Enquanto o livro Desastres: Velhos e Novos Desafios para a Saúde Coletiva11. Rocha V , Londe LR . Desastres: velhos e novos desafios para a saúde coletiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. terminava de ser escrito em 2020 pelas autoras Vânia Rocha e Luciana de Resende Londe, com posterior lançamento em 2021, o mundo experienciava a pandemia de COVID-19, caracterizada como um desastre biológico. Nessa contextualização que reveste sua publicação, a justificativa e a relevância dessa obra que compõe a coleção Temas em Saúde, da Editora Fiocruz, parecem evidentes. Esta resenha ressalta três de seus aspectos fundamentais que se entrecruzam: a construção do complexo conceito de desastre; suas dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais que lhe são intrínsecas; e a utilização de exemplos brasileiros que parecem cumprir uma função político-argumentativa. Dessa forma, considerando a centralidade dos desastres e da saúde coletiva, procuramos apontar, sem desconsiderar os outros méritos da obra, como bem observados por Germinatti 22. Germinatti FT. Quando a saúde coletiva é envolvida pelos riscos. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2022; 29:584-6., a relevância da interdisciplinaridade nos estudos sobre os desastres, em especial as contribuições do eixo das ciências sociais e humanas que compõe o campo da saúde coletiva.
Em busca de respostas que perpassam 138 páginas em cinco capítulos, a questão inicial posta pelas autoras é: afinal, o que são os desastres? E, talvez, a competência central desse livro seja a elasticidade na explanação de um conceito tão complexo, no qual uma única definição absoluta não se mostra suficiente. Na própria conceituação, as autoras articulam os desastres às áreas diversas do conhecimento, sem se restringirem a um único ponto de vista, o que funciona, indiretamente, como claro argumento à necessidade do incentivo à interdisciplinaridade na ciência brasileira nesse campo, ao apresentarem os dados recentes sobre a produção científica acerca do tema nos últimos vinte anos no país.
Em outras palavras, da definição utilizada pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil até a contribuição conceitual das ciências sociais, as autoras fortalecem e dão embasamento a um conceito que depende, invariavelmente, da articulação entre outros que o atravessam, como: vulnerabilidade (e vulnerabilização), resiliência, exposição, ameaças e riscos. De forma cuidadosa e didática, o campo de estudos sobre desastres se torna compreensível à medida que são esclarecidas as diferenças entre esses conceitos, de modo que não se confundam entre si.
Esse campo de investigação, com origens militares, em que o foco se detinha sobre a compreensão do desastre como um evento puramente físico e em formas de reconstrução em termos estruturais, foi ampliado com a inserção de questionamentos de cientistas sociais na década de 1970, que redirecionaram o foco para os processos e fatores que vulnerabilizavam as comunidades envolvidas nos desastres. Assim, as autoras mapeiam a construção desse campo, apontando para a necessidade e importância de referenciais teóricos que classifiquem e tipifiquem esses desastres, mas que, quando aplicados de forma isolada, não têm eficácia prática, uma vez que os processos sociais, econômicos e políticos estão encarnados no próprio desastre.
O fenômeno do desastre é questionado, de forma muito interessante, quase a partir de seus impactos e efeitos. E, assim, é trazida a sua dimensão produtiva: ao mesmo tempo que se trata de um fenômeno produzido por inúmeros fatores correlacionados, um desastre é capaz também de ser reconhecido a partir dos efeitos que produz na vida e na saúde humana e ambiental. Sua conceituação, logo, não se limita à ameaça e ao evento. Os ditos desastres naturais não são naturais, são construções sociais. A ameaça natural (climática) ou tecnológica, que são discutidas em detalhes nos capítulos dois e três, respectivamente, não definem um desastre: são apenas aspectos na complexa trama que fornecem concretude ao fenômeno. É nesse ponto que a argumentação central das autoras nos direciona para a dimensão social e política do desastre, afinal “precisamos também reforçar nosso entendimento de que desastres não são naturais, e, assim, há ações a serem tomadas em várias esferas, da individual à coletiva, da local à global” 11. Rocha V , Londe LR . Desastres: velhos e novos desafios para a saúde coletiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. (p. 110-1).
