Open-access O QNP e as dificuldades de construção do objeto de pesquisa: uma experiência de aprendizagem mediada sobre o gênero projeto de pesquisa

QNP and the difficulties of formulating a research object: an experience of mediating learning on genre research project

RESUMO

Apresentamos o quadro norteador de pesquisa (QNP) como ferramenta para o ensino do gênero projeto de pesquisa. Analisamos 15 QNPs de alunos de Letras da Universidade Federal do Ceará, na disciplina de Leitura e Produção de Textos Acadêmicos. As diversas versões de refinamento desses quadros permitiram-nos observar 3 dificuldades na construção dos objetos de pesquisa: 1) apreensão de conceitos, 2) planejar com coesão os eixos do quadro, 3) domínio da linguagem acadêmica. O QNP exigiu sofisticado exercício de reflexão na concatenação de ideias, representando um significativo direcionamento para a fase seguinte da produção escrita do gênero em questão.

Palavras-chave: Gêneros acadêmicos; Projeto de pesquisa; Experiência de aprendizagem mediada

ABSTRACT

We present the QNP as a guide for organization of ideas within research projects by 15 students of an undergraduate program at Federal University of Ceará: Literature and Languages. QNP’s several versions allowed us to observe students’ difficulties in relation to the construction of research objects, difficulties which were classified in 3 categories: 1) conceptual understanding, 2) cohesion in relation to the planned actions, and 3) short proficiency in academic writing. The QNP demanded a sophisticated reflection on the construction of research objects and a connection amongst the ideas, getting a meaningful itinerary for the next phase of project writing.

Key-words: Academic genres; Research project; Mediated learning experience

Introdução

O domínio de gêneros acadêmicos configura-se como uma habilidade imprescindível àqueles que ingressam na universidade. É através deles que a comunidade discursiva (cf.: Swales 1990) valida e reconhece seus membros e suas produções e, em função disso, seja em qual for o gênero de escrita acadêmica, “saber escrever para seus pares é o principal meio de [o pesquisador] obter reconhecimento em sua área” (Matte e Araújo 2012: 107). Dessa forma, o ensino dos gêneros consagrados na academia implica uma tarefa extremamente importante e igualmente complexa, exigindo, daqueles que se propõem a enfrentá-la, tanto habilidades no domínio dessa esfera discursiva quanto capacidade didática para apresentar aos alunos o raciocínio que permeia esse tipo de discurso.

Dentre os gêneros praticados na esfera acadêmica (resenha, resumo, artigo, fichamento e similares), avaliamos o projeto de pesquisa como um dos mais completos e importantes a se observar, seja pela perícia e repertório de conhecimentos necessários para sua elaboração, seja por sua relevância institucional e social. Isso se justifica porque, de um lado, ao considerarmos o aspecto estrutural, esse gênero mescla diversas exigências da produção acadêmica, pois demanda planejamento, capacidade de argumentação, bagagem teórica, levantamento do estado da arte, justificativa relevante, metodologia viável e a observância à normalização vigente. Do outro lado, ao focalizarmos o aspecto social, é através dos projetos de pesquisa que grandes iniciativas tecnológicas tomam forma, assim como é por meio deles que se estabelecem os critérios para a distribuição de bolsas e financiamentos a professores pesquisadores, dentro e fora do Brasil, e, finalmente, é também através desse gênero que candidatos a programas de pós-graduação são avaliados antes mesmo de ingressarem em cursos de mestrado e doutorado.

Por tudo isso, consideramos que a elaboração de projetos de pesquisa é uma tarefa duplamente árdua, seja pela complexidade argumentativa e sofisticação do texto a ser produzido, seja pela necessária concatenação de ideias como consequência da necessidade de construção de um objeto de pesquisa metodologicamente operável e teoricamente fundamentado. Essas considerações se justificam na medida em que os aspectos epistemológicos que gravitam em torno da construção de um objeto de pesquisa é algo constitutivo desse gênero: o projeto de pesquisa. Em nossa experiência como docentes, deparamo-nos com essas duas dimensões do processo, uma vez que ministramos disciplinas1 nas quais os estudantes precisam se apropriar do modo como se elabora um projeto de pesquisa e, por isso, faz-se necessário que eles aprendam a “desenhar” previamente a pesquisa a ser desenvolvida. Embora as duas dimensões acima referidas sejam igualmente complexas e fulcrais, é na segunda delas que nos centraremos no presente artigo.

