Open-access Da capitalização da medicina à financeirização da saúde

From capitalization of medicine to financialization of health

De la capitalización de la medicina a la financiarización de la salud

Em momento oportuno chega aos Cadernos de Saúde Pública este artigo de Braga & Oliveira 1. Depois de uma das contribuições fundantes para a área de Política de Saúde no Brasil, analisando a capitalização da medicina 2, e de uma Tese de Doutorado 3, em 1985, contemplando a teoria da dinâmica capitalista, o Professor José Carlos de Souza Braga, agora, em parceria com o colega da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Giuliano Contento de Oliveira, explicita os conceitos de financeirização da saúde e dominância financeira na análise do sistema de saúde brasileiro, especialmente o SUS, diante da pandemia da COVID-19.

O intercâmbio acadêmico entre economistas da Unicamp e pesquisadores do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a liderança da Professora Lígia Bahia, ao lado do Grupo de Estudos sobre Financeirização do Instituto de Economia da UFRJ, tem proporcionado o desenvolvimento de linhas de pesquisa inovadoras, de grande relevância para a Saúde Coletiva. Suas ferramentas teóricas e o recurso a fontes empíricas permitiram explorar hipóteses criativas para analisar a realidade além do nível fenomênico, possibilitando a identificação, descrição e análise de processos que reconfiguram a estrutura do setor saúde no Brasil 4.

Esses estudos permitem investigar a privatização da saúde numa perspectiva estrutural, a partir da dinâmica do capitalismo moderno, sob a dominância financeira. O artigo em debate aciona a categoria de totalidade com promissores desdobramentos na produção de conhecimento. Recorrendo à economia política, tão subutilizada pela Saúde Coletiva no presente século, mas sem se subordinar ao determinismo econômico, o ensaio contempla o nível das estruturas, explicando certos movimentos do capital no capitalismo contemporâneo. No Brasil, a abertura da saúde ao capital estrangeiro, iniciada pela Lei nº 9.656/19985, e a sua radicalização pela Lei nº 13.097/20156 podem ser indicações fenomênicas desses processos, evidenciando o redirecionamento do sistema de saúde brasileiro no sentido contrário ao fortalecimento do SUS. Assim, a análise estrutural procura dar conta da dinâmica do capital, especialmente o seu componente financeiro, quando o fenômeno da financeirização - que caracteriza o capitalismo moderno - invade o setor de saúde.

Que repercussões podem ter tais achados para os que pesquisam e formulam políticas de saúde no Brasil? Em primeiro lugar, retoma-se a construção de um quadro teórico de referência robusto para investigar políticas e sistemas de saúde, bem além das “teorias de médio alcance”. Em segundo lugar, torna-se possível destrinchar certas relações do setor saúde com a dinâmica do capital, sem negligenciar os movimentos das forças sociais e políticas nas conjunturas, de modo que o conhecimento produzido possa orientar novas intervenções. Em terceiro lugar, com base nesses estudos, pode-se realizar uma análise política mais completa, incluindo instituições, sujeitos e atores sociais, de modo a apoiar uma ação política com proposições e estratégias menos parciais para o enfrentamento das diversas formas de privatização.

Se de um lado as tendências dos sistemas de saúde universais no mundo apontam para a privatização, de outro sugerem que são sensíveis às mobilizações políticas de cidadãos, sindicatos, partidos e movimentos sociais que têm impedido a adoção de políticas de saúde mais regressivas. Nessa perspectiva, a pandemia da COVID-19 demonstrou a relevância dos sistemas universais de natureza pública e das instituições de vigilância em saúde para mitigar os efeitos deletérios dessa tragédia humanitária. Mas a financeirização da saúde vinculada à dominância financeira, enquanto determinação econômica, continua representando uma das maiores ameaças a tais sistemas e ao SUS, em particular. Mais do que uma mera privatização, esses fenômenos comprometem o poder de regulação do Estado diante da globalização financeira.

A leitura do artigo de Braga & Oliveira 1 sugere que as possibilidades de mudanças, atualmente, são muito mais difíceis e remotas. Embora não seja propósito dos autores identificar saídas, nem tampouco promover um pessimismo analítico, constata-se um certo incômodo ao longo do texto quando, cientes das dificuldades, apenas deixam uma janela aberta para possibilidades.

Entretanto, as continuidades e crises do capitalismo financeirizado geram contradições que impulsionam a atuação na História. Para além da evolução do capitalismo financeirizado no mundo, importa discutir, presentemente, os caminhos para o desenvolvimento econômico no Brasil, numa agenda que contemple, entre as várias dimensões, a redução das desigualdades sociais (de riqueza, renda, raça, gênero, entre outras) e a questão ambiental. A pandemia da COVID-19 escancarou as limitações e perversões das opções neoliberais para as políticas econômicas, sociais, ambientais e culturais.

Com efeito, economistas, intelectuais e centros de pesquisa têm ensaiado a elaboração de propostas contra-hegemônicas que sejam capazes de agregar forças políticas para a sua sustentação 7. No entanto, a inércia do mainstream, a atuação da grande mídia e o neoliberalismo, enquanto ideologia dominante, continuam monopolizando os debates e interferindo na ação dos governos. No caso da saúde, o proselitismo em defesa do SUS, a despeito da sua relevância política e ideológica, parece insuficiente para enfrentar essa dominação objetiva e estrutural do capital, bem como as forças que sustentam a privatização da saúde no Brasil. Daí que a busca de saídas políticas mais amplas se impõe.

