Resumos
Este artigo analisa os posicionamentos interacionais (DAVIES & HARRÉ, 1999) das/dos participantes da rede social Filmow ao comentarem aspectos relativos ao gênero e à sexualidade abordados em Tudo sobre minha mãe, de Almodóvar, destacando aqueles que remetem às personagens transgêneros. Privilegiamos um instrumental analítico que se centra na contextualização de pistas indexicais (WORTHAM, 2001). Por entender o gênero pelo prisma da performatividade (BUTLER, 1990), recorremos às Teorias Queer na fundamentação teórica. Os resultados indicam que o filme impulsiona as/os participantes a refletirem sobre performances discursivo-identitárias não hegemônicas, mesmo que nem sempre assumam posicionamentos transgressores. Aventam-se razões para as dificuldades de mobilizar discursos transgressivos.
transgênero; posicionamentos; pistas indexicais; Tudo sobre minha mãe
This article analyzes the interactional positionings (DAVIES & HARRÉ, 1999) of Filmow social network participants when commenting on aspects of gender and sexuality addressed in Almodovar's All About my mother, highlighting those that refer to transgender characters. We use an analytical tool that focuses on the contextualization of indexical cues (WORTHAM, 2001). By understanding gender through the perspective of performativity (BUTLER, 1990), we use Queer Theories as a theoretical basis. The study indicates the film drives participants to reflect on non-hegemonic discursive identity performances, even though participants do not always take transgressive positionings. Then we suggest reasons for the difficulties of mobilizing transgressive discourses.
transgender; positionings; indexical cues; All about my mother
"A transgressão não está em discursos inflamados,
mas no próprio corpo do protagonista.
Sua afronta não precisa de palavras."
(LOPES, 2006: 387)
1. Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar como as/os participantes de uma rede social se posicionam interacionalmente diante das performances discursivo-identitárias de duas personagens do filme Tudo sobre minha mãe (dirigido por Almodóvar), Lola e Agrado, ambas transgêneros1, de modo a identificar se o filme, como artefato cultural, inspira posicionamentos que possam colaborar para romper com noções de senso-comum acerca do gênero e da sexualidade.
Poucos cineastas cederam a tela a personagens transgêneros e um número ainda mais reduzido o fez sem mostrá-las/los desempenhando performances impregnadas pela "universalização dos valores do homem euro-norte-americano, adulto, heterossexual e branco" (LOPES, 2006: 379), que o cinema comercial instaurou e propagou. Isto implica dizer que o cinema pecou ou por omissão ou pela reprodução de um único ponto de vista. E se uma indústria, como a cultural, cala ou neutraliza a voz de certos grupos sociais, seja por seu gênero, sua práxis, classe social ou etnia, sentencia-os a sofrer os efeitos das práticas sociais hegemônicas, marginaliza-os e/ou caricaturiza-os. Porém, o poder é mobilizador de resistência (FOUCAULT [1976] 1998) e as/os transgêneros encontraram na cinematografia de Pedro Almodóvar uma brecha singular para adentrar narrativas fílmicas.
Por não reproduzirem discursos hegemônicos no que tange ao gênero e à sexualidade, os filmes de Almodóvar se prestam a questionar os alicerces que dão sustentação a uma visão essencializada e dicotômica da sexualidade e do gênero. Não é de se estranhar que tenham inspirado textos acadêmicos das mais diferentes áreas (psicanálise, educação, comunicação, antropologia) ainda que predominem aqueles interdisciplinares que dialogam com os estudos de gênero (CAÑIZAL, 1996; MALUF, 2002; DIAS, 2010; GALLINA, 2010, por exemplo). No campo de estudos da linguagem, mais recentemente o transgenerismo no Brasil passou a gozar de maior atenção (BORBA & OSTERMANN, 2007; BORBA, 2011, 2014) e, apesar de abundarem publicações acadêmicas sobre personagens transgêneros nas obras de Almodóvar, a maioria destas geralmente estão vinculadas a outras áreas do conhecimento que não os estudos linguísticos. É notável, porém, que textos cinematográficos tenham suscitado o interesse de linguistas preocupados com linguagem e sexualidade. Cameron e Kullick (2003), por exemplo, no livro Language and sexuality, frequentemente ilustram seus pontos de vista recorrendo a exemplos do uso da linguagem no cinema.
Esta pesquisa, que se insere no campo do socioconstrucionismo discursivo e da visão performativa da linguagem (AUSTIN [1962] 1990; MOITA LOPES, 2003; PENNYCOOK 2007, 2010), lança um olhar sobre as performances discursivo-identitárias de personagens transgêneros de forma a identificar os posicionamentos interacionais (DAVIES & HARRÉ, 1990) que estas inspiram nas/nos participantes da Filmow. Para isso, baseia-se na análise das pistas indexicais (WORTHAM, 2001) identificadas na produção discursiva dos membros de uma comunidade de prática (WENGER, 1998). O arcabouço de sustentação teórica ampara-se nas Teorias Queer (BUTLER, 1990; WEEKS, 1998; WILCHINS, 2004) e em autores que alertam para a importância de nos livrarmos de heranças da Modernidade (BAUMAN & BRIGGS, 2003; MOITA LOPES, 2006a, 2013), rechaçando uma visão pré-configurada da construção identitária no discurso (PINTO, 2013), que se escora no positivismo para produzir verdades universalizantes.
Nesse sentido, a contribuição desta pesquisa para os estudos linguísticos reside em aumentar o foco de atenção em torno do transgenerismo no campo da linguagem, mirar as práticas discursivo-interacionais que se dão nas redes sociais a partir de uma perspectiva queer e performativa, além de entender que o cinema, enquanto linguagem, também é performativo, já que constitui os sujeitos que alega descrever. Assim, a ruptura que opera Almodóvar ganha transcendência. Em lugar de construir personagens transgêneros como reféns de sua anatomia, sujeitos sócio-psicologicamente abalados, o cineasta lhes dá possibilidade de agência ao libertá-las de tal estigma. Mostra que a performatividade alberga em si a possibilidade de transformação. Entender o efeito performativo da linguagem é fundamental para compreender como operam os mecanismos que tornam alguns corpos não-habitáveis e algumas vidas não-vivíveis (BUTLER, 2004, 2015).
Neste artigo, primeiramente apresentamos as teorias de gênero como performance e a visão performativa da linguagem a fim de fundamentar teoricamente a pesquisa. A seguir, nos centramos no filme Tudo sobre minha mãe. Uma vez introduzidos os temas aqui contemplados, detalhamos o instrumental teórico-analítico a ser empregado para, em seguida, empreender a análise.
