Open-access Desafios relacionados aos registros e à qualidade da informação na Amazônia

Desafíos relacionados con los registros y la calidad de la información en la Amazonía

Uma das metas do desenvolvimento sustentável das Organização das Nações Unidas é o estabelecimento de sistemas de registros civis e de estatísticas vitais de alta qualidade, válidos e confiáveis, pois são necessários para o desenho, avaliação e implementação de programas sociais, econômicos e de saúde, especialmente no contexto de mudanças no padrão de mortalidade pelos quais diversos países estão passando. Ainda que diversos métodos desenvolvidos na demografia 1,2 permitam acompanhar a evolução da qualidade dos registros e estimar de forma indireta os níveis de mortalidade em diferentes localidades, a qualidade do sistema de estatísticas vitais permite rastrear o desenvolvimento das condições de saúde em uma população, avaliar as políticas de saúde pública e auxiliar os gestores de saúde 3,4,5.

Nas últimas décadas, a qualidade dos dados de mortalidade no Brasil melhorou substancialmente. As estimativas do grau de cobertura do registro de óbitos no Brasil saltaram de cerca de 80% nos anos 1980 para cerca de 95% em 2010 6,7,8. Contudo, ainda há uma grande variabilidade regional na qualidade do grau de cobertura do registro de óbitos e da qualidade das informações sobre as causas de morte no país 6,7,9. Desde 2010, nas regiões Sul e Sudeste, observa-se uma cobertura completa dos registros de mortalidade de adultos. Nos estados do Nordeste e Norte, mesmo com as tendências de melhorias nos últimos anos, há localidades com baixo grau de cobertura 6,10. A média de cobertura da mortalidade na Região Norte subiu de 65% para 76% entre 1980 e 2010, enquanto a cobertura na Região Sul saiu de 95% para 98% no mesmo período 10. No caso de áreas menores, como mesorregiões, os impactos da qualidade dos dados podem ser ainda maiores. A estimativa do grau de cobertura para a mesorregião metropolitana de São Paulo é de 100%, alta qualidade dos dados, com a probabilidade de morte adulta, entre as idades de 15 e 60 anos, de 0,2364. No caso da mesorregião Sul Amazonense, a estimativa do grau de cobertura é de 68%. Os dados observados indicam uma probabilidade de morte adulta de 0,1102, contudo depois de aplicada a correção é estimada em 0,1621 10. Um exercício com os dados do Censo Demográfico de 2010 indica, para a mortalidade infantil, cobertura do registro dos eventos de praticamente 100% na mesorregião metropolitana de São Paulo, comparada com cerca de 50% para a mesorregião Sul Amazonense. Em resumo, analisar diretamente os dados, sem aplicar métodos de correção, pode levar a resultados errôneos afetando diretamente políticas de saúde. Uma conclusão importante, contudo, é que os diferentes métodos de estimativa aplicados a dados limitados podem apresentar resultados bastante distintos, tornando mais complexa a definição das estratégias de saúde. Um estudo comparando diferentes estimativas de mortalidade para o Brasil e suas regiões mostra a grande discrepância dessas estimativas, salientando a importância do contínuo investimento na qualidade dos registros e na replicabilidade dos métodos utilizados 11.

No caso específico da Região Amazônica, é elevado o sub-registro de óbitos 9,10. O estudo comparativo do registro de óbitos de diferentes fontes (Censo Demográfico, Registro Civil e Sistema de Informação sobre Mortalidade - SIM) para 2010 12 mostra que em quase 65% dos municípios da Região Norte, a enumeração de óbitos no Censo Demográfico de 2010 é maior do que o registro de óbitos no SIM e no Registro Civil. O estudo também mostra que os dados do censo têm melhor enumeração de eventos em localidades com maior índice de privação e piores condições sociais e econômicas da Região Norte. A divulgação dos dados do Censo Demográfico de 2022 permitirá análises e avaliações similares para o período mais recente.

A melhoria no registro dos eventos e os diferenciais regionais contam apenas parte da história. Além de enumerar os eventos, é central a coleta das informações adicionais, em especial as causas básicas de morte 12,13,14. Ao longo das três últimas décadas, o percentual de óbitos registrados como causas mal definidas no Brasil reduziu de 27,5% em 1980 para 8,5% em 2010. Nos estados da Amazônia, no mesmo período, cerca de 13% dos óbitos são registrados como causas mal definidas 10. Em 2019, essas ainda eram 10% em comparação com menos de 4% na Região Sul.

