Resumo
A conjugalidade dos cuidadores reverbera no desenvolvimento dos filhos, entretanto, especificidades nessa relação ainda necessitam estudos nacionais. Investigou-se a percepção de adolescentes sobre o relacionamento conjugal de seus cuidadores e quais dimensões da conjugalidade repercutem em sintomas internalizantes e externalizantes dos mesmos. Realizou-se uma pesquisa quantitativa e explicativa. 115 adolescentes responderam ao Familiograma, FBQ, CTS2 e YSR. Verificou-se correlação positiva e significativa entre percepção de conflito e violência conjugal com os sintomas, bem como correlação negativa e significativa de afetividade e aliança parental com sintomas. Violência psicológica conjugal, cometida pela mãe, foi preditora de sintomas internalizantes e externalizantes dos filhos e a aliança parental foi preditora de sintomas externalizantes. Ressalta-se a necessidade de atuação preventiva em núcleos familiares com violência.
Palavras-chave: adolescência; violência conjugal; relações familiares
Abstract
Parent’s conjugality reverberates in adolescent development, although specifics of these relations still needs further national studies. Was investigate adolescents' perception about the marital relationship of caregivers and what dimensions of conjugality have repercussions on internalizing and externalizing symptoms. Quantitative research was carried out, with an explicative design. 115 teenagers answered Familiograma, FBQ, CTS2 and YSR. It was verified positive and significant correlation between perception of conflict and marital violence with symptoms, as well as a negative and significant correlation of affectivity and parental alliance with symptoms. Marital psychological violence committed by mother was a predictor of internalizing and externalizing offspring symptoms and parental alliance were predictive of externalizing symptoms. We address the need for preventive action in households with violence.
Keywords: adolescence; marital violence; family relationship
Os dados estatísticos sobre a prevalência de crianças que são expostas à violência conjugal costumam ser imprecisos (Durand, Schraiber, Junior & Barros, 2011). Contudo, pesquisas revelam que a exposição a esse tipo de violência, na infância, pode gerar graves perturbações emocionais, comportamentais e psicológicas, em curto e longo prazo (Geffner, Igelman, & Zellner, 2014; Overlien, 2010; Rocha, 2007; Sani, 2008).
A literatura internacional aponta, ao redor do mundo, um alto índice de violência conjugal (Durand et al., 2011; Lepistö, Luukkaala, & Paavilainen, 2010; McWhirter, 2011; Overlien, 2010; World Health Organization, 2013). No Brasil, esse dado não é diferente. Pesquisa DataSenado (2015) revela que uma em cada cinco mulheres declara já ter sofrido algum tipo de violência conjugal, sendo que 26% ainda conviviam com o agressor quando entrevistadas, o que evidencia uma possível exposição contínua a episódios de violência. No Rio Grande do Sul, um mapeamento da violência conjugal indicou níveis de violência conjugal elevados, que estiveram entre 2,3% para a coerção sexual e 81% para agressão psicológica (Falcke, Mosmann, & Wagner, 2013). Esses dados são semelhantes aos encontrados por Colossi, Razera, Haack e Falcke (2015), em um estudo com 186 casais residentes na região metropolitana de Porto Alegre.
A violência conjugal é definida como um padrão de relacionamento agressivo entre parceiros íntimos. Para os pesquisadores sistêmicos, nos casos de violência conjugal, deve-se avaliar como estão construídas essas relações e qual a dinâmica relacional da díade. A violência é identificada quando existe um padrão de relacionamento violento e ambos os envolvidos podem ser vítimas e/ou agressores (Alvim & Souza, 2005; Falcke, Oliveira, Rosa, & Bentancur, 2009).
Dentro desse contexto, a violência conjugal pode ocorrer de várias maneiras, destacando-se os subtipos: violência física, psicológica e sexual (Pereira, 2011). A violência física é a que desperta mais atenção por, em muitos casos, tornar-se visível, devido às sequelas no corpo, advindas de empurrões, tapas, socos, arranhões, jogar objetos no(a) companheiro(a), ou seja, refere-se a todos os atos contra o(a) parceiro(a) que visem atingir a parte física. Já a violência psicológica ocorre de forma mais sutil e, portanto, é mais difícil identificá-la como uma violência (Colossi & Falcke, 2013). Caracteriza-se por ameaças, humilhações, exposição pública, gritos e agressões verbais. Por sua vez, ameaçar e impor o contato sexual não correspondido com desejo é considerado violência sexual (Alves & Diniz, 2005; Alvim & Souza, 2005; Levy & Gomes, 2008). Esses tipos de violência, preponderantemente, ocorrem em casa, espaço físico de convivência familiar (DataSenado, 2015; Rocha, 2007). Surge, então, o questionamento: como ficam as crianças e adolescentes, filhos de casais nessas situações?