Assim sendo, nosso objetivo, neste texto, é refletir sobre as dificuldades apresentadas por estudantes da graduação ao elaborarem um projeto de pesquisa. Essa reflexão tem como base os resultados pedagógicos da aplicação de uma técnica chamada Quadro Norteador de Pesquisa (doravante QNP) como facilitadora da construção dos objetos de pesquisa tratados em projetos por nós orientados em uma experiência de estágio de docência2, durante o curso de doutorado da terceira autora. A motivação para tal originou-se no fato de que a construção do objeto de pesquisa demanda um esforço por parte daquele que o elabora, na intenção de interligar os eixos que sustentarão a sua argumentação e darão direcionamento às ações exigidas pela pesquisa. Os eixos de sustentação, aos quais nos referirmos, são as questões, as hipóteses e os objetivos do projeto (geral e específicos). Portanto, a fim de concretizarmos o objetivo anunciado, apresentaremos, na sequência, o referencial teórico no qual baseamos a discussão, os procedimentos metodológicos adotados e, por fim, a análise dos dados produzidos e a discussão sobre os resultados alcançados.

O QNP como instrumento mediador para o ensino do gênero projeto de pesquisa

O ensino de gêneros textuais já é, há bastante tempo, um tema caro na agenda das pesquisas em Linguística Aplicada na medida em que proporciona o estudo da língua em uso em suas múltiplas esferas de atividade humana. As implicações pedagógicas e sociais dessa proposição, por exemplo, contribuem para o processo de emancipação humana, já que a socialização depende da inclusão das pessoas, que passam a agir em sociedade à luz e por meio dos gêneros. Nesse sentido, o tema passou a interessar a outras áreas de estudo, como a Pedagogia, por exemplo, haja vista o ensino de língua materna ter passado a se beneficiar da discussão acadêmica sobre os gêneros e os letramentos que eles demandam.

Desde os Parâmetros Curriculares Nacionais (cf.: Brasil 1998), os atores sociais envolvidos com o ensino brasileiro foram convocados a pensar sobre esse tema. No referido documento, está dito que,

no processo de ensino e aprendizagem dos diferentes ciclos do ensino fundamental, espera-se que o aluno amplie o domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania (Brasil 1998: 32).

Essas ideias, que ajudaram a compor a atual paisagem pedagógica da escola, procedem das reflexões de Bakhtin (2003: 283) para quem “falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo”. No entanto, como os usos da língua são distintos e as esferas de atividade humana são múltiplas, Bakhtin (2003: 282) mostra que as formas dos gêneros “são bem mais flexíveis, plásticas e livres que as formas da língua”.

Além da estreita relação entre os gêneros textuais e a escola, também é importante pensar que o referido tema é, em si, transdisciplinar, no sentido que Moita-Lopes (2003) atribui à Linguística Aplicada. Conforme também atestam Bawarshi e Reiff (2010), várias disciplinas, além daquelas da área linguística, em diversos níveis e contextos, têm explorado as implicações analíticas e pedagógicas da noção de gênero de tal maneira que os gêneros se mostram como variáveis significativas para a compreensão dos usos da linguagem. Em função disso, e por ter um alcance fecundo no interior das ciências da linguagem e de outras, muitas perspectivas teóricas e metodológicas se desenharam para dar conta da natureza in e transdisciplinar dos gêneros textuais, as quais não iremos detalhar aqui devido aos limites de espaço e do objetivo que nos impusemos no presente texto.