No ano de 2020, o SUS, apesar de reduzido, combalido e fragilizado, conquistou grande visibilidade durante a pandemia, e a militância do movimento da Reforma Sanitária Brasileira instaurou a Frente pela Vida, possibilitando reencontros com os movimentos sociais e a sociedade civil organizada, de onde nasceu, além da ação política sobre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário 8. Portanto, mudanças na práxis social requerem produção de conhecimento, intensa organização, pensamento estratégico e iniciativa política, conforme se pode apreender nas entrelinhas da conclusão do artigo em discussão, sobretudo quando afirma que dificuldade não significa impossibilidade.

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  • 1 Braga JCS, Oliveira GC. Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00325020.
  • 2 Braga JCS, Paula SG. Saúde e previdência: estudo de política social. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde/São Paulo: Hucitec Editora; 1981.
  • 3 Braga JCS. Temporalidade da riqueza: uma contribuição à teoria da dinâmica capitalista [Tese de Doutorado]. Campinas: Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas; 1985.
  • 4 Sestelo JAF. Planos de saúde e dominância financeira. Salvador: EDUFBA; 2018.
  • 5 Brasil. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de Assistência a Saúde. Diário Oficial da União 1998; 4 jun.
  • 6 Brasil. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita de vendas e na importação de partes utilizadas em aerogeradores; prorroga os benefícios previstos nas Leis nos 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.440, de 14 de março de 1997, 10.931, de 2 de agosto de 2004, 11.196, de 21 de novembro de 2005, 12.024, de 27 de agosto de 2009, e 12.375, de 30 de dezembro de 2010; altera o art. 46 da Lei nº 12.715, de 17 de setembro de 2012, que dispõe sobre a devolução ao exterior ou a destruição de mercadoria estrangeira cuja importação não seja autorizada; altera as Leis nos 9.430, de 27 de dezembro de 1996, 12.546, de 14 de dezembro de 2011, 12.973, de 13 de maio de 2014, 9.826, de 23 de agosto de 1999, 10.833, de 29 de dezembro de 2003, 10.865, de 30 de abril de 2004, 11.051, de 29 de dezembro de 2004, 11.774, de 17 de setembro de 2008, 10.637, de 30 de dezembro de 2002, 12.249, de 11 de junho de 2010, 10.522, de 19 de julho de 2002, 12.865, de 9 de outubro de 2003, 10.820, de 17 de dezembro de 2003, 6.634, de 2 de maio de 1979, 7.433, de 18 de dezembro de 1985, 11.977, de 7 de julho de 2009, 10.931, de 2 de agosto de 2004, 11.076, de 30 de dezembro de 2004, 9.514, de 20 de novembro de 1997, 9.427, de 26 de dezembro de 1996, 9.074, de 7 de julho de 1995, 12.783, de 11 de janeiro de 2013, 11.943, de 28 de maio de 2009, 10.848, de 15 de março de 2004, 7.565, de 19 de dezembro de 1986, 12.462, de 4 de agosto de 2011, 9.503, de 23 de setembro de 1997, 11.442, de 5 de janeiro de 2007, 8.666, de 21 de junho de 1993, 9.782, de 26 de janeiro de 1999, 6.360, de 23 de setembro de 1976, 5.991, de 17 de dezembro de 1973, 12.850, de 2 de agosto de 2013, 5.070, de 7 de julho de 1966, 9.472, de 16 de julho de 1997, 10.480, de 2 de julho de 2002, 8.112, de 11 de dezembro de 1990, 6.530, de 12 de maio de 1978, 5.764, de 16 de dezembro de 1971, 8.080, de 19 de setembro de 1990, 11.079, de 30 de dezembro de 2004, 13.043, de 13 de novembro de 2014, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, 10.925, de 23 de julho de 2004, 12.096, de 24 de novembro de 2009, 11.482, de 31 de maio de 2007, 7.713, de 22 de dezembro de 1988, a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, o Decreto-Lei nº 745, de 7 de agosto de 1969, e o Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972; revoga dispositivos das Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.360, de 23 de setembro de 1976, 7.789, de 23 de novembro de 1989, 8.666, de 21 de junho de 1993, 9.782, de 26 de janeiro de 1999, 10.150, de 21 de dezembro de 2000, 9.430, de 27 de dezembro de 1996, 12.973, de 13 de maio de 2014, 8.177, de 1º de março de 1991, 10.637, de 30 de dezembro de 2002, 10.833, de 29 de dezembro de 2003, 10.865, de 30 de abril de 2004, 11.051, de 29 de dezembro de 2004 e 9.514, de 20 de novembro de 1997, e do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941; e dá outras providências. Diário Oficial da União 2015; 20 jan.
  • 7 Leite AZ, Oliveira AP, Fontenele AM, Alves Jr. AJ, Cardoso AM, Dias CCN, et al. Brasil: incertezas e submissão? São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2019.
  • 8 Paim JS. A COVID-19, a atualidade da Reforma Sanitária e as possibilidades do SUS. In: Santos AO, Lopes LT, organizadores. Reflexões e futuro. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 2021. p. 310-24. (Coleção COVID-19, 6).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2021
  • Aceito
    03 Fev 2021
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