A literatura sustenta que a violência conjugal é um fenômeno complexo e interacional, que não diz respeito apenas aos membros do casal, pois envolve um padrão de relação familiar (Falcke et al., 2009). Crianças e adolescentes que convivem diariamente com esses casais, sendo filhos ou não, são influenciados por essa dinâmica conjugal (Benetti, 2006; Mosmann & Wagner, 2008). Testemunhar violência entre os cuidadores pode gerar prejuízos na saúde e bem-estar (Caprichoso, 2010) dos filhos, assim como tendência a reproduzir a violência presenciada em seus relacionamentos futuros (Colossi, Marasca, & Falcke, 2015; Murta, Ramos, Cangussu, Tavares, & Costa, 2014; Marasca, Colossi, & Falcke, 2013; Overlien, 2010).
Teodoro (2006) aponta a importância do papel familiar para a constituição psíquica dos indivíduos, sendo que as relações familiares influenciam no funcionamento psicológico, biológico e social de seus membros. A família é tida como espaço primordial de acolhimento e suporte para as crianças (Lourenço, Salgado, Amaral, Gomes, & Senra, 2011, Mosmann & Wagner, 2008). Essa é a visão da família saudável, ou seja, um lugar protegido que gera segurança, proteção e afetividade. Contudo, esse contexto familiar pode também promover efeitos negativos, à medida que pessoas com laços afetivos se tornam agressores e agredidos (Lourenço et al., 2011).
A violência que ocorre no ambiente doméstico é tratada, geralmente, como um segredo, algo escondido, motivado pelo sentimento de vergonha (Lepistö et al., 2010; Rocha, 2007). Talvez, por ser considerado um segredo ou pela despreocupação social frente às vítimas indiretas, o problema de testemunhar a violência conjugal entre os pais, muitas vezes, acaba passando despercebido. Muitos autores retratam os filhos de casais que se agridem como vítimas indiretas, invisíveis e silenciosas (Caprichoso, 2010; Geffner et al., 2014; Lourenço et al., 2011; Meltzer et al., 2009; McWhirter, 2011; Orvelien, 2010; Rocha, 2007).
Sani (2008) coloca que estar sujeito à violência vai além de ser uma situação passiva, pois, à medida que a violência ocorre entre o casal, a criança pode observar, ouvir, sentir ou ter que lidar com seus resultados. Ou seja, algumas vezes, a agressão pode ser identificada, ao perceber os hematomas e objetos quebrados no dia seguinte e, muitas vezes, o clima em casa após o conflito (Meltzer, Doos, Vostanis, Ford, & Goodman, 2009).
Cabe ressaltar que todos os casais vivenciam atritos e discordâncias, porém sua forma de resolução é que poderá afetar ou não o comportamento das crianças. A exposição aos conflitos que foram solucionados de maneira satisfatória, sem o uso de violência, pode ter um impacto positivo e auxiliar na resolução dos problemas dos filhos (Benetti, 2006; Rocha, 2007). Da mesma forma, o conflito que é resolvido através de agressões pode potencializar efeitos negativos em curto e longo prazo (Silva, Coelho, & Caponi, 2007).
Observa-se, então, que o subsistema conjugal, definido por Minuchin (1982) como aquele formado pelos cônjuges com tarefas de complementaridade e acomodação mútua, impacta os outros subsistemas de uma família. Diversas hipóteses explicativas têm sido descritas, na literatura, sobre a interação entre a dinâmica do subsistema conjugal e o desenvolvimento dos filhos (Erel & Burman, 1995; Grych, 2002; Mosmann & Wagner, 2008). São elas: (a) Spillover: sugere que haveria um “transbordamento” das características do relacionamento conjugal para o parental; (b) Compensatória: prevê uma relação inversa entre a qualidade do relacionamento conjugal e a do parental; (c) Compartimentalização: revela a possibilidade de dissociação entre o que acontece em cada subsistema.