O Brasil é marcado por grandes diferenças regionais nos níveis e nas tendências de causas de morte, refletindo diferentes etapas do processo de transição epidemiológica 3,15,16. Considerando o acompanhamento dos objetivos do desenvolvimento sustentável 17, em especial a saúde materno-infantil e a redução da mortalidade materna, há grande variabilidade regional 18. Por exemplo, em 2016, a mortalidade materna alcançou 64,4 por 100 mil nascidos vivos no Brasil, variando de 44,2 na Região Sul a 84,5 por 100 mil nascidos vivos na Região Norte. No Estado do Amapá, a taxa chega a 141,7 por 100 mil nascidos vivos. Um dos grandes desafios da melhoria das ações voltadas à redução da mortalidade materna é a falta de estimativas de qualidade, que tenham detalhamento regional e que considerem a tendência temporal. O diferencial na qualidade do registro da causa específica do óbito materno dificulta a correta mensuração do nível e das tendências 19,20,21. Os diversos métodos aplicados com base nos dados brasileiros podem apresentar resultados bastante diferentes, o que tem implicações sobre as definições das políticas voltadas à saúde materno-infantil. Estimativas baseadas totalmente em modelos estatísticos podem apresentar resultados ainda mais distintos e, em alguns casos, com tendências bastante variadas entre os estudos 22,23. Outro exemplo da importância da qualidade do registro de causas de morte na Região Amazônica refere-se ao acompanhamento e mensuração do impacto das doenças tropicais negligenciadas, com um peso significativo na mortalidade e anos de vida perdidos 24,25.

Em relação a grupos populacionais mais específicos, as limitações da qualidade das estatísticas vitais são particularmente importantes para o adequado acompanhamento das condições de saúde e da mortalidade das populações indígenas. Como a informação sobre esse grupo é bastante limitada, boa parte dos estudos recentes acaba por se basear nas informações sobre óbitos nos domicílios coletadas pelo Censo Demográfico de 2010 26,27,28. Ainda que os censos ofereçam uma oportunidade de estudo das populações originárias na Região Amazônica, a frequência temporal limita o adequado acompanhamento da condição de saúde dessa população, reforçando, ainda mais, a necessidade de se investir na qualidade do sistema de registro de estatísticas vitais para os diferentes sub-grupos populacionais no Brasil.

Apesar da melhora na qualidade dos registros de óbitos nas últimas décadas, ainda é grande o diferencial regional, e são significativas as limitações no registro da causa básica, declaração de idade e diversas informações socioeconômicas. Os diversos avanços metodológicos nas estimativas apresentadas por pesquisadores e agências, apesar de sua importância, têm limitações e não substituem sistemas de informações de qualidade. Em suma, todos os esforços devem ser direcionados para a produção de registros de alta qualidade, incluindo a causa da morte. Avanços nos registros podem produzir estimativas de mortalidade melhores e mais confiáveis para a compreensão das tendências e diferenciais para vários países em desenvolvimento 5,29. E, especialmente na Região Amazônica, esses avanços são indispensáveis para o conhecimento do panorama real de saúde das populações.

Agradecimentos

Agradeço a professora Carla Machado Jorge pelos comentários e sugestões. B. L. Queiroz é bolsista em produtividdade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

