mas os custos da coordenação vertical são mais altos quando os países são organizados como federações. A coordenação horizontal de políticas se expressa, no caso brasileiro, por exemplo, pelas condicionalidades do Programa Bolsa Família, que requer sua articulação com as áreas de educação e saúde. Já a coordenação vertical com estados e municípios se expressa na maioria das demais políticas, por causa de seu desenho de regulação federal e implementação subnacional.

Algumas poucas vezes o desenho da coordenação e/ou cooperação vertical de políticas em uma federação é matéria da constituição ou de leis infraconstitucionais. A constitucionalização da coordenação de políticas é, por exemplo, o caso do Brasil. Na maioria das vezes, contudo, a coordenação e a divisão dos papéis de cada esfera na provisão de políticas é matéria de negociações e acordos, e não de leis 23.

Em formato intermediário, países federais podem institucionalizar estruturas que negociam a implementação de políticas e sua coordenação. Isso ocorre nos países classificados pelo RAI como federações cooperativas. A Austrália conta com o Council of Australian Governments, que mantém reuniões regulares para negociar o formato das políticas entre os níveis de governo. O modelo de coordenação vertical da Alemanha é mais complexo, com a institucionalização de forças-tarefa, fóruns e comitês conjuntos integrados por representantes do governo federal e dos estados. Ainda na Alemanha, e na esfera administrativa, existem mais de 950 grupos de discussão e de trabalho que se reúnem regularmente para trocar informação e coordenar suas decisões. O modelo alemão, entretanto, é entendido como lento e passível de resistências por parte das esferas executoras das políticas 32. No caso brasileiro, o fórum deliberativo que mais se assemelha à construção de consenso e de cooperação e/ou coordenação é o Conselho Tripartite do SUS (Sistema Único de Saúde).

As dificuldades de coordenação e até mesmo de coerência nas políticas governamentais é um problema reconhecido pela literatura de políticas públicas 33. Além do mais, muitos programas governamentais são contraditórios e outros podem ter lacunas que deixam de prover serviços aos quais os cidadãos têm direito. Peters 33 e Bouckaert et al. 34 creditam às falhas de coordenação parte dessas dificuldades. Pressman & Wildavsky 35, em estudo seminal, afirmaram que as críticas mais comuns às políticas federais dos Estados Unidos são de falta de coordenação e que todas as sugestões para reformar as políticas públicas propõem melhorá-la.

A coordenação na perspectiva da política pública se desdobra em dois momentos: no da formulação da política e no da sua implementação. Do primeiro participam os diversos atores e instituições com interesses na política que será formulada. Se os conflitos no momento da decisão de uma política pública podem ser mais intensos e requerer mecanismos de coordenação mais complexos, a coordenação também faz parte do momento da implementação da política.

A despeito dos muitos problemas de coordenação ainda existentes, as políticas públicas decididas e implementadas no Brasil após a Constituição de 1988 contam com um desenho sofisticado e engenhoso de coordenação horizontal e vertical para sua implementação. Esse desenho foi resultado de intenso processo político, uma vez que grande parte dessas políticas é matéria constitucional e/ou de legislação infraconstitucional, ou seja, várias políticas públicas foram propostas ou apoiadas pelo Executivo Federal e submetidas ao escrutínio público e à decisão do Congresso Nacional.

Uniformidade versus diversidade

Governos produzem políticas públicas independentemente de seus sistemas serem federais ou unitários, no entanto, do ponto de vista teórico e diferentemente dos países unitários, a soberania é dividida em um sistema de múltiplo nível nas federações, o que significa que cada nível detém autoridade final em questões pré-determinadas e especificadas na constituição federal. Essa característica das federações, vale dizer, a premissa da diversidade, tem implicações nas decisões sobre políticas públicas nacionais, ou seja, na uniformidade 5?

A questão central - quando se discute o paradoxo uniformidade das políticas públicas nacionais versus diversidade no interior das federações - advém do fato de que, em termos teóricos, a marca do federalismo é a diversidade e a das políticas públicas nacionais é a uniformidade, o que pode, ao menos aparentemente, ser paradoxal.

A discussão sobre a característica da diversidade territorial do federalismo e a uniformidade das políticas públicas nacionais é particularmente importante em países como o Brasil em que não só as políticas sociais são objeto de políticas públicas nacionais, mas uma gama significativa de políticas se impõe aos governos e às comunidades subnacionais. Essas políticas vão desde a de segurança no trânsito até as fiscais. Essa característica da federação brasileira é resultado de uma tradição inaugurada na Constituição Brasileira de 1934 e que foi aprofundada nas constituições subsequentes, notadamente na de 1988.