2. As teorias de gênero como performance e uma visão performativa da linguagem
Em nossas práticas sociais, encenamos performances de gênero, sexualidade, raça, classe social, entre outras. Olhar para as práticas discursivas nas quais nos engajamos, seja no mundo off-line ou online, permite-nos observar como as nossas performances são (re)negociadas e disponibilizadas. Tal olhar nos possibilita também entender como os meios de comunicação podem influenciar os posicionamentos que assumimos, posto que são um potente aparato formador de opinião (FAIRCLOUGH, 1995) e, portanto, são possíveis propulsores de discursos orientadores. Nesta condição, o cinema pode ser compreendido pelo seu potencial pedagógico ao nos ensinar a desempenhar as performances identitárias que nos corresponderiam de acordo com a nossa identidade de gênero, raça, status social etc.
Quase cem anos depois da invenção do cinema2, em 1990, Judith Butler lançava Gender trouble: Feminism and the Subversion of Identity, livro que problematizaria noções clássicas de construção identitária atreladas a formas preconcebidas de entender o gênero e a sexualidade. Para tal, baseou-se na teoria de Austin ([1962] 1990) acerca do caráter performativo da linguagem, nos conceitos de citacionalidade e iterabilidade desenvolvidos por Derrida ([1972] 1988), nas relações de poder que, segundo Foucault ([1976] 1998), incidem sobre a produção discursivo-identitária que molda o sujeito social, bem como na noção de heterossexualidade compulsória (RICH, [1980] 1996), que foi forjada para dotar certas práticas de performar o gênero de aparência de substância, buscando assim, naturalizá-las. Desse modo, a autora tratou de desvencilhar o gênero e a sexualidade de concepções estáveis e prefiguradas herdadas da Modernidade.
Butler (1990) entende que o gênero e a sexualidade são construtos sociais que, pela reiteração de suas performances, passam a ser automatizados e revestidos de um caráter de essência que predispõe determinada forma de ser e agir, a heterossexual, como válida ao mesmo passo que deslegitima as demais. Estas performances são aprendidas e reproduzidas de tal forma que parecem naturais. E acabam estabelecendo uma relação causal e convergente entre gênero, sexualidade e desejo. Tal relação institui que são os caracteres sexuais exteriores do indivíduo que determinam sua identidade de gênero e orientam suas práticas sexuais. Uma vez identificado o sexo do indivíduo, prescreve-se a identidade de gênero que lhe corresponde e o sexo do seu objeto de desejo.
Fato é que ninguém nasce mulher ou homem (BEAUVOIR [1972] 1997). Simplesmente aprende a desempenhar performances de feminilidade ou masculinidade, ou seja, aprende a 'passar por'. E é precisamente o 'passar por' que delata o caráter performativo da identidade de gênero (BUTLER, 1990). São os discursos orientadores que se tornam hegemônicos em determinado momento sócio-histórico que determinam as performances que homens e mulheres devem desempenhar.
O entendimento de que são os efeitos da repetição de uma prática regulatória que busca "uniformizar a identidade de gênero por meio da heterossexualidade compulsória" (BUTLER, 1990: 42) atesta que biologia não é destino (PENNYCOOK, 2007) e dirige o olhar para as relações de poder que incidem sobre estas convenções normativas (FOUCAULT [1976] 1998). Por defenderem a desnaturalização e a desnormatização dos pressupostos que regem o gênero e a sexualidade, teóricos queer, como (Butler 1990, 2004), Sedgwick (1990), Wilchins (2004) e Louro (2004), partem do preceito de que são as nossas performances que produzem e mantêm significados sobre o gênero e a sexualidade. Estes, reiteramos, materializam-se através dos discursos que os descrevem performativamente.
Para compreender como este mecanismo opera, torna-se necessário esclarecer os conceitos de performativo e performatividade. O performativo está associado à teoria que Austin ([1962] 1990) desenvolveu sobre os atos de fala. Depois de diferenciar atos constatativos (aqueles que descrevem ações) de performativos (os que produzem ações), o autor conclui que todos os atos de fala são performativos: "dizer é fazer". Posteriormente Derrida ([1972] 1998) esclareceu que os atos performativos produzem fazeres graças à sua citacionalidade e iterabilidade, ou seja, às menções e posteriores repetições que criam práticas ritualizadas. Desta/nesta gramaticalização das práticas emerge a performatividade. Cameron e Kullick 2003: (286), citando Butler (1990), definem-na como "o processo através do qual o sujeito emerge". Trata-se de uma forma anti-fundacionalista de conceber a identidade e a linguagem: "não escrevemos nossos próprios scripts, embora tenhamos a possibilidade de mudá-los" (PENNYCOOK, 2007: 70).
Constata-se, portanto, que é o efeito performativo da linguagem que cria corpos abjetos e delimita quem vive à margem. É o dizer-fazer que converte a/o transgênero em uma aberração por não encaixar num dos extremos do binarismo de gênero. Feminino e masculino, ao serem assim nomeados, instituem-se como dois polos opostos e excludentes, prescrevendo performances a serem desempenhadas de acordo com certas características anatômicas. Por estar entre os dois polos, a/o transgênero não se torna inteligível ou, na leitura de Butler (2004), humano:
"O humano se concebe de forma diferente dependendo de sua raça e da visibilidade de dita raça; de sua morfologia, a medida em que se reconhece dita morfologia; de seu sexo e da verificação perceptiva de dito sexo; de sua etnicidade e da categorização de dita etnicidade. Certos humanos são reconhecidos como menos que humanos e esta forma de reconhecimento com emendas não conduz a uma vida viável" (BUTLER, 2004: 2).
Partindo desse preceito, espaços de sociabilidade como as redes sociais, que convidam intensamente à prática discursiva, deixam ver como os seus participantes assumem posicionamentos interacionais. Espaços de interação que se multiplicam desde o advento da Web 2.03 criam brechas para novas performances identitárias, bem como novas formas de criar inteligibilidade sobre o mundo social. Nessas interações, dão-se a conhecer práticas discursivas que podem desestabilizar performances de gênero e sexualidade já sedimentadas. Logo, processos sócio-interacionais desmistificam a ideia de que há identidades que já estariam prontas. Estas são negociadas e moldadas na prática discursiva. Evidencia-se, assim, a insustentabilidade da dicotomia de gênero, que se apoiou na sedimentação de discursos sobre uma suposta essência 'corpóreo-generaficante' para legitimar a heteronormatividade (BUTLER, 1990) como verdade, ignorando o caráter instável e plural dos gêneros e das sexualidades.