Essa dimensão coloca em movimento uma espécie de responsabilização conjunta do tecido social, em que a micropolítica e a macropolítica são extremamente relevantes. Isso significa dizer que, como as autoras nos levam a compreender, não é possível ignorar as root causes - ou “causas primárias” - dos desastres. Esse é um ponto em que vulnerabilidade, vulnerabilização e risco são articulados. No caso brasileiro, essas causas são rastreáveis à época colonial: a abolição de pessoas escravizadas sem o planejamento adequado de formas concretas de mudanças de paradigmas nas relações estabelecidas com aquelas pessoas levou-as à marginalização e à exclusão social, à migração urbana e à ocupação de áreas consideradas sem valor comercial. Essas áreas seriam denominadas “áreas de risco”. Esse é um breve exemplo da violenta herança histórica do Brasil, que se articula intimamente na forma como compreendemos o desastre, bem como seus efeitos devastadores, majoritariamente em populações historicamente vulnerabilizadas e empobrecidas economicamente. Os dados apresentados pelas autoras corroboram o argumento de que, mesmo em países ricos, as populações marginalizadas são as que mais sofrem os danos e as consequências dos desastres.
A trama de conceitos e fenômenos que envolvem os desastres é apresentada ao longo dos capítulos justamente para que o público seja convencido a pensar para além do dia do desastre e a repensar, também, o que se entende por esse conceito. Essa construção conceitual perpassa por desconstruções necessárias para sua compreensão: “o modo como se conceituam os desastres define o estabelecimento das práticas e políticas relacionadas a ele” 11. Rocha V , Londe LR . Desastres: velhos e novos desafios para a saúde coletiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. (p. 23). Não se trata apenas de uma construção teórica, mas do entendimento lógico que a teoria determina e direciona a prática. Isso significa considerar o desastre, na prática, em suas dimensões políticas, sociais, culturais e econômicas, assim como no contexto dos meios de produção e desenvolvimento capitalista em que estamos inseridos.
Assim, as autoras demarcam que as políticas públicas são o meio essencial de assistência, prevenção e redução de riscos e desastres. Para tanto, um cenário político democrático favorável nas três esferas de poder público é indispensável. Nessa linha argumentativa, as autoras apresentam as estratégias nacionais e globais de enfrentamento às mudanças climáticas e aos desastres, como a Redução de Riscos de Desastres (RRD), Agenda 2030, Marco de Sendai, Acordo de Paris, Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, a criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), entre outras. São essas estratégias que marcam as possibilidades políticas de preservação da vida.
Essa argumentação nos leva às considerações centrais dos impactos dos desastres na saúde: desde efeitos diretos e agudos, como doenças infectocontagiosas, surtos, epidemias, até os efeitos indiretos e crônicos, como questões de grave sofrimento mental. Nesse sentido, um ponto de extrema importância na conceituação do desastre, especialmente quando articulado à saúde coletiva, é o aspecto humano: não há desastre sem presença humana. O humano é a condição básica para que um evento seja, conceitualmente, um desastre. Logo, é um fenômeno complexo com todas essas dimensões apontadas. Na perspectiva da saúde coletiva, entende-se que a vulnerabilização, a pobreza, as desigualdades e as violências que revestem os desastres devem ser enfrentadas preventivamente, assistencialmente e ativamente em suas reduções - um trabalho fundamentalmente sociopolítico.
O panorama oferecido pelas autoras é essencial na atualidade: elas apresentam pontos de vista que não se anulam, mas se complexificam e contribuem para o debate. Contudo, o fio argumentativo desconstrói e desnaturaliza, a todo momento, o desastre como “natural”. Para isso, conceitos e teorias são acionados e sustentam a discussão. De maneira extremamente sutil e impactante, as autoras nos fornecem exemplos brasileiros de desastres que corroboram seus argumentos, com ênfase especial aos desastres relacionados à seca no Brasil. Eles são historicamente invisibilizados por não se tratar de um evento único - como um deslizamento de terra -, mas de processos crônicos, que, conforme explicitado pelas autoras, são responsáveis por 50% das vítimas de desastres. A utilização, não única, mas enfática, do exemplo brasileiro das secas na obra aqui resenhada nos parece argumento para a construção conceitual do desastre realizada pelas autoras e suas diversas dimensões que se entrelaçam aos impactos que ele causa na saúde coletiva: alguns novos, outros velhos, e alguns outros ignorados e invisibilizados por governanças antidemocráticas e retrógradas.
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1Rocha V , Londe LR . Desastres: velhos e novos desafios para a saúde coletiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.
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2Germinatti FT. Quando a saúde coletiva é envolvida pelos riscos. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2022; 29:584-6.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Out 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
31 Ago 2022 -
Aceito
19 Set 2022