A constitucionalização de quase todas as questões sensíveis da vida dos brasileiros torna as constituições, sobretudo a de 1988, mais um código do que um documento de princípios e regras, como a constituição norte-americana. Todavia, essa também não é uma peculiaridade brasileira. Vários autores já mostraram que há uma tendência crescente nas constituições escritas mais recentemente para que questões que seriam matéria de legislação ordinária sejam constitucionalizadas 36. Constituições detalhadas também são relativamente comuns em democracias consensuais e tendem a ser uma das características dos países federais 37.

À luz das teorias mais difundidas do federalismo, baseadas no modelo norte-americano, a federação brasileira pode parecer paradoxal, visto que a marca normativa do federalismo é a diversidade e a de políticas públicas nacionais é a uniformidade. Comparada com a federação mais estudada do mundo, e que serviu de base para a formulação de quase todas as teorias modernas do federalismo, as diferenças são marcantes. A federação norte-americana é caracterizada por fronteiras vagas entre a autoridade nacional e as subnacionais, permitindo ajustes na divisão de autoridade entre os estados e o Governo Federal em políticas específicas, com constantes negociações entre as esferas de governo sobre qual terá autoridade sobre determinada política. A divisão de autoridade sobre políticas públicas varia, nos Estados Unidos, não só no tempo, mas também de estado para estado. Diferentemente da federação brasileira, contudo, esses ajustes não são constitucionalizados, e sim objeto de regras e normas infraconstitucionais.

Na discussão entre diversidade no interior de uma federação e uniformidade das políticas nacionais é necessário situar como o federalismo é tratado nos estudos sobre o tema. O federalismo é tratado mais frequentemente como uma variável independente. Sua instituição remediaria clivagens políticas, sociais e econômicas pela capacidade de o sistema de criar oportunidades para a expressão de valores locais 38. Outras vezes, o federalismo é também uma variável dependente porque seu funcionamento é função da adequada resolução de suas tensões e dilemas políticos e jurisdicionais 5. Entre essas tensões está o delicado equilíbrio entre autonomia regional e autoridade federal, como mencionado acima, e entre os dilemas está o equacionamento entre uniformidade e diversidade. Em alguns países, equacionar questões políticas e de jurisdição não é tarefa fácil porque as fronteiras entre a autoridade federal e as subnacionais são, muitas vezes, vagas, gerando conflitos sobre as responsabilidades governamentais. No entanto, a avaliação de que a distribuição de competência e de autoridade entre as unidades constitutivas é vaga decorre da experiência dos Estados Unidos. Isso não é o que acontece em federações como a brasileira e naquelas classificadas como cooperativas, nas quais muitas políticas públicas são formuladas e implementadas como políticas nacionais, por mais que haja, obviamente, algumas variações entre as unidades constituintes e entre os países.

Autonomia versus compartilhamento de autoridade

Um dos mais importantes dilemas das federações é como dividir autoridade entre os estados e o governo federal de modo que a rivalidade não destrua o potencial da união 2. Para contornar esse dilema, ou seja, o equilíbrio entre autonomia e compartilhamento de autoridade, Bednar 2 propõe a adoção de salvaguardas capazes de incentivar os atores políticos e os governos a preservar a federação. As salvaguardas são compostas por incentivos positivos e de sanção, embora os primeiros sejam, para Bednar, mais robustos.

O dilema autonomia versus compartilhamento de autoridade surge ainda quando governos de diferentes esferas assumem os créditos por políticas bem-sucedidas (credit claiming) ou apontam uma das esferas como responsável pelas malsucedidas, refletindo o oportunismo dos representantes das esferas de governo. O problema é agravado ainda porque, dada a natureza indivisível dos bens públicos, sua produção será sempre sujeita ao problema do “carona” (free-rider). Por isso, o objetivo do desenho institucional das federações é criar incentivos que contornem a tendência dos governos de tirar vantagem do sistema, contribuindo para que seu desempenho seja “robusto” 2.

Pierson 19 identificou na agenda da pesquisa institucionalista um vazio sobre o impacto do federalismo nas políticas públicas e chamou a atenção para uma questão importante e que tem efeitos sobre os sistemas federais: decidir quem será responsável pela política é tão ou mais importante do que o conteúdo da própria política. Entender quem “controla” (autonomia) e como “controla” (com ou sem o compartilhamento de autoridade) é, para Pierson, tarefa analítica complexa em países federais.

Peterson 39 também mostrou que, nas federações, políticas com externalidades positivas, tais como as de saúde e as de bem-estar em geral, podem ser rejeitadas pelos eleitores por medo de que seus estados atraiam moradores de outros, transformando-os no que Peterson denominou de welfare magnets, ou seja, que atraiam populações de outros estados onde a provisão de políticas sociais é mais restritiva. Nesse sentido, os estados podem abrir mão de sua autoridade sobre políticas com externalidades positivas caso pressintam que seus eleitores não as apoiarão. Essa, no entanto, é uma teoria que se aplica de forma mais clara às federações competitivas e não às mais cooperativas como o Brasil.

Os parágrafos acima remetem à questão do credito eleitoral (credit claiming) por políticas públicas. No caso brasileiro, pode-se inferir, por meio dos dados de um survey, o que pensam os cidadãos entrevistados sobre quem toma as decisões mais importantes na federação. Segundo o survey, os estados e seus governadores têm papel de coadjuvantes, enquanto percebem os presidentes e o Governo Federal, assim como os prefeitos e os municípios, nessa ordem, como os atores políticos e as esferas de governo mais importantes 26. Essa percepção decorre do escasso papel dos estados na provisão de bens públicos, especialmente de serviços sociais, vis-à-vis o governo federal e os municípios, dado o desenho da provisão desses bens.

Por fim, seja por determinação constitucional, como no Brasil, seja por negociação entre esferas de governo, como nos demais países caracterizados como federações cooperativas, é importante relembrar que a autoridade sobre políticas públicas, as decisões sobre seu compartilhamento ou não e a determinação de preferências sobre elas é um processo que emerge gradualmente, como mostrou Congleton et al. 23. Essa afirmação pode ser ilustrada com a recente decisão de maior participação da esfera federal na política de segurança pública.

Centralização versus descentralização

O federalismo é muitas vezes interpretado como sinônimo de descentralização. A descentralização no federalismo refere-se tão somente à divisão de poder entre os entes constitutivos definida nas constituições. Ou seja, apesar de o federalismo garantir a autonomia dos entes federados nas suas respectivas jurisdições, a descentralização não é condição necessária nem suficiente para o federalismo, como mostra Lijphart 37. Outros autores têm uma visão normativa da descentralização 6,38, pela sua capacidade de atuar como válvula de escape das tensões que podem ser geradas pela convivência de populações heterogêneas. Se, nessa visão, por exemplo, a descentralização pode minimizar clivagens étnicas e religiosas; essas não foram as bases iniciais para a constituição do Brasil como federação.

Filiados à teoria da escolha racional, como Weingast 40, incorporam a descentralização política e de recursos financeiros como a variável mais importante de uma federação. O federalismo fiscal também privilegia a descentralização para as esferas locais porque permite aos cidadãos elegerem políticos que adotarão políticas públicas que atendam às preferências da maioria dos eleitores. Por fim, Qian & Weingast 41 argumentam, na matriz teórica da escolha pública, que a descentralização é um instrumento eficiente de proteção do direito de propriedade.

Das teorias acima, resulta a premissa de que as federações que descentralizam autoridade e recursos financeiros para as esferas subnacionais melhor traduzem as preferências dos eleitores e permitem fazer escolhas entre diferentes tipos de políticas. Essa premissa ficou conhecida como “o eleitor vota com os pés”, significando que ele/ela escolhe onde morar de acordo com suas preferências sobre políticas e com o quanto está disposto a pagar por elas. Os eleitores decidem sobre o mix bens públicos + impostos, mudando para territórios onde esse mix mais satisfaça suas demandas, já que o custo de migrar é relativamente baixo 42. Esse paradigma é de difícil aplicação nos países em desenvolvimento porque a decisão de migrar é fortemente condicionada pela existência de emprego 13.

