Antes de dar início à proposta específica de uma breve apresentação da consistente obra de Tamara Rangel Vieira 1, cabe um rápido comentário sobre o título desta resenha. Trata-se de um jogo de palavras com referência à citação da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas 2, que, inclusive, foi apropriadamente assinalado na tese de doutorado da autora, defendida em 2012 no âmbito acadêmico da Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). É relevante considerar que a tese teve como orientadora a pesquisadora Nísia Trindade Lima, ex-presidente da Fiocruz em mais de um mandato e atual Ministra da Saúde no novo e promissor governo pós-bolsonárie. Sua equipe tem pela frente o enorme desafio de enfrentar os efeitos danosos da sinergia pandemencial que se instalou em nossos sertões quando menos se esperava, esperando (inspirado em uma conhecida frase de um atilado personagem infantil mexicano).
É preciso destacar que aspectos importantes também envolvem o termo “sertão” e a respectiva percepção de como esse nome também é fundamental para se tentar explicar e enfrentar neste país as renitentes e graves mazelas sanitárias que nos assolam há bastante tempo. Se fizermos uma busca rápida na internet, obtemos uma definição que coincide com o senso comum no entendimento de seu sentido: “região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas; A terra e a povoação do interior; o interior do país; Toda região pouco povoada deste ‘interior’, em especial a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos” 3.
Decerto essa questão vai se complexificar enormemente se estivermos preocupados com respectivos determinantes sociopolíticos, geográficos e históricos que não pertencem ao escopo desta resenha. Mas, ainda assim, não merecem ser desconsiderados (nesse caso, cabe consultar, por exemplo, Villela 4).
Ora, há uma inevitável verdade veiculada pelo livro que não pode ser negligenciada: o sempre preocupante panorama sanitário brasileiro. Durante muito tempo, a saúde e as doenças infectocontagiosas no Brasil foram temas que geraram muita preocupação em várias dimensões, inclusive na sua relação essencial com a atuação e o desempenho das profissões do campo da saúde. Infelizmente, mesmo admitindo determinados avanços, precariedades socioeconômicas e sanitárias permanecem interagindo e produzindo danos, sofrimentos e perdas em consideráveis contingentes populacionais até os dias de hoje, como no caso degradante relacionado às tribos Yanomami.
Ao ser enfocado pela autora determinado período, 1947-1960, em uma região denominada sertão goiano, é possível verificar que mesmo naquela época o Estado brasileiro - inclusive em relação a outros sertões - já enfrentava diversos problemas sociossanitários graves, que incluíam, por exemplo, falta de saneamento básico e água tratada, causa que per se mantinha elevada a ocorrência constante de doenças infecciosas e parasitárias, além de outras mazelas.
Como em outras regiões deste país, o sertão goiano era carente de médicos e de estrutura hospitalar adequada, o que tornava o acesso à saúde sempre um grande desafio para as populações locais. Para combater essas doenças, vale destacar os esforços para viabilizar as admiráveis ações do grupo de “médicos do sertão” e instituições goianas - tema central da obra, que retrata um capítulo importante da história das ciências da saúde no Brasil.
No entanto, apesar das nobres ações desse grupo de médicos nesse período histórico, não é possível deixar de ressaltar que teimam em persistir as contumazes alegações de falta de recursos e de precariedade das condições de saúde no sertão goiano, que ainda representam um constante desafio (assim como em muitos outros lugares precarizados neste país). Ou seja, grosso modo, em anos recentes - mas não apenas - permaneceram escassos investimentos mais significativos em infraestrutura, recursos humanos, entre outras áreas, para superar de maneira efetiva as condições limitadas de saúde que continuam existindo em várias regiões brasileiras.
Em síntese, essa briosa obra se aventura na saga dos médicos que atuaram nessa região, empregando uma denominação essencialmente brasileira para designar a paisagem marcante dos chamados sertões brasileiros.
Segundo uma resenha de Rezende & Silva 5 sobre a obra de Sônia Maria Magalhães 6, percebe-se que a imagem de Goiás era ambígua, pois ao mesmo tempo que era parte do império, estava à margem dele. Magalhães apontou os efeitos da alimentação na saúde dos goianos ao longo do século XIX.
Dessa maneira, devido às limitações da atividade de subsistência, havia um verdadeiro estado crônico de carestia e de crise alimentar, que, de forma constante, se tornava fome declarada e generalizada. A citada autora constatou que os goianos continuaram a ingerir ingerindo alimentos com baixo teor nutritivo, cuja alimentação era baseada em milho, mandioca, arroz, feijão e carne seca, temperados com baixa quantidade de sal. No entanto, apesar de tal comida ter saciado a fome de muitos, em longo prazo, contribuiu para a disseminação de doenças, principalmente no âmbito nutricional.
Deve-se enfatizar que, no processo de institucionalização da medicina em Goiás, verificou-se um movimento pela definição dos espaços ocupados pelos que atuavam a serviço da saúde. Assim, a formação acadêmica passou a ser requisito obrigatório para a prática médico-sanitária.
A incursão pelos males do sertão é repleta de eventos que têm como referência o próprio sertão, usualmente caracterizado como atrasado, inóspito, árido - passível, inclusive, de ser considerado um núcleo de elementos essenciais para a compreensão da própria nação brasileira. Essa perspectiva, em si, demonstra cabalmente a relevância do livro de Tamara Vieira para, entre outros aspectos relevantes, também enfocar a dimensão sertãogênica deste país.
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- 1 Vieira TR . Médicos do sertão: ciência, saúde e doenças em Goiás, 1947-1960. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022.
- 2 Guimarães Rosa J. Grande sertão: veredas. São Paulo/Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 2019.
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3 Dicionário Criativo. Significado de sertão. https://dicionariocriativo.com.br/significado/sert%C3%A3o (acessado em 19/Fev/2023).
» https://dicionariocriativo.com.br/significado/sert%C3%A3o - 4 Villela JM. Apresentação ao dossiê. Revista de @ntropologia da UFSCar 2015; 7:7-10.
- 5 Rezende FS, Silva HM. Desvendando os males do Sertão Goiano por meio da história da saúde e das doenças. Intellèctus 2017; XIV:234-40.
- 6 Magalhães SM. Males do sertão: alimentação, saúde e doenças em Goiás no século XIX. Goiânia: Cânone Editorial; 2014.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
27 Fev 2023 -
Aceito
02 Mar 2023