São os discursos predominantes e os interesses que neles subjazem em determinado momento sócio-histórico que fazem com que se legitimem certos regimes de verdade que, por sua vez, deslegitimam certos estilos de vida, tarefa esta realizada por instituições como a igreja, o direito e a medicina (FOUCAULT [1976] 1998), as quais se incubem de definir as práticas que são consideradas aceitáveis e as que não.
Se a última década do século XX começou ao som dos primeiros e ensurdecedores ecos das teorias defendidas por Butler, seu término coincide com o lançamento, em 1999, do filme Tudo sobre minha mãe, de Almodóvar. Entre um evento e outro, já se percebiam os efeitos de uma significativa revolução de costumes alavancada tanto pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (LÉVY, 2009) como pelas novas diretrizes do capitalismo neoliberal (FAIRCLOUGH, 2006). É neste cenário, em meio ao impacto das transformações observadas nos âmbitos geocultural e geopolítico (BLOMMAERT, 2010), marcado também pelo alvoroço acadêmico e social gerado pelo texto de Butler (1990), que Almodóvar nos brinda com uma obra que parece dialogar com alguns dos pontos levantados pela autora.
3. Tudo sobre minha mãe
Em uma busca rápida pela Internet, digitando apenas o título do filme, pode-se constatar as múltiplas entextualizações4 (SILVERSTEIN & URBAN, 1996) da obra de Almodóvar quinze anos depois de sua estreia5, bem como sua intensa trajetória textual (BLOMMAERT, 2005), o que, entre outros motivos, ratifica a decisão de escolhê-la como um artefato cultural fundamental para estudar os significados que as performances discursivo-identitárias de transgenerismo podem suscitar.
Quiçá nenhum cineasta tenha dado tamanha visibilidade a transgêneros como Almodóvar o fez. Em alguns de seus filmes, estas/estes têm presença marcante (A lei do desejo, De salto alto, Má educação). Em Tudo sobre minha mãe não é diferente. Nele, Lola e Agrado, apesar dos problemas enfrentados (a primeira tem a saúde delicada por complicações devido à dependência das drogas e do vírus da AIDS, a segunda é vítima de violência física), não entram em qualquer embate identitário (tópicos reincidentes em obras cinematográficas que abordaram previamente o transgenerismo). Tampouco têm sua sexualidade aniquilada ou são motivo de chacota. São dois seres fronteiriços que burlam rótulos delimitadores de prefiguração identitária e de práticas sociais (e sexuais) prescritas pelo sistema binário de classificação de gênero e sexualidade.
Os mais importantes esforços dedicados a decifrar o autor e suas obras (por exemplo, VIDAL, 1998; SMITH, 1992, 2002; STRAUSS, 2000) apontam que um dos méritos de Almodóvar reside em não enquadrar o desejo em parâmetros pré-fixados. Tudo sobre minha mãe, por exemplo, conta com duas personagens transgêneros de suma importância para a narrativa.
Lola é mãe/pai do filho que espera Rosa, uma freira soropositiva, e do filho adolescente de Manuela, recém-falecido. Hoje Lola tem um par de seios maiores que os da ex-mulher e cultiva os mesmos vícios de outrora: sexo e drogas. Agrado, por sua vez, depois de um passado como caminhoneiro e prostituta, não ecoa performances hegemônicas de transgenerismo: abandonou o trabalho nas ruas para converter-se em assistente da atriz Huma Rojo. E, apesar dos golpes recebidos, não desempenha performances de vítima. Moldou sua performance discursivo-identitária para alcançar o que entende por autenticidade: empreender os meios necessários para transformar-se naquilo que deseja ser. Lola tampouco desempenha performances hegemônicas de transgenerismo. Mostra que o desejo sexual não tem por que ser congruente com sua nova identidade de gênero, posterior a redesignação parcialmente realizada. Depois de implantar silicone nos seios e passar a usar roupas e adereços tipificados como femininos, Lola, que Gutiérrez-Albilla (2012) classifica como (outra) mãe queer, continua desempenhando performances de masculinidade.
A relevância narrativa de Lola e Agrado também ganha respaldo multimodal: Agrado profere um monólogo olhando nos olhos do espectador (dimensão visual e textual) e Lola e Agrado são retratadas em closes e planos de abertura média (dimensão visual). Tal dimensão multimodal lhes confere voz e autoridade6. Essa abordagem singular dos/das transgêneros ganha transcendência se consideramos que o cinema comercial, majoritariamente, relegou às personagens transgêneros papéis acessórios, quando não as transformou em vítimas de sua condição ou as patologizou, tirando-lhes inteligibilidade social (BUTLER, 2004), protagonismo e agência. Nesse sentido, a visibilidade e humanidade que Almodóvar lhes confere fazem com que elas sejam reconhecidas como atores sociais que transitam pela esfera pública, transcendendo os limites de guetos e armários (SEDGWICK, 1990). E a medida que as desidentifica (MUÑOZ, 1999), desessencializando as identidades trans, o cineasta ressignifica o conceito de autenticidade. Pouco importam os regimes de verdade (FOUCAULT [1976] 1996) que incidem sobre corpos e práticas das personagens transgêneros, se suas formas 'femininas' são 'reais' ou não. Em determinado momento do filme, Agrado afirma: "As únicas coisas verdadeiras que tenho são os sentimentos e os litros de silicone, que pesam muito". Pesam porque, como a própria Agrado sentencia em outro momento, "custa muito ser autêntica". Já Lola é de uma feminilidade/masculinidade andrógina. Se Agrado mostra que a identidade de gênero é artificialmente construída, Lola mostra que esta pode oscilar.
Pedro Almodóvar não exacerba nem reduz a sexualidade de Lola e Agrado de modo a diferenciá-las das demais personagens. E apesar de Agrado funcionar como contraponto cômico do filme, não a retrata em tom zombeteiro. Torna-a cúmplice do público. Tal movimento lhe permite abordar o transgenerismo em sua complexidade, sem tratá-lo com pudores ou como um produto exótico, sem torná-lo digerível para uma audiência desejosa de seguir assistindo performances de sexualidade hegemônica e heteronormativa, que caricaturizam a alteridade. O cineasta põe abaixo noções estruturalistas acerca do gênero e da sexualidade, reivindicando seu caráter performativo (BUTLER, 1990).
O gênero, em Tudo sobre minha mãe, é performado, imitado, plural e instável. A feminilidade e a masculinidade são performativas. O/a transgênero é, ao mesmo tempo, a presença e a ausência de identidades polarizadas (VIDAL, 1998). Lola e Agrado evidenciam que todos podem performatizar o gênero que abraçam. E Almodóvar sinaliza que a autenticidade está no núcleo do conceito de identidade, mas não diz respeito à natureza/biologia e sim à possibilidade de ser fiel aos próprios desejos e aspirações7. Esta ode ao performativo torna-se evidente quando, uma vez concluída a narrativa, o cineasta dedica o filme àquelas(es) que atuam8 ou performatizam suas vidas sociais como mulheres. Não é sem motivo que um filme sobre transgêneros femininos seja dedicado às mulheres: o gênero é sempre performativo; não há original; é sempre cópia da cópia. Não é mais do que a repetição reiterada e estilizada das normas que o gerem (BUTLER, 1990).
4. Instrumental teórico-analítico
Para interpretar a produção de sentido que permeia as práticas interacionais acerca de Tudo sobre minha mãe na rede social Filmow, optamos pelas pistas indexicais (WORTHAM, 2001), que possibilitam entender os posicionamentos interacionais das/dos participantes (DAVIES & HARRÉ, 1990).
As pistas indexicais apontam para os significados que emergem no aqui e agora das interações e para aqueles sócio-historicamente consolidados que comparecem nas entrelinhas do que foi dito (MOITA LOPES, 2003, 2006b). Estas pistas chamam atenção para o fato de que quando nos pronunciamos, também evocamos outras vozes (BAKHTIN [1929] 1999). Em nossas práticas discursivas, refletimos sobre o que dizemos e o que somos. Ao falar, estamos nos construindo identitariamente e também ao outro. Segundo Moita Lopes 2006b: (296), "as identidades sociais com as quais um indivíduo se identifica ou é identificado dependem dos posicionamentos que este ocupou/ ocupará nas práticas narrativas em que está envolvido". Estas ferramentas, portanto, complementam-se e, associadas, prestam recorrente auxílio às pesquisas que envolvem práticas discursivas porque auxiliam na interpretação da coerência discursiva e dos significados que os signos indexam, sinalizando o posicionamento dos falantes em relação aos seus interlocutores, terceiros e às questões debatidas.
Apesar de Wortham (2001), seguindo conceitos previamente fixados por Bakhtin ([1929] 1999), como os de vozes e ventriloquismo, ter desenvolvido seu instrumental analítico para ampliar categorias de análise em narrativas autobiográficas, as pistas indexicais também têm sido utilizadas em pesquisas sobre práticas interacionais variadas realizadas em ambientes virtuais ou não (GUIMARÃES, 2009; OLIVEIRA, 2014). Com a ascensão das redes sociais, as pesquisas que contam com corpus de geração virtual de dados têm tomado emprestados métodos de pesquisa do mundo off-line (HINE, 2000), entre outros que foram originalmente desenhados para fins diversos.
As pistas indexicais que Wortham 2001: (10) menciona "podem ser utilizadas em análises de posicionamentos interacionais em qualquer narrativa particular", porém não dão conta de todas as pistas indexicais. As cinco previstas por Wortham 2001: (70-75) são:
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1) Referência e predicação: fazem menção, respectivamente, a forma de selecionar as coisas no mundo e de caracterizá-las. Segundo Wortham 2001: (70), quando nomeia e predica, o narrador "se posiciona e identifica as personagens socialmente".
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2) Descritores metapragmáticos: incluem os verbos do dizer, que caracterizam o estilo ou o conteúdo discursivo. Wortham 2001: (71) lembra que estes descritores podem "indexicar vozes tanto de narradores como de personagens". São, portanto, "um importante meio de vocalizar e ventriloquar."
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3) Citação: engloba duas possibilidades: a tentativa de recriar o que foi dito por outrem (direta) ou sua tradução nas palavras de quem narra (indireta). Geralmente é acompanhada por verbo metapragmático.
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4) Índices avaliativos: são os termos que identificam o/a orador/oradora como pertencente a um determinado grupo social. São associações, geralmente estereotipadas, "de certos enunciados com certos tipos de pessoas". Excetuando paródias e ironias, "podem indexicar suas ocupações, origens regionais, gênero e assim por diante" (WORTHAM, 2001: 73).
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5) Modalizadores epistêmicos: revelam o acesso epistêmico que o/a orador/oradora detém sobre eventos e personagens, bem como seu grau de conhecimento sobre os mesmos. Também servem para avaliar a veracidade das informações.
5. Contexto
Os participantes têm entre 15 e 43 anos. Há internautas das cinco regiões do Brasil. O comentário mais antigo, de um total de 725 postagens analisadas, data de quatro anos atrás e o mais recente foi realizado na semana anterior às impressões de tela, realizadas às 7:32 da manhã do dia 8 de abril de 2014. O corpus de análise, extraído da rede social Filmow, centra-se em três excertos. O critério de seleção destacou as interações acerca de questões relacionadas ao gênero e à sexualidade, privilegiando comentários acerca das personagens transgêneros.
O acesso à Filmow se dá mediante seu endereço web9 ou descarga de aplicativo. Uma vez nela, após efetuar log-in, a/o usuária/o é encaminhada/o para sua interface inicial, onde figuram, em destaque, as estreias da semana e os filmes em cartaz, além de informação sobre atrizes/atores e gêneros cinematográficos. Ao entrar no perfil de um filme, há a opção de marcar "já vi" ou "quero ver", além da possibilidade de valorá-lo, indicá-lo, adicioná-lo a uma lista ou marcá-lo como favorito. Os perfis fornecem três sub-opções no menu: ficha técnica, comentários e notícias. Navegando pela Filmow, a/o internauta, ao entextualizar um filme, dá continuidade à trajetória textual (BLOMMAERT, 2005) por este percorrida.
Pela sua dinâmica de funcionamento, após a publicação de uma entrada com título e sinopse, as/os participantes podem introduzir comentários no perfil dedicado ao filme. Eis aí uma oportunidade de observar como as/os usuárias/os da Filmow expressam gostos e inquietações, e, ao fazê-lo, posicionam-se interacionalmente frente aos temas que o filme aborda, às personagens e situações que estas vivenciam, possibilitando estudos de performances discursivo-identitárias.
Neste artigo, dedicamo-nos a empreender uma análise contextual de como tais posicionamentos interacionais são sinalizados por pistas indexicais. E ainda que os pesquisadores envolvidos neste estudo tenham optado por não intervir na interação, reconhecemos seu caráter etnográfico virtual (HINE, 2000): os dados foram gerados a partir da observação não participante de uma comunidade de prática que opera on-line.