Sendo, pois, o ensino de gêneros um assunto caro para a escola, ele igualmente assume lugar de destaque na universidade, haja vista os estudantes estarem adentrando um espaço de relações humanas também mediadas por gêneros que ajudam a organizar a comunicação nele praticada. Assim sendo, conforme já aludimos acima, dentre os gêneros praticados na esfera acadêmica (resenha, resumo, artigo, fichamento e similares), a produção do projeto de pesquisa é, sem dúvidas, um dos processos mais complexos e importantes de se observar, pois exige do proponente da pesquisa uma série de decisões e articulações para as quais serão demandadas, além da apropriação de conhecimentos técnicos sobre o fazer científico, uma boa dose de criatividade e de disposição para aprender. Nesse percurso, o papel do professor-orientador, antes de tudo um mediador da aprendizagem, torna-se fulcral e, para obter êxito, ele precisará de boas estratégias didáticas a fim de que o estudante se sinta mobilizado a engajar-se nessa atividade (cf.: Charlot 2000).

Nesta direção é que vimos propondo o QNP como um instrumento mediador para o ensino do gênero projeto de pesquisa. O QNP tem a forma de uma tabela na qual o pesquisador deve expor, lado a lado e de modo articulado, suas questões, hipóteses e objetivos projetados para a pesquisa. Seria esta a forma do QNP:

Quadro 1
A forma do QNP

Pela proposta que estamos apresentando, a produção textual desses elementos só deveria ser efetivada no QNP após um exercício de reflexão sobre o tema escolhido para a investigação, o qual proporcionará ao pesquisador traçar o percurso intelectual que o permitiu chegar a sua questão central de pesquisa.

Como é possível perceber no exemplo de QNP acima, ao lado dessa questão central da pesquisa, temos uma possível resposta para ela. Esta resposta, a qual podemos denominar de hipótese, ainda é provisória e precisa ser investigada para tornar-se confirmada ou não. Sua constituição resulta exatamente das reflexões sobre o tema escolhido e da seleção de categorias teóricas que possam lhe dar sustentação argumentativa, isto é, a hipótese precisa ter um embasamento teórico a partir do qual o pesquisador possa argumentar e defendê-la como produção de um conhecimento novo sobre o tema. No exemplo fornecido pelo quadro 1, as categorias teóricas utilizadas para definir e caracterizar a constelação dos gêneros chat foram: a hipertextualidade, a transmutação de gêneros e os propósitos comunicativos.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, o pesquisador deve formular o seu objetivo geral, o qual deverá dialogar com a questão apresentada e com a hipótese formulada. Na sequência da elaboração do QNP, é preciso agora desmembrar os elementos teóricos que ajudaram a constituir a hipótese e o objetivo geral. Desse modo, para cada elemento teórico selecionado, deve-se elaborar uma questão específica, as quais devem estar sempre abrigadas nos limites de formulação da questão geral, ou seja, que se configurem como questões que desmembram a interrogação geral em questões pontuais sobre o tema acerca do qual ela versa. Seguindo, portanto, a mesma lógica da questão geral, para cada questão específica corresponderão uma hipótese e um objetivo específicos, os quais devem estar sustentados pelos elementos teóricos selecionados e pela possibilidade argumentativa que esses elementos podem fornecer.

Esse mesmo percurso deverá, posteriormente à elaboração do quadro, ser feito por escrito para facilitar a consolidação das ideias na construção da justificativa do projeto. Nesse sentido, o pesquisador escreverá guiado por questões como: a) Sobre o quê quero estudar? b) Por que quero estudar esse tema? c) Quem o estudou antes de mim? d) Que “lacunas” foram percebidas nos estudos encontrados e que me permitem vislumbrar uma contribuição com a minha pesquisa? Portanto, ao final desse exercício, o pesquisador pode chegar a um refinamento da questão que será desdobrada no quadro em questões mais específicas, as quais, por conseguinte, darão origem aos objetivos que o ajudarão a encontrar respostas para elas, confirmando ou não as hipóteses levantadas, conforme já explicitado nos parágrafos anteriores.

É preciso, contudo, salientar que o desconhecimento da dimensão metafórica do QNP pode transformar a elaboração desse quadro em um mero exercício de inserção de dados em tabelas, deixando de lado as relações de interdependência nele contidas e anulando a utilidade desse instrumento. Isso se justifica porque, em nossa proposta, o QNP é visto como uma metáfora acerca dos rumos que a pesquisa tomará. O adjetivo “norteador” implica na alusão a uma bússola, pela qual o pesquisador poderá guiar-se sempre que se sentir inseguro em relação aos rumos de seu trabalho. Portanto, mais importante do que preencher o quadro é compreender as relações existentes entre suas partes, haja vista cada uma delas estar diretamente ligada umas às outras e possuírem a finalidade de orientar as decisões teóricas e metodológicas que se seguirão, completando, assim, o processo ao qual chamamos de construção do objeto de pesquisa.

Esse processo é aqui defendido por nós como uma construção porque não se constitui uma réplica, pura e simples, dos fenômenos observados na realidade. Trata-se, como explica Sá (1998: 14), de “uma aproximação ditada pelas possibilidades e limitações da prática da pesquisa científica”. Indo mais além nessa explicação, o autor afirma, nesta mesma página, que

a noção de “construção do objeto de pesquisa” envolve a consideração do fenômeno ou problema que se quer investigar e a possiblidade ou vantagens de fazê-lo […], os requisitos conceituais que devem ser atendidos para suprir uma fundamentação teórica consistente e, finalmente, a eleição de métodos e técnicas de pesquisa adequados ao estudo do problema como teoricamente circunscrito.

Como podemos inferir, para que isso seja compreendido por um estudante que se inicia na atividade de pesquisa, ele precisa ser orientado e incentivado a ir além do que poderia ser apenas uma mera tarefa escolar enfadonha e mecânica. No entanto, para que isso se efetive, é preciso que esse estudante desenvolva uma satisfatória e prazerosa relação com o saber pesquisar, simbolizado introdutoriamente aqui pela elaboração do QNP. Em outros termos, é preciso que o estudante atribua um sentido ao seu envolvimento com essa atividade (cf.: Charlot 2000), o que só poderá ocorrer se ela cumprir a função de satisfazer uma necessidade comunicativa desse sujeito. No caso de nossa experiência aqui relatada, a necessidade seria a de comunicar à comunidade científica uma intenção de pesquisa teórica e metodologicamente embasada.

As definições das questões, hipóteses e objetivos no QNP permitem que vislumbremos como essas demarcações serão textualmente representadas no projeto de pesquisa. Como já afirmamos, a sequência dos objetivos específicos, que é a mesma das questões e suas respectivas hipóteses, será percebida na discussão teórica do projeto, pois cada um desses elementos deverá receber uma fundamentação teórica, pois eles representam o que Sá (1998) chama de requisitos conceituais. Em outras palavras, cada objetivo de trabalho é um argumento conceitual que deverá ser discutido de maneira que haja uma relação clara entre a teoria e o objetivo a ser alcançado durante a execução do projeto.

Esse mesmo encadeamento entre as questões, as hipóteses e os objetivos ordenados dentro do QNP deverá repercutir na escrita da metodologia do projeto de pesquisa, pois, para cada um desses elementos, espera-se que o proponente do projeto de pesquisa exponha suas decisões relacionadas aos procedimentos adotados para o processo de geração, codificação e análise dos dados. Por fim, a sequência dos elementos estabelecida no QNP também impacta o cronograma do projeto, já que o proponente deverá demonstrar acuidade na definição das atividades em relação ao período no qual elas devem ser agendadas, visando sempre o alcance de cada um dos objetivos indicados em seu quadro norteador de pesquisa.

