A judicialização das políticas de saúde nas últimas três décadas tem se revelado inexorável no contexto brasileiro. O Supremo Tribunal Federal (STF) lançou, em março de 2020, o Painel COVID-19, que permite acompanhar os processos judiciais relacionados à pandemia em tempo real. Dois meses após, o painel registrava 2.762 processos e 2.614 decisões judiciais. A intensidade da litigância em saúde não é excepcional. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contabilizava nos Tribunais Superiores, no ano de 2008, 2.969 processos e, em 2017, 40.658. Na primeira instância o número de processos também dobrou no mesmo período, com 95.752 processos no ano de 2017.
Se o crescimento exponencial impressiona pelos números, os estudos sobre o tema revelam muito mais sobre o fenômeno. Trazem à discussão os desafios presentes nos Estados de Direito Democráticos e para a governança em políticas públicas. Na última década, a gestão da judicialização da saúde tem sido marcada pela busca de uma “exigibilidade pactuada” 1, com medidas de racionalização da demanda judicial e forte articulação entre instituições de saúde e de justiça. As aproximações resultaram em uma política judiciária de resolução de conflitos na saúde protagonizada pelo CNJ, que recomenda a criação de novos arranjos interinstitucionais, como os Núcleos de Assistência Técnica aos juízes, e a adoção de parâmetros técnico-científicos e político-administrativos para as deliberações. Preconizam, ainda, o uso de Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos (MARC) que reduzam a judicialização. Assim, não é mais possível compreender e formular políticas públicas de saúde sem levar em consideração a atuação dos atores do sistema de justiça e suas interações com o Executivo e Legislativo, que têm transformado saberes e práticas na saúde.
A excelente obra organizada por Vanessa Elias de Oliveira nos brinda com uma coletânea de estudos de autores das Ciências Sociais e Políticas e do Direito, avançando na compreensão mais ampla e aguçada da judicialização das políticas públicas em sua configuração recente. A judicialização da saúde é tratada apenas em um dos 12 artigos da coletânea. No entanto, a extensão temática do trabalho dialoga diretamente com preocupações fundantes da Saúde Coletiva e com a ampla produção científica sobre o tema neste campo.
A grande inovação do livro é o foco na análise das interações entre o sistema de justiça, Executivo e Legislativo, evidenciando empiricamente suas formas e implicações para as instituições e nas políticas públicas de saúde, educação, assistência social, habitação e ambiente. Nesse sentido, diferencia-se das publicações mais recorrentes, que privilegiam as análises sobre os mecanismos e as interpretações judiciais e a caracterização das demandas judiciais e seus efeitos para a gestão.
A coletânea é um conjunto harmônico, orientado por um esquema argumentativo bem traçado pela organizadora, que traz à discussão os três elementos centrais do processo de judicialização de políticas públicas: a constitucionalização de direitos e de políticas públicas, a ampliação do acesso à justiça e o protagonismo de instituições do sistema de justiça. O enredo potencializa a compreensão do tema e lhe dá unidade, estimulando a leitura integral do livro.
Os autores oferecem abordagens teóricas e metodológicas interessantes, que dialogam com as novas preocupações epistemológicas, éticas, políticas e sociais da judicialização. A extensão institucional e processual, e a importância dos novos atores nesse processo, como os Ministérios Públicos e as Defensorias Públicas, além do Judiciário, são desenvolvidas de forma densa e com linguagem apropriada para leitores de diferentes campos. O livro permite ampliar o poder explicativo e compreensivo do objeto estudado e questionar alguns mitos sobre os efeitos da judicialização.
Na primeira parte, são tratados diferentes aspectos do arcabouço institucional da judicialização das políticas públicas. Cláudio Gonçalves e Rogério Arantes tratam das dimensões políticas do processo democrático, no artigo Constituição, Governo e Democracia no Brasil, enfatizando os emendamentos constitucionais e suas repercussões no sistema político e de justiça, sobretudo no controle de constitucionalidade das normas. Conrado Hubner Mendes aborda, em perspectiva constitucionalista, o processo decisório do STF. Rogério Arantes retorna para tratar do Ministério Público (MP) e, com sua sólida e longa experiência no assunto, traz uma análise institucional primorosa, enfatizando os mecanismos extrajudiciais, com críticas pertinentes e consistentes sobre a atuação do MP e suas implicações.