Entretanto, há um significativo corpo de investigações internacionais indicando que a exposição à violência parental tem implicações adversas para as crianças e adolescentes, resultando em níveis de ansiedade, depressão, raiva, problemas comportamentais como agressividade, abuso de substâncias químicas e delinquência (Durand et al., 2011; Geffner et al., 2014; Margolin & Gordis, 2004; Meltzer et al., 2009), reforçando, assim, a hipótese Spillover. Autores relatam que crianças nessas condições têm maior probabilidade de utilizar a violência para responder ao conflito, além de um grande número de crianças que se encaixaram nos sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático do DSM-IV (Overlien, 2010).
O estudo de Kolar e Davey (2007) revelou que existe uma ligação entre a criança ser exposta à violência e diversos problemas psicossociais, como complicações na saúde física, depressão e estresse, abuso de drogas, uso de violência e comportamentos criminosos. De modo geral, as relações dessas crianças e adolescentes passam a ser mais hostis (Margolin & Gordis, 2004) e podem ser observados impactos no desempenho acadêmico, assim como distúrbios do sono (Caprichoso, 2010; Rocha, 2007). Por outro lado, a literatura indica que relacionamentos conjugais marcados por bons níveis de adaptabilidade e aliança parental podem ser protetivos para o desenvolvimento de sintomas emocionais e de comportamento dos filhos (Goulart, Mosmann, Wagner, & Barbosa, 2016; Mosmann, Zordan, & Wagner, 2011).
Sendo assim, são inúmeras as consequências para crianças e adolescentes envolvidos nestsas situações. Esses riscos dependem de diversos fatores, como idade, sexo, estágio de desenvolvimento, mas, principalmente, a frequência, intensidade e forma de exposição (Caprichoso, 2010; Lepistö et al., 2010; Martins, 2005, 2009; Overlien, 2010; Park, Smith, & Ireland, 2012; Sani, 2008). Em muitos casos, elas são testemunhas desse tipo de violência durante muitos anos, ao longo do seu desenvolvimento (Meltzer et al., 2009).
Segundo Overlien (2010), a exposição à violência interparental antecede à violência contra a própria criança, pois a mesma internaliza essas mensagens negativas e acaba aceitando a violência como forma de resolução de conflitos (Colossi et al., 2015; Rocha, 2007). Ernest, Weiss e Enright-Smith (2006) identificaram que 41% dos agressores na idade adulta estiveram sujeitos à violência conjugal na infância. Os perpetradores seriam mais propensos a terem sido testemunhas do que as vítimas. Na pesquisa de McWhirter (2011), todas as mulheres que participaram do estudo teriam sido expostas de alguma forma à violência interparental e 89% relataram ter sofrido abuso em sua família de origem. Outros dados também concordam com o fato de que pessoas violentas ou violentadas na vida adulta tenham experimentado algum tipo de violência durante a infância (Colossi et al., 2015; Lepistö et al., 2010; Overlien, 2010; Park et al., 2012; Sani, 2008).
Embora a literatura seja homogênea ao sustentar essas interações, especificidades ainda necessitam ser investigadas, especialmente em contexto nacional, uma vez que identificar quais variáveis da conjugalidade impactam em que tipo de sintomas dos filhos pode subsidiar maior foco no planejamento e desenvolvimento de estratégias de intervenção com crianças e adolescentes expostos a situações de violência interparental. Além disso, a maior parte dos estudos enfoca a percepção dos pais acerca de sua relação conjugal e os problemas emocionais e de comportamento dos filhos. Investigar essas associações na perspectiva da prole pode proporcionar um panorama extremamente relevante.
Com base nesses pressupostos, este estudo objetivou investigar a percepção de adolescentes sobre o relacionamento conjugal de seus cuidadores e quais dimensões da conjugalidade (afetividade, conflito, violência e aliança parental) repercutem em sintomas internalizantes e externalizantes dos mesmos. Hipotetizou-se que conflito e violência serão preditores positivos de sintomas tanto internalizantes, quanto externalizantes (Goulart et al., 2016; Geffner et al., 2014) e afetividade e aliança parental serão preditores negativos de sintomas internalizantes e externalizantes (Mosmann et al., 2011).
Método
Delineamento
Trata-se de uma pesquisa de cunho quantitativo, com delineamento descritivo, comparativo e correlacional.
Participantes
A amostra foi composta por 115 adolescentes, que participam do projeto Adolescente Aprendiz do Movimento dos Direitos da Criança e do Adolescente na cidade Porto Alegre. Entre eles, n=77 eram meninas (68,1%). A idade variou de 14 a 21 anos (MÉDIA=15,8 DP=0,91), sendo que 63,2% estão cursando o Ensino Médio. O número de irmãos esteve entre 0 a 12, ficando com a média de 3,5 (DP=2,28). Cinquenta por cento dos participantes vivem, atualmente, com alguma referência de casal, podendo ser a configuração pai e mãe, mãe e padrasto ou pai e madrasta. O restante já viveu com algum casal, porém, atualmente, mora apenas com um dos cuidadores. Nesse caso, foi solicitado que respondessem sobre o casal com quem conviveram durante mais tempo, constituindo-se como modelo conjugal. A amostra foi selecionada por conveniência.
Instrumentos
Familiograma. Concebido por Teodoro (2006), é um instrumento que avalia a percepção da afetividade e do conflito familiar nas díades familiares (por exemplo, pai-mãe, filho(a)-pai, filho(a)-mãe etc.). A afetividade é compreendida como um conjunto de emoções positivas existentes no relacionamento interpessoal, enquanto o conflito é definido como uma gama de sentimentos negativos que podem ser tanto uma fonte geradora de estresse, como de agressividade dentro do sistema familiar. O participante é solicitado a informar, por meio de uma lista de 22 adjetivos e uma escala Likert, variando de um a cinco, como é o relacionamento em cada uma das díades que se está avaliando. Compõem a lista do construto afetividade os adjetivos: carinhoso, alegre, agradável, verdadeiro, afetivo, protetor, amoroso, acolhedor, harmonioso, atencioso, precioso. Já o construto conflito é avaliado por meio dos seguintes adjetivos: confuso, nervoso, estressante, baixo-astral, ruim, sufocante, tenso, frio, difícil, agressivo, chato. A pontuação do Familiograma varia de 11 a 55 para cada construto, sendo que quanto maior for o escore, maior será a percepção de afetividade e conflito. Teodoro (2006) demonstrou a existência de uma estrutura bi-fatorial e Alpha de Cronbach variando de 0,87 até 0,97 para o Familiograma. Neste estudo, foi investigada a díade Pai-Mãe na perspectiva do(a) filho(a) e o Alpha de Cronbach foi de 0,89 para Conflito e 0,94 para Afetividade.
Family Background Questionnaire (FBQ). Elaborado por Melchert (1998a, 1998b), é um questionário que contém 179 itens para serem respondidos, em escala Likert de cinco pontos. Possui 15 subescalas que abrangem diversas variáveis, que têm sido identificadas como potencialmente importantes no desenvolvimento infantil, possibilitando que sejam avaliadas as recordações que os sujeitos têm sobre as experiências que vivenciaram nas suas famílias de origem. Neste estudo, será utilizada a subescala de Aliança Parental, composta por 15 itens. Em português, o FBQ obteve bons índices de confiabilidade - 0.9902 para a escala total e entre 0.40 e 0.95 para as subescalas (Falcke, 2003). A subescala de Aliança Parental, neste estudo, obteve um Alpha de 0,695.
Conflict Tactics Scale (CTS2). Concebido por Straus, Hamby, Boney-McCoy e Sugarman (1996), contém 78 itens que descrevem possíveis ações do respondente e, reciprocamente, de seu/sua companheiro/a. Esses formam cinco escalas que representam as seguintes dimensões: (1) violência física; (2) agressão psicológica; (3) coerção sexual; (4) lesão corporal; (5) negociação. Para este estudo, serão utilizadas as subescalas de violência física e agressão psicológica, contendo 38 itens, que foram adaptados para os adolescentes responderem conforme sua percepção sobre os atos do pai e da mãe. Os Alphas de Cronbach obtidos para as subescalas de violência física e psicológica foram 0,90 e 0,88, respectivamente.
Youth Self-Report (YSR) - Inventário de Auto-Avaliação de Jovens de 11 a 18 anos. É um instrumento que faz parte do Sistema de Avaliação Empiricamente Baseado (Achenbach System of Empirically Based Assessment - ASEBA), desenvolvido por Achenbach (Achenbach, 1991; Achenbach & Rescorla, 2001). O YSR é composto por oito escalas de problemas de comportamento (Ansiedade/Depressão, Isolamento/Depressão, Queixas Somáticas, Problemas Sociais, Problemas de Pensamento, Problemas de Atenção, Comportamento de Quebra Regra, Comportamento Agressivo) e pelo tópico denominado “Outros Problemas”, que engloba itens que não se encaixaram em nenhuma das outras escalas. Os Problemas Internalizantes incluem as três primeiras escalas e os Problemas Externalizantes constituem-se pelas duas últimas. As questões do YSR são respondidas através de uma escala Likert de três pontos (não é verdadeira, algumas vezes verdadeira ou muito verdadeira/frequentemente verdadeira). Neste estudo, foi utilizada a versão do YSR, que está sendo adaptada pela Profª. Drª. Edwiges Silvares (Rocha, Araújo, & Silvares, 2008). O Alpha de Cronbach obtido neste estudo foi de 0,92.
Procedimentos Éticos e de Pesquisa
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e sob parecer 12/103. Após aprovação, os adolescentes foram contatados, em horário de aula, na instituição onde participavam de projetos sociais e convidados a participar da pesquisa. Enviou-se aos responsáveis, por intermédio dos próprios adolescentes, o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), que continha as explicações sobre o estudo e assegurava o sigilo dos dados, assim como a preservação da identidade e a possibilidade de desistência a qualquer momento, sem nenhuma consequência.
Mediante a entrega dos termos assinados pelos responsáveis, foram agendados horários para a coleta dos dados. A coleta foi realizada em quatro dias, em diferentes grupos, na própria instituição, com os adolescentes que trouxeram os TCLE assinados. No momento da aplicação, explicou-se aos adolescentes os procedimentos da pesquisa e solicitou-se que assinassem um TCLE, declarando que também aceitaram participar do estudo.
Análise dos Dados
Após a coleta de dados, as informações foram tabuladas em um banco de dados no SPSS 20.0 (Statistical Package for Social Science 20.0). Inicialmente, foi realizada uma análise descritiva (médias, DP, porcentagens) dos resultados em geral. Para a estatística inferencial, previamente foram analisados os critérios de supostos paramétricos (tipo de variável, tamanho da amostra, normalidade). As associações entre variáveis foram analisadas por meio de Correlação de Pearson e Análise de Regressão Múltipla (Stepwise). Foram considerados significativos todos os resultados com p<0,05.
Resultados
Considerando a avaliação dos adolescentes sobre a afetividade no relacionamento dos cuidadores, verifica-se que eles percebem, preponderantemente, o relacionamento dos pais como tendo bons níveis de afetividade, uma vez que 45,4% afirmaram que o relacionamento dos pais, como casal, é muito ou completamente alegre e 45,9% acreditavam que o relacionamento é muito ou completamente afetivo. A dimensão carinho foi a que se observou uma maior distribuição das respostas, já que 34,8% consideraram como muito ou completamente carinhoso enquanto que 31,1% avaliaram o relacionamento dos pais como pouco ou de jeito nenhum carinhoso.
Por outro lado, a pontuação de conflito foi moderada. No total, 14,4% dos adolescentes classificaram o relacionamento como muito ou completamente tenso e 14,6% entenderam como difícil. A maioria não percebe baixo astral na relação (70,9%) e identifica o relacionamento como pouco frio (72,9%).
Quanto à agressão no relacionamento conjugal, na percepção dos participantes, 61,8% dos pais já tiveram brigas intensas, sendo que, em 10% dos casos, elas ocorrem mais de uma vez por semana. Dos sujeitos pesquisados, 28,8% revelam que o pai já ameaçou bater na mãe ao menos alguma vez, enquanto que 34,2% assinalam que a mãe foi responsável pela ameaça de agressão. Além disso, identificou-se um maior número de agressões esporádicas da mãe e contínuas do pai. Percentualmente, a mãe foi quem mais agrediu, porém, isso ocorreu em menor quantidade de vezes, pois 15,3% agrediram apenas uma vez, enquanto 7,6% dos pais agrediram 6 vezes ou mais.
A violência física grave (derramar líquido quente no parceiro, utilizar faca ou arma de fogo, sufocar, estrangular, entre outros) foi cometida por 25,5% das mães contra os pais e 20,8% dos pais contra as mães. Os níveis de violência física menor, que constituem atos mais “brandos”, como tapas, socos, empurrões e torções, foram ainda maiores. Através da percepção dos adolescentes, 38,9% das mães já cometeram pelo menos algum episódio de agressão física menor, bem como 31,8% dos pais. Não houve diferença significativa na percepção dos adolescentes entre pai e mãe na dimensão de violência física grave (p=0,592) e na de violência física menor (p=0,171).
A agressão psicológica grave foi percebida como cometida por 44,5% das mães e 34,5% dos pais. Esse tipo de agressão comporta atos e verbalizações ofensivas e ameaças contra o(a) companheiro(a), sendo que 40,9% identificaram que a mãe ofendeu o pai chamando-o de gordo, feio ou coisa parecida, enquanto 31,8% dos pais fizeram o mesmo, além de 4,5% das mães terem acusado o pai de ser “ruim de cama”, enquanto 3,6% dos pais fizeram o mesmo. Já a violência psicológica menor, conforme o esperado, obteve índices mais altos, tendo sido cometida por 76,6% das mães e 70,6% dos pais. Verificou-se que 55,9% referiram que sua mãe gritou com seu pai e 41,8% que o pai gritou com a mãe, bem como 74,4% das mães e 61,8% dos pais insultaram um ao outro. Segundo os adolescentes, a mãe comete significativamente mais agressão psicológica grave (p=0,020) e menor (p=0,002) do que o pai.
Buscando verificar possíveis associações entre a percepção dos adolescentes sobre o relacionamento conjugal dos cuidadores e os sintomas internalizantes e externalizantes apresentados pelos mesmos, foram realizadas análises de correlação, conforme Tabela 1.
As análises de correlação evidenciaram que todas as dimensões da conjugalidade dos cuidadores se correlacionaram com os sintomas dos adolescentes. Esses resultados sugerem que, quanto mais exposto o adolescente se encontra em relação à violência interparental, mais sintomas ele apresenta, sejam internalizantes ou externalizantes. Já a avaliação da afetividade se correlacionou apenas com a manifestação de sintomas externalizantes dos adolescentes, indicando que, quanto mais afetividade entre os pais, menos sintomas externalizantes os adolescentes apresentam.
Para avaliar o poder preditivo das dimensões da conjugalidade (afetividade, conflito, violência e aliança parental) na ocorrência de sintomas internalizantes e externalizantes dos adolescentes, foi realizada análise de regressão (método stepwise). Com relação aos sintomas internalizantes, verificou-se que a violência psicológica cometida pela mãe foi a única variável preditora (Tabela 2). O modelo forneceu um coeficiente de variância explicada (R²) de 0,168, o que determina que a variável independente selecionada explicou 16,8% dos sintomas internalizantes dos adolescentes. Em relação aos sintomas internalizantes, duas variáveis entraram no modelo (violência psicológica cometida pela mãe e aliança parental), conforme consta na tabela 3. O modelo forneceu um coeficiente de variância explicada (R2) de 0,261, o que determina que as variáveis independentes selecionadas explicaram 26,1% dos sintomas externalizantes dos adolescentes.
Discussão
O sistema familiar tem sido considerado fator importante para a constituição psíquica dos sujeitos envolvidos, sendo que todos os subsistemas pertencentes à família são responsáveis e interferem de forma positiva ou negativa, direta ou indiretamente no desenvolvimento das crianças e adolescentes, inclusive o subsistema conjugal (Erel & Burman, 1995; Minuchin, 1982). Pesquisas nacionais têm evidenciado que a qualidade do relacionamento conjugal é decisiva para o bem-estar da família como um todo (Mosmann et al., 2011; Mosmann & Wagner, 2008).
Os resultados do presente estudo revelaram que, na visão dos adolescentes, existem bons níveis de afetividade nos relacionamentos conjugais examinados e níveis moderados de conflito. Todavia, chama a atenção os altos índices de violência identificados por eles, surpreendendo a maior incidência das mães como agressoras, na dimensão psicológica e o mesmo nível de violência física cometida pela mãe ou pelo pai. Essa percepção dos adolescentes sobre as mulheres (mães ou substitutas) difere da maioria dos estudos brasileiros sobre a violência conjugal, uma vez que essas produções avaliam a violência conjugal, preponderantemente, através de uma perspectiva dualista, que concebe o homem como agressor e a mulher como vítima, em uma concepção de violência de gênero (Narvaz & Koller, 2004; Schraiber, D’Oliveira, & Hanada, 2010).
Os dados encontrados evidenciam a necessidade de questionamento dessa noção de gênero, ampliando a compreensão do fenômeno em direção a uma concepção da violência conjugal a partir de um enfoque sistêmico. Entender a violência por um ponto de vista sistêmico é analisá-la como uma construção do relacionamento conjugal, portanto, com homens e mulheres exercendo múltiplos papéis na conjugalidade (Alvin & Souza, 2005; Falcke et al., 2009; Hartmann, 2004; Lamoglia & Minayo, 2009). Nesse sentido, os dados encontrados neste estudo vão na direção de pesquisas anteriores, realizadas com essa perspectiva interacional, que concluem que tanto o homem, quanto a mulher podem ser autores da agressão conjugal (Colossi et al., 2015; Lovestad & Krants, 2012; Straus, 2008, 2010). De forma semelhante, Lovestad e Krants (2012) inferiram que 11% dos homens pesquisados foram agredidos contra 8% das mulheres, o que entra em acordo com a percepção dos filhos adolescentes participantes do presente trabalho.
É importante atentar que os resultados deste estudo são aferidos através da visão dos adolescentes sobre o relacionamento conjugal de seus cuidadores. A maior parte das produções da literatura caracteriza a situação dos filhos, em relação à violência conjugal, como vítimas silenciosas e esquecidas, justamente pela dificuldade de acessar as informações sobre a violência, que costuma permanecer como segredo familiar (Caprichoso, 2010; Lepistö et al., 2010; Rocha, 2007). Nesta pesquisa, entretanto, os adolescentes revelaram a percepção de altos índices de violência conjugal, variando de 20,8% para violência física grave cometida pelo pai a 76,6% para violência psicológica menor cometida pela mãe. Outro dado relevante foi que 61,8% dos participantes referiram que os pais já tiveram “brigas feias” ao menos uma vez. Esses números indicam que existem muitos adolescentes que já presenciaram, pelo menos, um episódio de violência física ou psicológica em suas casas.
Considerando que a exposição à violência conjugal pode resultar em sintomas nos adolescentes, estamos diante de um fenômeno que necessita de atenção dos profissionais da área da saúde (Caprichoso, 2010; Ernest et al., 2006; Overlien, 2010; Rocha, 2007). Neste estudo, a repercussão do conflito e da violência conjugal se confirma através da correlação significativa entre os sintomas dos adolescentes e todas as dimensões avaliadas da conjugalidade dos cuidadores. Ainda, as análises evidenciaram a violência psicológica cometida pela mãe como a variável com maior poder preditivo de sintomas, tanto internalizantes, como extenalizantes dos adolescentes. Esse resultado pode, possivelmente, ser compreendido pela importância que a figura materna ainda exerce nos núcleos familiares, ficando como a principal responsável pelo cuidado com os filhos (Wagner, Falcke, Silveira, & Mosmann, 2002). Sendo assim, é possível que manifestações agressivas maternas tenham maior impacto na sintomatologia dos filhos. A variável aliança parental também se mostrou como preditora negativa de sintomas externalizantes. Nesse sentido, na medida em que ela avalia o grau de satisfação e acordo que os adolescentes percebem no relacionamento conjugal dos pais, corroboram-se os dados sobre o quanto testemunhar a disfuncionalidade conjugal pode trazer consequência ao desenvolvimento dos filhos e não somente as atitudes parentais dirigidas diretamente a eles. O fato de predizer negativamente somente sintomas externalizantes pode estar associado ao fato de que desacordos ostensivos entre pais podem servir de modelo para o adolescente também expressar comportamentos agressivos e opositores, assim como o inverso parece ser verdadeiro.
Esses resultados sustentam, em parte, nossas hipóteses. A violência mostrou-se preditora positiva de sintomas, entretanto, somente a de tipo psicológico e perpetrada pela mãe. O conflito interparental, contrário a estudos anteriores (Goulart et al., 2016; Mosmann et al., 2011), não entrou no modelo. Da mesma forma, nossa hipótese acerca do impacto negativo da afetividade e da aliança parental confirmou-se parcialmente. Cabe ressaltar que a afetividade se correlacionou negativamente com sintomas externalizantes, entendendo que, quanto mais afetividade o adolescente percebe no casal, menos sintomas ele demonstra.
É natural o casal vivenciar atritos, mas a forma de resolvê-los é que irá influenciar na saúde familiar (Benetti, 2006). Rocha (2007) sugere que presenciar táticas construtivas de resolução de conflitos pode beneficiar as crianças ao aprenderem com isso. Assim como a violência transborda para o subsistema filial, a presença de harmonia e equilíbrio entre os cuidadores, expressa através da aliança parental, também é percebida pelos adolescentes, gerando menos sintomas. Ou seja, o casal que se utiliza de estratégias mais funcionais para resolução de conflitos, maior parceria nas relações, tende a constituir crianças e adolescentes mais saudáveis nos seus relacionamentos. Da mesma maneira, filhos de casais com altos níveis de conflito e baixa afetividade tendem a apresentar maiores níveis de sintomatologia e sofrimento psíquico.
A partir dos resultados obtidos neste estudo, foi possível constatar que a díade conjugal influencia diretamente no desenvolvimento de crianças e adolescentes, filhos que convivem com o casal. Dessa maneira, é importante que os profissionais da área da saúde levem em conta, nas intervenções com casais em situação de violência, a necessidade de acompanhamento dos filhos, pois, por estarem expostos à agressão, podem sentir os reflexos dessa experiência, tanto através de uma maior sintomatologia no presente ou como sugerem trabalhos preliminares, repetindo os padrões violentos em seus relacionamentos futuros (Lepistö et al., 2010; Margolin & Gordis, 2004; Overlien, 2010; Park et al., 2012; Sani, 2008).
Considerações Finais
Observou-se, através deste trabalho, que tanto a violência conjugal como a aliança parental atingem o adolescente como fator de risco e proteção. Nesse sentido, torna-se essencial que pesquisadores e clínicos atentem para a necessidade de um olhar cuidadoso para os filhos nas situações de violência conjugal, considerando-os, também, como vítimas diretas, visíveis e que necessitam de escuta.
A presente pesquisa também evidenciou a agressão conjugal como uma dinâmica violenta do casal, não reduzida a uma perspectiva dualista em que o homem é o agressor e a mulher, a vítima. Por entender a violência conjugal como um aspecto interacional, é necessário compreender possíveis consequências posteriores, pois os adolescentes que presenciaram violência podem, a partir da constituição dos seus relacionamentos amorosos no futuro, perpetuarem padrões violentos de relação.
Tendo em vista que a maior parte dos estudos que pretendem avaliar as consequências da violência conjugal nos filhos utiliza questionários quantitativos, sugere-se, para futuras produções, abordar a temática de uma forma subjetiva e qualitativa, buscando compreender o fenômeno a partir da perspectiva tanto dos pais como dos filhos. Além disso, entende-se como uma limitação do presente estudo a participação de adolescentes mediante o consentimento dos pais, o que pode constituir-se um viés, na medida em que casais em situação de violência grave podem não ter autorizado a participação dos filhos.
De qualquer forma, a partir da compreensão do fenômeno é possível que os profissionais que atuam nessa área possam dar o suporte necessário para família de um modo geral, não apenas para o casal que se agride, mas também para os filhos que presenciam a violência. Intervenções com crianças e adolescentes que testemunham violência no ambiente familiar podem ser preventivas de uma série de agravos à saúde dos mesmos, devendo ser foco de atenção em políticas públicas para infância e adolescência. Só assim estaremos atuando terapêutica e preventivamente em relação à perspectiva de perpetuação da violência conjugal.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Maio 2019 -
Data do Fascículo
2018
Histórico
-
Recebido
16 Jan 2015 -
Revisado
13 Dez 2016 -
Aceito
15 Set 2017