Para isso, a atuação mediadora do professor é fundamental, como discutem Feuerstein et al. (1994). Para esses autores, há duas formas de aprendizagem humana, sendo uma delas por meio da Experiência Direta e a outra por meio da Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM). A primeira implica a interação direta do sujeito com o meio ambiente, enquanto a outra requer a presença e a atividade de um outro sujeito para organizar, selecionar, interpretar e elaborar essa experiência. Desse modo, segundo esses autores, a EAM representa um caminho pelo qual as orientações do mediador, envoltas em intuições, emoções e elementos da cultura, poderão transformar a disposição do mediado para aprender e, por conseguinte, desenvolver a capacidade de se modificar, em termos de atitudes e outras predisposições psíquicas, a partir desse aprendizado. Assim sendo, para o alcance de bons resultados, o mediador precisa avaliar as estratégias a serem aplicadas, selecionar as que são mais apropriadas a uma determinada situação, ampliando algumas e ignorando outras, sempre de acordo com os objetivos que deseja alcançar.

Considerando a experiência de produção de um gênero do discurso acadêmico, como é o caso do projeto de pesquisa, o trabalho de mediação a ser feito pode encontrar grandes vantagens, segundo nossa proposta neste texto, se o professor fizer uso do QNP. Nossa defesa para isso encontra fulcro no fato de que esse instrumento representa um caminho pelo qual o mediador, no caso o professor, pode trabalhar, por meio de sucessivas tentativas de aperfeiçoamento, a inserção dos estudantes no universo cultural do saber-fazer científico. Nesse processo de construção do objeto de pesquisa, com o uso do QNP, é possível ainda tranquilizá-los mediante suas dificuldades, haja vista, de acordo com Bourdieu (1998: 27),

essa construção não [ser] algo que aconteça de uma hora para outra ou sem grandes esforços, [pois] não é um plano que se desenhe antecipadamente, à maneira de um engenheiro: é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas.

Esses aspectos, portanto, são constituintes de um arcabouço de práticas de letramento (cf.: Street 1995) que compõem, como já dissemos acima, o universo cultural do saber-fazer científico. Em outros termos, eles envolvem os elementos em torno do que o próprio Bourdieu (1998) denominaria de um habitus científico3.

Nessa perspectiva, passaremos a relatar os processos através dos quais o QNP foi utilizado em nossa experiência docente, servindo de base para a reflexão que faremos posteriormente.

O uso do QNP no desenvolvimento da experiência de estágio

Para dar conta do nosso objetivo de observar como o QNP contribuiria para o exercício de construção do objeto de pesquisa dos alunos da graduação, organizamos nossa metodologia com base em um paradigma qualitativo de interpretação de dados, uma vez que consideramos, em nossa análise, o conteúdo das observações e sugestões postadas pela professora-estagiária da disciplina durante o exercício de correção dos QNPs. Os dados são resultado do processo de elaboração e refinamento dos projetos de pesquisa dos alunos da disciplina de LPTA, no primeiro semestre de 2011.

Nosso corpus é composto por objetos de pesquisa construídos por 15 equipes, que possuíam de 2 a 6 alunos, e cuja construção do QNP tenha compreendido no mínimo uma etapa de refinamento, constituída pela elaboração do quadro e sua respectiva apreciação pelos professores orientadores. Desta forma, podemos observar como o emprego da ferramenta evidencia as dificuldades recorrentes enfrentadas pelos alunos em suas tentativas de construir o objeto da pesquisa, possibilitando ao professor o exercício de uma orientação mais concentrada e pontual no intuito de saná-las. Convém ressaltar aqui que, anteriormente ao exercício de elaboração do QNP, houve, como já explicado acima, um momento de escolha e delimitação dos temas. Esse procedimento, por si só, já renderia corpus para um outro artigo, porém, neste estudo, nos deteremos especificamente à construção do objeto, que compreendeu apenas a formulação de questões, hipóteses e objetivos sugerida pelo quadro.

O percurso de produção das muitas versões do QNP foi feito via e-mail. Às equipes foi solicitado que elaborassem, em arquivo de Word, os quadros de suas pesquisas e que os enviassem, também via e-mail, para a professora-estagiária, que, por sua vez, utilizou os recursos de edição do programa para adicionar comentários e sugerir alterações, devolvendo, em seguida, o arquivo apreciado. De posse das sugestões recebidas, a equipe tinha a opção de acatá-las ou não e, em seguida, repetir o processo de envio. O refinamento prosseguia até a professora dar o quadro por terminado e, então, direcionar a equipe para a elaboração da justificativa e das outras partes constitutivas do projeto. Das diferentes versões elaboradas e refinadas por cada equipe foi que extraímos o corpus aqui analisado. O número de versões necessárias para refinamento dos quadros variou entre 2 e 4.

Nossa análise deu-se em dois momentos: no primeiro deles, observamos e anotamos todas as dificuldades detectadas no processo de construção dos QNPs dos estudantes e, no segundo, uma vez de posse desses dados, empreendemos a busca por padrões de escrita, extraindo daí as categorias de dificuldades que apresentaremos a seguir. Como ferramenta para facilitar a organização dessas informações, utilizamos tabelas, nas quais dispusemos: nome da equipe, quantidade total de versões do quadro analisado, número da versão analisada, descrição dos principais problemas identificados e a categoria na qual esses problemas foram inseridos.

Dessa forma, obtivemos 15 quadros como o do exemplo abaixo:

Quadro 2
Tratamento dos dados para análise

Ao final dessa sistematização, procedemos à análise e encontramos 3 (três) categorias distintas de problemas evidenciados pelo QNP:

  • Dificuldade em apreender conceitos: categoria que inclui as situações nas quais os alunos demonstraram não compreender bem os conceitos dos elementos que compõem o QNP, não conseguindo, consequentemente, operá-los de maneira satisfatória;

  • Dificuldade em planejar com coesão (unidade) os eixos do quadro: esta categoria reúne as situações nas quais observamos a ausência de harmonia entre questões, hipóteses e objetivos, que deveriam, invariavelmente, interligar-se por meio de um planejamento lógico;

  • Dificuldade no domínio da linguagem acadêmica: nesse grupo estão as situações nas quais a ausência de habilidade no emprego de mecanismos sintáticos e estilísticos inerentes à linguagem acadêmica prejudicou ou obscureceu o entendimento da mensagem que se pretendia passar.

Na secção seguinte, apresentaremos, de maneira mais detalhada, cada uma dessas categorias e analisaremos exemplos de como elas apresentaram-se no corpus analisado. Em nossa reflexão, buscamos compreender as consequências desses eventos dentro do processo global de elaboração do projeto de pesquisa e as oportunidades de exercer a mediação nessa experiência de aprendizagem.

Analisando as produções do QNP

No exercício de análise, procuramos verificar a validade da proposição norteadora deste artigo de que o emprego do QNP na construção de objetos de estudo evidencia possibilidades pedagógicas de mediação no ensino da escrita do gênero projeto de pesquisa. Isso se mostrou ainda mais evidente quando começamos a identificar as principais dificuldades enfrentadas pelos alunos, as quais foram trazidas à tona pelo emprego da ferramenta em questão, movimento que direcionou a intervenção pedagógica no intuito de resolvê-las.

• Dificuldade em apreender conceitos

Ao longo de nossa experiência docente, constatamos, sem muita surpresa, a pouca familiaridade que os alunos das disciplinas LPTA e Metodologia Científica demonstraram ter com determinadas noções e conceitos inerentes aos gêneros acadêmicos que retratam atividades de pesquisa, tais como o projeto, o resumo e o artigo acadêmico. Para aqueles que estão inseridos nessa esfera discursiva há mais tempo, noções como tema, delimitação, questão, objetivo, hipótese, metodologia, entre outras, parecem claras e triviais, porém, essa inevitável familiaridade pode nos deixar insensíveis para reconhecermos o quão complexos são esses termos, esquecendo, por vezes, que fazem parte de uma engrenagem maior, cujas peças atuam juntas. Assim, ao orientar a elaboração dos QNPs dos alunos, constatamos que a mera exposição e definição desses conceitos não foram suficientes para garantir-lhes o domínio e a desenvoltura em seu emprego, visto que, como já era de se esperar e há muito demonstrado por Vygotsky (2000), um conceito não pode ser simplesmente transmitido para o aluno via professor, sendo essa prática, além de impossível, totalmente infrutífera.