  • 1 Hill K, Choi Y, Timaeus IM. Unconventional approaches to mortality estimation. Demogr Res 2005; 13:281-99.
  • 2 Hill K, You DZ, Choi YJ. Death distribution methods for estimating adult mortality: sensitivity analysis with simulated data errors. Demogr Res 2009; 21:235-54.
  • 3 Aburto JM, Calazans J, Lanza Queiroz B, Luhar S, Canudas-Romo V. Uneven state distribution of homicides in Brazil and their effect on life expectancy, 2000-2015: a cross-sectional mortality study. BMJ Open 2021; 11:e044706.
  • 4 AbouZahr C, de Savigny D, Mikkelsen L, Setel PW, Lozano R, Nichols E, et al. Civil registration and vital statistics: progress in the data revolution for counting and accountability. Lancet 2015; 386:1373-85.
  • 5 Silva R. Population perspectives and demographic methods to strengthen CRVS systems: introduction. Genus 2022; 78:8.
  • 6 Queiroz BL, Freire FHMA, Gonzaga MR, Lima EEC. Completeness of death-count coverage and adult mortality (45q15) for Brazilian states from 1980 to 2010. Rev Bras Epidemiol 2017; 20:21-33.
  • 7 Paes NA. Avaliação da cobertura dos registros de óbitos dos estados brasileiros em 2000. Rev Saúde Pública 2005; 39:882-90.
  • 8 Adair T, Lopez AD. Estimating the completeness of death registration: an empirical method. PLoS One 2018; 13:e0197047.
  • 9 Queiroz BL, Lima EEC, Freire FHMA, Gonzaga MR. Temporal and spatial trends of adult mortality in small areas of Brazil, 1980-2010. Genus 2020; 76:36.
  • 10 Lima EEC, Queiroz BL. Evolution of the deaths registry system in Brazil: associations with changes in the mortality profile, under-registration of death counts, and ill-defined causes of death. Cad Saúde Pública 2014; 30:1721-30.
  • 11 Queiroz BL, Gonzaga MR, Vasconcelos AMN, Lopes BT, Abreu DMX. Comparative analysis of completeness of death registration, adult mortality and life expectancy at birth in Brazil at the subnational level. Popul Health Metr 2020; 18:11.
  • 12 Diógenes VHD, Pinto Júnior EP, Gonzaga MR, Queiroz BL, Lima EEC, Costa LCC, et al. Differentials in death count records by databases in Brazil in 2010. Rev Saúde Pública 2022; 56:92.
  • 13 Borges GM. Health transition in Brazil: regional variations and divergence/convergence in mortality. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00080316.
  • 14 França E, Abreu DX, Rao C, Lopez AD. Evaluation of cause-of-death statistics for Brazil, 2002-2004. Int J Epidemiol 2008; 37:891-901.
  • 15 Baptista EA, Queiroz BL, Pinheiro PC. Regional distribution of causes of death for small areas in Brazil, 1998-2017. Front Public Health 2021; 9:601980.
  • 16 França EB, Passos VMA, Malta DC, Duncan BB, Ribeiro ALP, Guimarães MDC, et al. Cause-specific mortality for 249 causes in Brazil and states during 1990-2015: a systematic analysis for the global burden of disease study 2015. Popul Health Metr 2017; 15:39.
  • 17 Teixeira RA, Ishitani LH, França E, Pinheiro PC, Lobato MM, Malta DC. Mortalidade por causas garbage nos municípios brasileiros: diferenças nas estimativas de taxas pelos métodos direto e Bayesiano de 2015 a 2017. Rev Bras Epidemiol 2021; 24:e210003.
  • 18 Silva BGC, Lima NP, Silva SG, Antúnez SF, Seerig LM, Restrepo-Méndez MC, et al. Mortalidade materna no Brasil no período de 2001 a 2012: tendência temporal e diferenças regionais. Rev Bras Epidemiol 2016; 19:484-93.
  • 19 Laurenti R, Mello-Jorge MHP, Gotlieb SLD. Reflexões sobre a mensuração da mortalidade materna. Cad Saúde Pública 2000; 16:23-30.
  • 20 Laurenti R, Jorge MHPM, Gotlieb SLD. A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste. Rev Bras Epidemiol 2004; 7:449-60.
  • 21 Szwarcwald CL, Escalante JJC, Rabello Neto DL, Souza Junior PRB, Victora CG. Estimação da razão de mortalidade materna no Brasil, 2008-2011. Cad Saúde Pública 2014; 30 Suppl:S71-83.
  • 22 Peterson E, Chou D, Moller AB, Gemmill A, Say L, Alkema L. Estimating misclassification errors in the reporting of maternal mortality in national civil registration vital statistics systems: a Bayesian hierarchical bivariate random walk model to estimate sensitivity and specificity for multiple countries and years with missing data. Stat Med 2022; 41:2483-96.
  • 23 Leal LF, Malta DC, Souza MFM, Vasconcelos AMN, Teixeira RA, Veloso GA, et al. Maternal mortality in Brazil, 1990 to 2019: a systematic analysis of the Global Burden of Disease Study 2019. Rev Soc Bras Med Trop 2022; 55:e0279.
  • 24 Martins-Melo FR, Carneiro M, Ramos Jr AN, Heukelbach J, Ribeiro ALP, Werneck GL. The burden of neglected tropical diseases in Brazil, 1990-2016: a subnational analysis from the Global Burden of Disease Study 2016. PLoS Negl Trop Dis 2018; 12:e0006559.
  • 25 Martins-Melo FR, Ramos AN, Alencar CH, Heukelbach J. Trends and spatial patterns of mortality related to neglected tropical diseases in Brazil. Parasite Epidemiol Control 2016; 1:56-65.
  • 26 Santos RV, Borges GM, Campos MB, Queiroz BL, Coimbra Jr. CEA, Welch JR. Indigenous children and adolescent mortality inequity in Brazil: what can we learn from the 2010 National Demographic Census? SSM Popul Health 2020; 10:100537.
  • 27 Marinho GL, Borges GM, Paz EPA, Santos RV. Mortalidade infantil de indígenas e não indígenas nas microrregiões do Brasil. Rev Bras Enferm 2019; 72:57-63.
  • 28 Campos MB, Borges GM, Queiroz BL, Santos RV. Diferenciais de mortalidade entre indígenas e não indígenas no Brasil com base no Censo Demográfico de 2010. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00015017.
  • 29 AbouZahr C, Boerma T. Health information systems: the foundations of public health. Bull World Health Organ 2005; 83:578-83.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2023
  • Revisado
    19 Jun 2023
  • Aceito
    23 Jun 2023
location_on
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rua Leopoldo Bulhões, 1480 , 21041-210 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.:+55 21 2598-2511, Fax: +55 21 2598-2737 / +55 21 2598-2514 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro