Open-access A construção da significação da experiência do abuso sexual infantil através da narrativa: uma perspectiva interacional

Narrative as a means of making sense of the experience with sexual abuse in childhood: an interactional perspective

Resumos

A pesquisa apresentada neste artigo, inscrita na Linguística Aplicada e inserida nos marcos teórico-metodológicos da Análise da Conversa (Sacks, 1992; Sacks; Schegloff; Jefferson, 1974) de natureza etnometodológica (Garfinkel, 1967), descreve e analisa qualitativamente interações entre um conselheiro tutelar e duas crianças vítimas de abuso sexual. Assumindo a necessidade de entender o abuso sexual de forma mais interdisciplinar, pesquisas sobre o uso situado da fala e sobre as práticas narrativas com crianças podem contribuir para evitar o fenômeno da revitimização institucional (Cézar, 2007). Durante a empreitada interacional de reconstruir o evento de abuso, é possível identificar que o conselheiro tutelar se orienta para a sua meta de construir um relatório convincente e reportável para o sistema judiciário (i.e. Promotoria da Infância e da Juventude; Ministério Público), conduzindo a atividade de modo a contemplar as evidências que ele julga necessárias. Os contornos da narrativa são, então, construídos de acordo com a ação que ela desempenha na interação (i.e. garantir medida de proteção para a vítima e punição para o/a agressor/a). Em especial, a análise dos dados aponta que o conselheiro se envolve ativamente na ação de significar a experiência com a vítima, acionando diversas estratégias interacionais, dentre as quais a formulação de perguntas polares e a oferta de itens lexicais, para descrever os sentimentos da criança. O engajamento do conselheiro na ação de significar a experiência acaba por assumir um valor prescritivo de significação da experiência do abuso e de performance da identidade de vítima (Ehrlich, 2002; Trinch, 2013). Ao realizar a atividade de significar as experiências das vítimas, o conselheiro faz emergir na fala-em-interação os valores morais que permeiam o discurso jurídico, que são também elementos de socialização das crianças sobre como sentir e falar sobre a violência sofrida. Estudos com a interface linguagem e violência sexual contribuem também para equacionar o dilema da necessidade de construir narrativas reportáveis ao sistema judiciário sem retirar a agentividade da vítima em significar a sua experiência. Além disso, podem servir de insumo para os/as profissionais que acolhem narrativas de crianças vítimas.

fala-em-interação; mandato institucional; abuso sexual infantil; narrativas


This research study, that derives from an applied linguistics perspective and is grounded on conversational analytical (Sacks, 1992; Sacks; Schegloff; Jefferson, 1974) and ethnomethodological methods (Garfinkel, 1967), qualitatively analyzes interactions between a tutelary child protection counselor ("conselheiro tutelar") and two children victims of sexual abuse. By undertaking the demand of trying to understand sexual abuse in a more interdisciplinary way, research studies of the situated use of talk-in-interaction and of the narrative practices of children victims of sexual abuse might contribute to avoid the phenomenon of institutional revictimization (Cézar, 2007). During the demand of reconstructing the event of abuse, it is possible to identify that the counselor orients himself to a goal of producing a convincing report to the judiciary system (i.e. "Promotoria da Infância e da Juventude"; Public Ministry), leading the activity in such a way so as to produce evidences that he judges as necessary. The narrative is, then, shaped according to the actions being performed in the interaction (i.e. to guarantee a restraining order and punishment to the abuser). In particular, the data analysis shows that the counselor gets highly involved with the task of signifying the victim's experience with them, actualizing diverse interactional practices, among which, the use of polar questions and the offer of specific lexical itens, in order to describe the child's feelings. The counselor's engagement in the task of signifying the experience ends up assuming a prescriptive value of meaning attribution to the experience of abuse and of identity performance of the victim (Ehrlich, 2002; Trinch, 2013). Upon undertaking the activity of signifying the victims' experiences, the counselor actualizes in talk-ininteraction the moral values that permeate the judicial discourse, which are also elements of socialization of the child on how to feel and talk about the violence they have suffered. Studies such as the one proposed here - i.e. that investigate the interface of language use and sexual violence - might contribute to equalizing the dilemma generated by the need of producing narratives reportabled and valued by the judicial system without depriving the victim's right of agency in signifying their own experience. Furthermore, they might work as input for the professionals who act as interlocutors to narratives of children victims of sexual abuse.

talk in interaction; institutional mandate; child sexual abuse; narratives


1. (Novas) Concepções de infância

Somente após o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, e o início de campanhas nacionais contra o abuso sexual em 1994 (Santos e Gonçalves, 2008) é que a questão do abuso sexual infantil ganhou maior visibilidade no Brasil. O assunto, desde então, tem atraído o interesse de diversas áreas de estudo, como educação, psicologia, ciências jurídicas, sociologia e antropologia. Com exceção de alguns poucos estudos na área da sociolinguística interacional (Bastos, 2008), existe ainda um grande vácuo, no Brasil e no mundo, nos estudos interacionais sobre a questão do abuso sexual infantil, o que, em alguma medida, prejudica o debate interdisciplinar desse fenômeno social.

No Brasil, em particular, não se sabe de estudos que tratem sobre as falas diretas de crianças e de adolescentes vítimas de abuso sexual, o que limita o nosso entendimento sobre como elas significam e reconstroem, através da fala, as suas experiências. Além disso, como apontam (Ochs e Capps 2001), os estudos sobre como e quando as crianças constroem narrativas sobre suas experiências têm muitas limitações. Entre as limitações apontadas pelas autoras estão: (a) muitos estudos recaem sobre como as crianças recontam fábulas, ao invés de olhar para a habilidade de elas narrarem experiências pessoais; (b) a competência narrativa é geralmente avaliada em conformidade com o modelo narrativo canônico (i.e. um/a narrador/a ativo/a; reportabilidade; contextos não interacionais; organização linear, que prevê início, meio e fim e posicionamento moral consistente) e (c) os estudos sobre narrativas das crianças privilegiam, basicamente, a raça branca e a classe social média.

Assim, para entender a complexidade do fenômeno do abuso sexual infantil e contribuir com o debate interdisciplinar, este artigo propõe um olhar situado sobre as falas diretas das crianças vítimas com um conselheiro tutelar, em interações naturalísticas. As falas naturalísticas permitem chegar mais próximo dos significados que os/as interlocutores/as atribuem às suas próprias experiências e não a sentidos produzidos pelo/a pesquisador/a ou por outros/as atores/as sociais. Pesquisas que privilegiam a perspectiva êmica são, assim, importantes para que se compreendam melhor os processos de socialização das crianças, além de contribuir para a construção de culturas menos adultocêntricas.

A noção de crianças e adolescentes como sujeitos/as de direitos é nova no Brasil e foi inaugurada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que através do artigo 227 lançou as bases para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). O/A menor que era situado/a juridicamente como objeto de interesses dos/as adultos/as, passa a ser percebido/a, na nova legislação brasileira, como um ser humano provido de direitos, desejos e vontades. A Constituição de 1988, também conhecida como a Constituição Cidadã, passou a garantir às crianças e aos/às adolescentes os direitos fundamentais de sobrevivência, desenvolvimento pessoal, social, integridade física, psicológica e moral. Além disso, também previu formas especiais de proteção, através de dispositivos legais diferenciados, contra negligência, maus tratos, violência, exploração, crueldade e opressão (Brasil, 1990).

Com a criação da constituição, surge um mecanismo importante de efetivação dos direitos agora assegurados às crianças e aos/às adolescentes: o Conselho Tutelar. Ao Conselho Tutelar cabe a tarefa de fazer cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente. É importante também destacar que a nova legislação brasileira passa a contemplar todas as infâncias (Bujes, 2002) e não somente as referidas nos antigos Códigos de Menores, de 1927 e de 1979: as pobres, as órfãs, as delinquentes, as criminosas.

2. O mundo social revelado em cada interação

Embora não haja prescrições detalhadas sobre como o/a conselheiro/a deve se orientar interacionalmente para abordar crianças e adolescentes, o governo brasileiro, através do seu Programa Nacional de Direitos Humanos (Brasil, 2010), reconhece a importância de desenvolver protocolos de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais e a seus/suas agressores/as (p. 81) e admite que, por ser uma organização ainda em processo de consolidação, é necessário criar metodologias de trabalho adequadas (Brasil, 2004). A Secretaria Nacional de Direitos Humanos, através da pesquisa "Conhecendo a Realidade" (Fischer e Lopes, 2007), assume a necessidade de qualificar a intervenção dos/as conselheiros/as tutelares junto às crianças e aos/às adolescentes para materializar a doutrina da proteção integral e, para isso, lançou a criação de Centros de Formação de Conselheiros Tutelares.

Assumindo a necessidade de entender o fenômeno do abuso sexual de forma mais interdisciplinar, este artigo, inscrito na área da Linguística Aplicada, busca descrever e analisar as práticas interacionais entre um conselheiro tutelar e duas crianças vítimas de abuso sexual. O objetivo é compreender como os/as interagentes se orientam para o abuso sexual na sequencialidade da interação.

A sequencialidade interacional, estudada inicialmente for Harvey Sacks, na década de 1970, inaugura uma nova tradição de pesquisa: a Análise da Conversa. Sacks demonstra que as interações humanas, ao contrário do que se pensava até então, são altamente organizadas e que há, por parte dos/as falantes, um esforço compartilhado para manter a inteligibilidade. Para o autor, as pessoas se entendem porque a organização social é observável dentro das conversas mais triviais e mais ordinárias.

As estruturas interacionais, por sua vez, podem ser formalmente descritas nas suas recorrências e regularidades. São justamente essas regularidades que são descritas e analisadas no sistema de tomada de turnos, descrito por (Sacks, Schegloff e Jefferson 1974) no artigo "A Simplest Systematics for the Organization of Turn-Taking for Conversation". Esse sistema é, grosso modo, responsável pela organização das ações nas quais os/as falantes estão engajados/as. Entre outros aspectos, o sistema revela: (a) o local de relevância para a transição entre falantes; (b) a ocorrência da alternância de falantes; (c) o monitoramento da ação através da escuta da fala do/a outro/a, para que cada falante fale por vez; (d) a solução do problema das falas sobrepostas, por meio da cessão do turno de fala por um/a dos/as interagentes; (e) a manutenção da fluidez da conversa, evitando pausas e sobreposições e (f) o acionamento de mecanismos de reparo para a busca da compreensão mútua.

O estudo da sequencialidade interacional e das ações desenvolvidas pelos/as falantes no turno a turno alça a fala-em-interação como o principal recurso para fazer coisas no mundo (Duranti, 1997), possibilitando a ressignificação e a atualização de discursos macrossociais nas conversas mais mundanas. A percepção da linguagem como ação, ancorada nos preceitos da etnometodologia (Garfinkel, 1967), preocupa-se, então, em descrever como os/as falantes se engajam mutuamente na constante fabricação do mundo, já que o mundo social só ganha existência no discurso. É também através das práticas situadas dos/as falantes que é possível ver como são atualizadas (ou não) as novas concepções de infâncias, previstas na legislação.

De acordo com (Sacks 1992), as interações institucionalizadas (como no caso do Conselho Tutelar) e as falas ditas mundanas, ordinárias, se organizam de formas distintas. A diferença entre os dois tipos é que nas interações institucionalizadas há uma assimetria maior nos direitos e deveres (em termos de ações) de cada interlocutor/a (i.e. quem tem o direito de perguntar e o quê, quem tem a obrigação de responder quando e a quem, entre outros). Conforme argumentam (Hutchby e Wooffitt 1998), o/a representante da instituição normalmente é quem limita mais a ação de seus/suas interlocutores/as, através do controle da tomada e extensão dos turnos, da seleção dos/as falantes e do assunto a ser tratado, entre outros recursos. (Drew e Heritage 1992) citam ainda que o/a representante institucional, em função de suas demandas profissionais e institucionais, precisa cumprir determinadas tarefas, metas ou atividades fulcrais e, em função dessa orientação, a conversa institucional pode trazer limites para aquilo que é considerado como contribuição adequada para a pauta em questão. Ainda, em conformidade com os papéis sociais desempenhados em um determinado encontro social, os/as falantes se orientam para as obrigações morais implicadas nesses papéis (Sacks, 1992; Bergmann, 1998; 2002). No caso da interação entre conselheiro tutelar e criança/adolescente vítima de abuso sexual, o/a representante institucional tem obrigações morais em relação ao seu par relacional (Sacks, 1992) como, por exemplo, a de acolher o relato, fazer um relatório plausível para a Promotoria da Infância e da Juventude e prover medidas de proteção.

3. Metodologia

A geração do corpus do estudo qualitativo (Goldenberg, 2001; Silverman, 1998) aqui relatado combinou observação participante, gravação em áudio dos dados naturalísticos e análise de documentos como relatórios, fichas de atendimento, regimento interno, atas e correspondências. Todas as interações entre conselheiro e usuários/as foram gravadas, transcritas e analisadas. A pesquisa buscou privilegiar uma perspectiva êmica, ou seja, preocupou-se com os sentidos produzidos pelos/as participantes, no turno-a-turno da interação. Isso equivale a dizer que, por seu caráter indutivo, a pesquisa foi guiada primordialmente pela microanálise dos dados e não por teorias apriorísticas (Hutchby; Wooffitt, 1998).

O corpus da pesquisa é composto por 50 interações gravadas e transcritas de acordo com o sistema de transcrição elaborado por Gail Jefferson (1984) e adaptado por (Schnack, Pisoni e Ostermann 2005), constante na seção de Ilustrações. As interações podem tanto representar o primeiro contato do conselheiro tutelar com a vítima quanto abordagens subsequentes, quando, por exemplo, o conselheiro acompanha, por ordem judicial, o andamento das medidas de proteção, ou ainda quando há denúncias de continuidade da situação de abuso. Para proceder com a gravação das interações buscou-se a autorização dos/as envolvidos/as (crianças e adultos/as), primeiramente explicando a natureza da pesquisa e depois solicitando a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Por razões éticas e para garantir o anonimato dos/as participantes, todos os nomes de pessoas e lugares foram alterados quando da transcrição.

4. Práticas interacionais acionadas para organizar a experiência do abuso

Pesquisas sobre a socialização das crianças na e através da linguagem (e.g. Ochs; Capps, 1996) entendem a narrativa como um gênero discursivo universal e central no desenvolvimento comunicativo das crianças e com um papel fundamental na significação das experiências, socialização de emoções, atitudes e identidades. Segundo (Ochs e Capps 1996), a narrativa nos (re)cria no momento em que ela é criada, o que aloca as performances identitárias na fluidez da interação, em um contínuo processo de devir, e não em um status de realidade ontológica, exterior ao discurso (Van De Mieroop, 2001; De Fina, 2008; 2009; Firth, 1995; Stokoe, 2003; Bucholtz; Hall, 2005; Butler, 1990). Isso significa dizer que as identidades são também construídas por meio da intersubjetividade e em contextos situados, constituindo-se em um construto social complexo e fluido, localizado em nossas múltiplas interações no mundo (Butler, 1993).

Narrativas, para além da ação de contar histórias (Labov; Waletzky, 1967) constituem também um exercício para a socialização, desenvolvimento de relações interpessoais e legitimação do pertencimento a uma ou mais comunidades de práticas (Wenger, 1998). Nesse sentido, as crianças aprendem convenções para narrar eventos nos diferentes espaços de socialização, como, por exemplo, na família, na escola e, no caso desta pesquisa, na instituição Conselho Tutelar, e aprendem desde muito pequenas sobre as vantagens e desvantagens de pertencer a algumas categorias sociais (Forrester, 2002). Através da atividade de narrar, elas também aprendem a se movimentar no mundo social em que vivem, pois na microesfera interacional são exercitadas as relações de poder, assimetria interacional, resistência, afiliação, direitos e deveres, moralidade, entre outros aspectos da ordem social (Sacks, 1992).

Contar e recontar histórias assume também a função de estabilizar preferências de como agir, sentir e saber nos diferentes grupos sociais, ajudando a construir os/as narradores/as como participantes legítimos/as ou competentes (Sacks, 1992; Ochs, 2002; Ochs; Capps, 1996) desses grupos. Ainda, eleger certos aspectos para narrar e outros a silenciar é uma maneira de se posicionar frente à experiência e de organizar e significar eventos, especialmente os desviantes e com implicações morais (Ochs; Capps, 1996; Bergmann, 1998). Assim sendo, o conselheiro tutelar e as crianças e adolescentes se valem de narrativas por eles/as coconstruídas para ressignificar o evento do abuso sexual.

Como foi visto anteriormente, os estudos sob a perspectiva da análise da conversa ou da fala-em-interação inaugurados por (Sacks 1992) instauram também um novo entendimento sobre narrativas e sua estrutura. Ao invés de ser entendida como algo externo e estruturante da interação, Sacks mostra como a narrativa é estruturada na e pela interação através do trabalho ativo e constante dos/as interagentes. É pelo monitoramento das respostas de seu/sua interlocutor/a que o/a falante corrente (nesse caso, o/a narrador/a) passa a considerar as ações seguintes mais apropriadas, o que enfatiza o caráter altamente interacional da ação de contar histórias.

(Sacks 1992) se debruçou especialmente sobre o que ele chama de "trabalho interacional" demandado para contar e ouvir histórias. Na Análise da Conversa, a ação de narrar uma história é compreendida como uma coconstrução, ou seja, como um esforço compartilhado entre os/as interlocutores/as para viabilizar a ação em curso. Sendo assim, é necessário atentar para como os/as envolvidos/as gerenciam os turnos de fala, a introdução dos tópicos, a sinalização da escuta e da recepção das falas, entre ouros elementos de ordem interacional. Ao compreender a ação de narrar uma história como um empreendimento dialógico, fica absolutamente inviável remover o seu contexto de produção (Schegloff, 1997).

Em uma perspectiva interacional, as narrativas vão muito além da função de relatar eventos passados. De acordo com (Mandelbaum 2003) e (Ochs e Capps 2001), os eventos são trazidos à superfície da narrativa na medida em que são relevantes para a atividade que está em realização em determinado momento. Assim, mesmo que o evento narrado não seja "extraordinário" e mesmo que careça de uma "ação complicante", no sentido laboviano, a seleção de um fato para narrar nunca é aleatória e normalmente tem implicações de ordem moral. Nessa perspectiva teórico-analítica, a organização da narrativa dependerá em larga escala das funções que ela desempenha em determinada interação (Sacks, 1992; De Fina, 2009; Ochs; Capps, 2001; Schegloff, 1997; Mandelbaum, 2003).

As narrativas interacionais que compõem o corpus desta pesquisa apresentam características recorrentes, que, como se verá adiante, estão a serviço da ação a ser desenvolvida: construir um relato convincente de abuso para a Promotoria da Infância e da Juventude. Entre as características recorrentes estão: (a) oferta de itens lexicais, (b) uso de perguntas polares, (c) uso de qualificadores e (d) elicitação de sensações físicas e psicológicas. As ações do conselheiro tutelar estão pautadas pela necessidade de adequar as narrativas das crianças às demandas jurídicas, conferindo-lhes suficiente reportabilidade e veracidade, pois que disto resultará a punição (ou não) dos/as abusadores/as e a medida de proteção mais adequada à vítima. Assim, é importante que se ressalte que as características da narrativa estão condicionadas à função interacional dessa narrativa (i.e. a de construir um relato convincente) e não o contrário.

Para os propósitos deste artigo, analisaremos quatro excertos provenientes de interações entre o conselheiro tutelar e duas crianças diferentes, Gabi e Aline. O excerto analisado a seguir (Excerto 1) faz parte de uma interação mais longa entre o conselheiro tutelar e uma menina de seis anos (Gabi), que sofria abusos pelo tio paterno, que morava "de favor" na mesma residência. A menina contara sobre as "brincadeiras de namorado" com o tio para a sua babá, pois "confiava bastante nela". A babá contou para os pais e esses, por conseguinte, acionaram o Conselho Tutelar, a polícia e uma psicóloga.

Excerto 1 [06/12/2010: 0-248]

Depois de estabelecidos os fatos e esclarecidas as circunstâncias do abuso, o conselheiro pergunta (linhas 158 e 159) se Gabi ainda tem contato com o tio. Após um silêncio (linha 160), o conselheiro reformula a pergunta "nunca mais viu" (linha 161). Após a confirmação de Gabi, um novo silêncio se instaura e o conselheiro toma o turno para investigar os "sentimentos" de Gabi em relação ao tio (linha 164). Gabi responde, em volume de voz baixo, que não sente nada pelo tio (linha 166), não reconhecendo essa solicitação como moralmente implicativa.

O conselheiro reage com surpresa à resposta de Gabi, ao repetir a negativa da menina com ascendência na entonação (linha 168). Essa reação de surpresa demonstra uma possível orientação do conselheiro para o fato de que é esperado que as vítimas sintam algo em relação ao abusador, de preferência um sentimento negativo, como fica evidente em sua interação com Aline, a seguir.

A próxima interação analisada (de onde advêm os Excertos 2, 3 e 4 a seguir) acontece com a criança Aline, de nove anos de idade. Depois de instaurada a narrativa, o que se dá geralmente com perguntas do tipo "o que é que aconteceu", os/as interlocutores/as começam a ação de significar a experiência do abuso. Aline fora vítima de abusos sexuais pelo tio paterno. Os abusos aconteciam na própria casa da menina, durante um período em que o tio morava em um dos cômodos da residência. A mãe de Aline foi a autora da denúncia.

Excerto 2 [08/09/2010: 0-733]

O conselheiro formula uma pergunta que apresenta, inicialmente, as características de uma "pergunta polar", tu sofria com ↑isso (linha 532). As perguntas polares são elaboradas para receber como resposta um "sim" ou um "não" (Heritage; Raymond, 2010). A preferência, contudo, é pela resposta que concorde com o que está proposto na pergunta, exercendo, assim, maior controle sobre a respondente à medida que impõe interpretações daquele/a que faz as perguntas. Porém, no mesmo turno de fala, o conselheiro tutelar abre as possibilidades de resposta quando reformula sua pergunta, produzindo uma pergunta não polar (como é que era isso). Aline, contudo, se orienta para a polaridade da primeira formulação da pergunta e providencia a resposta preferida "sim" (linha 534). Ela ainda aceita a oferta do item lexical avaliativo "sofria" (linha 532), trazido na abertura da pergunta, porém o sofrimento que ela topicaliza é o sofrimento físico, ou seja, a dor (◦↑sim doía◦, linha 534). O conselheiro avança no assunto e busca saber também do sofrimento emocional ("de sentimento"), e reapresenta uma pergunta sobre sofrimento, mas circunscrevendo-o a determinado tipo de sofrimento (linhas 536 e 537). É interessante conjecturar sobre como Aline elaboraria sua experiência se lhe fosse dirigida uma pergunta do tipo aberta, sem proposições.

Na falta de elaboração de uma resposta por Aline no local relevante de transição de turno (linha 539), o conselheiro toma o turno de fala novamente e continua a ação de "nomear os sentimentos" da criança. A nova pergunta (linha 541) é produzida em formato semelhante à pergunta anterior, ou seja, inicia no formato de pergunta polar (tu tinha nojo ↑dele), sendo reformulada em seguida em formato de pergunta aberta (o que que tu ↑tinha). Contudo, o novo formato de pergunta (i.e. que oferece um tipo de sentimento) oferece proposições mais específicas (i.e. nojo), que Aline confirma, preservando, inclusive, a mesma estrutura sintática (eu tinha nojo dele, linha 543). A confirmação de Aline, entretanto, não vem imediatamente, mas após um silêncio (linha 542) e, quando finalmente produzida, é produzida em volume de voz baixo (linha 543).

O padrão pergunta-resposta que caracteriza as interações entre o conselheiro tutelar e as crianças permite ao profissional não apenas obter informações, mas também direcionar e controlar a interação, ao seletivamente formular, propor e reformular os termos que descrevem a experiência da vítima. Ao propor à Aline o verbo "sofrer" e o substantivo "nojo" como descritivos dos sentimentos dessa criança, o conselheiro está, também, traçando um roteiro de significações, que, poder-se-ia especular, talvez não fosse coincidir com o que de fato a criança sente.

Sobre roteiros de significação, é interessante problematizar os modelos que temos disponíveis para construir e/ou ratificar a "vítima autêntica" (Macmartin, 2002), ou, em outras palavras, aquela que sente o que é culturalmente esperado que ela sinta (e.g. nojo, sofrimento). Pesquisas de cunho interacional (Davis, 2005) mostram que as formulações das vítimas de abuso são talhadas por expectativas públicas, que se ajustam ao que (Davis 2005) chama de "mercado dos problemas sociais"1. Para que ganhe o reconhecimento público e tenha reestabelecida sua identidade moral de "pessoa inocente" - de alguém que não teve culpa ou responsabilidade pelos danos sofridos -, são esperados da vítima determinados relatos e comportamentos específicos, o que, segundo (Trinch 2013), só reforça algumas visões estereotipadas sobre o abuso sexual.

No excerto analisado abaixo, em que o conselheiro significa com Aline a experiência dela com o abuso, podemos perceber, mais uma vez, o ativo engajamento do profissional na tarefa de nomear a experiência. Novamente, a recorrência de perguntas polares (linhas 558 e 559) sinaliza maior controle sobre a fala de Aline, como veremos.

Excerto 3 [08/09/2010: 0-733]

Após um silêncio (linha 560), Aline provê uma resposta em conformidade com a proposição da pergunta (resposta typeconforming, segundo Heritage e Raymond, 2010). Ou seja, Aline se orienta para as restrições contidas na pergunta e providencia a resposta preferida, que é a concordância (>sim<, linha 561).

Contudo, o conselheiro mostra-se ativamente engajado não apenas na tarefa de nomear, mas também de avaliar a ação do abusador e, para isso, oferece o qualificador intensificado "muito grave" (linha 559). Ao oferecer essa formulação, em formato de pergunta polar, e buscar a afiliação da interlocutora com um "né", o conselheiro torna mais trabalhosa (interacionalmente falando) a possibilidade de Aline negar tal proposição de avaliação e ofertar por si própria uma avaliação diferente sobre o evento abusivo de que foi vítima. Contrariamente, perguntas abertas, do tipo "o que tu achas disso que aconteceu?", poderiam encorajar postura de maior agentividade da criança e incentivá-la a elaborar a sua própria versão da experiência, em vez de posicioná-la como uma interlocutora passiva.

A concordância de Aline sobre "saber" que o que o tio fazia ser muito grave (linhas 558 e 559) nos possibilita algumas considerações. Sobre a construção da "criança que sabe", cujo conceito é estreitamente ligado à idade, pesquisas na área da Psicologia Discursiva (Macmartin, 2002; Potter; Hepburn, 2005) tratam as categorias baseadas em idade como recursos retóricos, ou seja, tratam-nas como elásticas e muitas vezes usadas para se ajustar aos propósitos de cada evento discursivo. Para ilustrar essa ideia de elasticidade, (Macmartin 2002, p. 30) mostra em sua pesquisa que, ao passo que uma criança de dez anos é tratada pela corte como "inocente" e, portanto como "aquela que não sabe", outra de 11 anos é tratada como "sendo assertiva e tendo conhecimento elaborado", ou seja, "aquela que sabe".

Nessa mesma linha "daquele/a que sabe", (Ehrlich 2007) aponta que as ações de mulheres que "colaboram" com o abusador por avaliarem pelas circunstâncias (e.g. força física desigual, portas trancadas, ambiente ermo) que assim estão se defendendo de atos ainda mais brutais, são discursivamente construídas como aquelas que se engajam em uma "relação sexual consensual". (Ehrlich 2007, p. 464) argumenta que essas ações de colaboração (da vítima com quem a abusa) são tomadas pelas vítimas como estratégias de sobrevivência e de preservação do self. Contudo, suas falas são resumidas, reformuladas e ressignificadas por participantes não diretamente envolvidos/as na fala original (e.g advogados/as de acusação, juízes/as) e que têm o poder de criar uma "história oficial" (Ehrlich, 2007, p. 455). Segundo a autora, essas versões do discurso jurídico (i.e. "histórias oficiais") são um recurso analítico para os/as pesquisadores/as perceberem as normas de inteligibilidade que regulam e definem o entendimento sobre gênero e que determinam, em larga escala, o resultado de muitos julgamentos nas cortes.

No próximo excerto, podemos continuar observando o empenho do conselheiro tutelar em nomear e (res)significar a experiência do abuso. Aline, contudo, continua não demonstrando prontidão em formular o abuso, o que motiva o conselheiro a fazer isso com ela.

Excerto 4 [08/09/2010: 0-733]

Ao longo da interação, o conselheiro providencia bastante material morfológico (i.e. produz mais falas e turnos bem mais longos do que Aline). Contudo, não basta prover o material e significar a experiência por Aline, é preciso que ela ratifique os elementos que Luis traz para a interação e, sobretudo, que confirme as formulações do conselheiro para os/as interlocutores/as não presentes, porém ratificados (e.g. juízes/as e psicólogos/as).

No excerto 04, ao dizer que Aline vai ficar com "isso" na "cabecinha pro resto da vida", o conselheiro indica uma rota bastante específica de sentimento frente à experiência do abuso. Ou seja, no processo de construção de sua identidade de conselheiro tutelar, Luis institucionaliza não apenas a prática de definir como as vítimas se sentem (ou se sentiram frente ao abuso), mas também como se sentirão no futuro. Ao buscar a afiliação de Aline com um "tá" (linha 730) e não obter resposta (linha 731), o conselheiro sai do "enquadre interacional" (Tannen; Wallat, 1998) de reconstrução da narrativa do abuso e, sem maiores elaborações sobre a sua proposição quase profética, se orienta para a mãe, iniciando o enquadre da despedida. Os enquadres interacionais são eventos discursivos mais ou menos estáveis e que demandam diferentes tipos de registro (e.g. saudação inicial, explicação da visita ao /à responsável da criança, reconstrução da narrativa com a criança, despedida). A mudança de enquadre, que é realizada sem sinalizadores de transição, marca a orientação de Luis para o término de sua tarefa de (res)significar a experiência de Aline. Mesmo depois de lançar algo que poderia ser tomado como perturbador (ou seja, a "sentença" do significado do evento de abuso ao longo da vida de Aline), Luis não produz nenhuma justificativa e abandona a interlocução com Aline, voltando seu torso e seu olhar em direção à Clarice (mãe de Aline).

É importante que se diga que a narrativa do abuso como trauma tem sido largamente utilizada para ganhar a atenção pública sobre o problema da violência sexual e para garantir atendimento às vítimas. Porém, de acordo com (Trinch 2013), essa narrativa dominante pode também silenciar vítimas que não representam a sua experiência de abuso em forma de trauma. O trauma, sabidamente, enfatiza a dor, o sofrimento e a vitimização, não abrindo espaço para um entendimento mais profundo do fenômeno do abuso sexual. Com isso, continua (Trinch 2013), as representações estereotipadas sobre o abuso podem dificultar o processo de resiliência das vítimas.

A narrativa do trauma se tornou um elemento central para legitimar as vítimas de abuso, fenômeno que Alyson Cole (apud Trinch, 2013), chama de "culto à verdadeira vitimização"2. Isso é levado ao extremo na corte canadense, em que alguns/mas juízes/as tratam o estresse pós-traumático como uma evidência necessária para comprovar a veracidade do abuso. Segundo (Trinch 2013) há um verdadeiro roteiro a ser seguido pelas vítimas antes, durante e depois do abuso para que elas sejam levadas a sério. Qualquer ação incongruente com as expectativas públicas sobre a "vítima inocente" acarreta em descrença, preocupação e menosprezo. A partir desse "roteiro", antes do abuso a vítima não pode ter se colocado em uma situação de risco, frequentado lugares perigosos ou usado drogas, por exemplo. Já durante o abuso propriamente dito, a vítima pode ser culpabilizada se não demonstrar ter resistido suficientemente, o que faz eco à narrativa do "corpo quebrado" (McCaughly, apud Trinch, 2013), ou seja, o corpo precisa mostrar evidências de luta, precisa evidenciar lesões visíveis (Ostermann, 2003). Finalmente, depois do abuso, a vítima "ideal" precisa demonstrar sofrimento pelo "trauma" vivido, interromper sua rotina do dia a dia e buscar ajuda pelos danos psicológicos e físicos severos e incuráveis.

Levando em consideração esse roteiro, (Trinch 2013) sugere que se amplie o espectro para representações mais mundanas sobre o abuso. Em seu estudo sobre mulheres latinas vítimas de violência doméstica, Trinch descobre que muitas delas não ficam em casa convalescendo física e emocionalmente, até mesmo porque as demandas da vida cotidiana não lhes permitem. A autora descreve que as vítimas têm questões de ordem prática para resolver e levam suas vidas adiante, resistindo, muitas vezes, à própria vitimização discursiva. (Trinch 2013) traz ainda uma questão bem importante para se pensar de forma mais profunda e alargada a relação entre gênero, violência e agentividade. Para a autora, é um erro sempre assumir as mulheres como indefesas, submissas e vítimas nos casos em que há violência sexual. Trinch cita casos em que as mulheres estrategicamente resistiram ao sexo com os parceiros para que a situação culminasse em estupro para, assim, terem elementos legais para receberem medidas de proteção e/ou para se livrarem de uma relação abusiva e violenta.

Ainda sobre o discurso do trauma, Santos (2002) traz para reflexão a importância da abordagem utilizada pelos/as profissionais que atendem crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Para o autor, dependendo da abordagem, a experiência negativa pode ser aprofundada, dificultando sua superação. Em uma pesquisa comparativa entre jovens de rua de Nova Iorque e de São Paulo, Santos (2002) constatou que os/as jovens de Nova Iorque viveram suas experiências de abuso como traumas terríveis que marcaram definitivamente suas vidas. Em contrapartida, os/as jovens brasileiros/as descreveram-nas como experiências ruins, mas disseram que já as haviam superado ou estavam lutando para superá-las.

Assim, como pudemos ver, é na interação que as crianças vão aprendendo a se alinhar com as expectativas morais e sociais (Schieffelin; Ochs, 1986; Ochs; Kremer-Sadlik; Ochs, 1993; 1996; Ochs; Capps, 1996; 1997), processo esse que se estende por toda a vida. Nesse sentido, ao tornar as regras sociais inteligíveis na interação, o próprio conselheiro tutelar acaba instrumentalizando as crianças com elementos de socialização e rotas de significação da experiência do abuso. A coconstrução da narrativa é, assim, um espaço de socialização sobre como as crianças devem se posicionar frente ao abuso sofrido, sobre como devem narrar a experiência, e sobre o que devem sentir e pensar. As práticas narrativas dão forma às experiências das crianças, além de trazerem para a superfície da fala noções do senso comum sobre infância, ordem social moral e abuso sexual.

5. Algumas considerações

Na ressignificação da narrativa do abuso os/as interlocutores/as se engajam de forma mais ou menos ativa. As narrativas se configuram como um gênero universal e central para o desenvolvimento das crianças, assumindo um papel fundamental na significação das expe­riências, socialização de emoções, atitudes, identidades e pertencimento a determinados grupos sociais (Ochs; Capps, 1996). Assim sendo, a construção da narrativa é um momento privilegiado para a criança ou o/a adolescente organizar e significar a experiência do abuso sexual com o/a interlocutor/a.

A análise da coconstrução das narrativas permitiu a sistematização de algumas recorrências nas práticas interacionais entre o conselheiro tutelar e as vítimas. Essas recorrências atualizam na própria interação a agenda do conselheiro tutelar, que se mostra constantemente orientado para a sua meta fulcral de produzir um relatório convincente para a Promotoria da Infância e da Juventude. De acordo com essa constatação, pode-se afirmar, então, que o que determina as características das narrativas é a atividade em si que está sendo realizada bem como quem serão os/as "futuros/as" interlocutores/as do documento gerado. A orientação do conselheiro para a atividade de construir um relatório convincente sinaliza o seu envolvimento moral com a função de obter um encaminhamento adequado, qual seja, a medida de proteção para a criança e a punição para o/a abusador/a. Contudo, essa meta fulcral nem sempre converge com as demandas da vítima, que resiste, muitas vezes, em falar da sua história de abuso, orientando-se para o tópico como delicado e problemático (Jefferson, 1988; Linell; Bredmar, 1996; Weijts et al., 1993).

Pesquisas interacionais em diferentes contextos (Ochs, Capps, 2001; Ehrlich, 2001; 2006; 2007; Trinch, 2013) mostram como as narrativas são coconstruídas de forma a se ajustar aos discursos socialmente validados. Da mesma forma, ao conduzir e determinar os contornos da narrativa, o conselheiro mostra um conhecimento tácito sobre o que é reportável, adequado e convincente para outro interlocutor: o sistema judiciário. Ou seja, o conselheiro demonstra conhecimento do conteúdo (ou, mais do que isso, dos próprios argumentos e evidências) que é preciso fazer constar no relatório para que a vítima seja considerada como "autêntica" (Macmartin, 2002) ou "ideal" (Trinch, 2013). As narrativas jurídicas normalmente valorizam aspectos físicos como cortes, lacerações, ossos quebrados e sangramentos (Trinch, 2013). Da mesma forma, o sistema judiciário tem modelos preferidos de performance da identidade de vítima, como, por exemplo, ficar prostrada, e ter depressão e estresse pós-traumático (Trinch, 2013). Caso essas reações não aconteçam, a vítima pode cair no descrédito e acabar não recebendo atenção adequada pelo sistema judiciário.

Para obter as respostas institucionalmente desejadas para o abuso vivenciado por essas crianças, ao longo da interação, o conselheiro elabora, recorrentemente, perguntas polares (Heritage; Raymond, 2010) que, como já vimos, exercem maior controle sobre o/a respondente, por apresentarem tanto determinadas proposições bem como preferência por determinada resposta. Além disso, durante a coconstrução da narrativa, o conselheiro oferece itens lexicais às vítimas, que funcionam como roteiros pré-estabelecidos de significação da experiência. Assim, ao oferecer descrições como, por exemplo, "nojo", o conselheiro traz para a interação o seu próprio código de valores morais e seus julgamentos, impossibilitando, ou, pelo menos, dificultando à vítima significações alternativas.

Ao trazer para a interação seu próprio repertório moral, o conselheiro acaba apresentando aquilo que é esperado que as crianças e adolescentes digam e sintam sobre suas experiências pessoais. O evento interacional se configura, então, como uma instância de socialização nas e daspreferências de como performar a identidade social de vítima (Ochs, 1993).

A fala-em-interação pode representar uma importante ferramenta de empoderamento das vítimas de abuso sexual, na medida em que é através da linguagem em uso que as crianças e os/as adolescentes organizam, elaboram e ressignificam sua experiência. De acordo com Santos (2002), a abordagem feita pelos/as profissionais dos serviços especializados pode aprofundar a sensação de trauma pela vítima, tornando difícil a superação da experiência negativa. Por isso, a contribuição desta pesquisa está em problematizar os roteiros de significação definidos culturalmente e impostos às vítimas pelo Conselho Tutelar. Retirar o direito da vítima de contar e significar sua própria história pode se configurar como uma prática interacional "revitimizante" (Cézar, 2007), sendo que um dos desafios da prática do aconselhamento pode residir na equação do dilema de empoderar a vítima e de construir, mesmo assim, um caso que atenda às demandas jurídicas.

(Ochs e Capps 2001) relatam como as pessoas que passaram por experiências de trauma (e.g. participação em guerras) aprofundam seu sofrimento ao não se enxergarem nas narrativas construídas sobre o evento. Assim, embora as narrativas organizem a experiência humana, elas podem, ao mesmo tempo, restringir a possibilidade de significações dessas experiências. Em outras palavras, ao acomodar a experiência pessoal em narrativas com formatos locais mais ou menos definidos (e.g. narrativas validadas pelo sistema judiciário), significações alternativas não encontram espaço de expressão. Esse processo, chamado por (Ochs e Capps 2001, p. 55) de "despersonalização", transforma as experiências pessoais em experiências também impessoais.

Evidentemente, a equação desse dilema inclui a problematização dos modelos de narrativas legitimadas pelo sistema judiciário, pois, ao passo que se quer evitar o aprofundamento do trauma das vítimas durante a reconstrução da narrativa do abuso, também se quer que o sistema judiciário acredite nelas, legitimando os atos de violência pelos quais passaram. O que parece é que o sistema judiciário opera com noções sociais e culturais que entram em rota de colisão com as noções da nova legislação, que reconhece a fase peculiar de desenvolvimento das crianças, garantindo-lhes direito de expressão, proteção, respeito e dignidade (Brasil, 1990).

O presente estudo demonstra a necessidade de adequação das práticas interacionais do Conselho Tutelar (e, por conseguinte, de todo o sistema judiciário que está implicado no processo de averiguação de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes) ao novo modelo de legislação proposto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Práticas interacionais mais sensíveis podem mudar a cultura do "culto à vítima" (Trinch, 2013) e ajudar na significação do sofrimento de forma mais humanizada. Enquanto a ênfase maior é dada às vítimas e não aos/às agressores/as (Santos, 2002), desvia-se o foco do comportamento desviante, que é o que, de fato, deve ser trazido para reflexão social e aprofunda-se o fenômeno da culpabilização dos/as sexualmente violentados/as.

De forma prática, estudos na interface da fala-em-interação e abuso sexual infantil podem servir de insumo para a elaboração de políticas para a infância e para a formação de conselheiros/as tutelares e outros/as profissionais que lidam com a questão do abuso sexual infantil. De acordo com (Furniss 1991), é fundamental lembrar que o fenômeno do abuso sexual infantil, dada a sua complexidade, deve sempre ser abordado de forma interdisciplinar. Contudo, ao assumir o caráter situado da fala não se pode estabelecer o que é adequado e o que não é adequado fora do contexto de fala, sob pena de padronizar e escriptar as interações, desconsiderando as especificidades de cada evento. Estudos como este se prestam, então, para contribuir com reflexões sobre o uso situado da linguagem e as implicações dos seus diferentes usos.

Ao instanciar a narrativa como um espaço de filtragem da experiência (i.e. um espaço que delimita o que deve e o que não deve ser narrado), os aspectos negligenciados das experiências pessoais acabam compondo o leque de histórias que nunca serão contadas, por não terem a legitimação do/a interlocutor/a e do sistema judiciário. A necessidade imposta por representantes institucionais (como, no caso desta pesquisa, do conselheiro tutelar) de que a criança se posicione moralmente em relação à experiência (e.g. sentir nojo e sofrer) também silencia os/as narradores/as sobre sentimentos que possam confrontar a ordem moral. Nesse sentido, faz-se importante refletir ainda sobre a possibilidade de a criança ter sentido prazer durante o abuso, pois como alerta (Felipe 2006) a concepção moderna de infância nega e invisibiliza a erótica infantil, o que, nem de longe, significa que ela não existe. Entretanto, tal sentimento não tem espaço para emergência na narrativa, uma vez que colide com as normas morais e sociais.

Nesse sentido, as experiências que quebram expectativas morais são duplamente condenadas: além de serem consideradas socialmente inconvenientes, não encontram espaço para serem significadas nas narrativas, já que elas (as narrativas), em última instância, desempenham a ação de reacomodar e realinhar as experiências às expectativas morais.

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  • 1
    Social problems marketplace.
  • 2
    The cult of true victimization.

Anexo - Convenções de transcrição

[texto] Falas sobrepostas = Fala colada (1.8) Pausa (.) Micropausa , Entonação contínua . Entonação com ponto final ? Entonação de pergunta - Interrupção abrupta da fala : Alongamento de som >texto< Fala mais rápida <texto> Fala mais lenta ºtextoº Fala com volume mais baixo TEXTO Fala com volume mais alto Texto Sílaba, palavra ou som acentuado (texto) Dúvidas XXXX Texto inaudível ((texto)) Comentários da transcritora @@@ Risada ↓ Entonação descendente ↑ Entonação ascendente hhh Expiração audível .hhh Inspiração audível Fonte: SCHNACK, C.; PISONI, T.; & OSTERMANN, A. Transcrição de fala: do evento real à representação escrita, Entrelinhas, v. 2, n. 2. 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    Jan 2014
  • Aceito
    Dez 2014
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