6. Análise
Se é na interação que os posicionamentos são negociados (WORTHAM, 2001), então as práticas discursivas que permeiam os letramentos digitais constituem um campo frutífero para empreender a análise aqui proposta. Pinheiro 2011: (3-4) alerta para a necessidade de "apurar o olhar para novos espaços virtuais de criação de sentido". Inclusive porque neles comparecem certos tipos de dinâmicas interacionais, que, segundo Bourriaud (2006), definem uma "estética relacional", ou seja, uma nova forma de relacionar-se mediada pela web 2.0. Este novo ethos, "produto de novos modos de agir na construção de conhecimento, significados, valores e ideologias" (MOITA LOPES, 2012), pode levar a reinvenção do sujeito social e ao questionamento de certos discursos orientadores.
Centramo-nos, a seguir, na análise dos excertos, destacando que, em nossa análise, focalizamos os posicionamentos interacionais em relação ao filme e não entre as/os participantes. Os excertos, apesar de contarem com tópicos discursivos reincidentes, não se caracterizam por debates diretos, excetuando os últimos comentários do terceiro excerto. Informamos, ademais, que os nomes dos participantes foram substituídos por outros fictícios para preservar-lhes o anonimato, tendo sido mantida somente a identidade de gênero que consta no perfil de cada um/a. Por termos optado por apresentar impressões de tela, as postagens não sofreram qualquer correção ortográfica-gramatical. Os excertos estão dispostos em ordem cronológica crescente, indo das publicações mais recentes às mais antigas.
Neste primeiro excerto, o fato a ser destacado é que todas/os se posicionam de maneira favorável aos temas contemplados no filme: performances de transgenerismo e personagens transgêneros, ainda que um participante use um índice avaliativo pejorativo para referir-se a Agrado.
O primeiro comentário começa com o descritor metapragmático "transmiti-la" que remete à história do filme, predicada como "incomum". As referências "domínio" e "sensibilidade" vão acompanhadas de um modalizador epistêmico ("deveras"), que é empregado para demonstrar o grau de certeza e a forma como o participante descreve suas impressões. Depois, Luciano usa a mesma referência ("universo") com duas predicações diferentes ("particular", "feminino"). Novamente recorre a um modalizador epistêmico ("de uma maneira nunca feita antes") para, hiperbolicamente, referir-se à capacidade do diretor em lidar com certos temas: imersão em um universo particular e feminilidade. Se o primeiro tópico discursivo10 (BROWN & YULE, 1983) gira ao redor da história e das habilidades do diretor, o seguinte tópico focaliza as personagens. O participante repete a predicação "feminino", desta vez para qualificar a referência "personagens". Especifica que "seja homem, seja mulher, são todos femininos (com exceção de Esteban)". Seu posicionamento mostra-se favorável aos discursos que o filme mobiliza no que tange à natureza subversiva do gênero, que não pode ser facilmente encaixado em parâmetros previamente dados e essencializados (WILCHINS, 2004; MOITA LOPES, 2009), numa clara menção às personagens transgêneros. Em seguida, Luciano usa a referência "ambiente" como gancho para mudar o tópico discursivo, listando, por meio de referências e predicações, três características reincidentes nas obras de Almodóvar: "cores fortes", "músicas latinas" e "excentricidade do roteiro".
Conclui seu comentário predicando o filme como uma "belíssima homenagem às mulheres". E especifica: "a todas elas, seja mãe ou não, ou mesmo nem tendo nascido mulher." Fato é que muita diferença entre as que nascem mulher e as que se tornam a posteriori não há: ambas aprendem a realizar performances condizentes com o que se institucionalizou como 'performances de mulher'. Eis aí uma questão fundamentalmente cronológica: umas começam a desempenhar tais performances desde que seu sexo é identificado, designando-lhes sua identidade de gênero, enquanto outras só começam a empreendê-las no momento em que decidem subverter o imperativo biológico. Luciano, dessa maneira, alinha-se com um dos mais importantes pilares de sustentação das Teorias Queer, o entendimento de que o gênero é performativo (BUTLER, 1990; WEEKS, 1998; WILCHINS, 2004; MOITA LOPES; 2003, 2009). Em seguida ele substantiva o nome da personagem Agrado, mantendo a letra inicial em maiúscula, para fazer uma valoração final positiva: "Almodóvar, o nosso Agrado de cinema".
Em seu post, Gil posiciona-se como fã: "Melhor filme de Almodóvar". Suas escolhas lexicais apontam para o fato de ele ter visto outros filmes do cineasta, moldando seu posicionamento epistemicamente, o que lhe permite compará-los e predicar Tudo sobre minha mãe como o melhor deles. Brenda, num posicionamento inconclusivo, predica o filme com um lugar de "entrelaça[r] sentimentos".
O comentário seguinte sinaliza um posicionamento questionador acerca de uma possível punição social caso a participante se declare apaixonada por uma transgênero, mobilizando discursos de ordem jurídico-religiosa ("apedrejamento"). Seu posicionamento questiona a igreja: por que certas formas de ser - e amar - devem ser punidas? As escolhas lexicais de Carla mostram que ela opta por usar o artigo definido tanto no feminino como no masculino ao referir-se à Lola. Dessa maneira, alinha-se a uma concepção queer do gênero, evitando encaixar o sujeito em uma categoria ou outra. Tal movimento desestabiliza discursos orientadores da Modernidade mencionados anteriormente, os quais continuam guiando nossas práticas ao sinalizar que a dificuldade de criar inteligibilidade sobre o corpo transgênero se deve ao fato de não haver uma categoria que o abarque (WILCHINS, 2004). Pela inviabilidade de enquadrá-la/o numa performance de gênero, a/o transgênero carece de reconhecimento (BUTLER, 2004). Percebe-se, assim, a urgência de que o gênero, assim como a teorização sobre a linguagem, liberte-se de uma concepção sistêmica que não leva em consideração as práticas nas quais o gênero, bem como outros sentidos, é continuamente ressignificado.
O comentário de Vítor tem início com uma predicação avaliativa do filme: ao advérbio de intensidade "muito", somam-se dois qualificativos enaltecedores: "bacana" e "envolvente". Os diálogos e as interpretações recebem o mesmo predicado ("magnífico"), dando continuidade aos elogios proferidos. Depois Vítor usa um índice avaliativo de teor pejorativo ("traveco") para referir-se à Agrado, ainda que a avalie positivamente pois Agrado "roubou a cena". Este posicionamento é contraditório pois a simpatia que ele nutre pela personagem não encontra paralelo na maneira como ele a referencia.
Nesta sequência, todos os comentários remetem explicitamente às personagens transgêneros. O primeiro, de Maria, faz alusão a um "eu travesti", evocando noções de identificação identitária. O predicador avaliativo "travesti" descreve os efeitos de sentido provocados pelo filme. Seu comentário ressalta como um artefato cultural pode mobilizar práticas não referendadas pelos discursos hegemônicos e que, por isso mesmo, inspiram posicionamentos marcados por um tom confessional, já que desafiam certos tipos de discursos autorizados (FOUCAULT [1976] 1988).
Já Emília, a semelhança do que fez Luciano no excerto anterior, apropria-se do nome da personagem Agrado. Neste caso, a participante o transforma em verbo para valorar o filme positivamente: "Esse filme realmente Agrado". Seu posicionamento metalinguístico ignora propositalmente a falha na concordância verbal e a opção de conservar a inicial do nome próprio em maiúscula aponta para o que era prioritário para ela: identificar a personagem dentro do jogo de palavras. O uso da exclamação e o emprego de um recurso semiótico (símbolo em forma de coração) ratificam sua valoração positiva. Ela também lança mão do modalizador epistêmico "realmente" para magnificar sua valoração favorável. Já o pedido para que a leitura seja realizada com "duplo sentido" explicita o caráter lúdico-reflexivo da linguagem. Isto chama atenção para a forma como o discurso é organizado e/ou para o nível metapragmático da linguagem, já que, segundo Bauman e Briggs 1990: (73): "sua forma e seu significado indexam uma ampla gama de tipos de discurso e convidam a uma reflexão crítica sobre os processos de comunicação".
Marcelo inicia o terceiro comentário usando as referências "força da feminilidade" para explicar do que o filme trata. Logo centra-se em Lola, a quem predica como "forte", e esclarece por que Manuela fora abandonada pelo marido: "se transformou num ser igual a ela". Esta asserção deixa antever discursos heteronormativos, que se baseiam na anatomia para designar a identidade de gênero. Expõe também um apagamento das identidades (trans)lésbicas por não contemplar que Lola e Manuela pudessem permanecer juntas depois da redesignação de gênero parcial empreendia por Lola. Em seguida, o participante incorre num posicionamento contraditório: relata as performances de masculinidade de Lola ("se relaciona com uma freira e a engravida") sem dar-se conta de que estas demonstram não haver convergência entre sexo, desejo e gênero (BUTLER, 1990). É interessante observar aqui como a prefiguração linguística recai sobre a prefiguração identitária (PINTO, 2013): a dificuldade de Marcelo em classificar as performances de Lola como masculinas ou femininas se reflete na maneira como ele a referencia: utiliza um termo ("ser") que não possui marcação de gênero.
O participante também incorre num juízo de valor ao usar um índice avaliativo para sentenciar que Lola "contamina" uma freira "com sua doença". Quando o foco é Huma, Marcelo enfatiza a (homo)sexualidade da personagem, escolhendo este aspecto para descrevê-la como uma mulher que "só vê felicidade ao lado de outra mulher". Como indica Foucault ([1976] 1998), a homossexualidade aqui deixa de ser considerada uma prática para designar uma espécie. Em seguida, Marcelo se detém na descrição de Agrado: "um homem que se transforma em mulher para ganhar a vida". Não é o caso: Agrado conta que antes de dedicar-se à prostituição era caminhoneiro, mas em momento algum afirma que sua transição fora motivada por necessidades laborais. Em seu monólogo, explicita que busca autenticidade e por isso se submeteu a plásticas e implantes de silicone: "uma pessoa é mais autêntica quanto mais se aproxima daquilo que sonhou para si11". Ao dizer isso, não equipara 'autenticidade' com 'originalidade'. Tal entendimento nos permite ratificar o pressuposto de que o gênero deve ser sempre concebido como paródia (BUTLER, 1990), não só no caso de transgêneros12. Todas as performances, incluídas as de masculinidade e feminilidade, são paródicas, ou seja, cópias da cópia, produto de um movimento iterável que carece de modelo paradigmático que instaure uma matriz13. Dessa forma, a noção de autenticidade deve ser desvinculada do "modelo da identidade para aderir ao movimento da paródia" (FERRAZ, 2002: 105).
Num novo parágrafo, Marcelo cita a peça Um bonde chamado desejo/Uma rua chamada 14 pecado. Sua entextualização remete à entenxtualização feita por Almodóvar, evidenciando uma das características mais proeminentes da sociedade contemporânea: a alta reflexividade (GIDDENS, 1991) que se percebe na intensa circulação de textos, constantemente entextualizados num movimento contínuo de retroalimentação devido aos processos de hipersemiotização que vivemos (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999). O participante cita a obra de Tennessee Williams e menciona que esta conta com personagens femininas fortes, assim como o filme de Almodóvar. Estabelece, dessa maneira, um elo a mais entre peça e filme, sugerindo que não foi por casualidade que o cineasta a entextualizou. Esta intenção é evidenciada pelo uso da modalização epistêmica "vejam só", que abre um canal de diálogo com uma audiência projetada, além de posicionar o participante no evento narrado.
Marcelo afirma também que às vezes vê filmes em que "as mães perdem seus filhos e tem atitudes "ok, fazer o quê?"". Tal posicionamento é contraditório porque vai de encontro a uma das questões centrais do filme: o desespero de Manuela por dar sentido à sua existência depois de perder o filho. Quiçá falte uma conjunção adversativa para explicitar que, diferente de outros filmes que o participante viu, Tudo sobre minha mãe não relativiza a dor da perda de um filho. Ele, no entanto, valora positivamente a cena do atropelamento, qualificando-a de "bem feita e triste". Depois conclui seu comentário predicando o trabalho de membros da equipe artística como "magnífico", as interpretações como "excelentes" e o roteiro como "excêntrico, no melhor estilo Almodóvar". Esta última predicação também funciona como modalizador epistêmico porque indica a familiarização do participante com a obra de Almodóvar. O predicativo "excêntrico" é valorado como positivo, como algo que se espera do cineasta.
Este é o excerto selecionado que registra maior teor interacional entre as/os participantes, contendo um comentário-resposta. O primeiro comentário desta sequência, feito por Alessandro, tem início com um lamento introduzido pela auto-predicação "inconformado", sendo demarcado pelo modalizador epistêmico "ter ignorado esse filme até hoje". Em seguida, o participante predica o filme como "joia" e o referencia como "um espetáculo dedicado à sensibilidade feminina, sem recorrer a estereótipos". Ao dizer isso, ele se posiciona de maneira favorável a discursos que não apelam para homogeneizações/caricaturizações. Depois faz menção a dois tipos de "mulheres", predicando esta referência: "Em cena vemos mulheres fortes e humanas, sejam elas no sexo ou na essência (Agrado & Lola)". Mesmo que o termo 'essência' possa gerar uma interpretação equivocada, por remeter à noção de gênero atrelada à substância (BUTLER, 1990), o participante, apesar de marcar a diferença entre mulheres biológicas e as que adaptam o corpo para estar em consonância com sua identidade de gênero, considera Agrado e Lola mulheres, evitando referir-se a ambas mediante índices avaliativos de teor pejorativo.
Na continuação, Alessandro modaliza epistemicamente seu enunciado ao afirmar que a trama é similar a de uma novela, com a ressalva de "ser bem orquestrada". Também posiciona Almodóvar como bom conhecedor de seus personagens, já que os domina. Menciona a forma como o cineasta trata de temas como "perdas, morte, raiva" e só se detém para fornecer alguma explicação quando cita a homossexualidade: "é autêntica e em nenhum momento soa forçada". O fato de predicá-la como "autêntica" resgata um adjetivo que é dito por Agrado num momento chave do filme, quando ela enuncia o seu monólogo. Este movimento é um recurso a que muitos(as) participantes recorrem, tendo visto que optam por citar palavras e frases, bem como obras entextualizadas pelo filme, conforme visto anteriormente. Alessandro conclui seu comentário com uma predicação, fornecendo um argumento que sustenta a sua afirmação sobre o quão bem Almodóvar conhece suas personagens: "é como se ele conhecesse cada uma daquelas pessoas e transpusesse para a tela suas histórias".
Raul cita o fragmento final do monólogo proferido por Agrado, entextualizando-o. Já Joyce faz um comentário que é replicado por Pedro. Nele, a participante assume posicionamentos contraditórios. Num primeiro momento, faz uso de referências e modalização epistêmica ao mencionar que "nunca" viu "sucessivas tragédias em tão pouco tempo" e predica o filme como "absurdamente incrível". Na sua avaliação, Almodóvar retrata tragicamente o que ela chama de "bang bang da vida", que aqui funciona como marcador metapragmático. Em seguida, ela questiona a verossimilhança da obra: "em que mundo mulheres têm relações sexuais com travestis e ficam grávidas?" Ao introduzir a sentença com a modalização epistêmica "em que mundo", chama atenção para o fato de aquilo não ter cabimento para ela. Em um posicionamento reflexivo, reconhece que precisa rever o filme para entender certas questões. No entanto, valora o filme de maneira positiva e o recomenda. Pedro intervém e responde ao questionamento de Joyce argumentando que há coisas que só são possíveis em narrativas cinematográficas. Para posicionar-se como conhecedor do tópico argumentativo, enumera uma série de exemplos, iniciando a sentença com o mesmo modalizador epistêmico que Joyce: "em que mundo [a] aliens, viagens no tempo, seres imortais...". Percebe-se aqui a dificuldade das/os participantes de encararem performances de transgenerismo que fogem a parâmetros transnormativos15 (WILCHINS, 2004).
Em termos gerais, os posicionamentos interacionais são permeados por grande quantidade de predicações, itens avaliativos e modalizações epistêmicas, havendo uma quantidade razoável de citações. Dentre as referências, destacamos Agrado e Almodóvar. Em suas postagens, as/os participantes demonstram, majoritariamente, simpatia por ambos. A estratégia do cineasta de construir Agrado em chave de humor serve para aproximá-la do público. O fato de haver outra personagem transgênero (Lola), funcionando como contraponto dramático, aponta para a diversidade de performances de transgenerismo possíveis, alertando para o perigo da universalização performativa e da pré-figuração identitária. No entanto, mesmo que a maioria das/dos participantes valorem Lola e Agrado de forma positiva, algumas/alguns referem-se a elas usando termos pejorativos (traveco, travesti) ou parecem não entender o mundo social em performance, ou seja, os discursos transgressores performatizados que o filme faz circular.
7. Considerações finais
Compreender como as/os participantes da Filmow, enquanto consumidores de cinema, sendo este um artefato cultural formador - e também refletor - de opinião, posicionam-se discursivamente ante as performances de transgenerismo construídas em Tudo sobre minha mãe, permitiu-nos identificar como, ao fazê-lo, tais participantes também se constroem em termos identitários ao referendarem - ou não - discursos de sexualidade anti-hegemônica, bem como discursos questionadores da biologia como verdade e de uma punitiva ordem jurídico-religiosa.
Por ter duas personagens transgêneros e não estereotipá-las, vitimizá-las e/ou patologizá-las, conforme o fizeram alguns filmes de grande bilheteria16, Tudo sobre minha mãe constrói performances de transgenerismo que fogem às que o chamado cinema comercial forjou, questionando os "clichês das representações de gênero e orientação sexual", como Lopes 2006: (381) reivindica. O filme sinaliza que é possível fugir das performances hegemônicas de transgenerismo (caso do estigma da prostituição que recai sobre muitas transgêneros17, inclusive Agrado) e que não há qualquer relação causal e convergente entre desejo, sexo e gênero (Lola empreende uma redesignação parcial de gênero que não acarreta mudanças na expressão do desejo sexual).
As/os participantes que publicaram seus comentários sobre a obra de Almodóvar na Filmow, majoritariamente, posicionaram-se de maneira favorável aos temas relacionados com as performances de transgenerismo, embora nem sempre reproduzissem os discursos de sexualidade anti-hegemônica contemplados no filme. Inclusive não chegavam a um acordo na hora de referenciar e predicar as personagens transgêneros. Vítor se refere a Agrado no masculino, Alessandro se refere a Lola e Agrado no feminino, Carla emprega o artigo definido com dupla flexão de gênero ao referir-se a Lola, enquanto Marcelo opta por um substantivo uniforme e sobrecomum ("ser"). Se por um lado tal dificuldade nos alerta para as amarras de uma gramática que não mais serve à vida social, por outro, aponta à necessidade de novas ideologias linguísticas, que venham alterar a estrutura do chamado português padrão (MOITA LOPES, 2013).
Esta dificuldade evidencia o quanto a corporalidade (MALUF, 2002; LOURO, 2004) ganha transcendência na percepção das performances de transgenerismo. E como tais performances se impregnam de transnormativade: Joyce tacha o filme de incongruente porque nele há mulheres que se envolvem sexualmente com uma transgênero. Tal posicionamento deixa antever discursos essencialistas, ignorando a pluralidade transidentitária (WILCHINS, 2004), além de evidenciar o quão impregnados de 'verdade biológica' estão os discursos em circulação.
O efeito performativo de enunciar performances de transgenerismo que fogem do senso-comum desestabiliza a (hetero/homo/trans)normatividade. Por isso ganha relevância o monólogo de Agrado dirigido à plateia. Ao dar-lhe voz, Almodóvar promove um deslocamento. Quiçá por tê-lo visto, a mesma participante que julga inconcebível a relação entre uma mulher e uma transgênero, afirma, num posicionamento reflexivo posterior, que precisa rever o filme "para entender algumas coisas". Tudo sobre minha mãe se converte, assim, em um espaço de compreensão sobre a negociação discursiva de identidades e interstícios do desejo pulsante que ignora ataduras. Se não chega a sensibilizar todas/os participantes, consegue chamar a atenção para as fissuras discursivo-identitárias do sistema binário de classificação de gênero, incapaz de referendar na contemporaneidade, as práticas tradicionalmente prescritas. Pelos comentários analisados, para além daqueles aqui incluídos, a maioria das/os participantes da Filmow parecem compreender tais fissuras.
Discursivamente esvaziada no filme, a noção de matriz heterossexual (RICH, [1980] 1990; BUTLER 1990) é posta em xeque pela emergência de teorias que desafiam a aparência de essência que reveste o gênero e a sexualidade (BUTLER, 1990). As/os participantes da rede social, porém, nem sempre se dão conta disso. Os itens lexicais mais repetidos nos posicionamentos analisados são 'travesti' e 'feminino', bem como seus respectivos derivativos (traveco, feminilidade). Isso aponta para o fato de que, para as/os participantes da Filmow, as performances de transgenerismo equivalem às de travestismo. Assim, só estas contariam como paródia, não referendando o pressuposto queer que proclama como paródica toda e qualquer performance de gênero.
Entendemos que o cinema e o gênero, por legitimarem certos discursos orientadores, operam de maneira similar: ambos se escoram na iterabilidade performativa para legitimar os regimes de verdade (FOUCAULT [1976] 1988) que mantêm as hierarquias que lhes convêm. Tanto que se convertem em poderosas armas para referendar algumas performances e deslegitimar outras, deixando, porém, brechas para rupturas, já que a performatividade abarca, em meio à repetição, a possibilidade de transformação.
Dito isso, consideramos que a análise aqui realizada, apenas uma dentre outras possíveis, pode auxiliar na compreensão do diálogo entre artefatos culturais e (re)posicionamentos interacionais mobilizados em redes sociais, possibilitando desestabilizações de discursos sedimentados. Se "a linguagem é algo que na sua enunciação muda o mundo" (CAMERON & KULLICK, 2003: 285), acreditamos que as performances discursivo-identitárias de Lola e Agrado contribuem, de alguma maneira, para que as/os participantes da Filmow exponham/revejam/questionem suas próprias performances discursivo-identitárias. Entendemos que investigações deste tipo podem colaborar para engrossar o coro das reivindicações que objetivam dar às/aos transgêneros a chance de ter uma existência vivível e um corpo habitável (BUTLER, 2004, 2015).
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Sou grata à Capes pela bolsa PNPD/2013 junto ao Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da UFRJ, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Paulo da Moita Lopes.
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Agradeço ao CNPq pela Bolsa de Produtividade que propiciou esta pesquisa (CNPq 302989/2013-7), assim como o auxílio à pesquisa da FAPERJ (E-26/110.065/2012) e ao CNPq (Edital Universal 470547/2012-0).
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1
. Entendemos transgênero/transgenerismo, proveniente do inglês transgender/transgenderism, como o termo que abrange "àquelas pessoas que vivem ou se identificam como o outro gênero, mas podem não ter se submetido a tratamentos hormonais ou operações de redesignação de gênero" (BUTLER, 2004: 6).
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2
. Segundo Sadoul (1972), a data que se tem em conta como marco inicial das atividades cinematográficas é 28 de dezembro de 1895.
-
3
.Termo cunhado por O'Reilly (2004) para dar conta de uma etapa na história da web, caracterizada por maior interação entre participantes e compartilhamento de informação.
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4
.Quando um texto é extraído de um processo de contextualização e inserido em outro, sendo ressignificado, entendemos que este foi 'entextualizado'.
-
5
. O filme estreou na Espanha dia 8 de abril de 1999; no Brasil em 8 de outubro do mesmo ano. < Fonte: IMDB; URL: http://www.imdb.com/title/tt0185125/ [acesso: 7 de abril de 2014] >
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6
. Segundo Rose 2002: (357), "o close-up é uma tomada que expressa emoção e escrutínio. Por outro lado, as tomadas de close-up médio e abertura média, muitas vezes, significam autoridade".
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7
. É claro que essa posição não implica uma visão voluntarista (podemos ser quem quisermos no mundo social) uma vez que entendemos que temos que dar conta das práticas sociais e das alteridades que nos impõem limites e regras.
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8
. Dedicatória: "Para Bette Davis, Gena Rowlands, Romy Schneider... a todas as atrizes que interpretaram atrizes, a todas as mulheres que atuam, aos homens que atuam e se convertem em mulheres, e a todas as pessoas que querem ser mães. À Minha mãe." [Tradução: nossa]
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9
. URL: http://filmow.com/ [acesso: 8 de abril de 2014]
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10
. Trata-se do tema sobre o qual os interactantes falam ao participarem de uma interação.
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11
. Fala da personagem Agrado.
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12
. Entendemos o transgenerismo em termos amplos, como o termo que descreve as performances de gênero que se encontram 'in-between', que não podem ser polarizadas como masculinas ou femininas.
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13
. Precisamente por não haver uma matriz que prescreva uma identidade de gênero consonante com nossos caracteres sexuais exteriores, BUTLER (1990) E RICH ([1980] 1990) chamaram a atenção para a falácia da matriz heterossexual.
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14
. A mesma obra consta com dois títulos diferentes em suas versões brasileiras.
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15
. Trata-se da normativa que delineia como a/o transgênero deve 'ser' e agir, incluindo suas práticas sexuais, formas de vestir, profissões etc.
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16
. Vestida para matar, 1980, e Silêncio dos inocentes, 1991, por exemplo, contam com personagens transgêneros que são 'serial killers'.
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17
. Segundo reportagem publicada pelo jornal espanhol La Razón, 80% das transgêneros se dedica ao mercado do sexo. URL: http://www.larazon.es/detalle_hemeroteca/noticias/LA_RAZON_342459/2471-denuncian-que-el-80-de-las-transexuales-se-ven-abocadas-a-la-prostitucion#.Ttt1p6nPtlOmHm6[acesso: 2 de maio de 2014]. Por outro lado, o jornal O Globo publicou em 9/1/2015 (URL: http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/prefeitura-de-sao-paulo-pagara-salario-minimo-para-travestis-estudarem-15002868) que a prefeitura de São Paulo pagará uma bolsa para que as travestis/transsexuais possam estudar, podendo se profissionalizar fora do mercado do sexo. [acesso : 16 de janeiro de 2015]
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
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Recebido
Dez 2014 -
Aceito
Mar 2015