Outros analistas, contudo, não compreendem a centralização como normativamente contrária aos interesses da federação, particularmente no que tange ao controle das contas públicas, importante dimensão da agenda da globalização 43. Outros, ainda, mostraram que análises sobre centralização/descentralização devem ser desdobradas em três componentes: fiscal, administrativa e política 44,45. O primeiro trata do controle sobre a coleta e a aplicação dos recursos das esferas subnacionais; o segundo, da autoridade dos governos subnacionais de propor e implementar políticas e/ou de administrar a provisão de serviços sociais como educação, saúde, assistência social ou habitação, por transferência do centro 45. Já a descentralização política se refere à eleição direta para os cargos eletivos dos governos subnacionais. Falleti 45 também mostrou que a descentralização não necessariamente empodera governadores e prefeitos e que a magnitude dessa mudança pode variar de substancial a insignificante. Comparando quatro países da América Latina (Argentina, Brasil, Colômbia e México), a autora demonstrou que mesmo após as reformas que centralizaram recursos nesses países, Brasil, Colômbia e México aumentaram a autoridade dos governos subnacionais nas variáveis selecionadas vis-à-vis o período anterior, enquanto a Argentina não.

Por fim, o debate centralização/descentralização não é fechado em torno de uma dicotomia. Trata-se de um continuum e de um processo.

Considerações finais

Este artigo analisou o federalismo brasileiro reconstituído após a redemocratização, indagando como os principais dilemas federativos são contornados para que as diversas esferas de governo cooperem na formulação e implementação de políticas públicas nacionais e, como consequência, como são restringidos os vetos das instâncias subnacionais à adoção de tais políticas. A análise foi desdobrada em quatro dimensões que correspondem aos principais dilemas das federações: coordenação versus cooperação; uniformidade versus diversidade; autonomia versus compartilhamento de autoridade e centralização versus descentralização. Desagregar essas dimensões dos sistemas federais permite entender melhor federações como a brasileira, que são arranjos complexos dessas diversas dimensões. Permite também entender melhor por que algumas federações não são passíveis de rótulos que terminam por simplificar um sistema complexo. Parte das simplificações sobre a federação brasileira decorre do fato de ela ser constantemente comparada com a dos Estados Unidos, que, como mostram vários autores, hoje é mais a exceção do que a regra.

Diferente do que inicialmente previsto por alguns analistas do federalismo brasileiro e do federalismo em geral, o redesenho da federação após 1988 não tornou o Brasil ingovernável, não tornou os governadores em instâncias de veto de políticas públicas nacionais nem impediu a adoção de algumas políticas redistributivas. A despeito de algumas dimensões da federação brasileira reduzirem a autonomia de governadores e prefeitos, eles não se tornaram atores passivos e detêm autoridade para determinar questões sensíveis da federação. Isso foi possível pela construção de um desenho sofisticado e engenhoso, tanto na Constituição de 1988 quanto nos incentivos inseridos no desenho das políticas. Esse desenho foi capaz de minimizar os dilemas federativos, apaziguar disputas e os possíveis vetos dos atores subnacionais às políticas nacionais. Por fim, o artigo mostrou que a análise das federações não se resume a apenas uma dimensão, mas a várias. Essas dimensões, combinadas, permitem um entendimento mais acurado de fenômenos complexos, como são os sistemas federais. Todavia, a agenda de pesquisa sobre o federalismo brasileiro precisa avançar em algumas questões. A primeira é investir em pesquisas que vão além da análise restrita à receita e despesa. Como discutido acima, estados e municípios detêm autoridade e autonomia para fixar alíquotas e gastar parte significativa de seus tributos exclusivos, aspecto pouco notado por analistas que conferem os rótulos de centralizado, predatório, dependente etc. ao federalismo brasileiro. Para tanto, a pesquisa comparada também pode ajudar a superar certos sensos comuns que caracterizam algumas análises sobre o federalismo brasileiro. A segunda é investigar as diferenças entre estados e municípios nas várias dimensões que compõem um sistema federal. Isso é importante por várias razões. A primeira é que governos de instâncias territoriais diferentes têm distintas agendas políticas, sociais e econômicas. No mesmo veio, teorias sobre governança local respondem a questões distintas das que tratam dos governos intermediários. Além disso, e como mostram vários trabalhos, a descentralização para os municípios e o crescimento da sua autoridade foram mais profundos na América Latina do que nas demais regiões.

Agradecimentos

Agradeço aos pareceristas anônimos por suas críticas e sugestões.

Referências

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Citações de dados

Arretche M, Schlegel R. Os estados nas federações. Tendências gerais e o caso brasileiro. s.l.: Banco Interamericano de Desenvolvimento; 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2018
  • Revisado
    20 Jun 2018
  • Aceito
    25 Jun 2018
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