Dois estudos sobre o acesso à justiça encerram a Parte I, preenchendo outra lacuna na discussão. Thiago M. Queiroz Moreira apresenta as expectativas e o desenvolvimento histórico da Defensoria Pública, como instituição central para o acesso à justiça, os desafios para sua consolidação institucional e a crescente atuação da instituição no processo de judicialização de políticas como educação, habitação e saúde. Luciana Gross Cunha e Fabiana Luci de Oliveira trazem importante estudo sobre as percepções, atitudes e experiências da população a respeito das instituições de justiça. Não se tratou da Advocacia Privada, tema importantíssimo, que se espera ser trazido em novas produções do grupo.
Na Parte II os artigos discutem empiricamente as interações entre poderes e instituições sobre diferentes políticas públicas. O pressuposto de que a judicialização não produz, a priori, resultados positivos ou negativos de forma dicotômica é demonstrado efetivamente nas análises empreendidas, lançando luz à discussão por vezes pouco crítica e reflexiva sobre este aspecto.
O artigo Caminhos da Judicialização do Direito à Saúde, de autoria da organizadora, traz a evolução histórica político-institucional e jurisprudencial, com análise dos diversos e atuais entrelaçamentos institucionais para a gestão da judicialização. Aponta a Saúde Coletiva como o campo que mais desenvolveu estudos sobre o tema, inovações e entrelaçamentos institucionais. Como marco inicial desse processo, aponta a litigância judicial empreendida pelas pessoas com HIV/aids nos anos 1990. Interessante observar que a resposta social brasileira ao HIV/aids adotou a judicialização de outras políticas como a de trabalho e previdência que não são trazidas. Certamente, os avanços relativos às políticas de saúde, especialmente a de acesso a medicamentos, ganharam maior relevância e repercussão em diferentes grupos sociais 2.
Os capítulos seguintes prosseguem nas análises de diferentes tipos de litígios e suas repercussões positivas, negativas e imprevisíveis desse processo na interação com o Legislativo e o Executivo. Eloisa Machado de Almeida, advogada atuando na litigância em direitos humanos, discute o processo tenso e intenso da descriminalização do aborto. Juliana Fabbron Marin Marin aborda a união homoafetiva no Brasil tratando da decisão do STF, de 2011, e suas repercussões políticas e sociais.
Vanessa Elias de Oliveira retorna juntamente com Thais Fernanda Lopes para discutir o conflito entre o direito à moradia e o direito ambiental em instigante e importante pesquisa, “Judicialização do conflito ambiental-urbano: a política habitacional em áreas de preservação ambiental”, que analisa empiricamente a resposta do Município de São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil. O artigo de Fernanda Kagan Mallak discute as moradias na rodovia Anchieta, em Diadema. Os dois capítulos demonstram que a judicialização do direito à moradia não tem sido tão eficiente quanto de outros, como a do direito a medicamentos.
A constatação de diferentes respostas à judicialização de acordo com os direitos ou tipo de bem ou prestação reivindicadas nos instiga a novas pesquisas. As evidências não demonstram a existência de um ciclo de políticas públicas judicializadas e outro não, mas um processo cíclico complexo e composto de fases não necessariamente sequenciais, também nos fazem refletir sobre os mecanismos adjudicatórios das intervenções judiciais.
Encerrando o livro, dois artigos discutem temas caros à Saúde Coletiva. Daniel Wei L. Wang e Natalia Pires de Vasconcelos, ambos juristas, e o primeiro com diversos estudos sobre judicialização da saúde, tratam da política de assistência social analisando a atuação do STF sobre o critério de renda do benefício de prestação continuada. Salomão Barros Ximenes e Adriana Dragone Silveira elaboram uma crítica da judicialização da educação e analisam os litígios judiciais para o acesso à educação básica.
Evidencia-se todo o tempo que o processo de judicialização confronta uma avançada construção constitucional, que assegura direitos e políticas para o bem-estar da população, com institucionalidades ainda precárias. O resultado virtuoso deste confronto dependerá das condições asseguradas pelas forças sociais presentes em determinada conjuntura, de uma cultura jurídica que expresse uma maior ou menor efetividade dos direitos, e a existência de estruturas administrativas que sustentem sua aplicação 3.
Estes são alguns dos motivos para a leitura da obra, que nos impulsiona a buscar abordagens que ampliem nossa compreensão sobre o multifacetado e complexo processo brasileiro de judicialização das políticas públicas.
Referências
- 1 Fleury S. A judicialização pode salvar o SUS. Saúde Debate 2012; 36:591-8.
- 2 Ventura M. Instrumentos jurídicos de garantia dos direitos das pessoas vivendo com HIV/AIDS. In: Acselrad G, organizador. Avessos do prazer: drogas, Aids e direitos humanos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 125-54.
- 3 Santos BS. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Editora Cortez; 2007.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Ago 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
07 Jun 2020 -
Aceito
12 Jun 2020