Isso se mostrou mais claro na análise dos QNPs, pois, mesmo após a explanação dos referidos termos, pareceu-nos que ainda permanecia inacessível aos discentes o mecanismo que regia seu funcionamento. Com efeito, tais noções tratam de estruturas complexas, cujas dimensões e dificuldades evidenciam-se mais claramente no exercício empírico da construção do objeto, só sendo possível perceber-lhes a função dentro de um construto teórico-metodológico que as empregue. O não preenchimento desse requisito gerou problemas que dificultaram a evolução da construção do objeto, conforme ilustram os exemplos mais adiante. Desse modo, a elaboração do QNP exige que o aluno esteja ciente não apenas do significado de cada um desses termos, mas, principalmente, da sua função dentro da pesquisa como um todo.

Para dar maior ênfase ao que está sendo demonstrado, fizemos recortes específicos no QNP acerca de cada item analisado:

Quadro 3
Exemplo de dificuldade na apreensão do conceito de questão específica

No exemplo acima, observamos que a equipe concentrou no espaço de uma única pergunta dois questionamentos sobre o tema, o que revela o não entendimento da especificidade de cada um dos desdobramentos da questão central no QNP. Uma vez feitos dois questionamentos, surge, ao menos em princípio, a necessidade de duas hipóteses e também dois objetivos a elas relacionados, além, é claro, da separação desses questionamentos em desdobramentos distintos, o que daria início a um novo objetivo específico. A orientação dada, nesse caso, foi a exclusão de um desses questionamentos, no intuito de tornar a questão mais pontual e mais coerente com os desdobramentos a ela relacionados.

O comentário, no balãozinho ao lado, embora alertando sobre a necessidade de elaboração de questões específicas e dando a orientação em seguida, foi discutido presencialmente com os estudantes, haja vista o fato de que sua curta extensão poderia não ser suficiente para o entendimento do que se pretendia orientar. O balãozinho servia, assim, como registro da orientação para que os estudantes em grupo pudessem discutir e decidir como resolveriam o problema que lhes fora devolvido. Durante a orientação presencial, na aula seguinte ao envio do quadro, os estudantes deveriam estar com esse material impresso ou visível na tela de seu notebook a fim de que a visualização pudesse tornar mais compreensível a orientação.

Quadro 4
Exemplo de dificuldade na apreensão dos conceitos de objetivo e metodologia

No exemplo acima, observamos que a equipe empregou dois verbos na redação de um mesmo objetivo, o que faz com que esse concentre em si duas ações. Esse fato revelou a não compreensão do funcionamento desse conceito, uma vez que o objetivo implica, em seu “lugar de ação desejada pelo pesquisador”, um ato que será realizado no intuito de verificar a hipótese levantada. Da mesma forma, identificamos, no segundo comentário, a menção do que seria uma informação de cunho metodológico, pois apontava para um mecanismo de geração de dados. Essa constatação revela a pouca desenvoltura na delimitação do que seria um objetivo e, em segundo plano, porém, sem passar despercebida, a dificuldade em situar de forma adequada as informações características da metodologia.

Mais uma vez, o registro dos comentários tinha como função chamar a atenção para esses pontos específicos, especialmente quanto à dimensão conceitual dos elementos que compõem o gênero projeto de pesquisa. Quando falamos de dimensão conceitual, estamos nos referindo à compreensão sobre as funções de cada uma dessas partes, ou seja, de seus propósitos comunicativos característicos no interior do referido gênero, afinal é do conjunto desses propósitos que a organização retórica do gênero (cf.: Swales 1990) se alimenta para poder produzir sua enunciação adequadamente (cf.: Bakhtin 2003). Desse modo, tivemos a oportunidade de mediar não apenas a compreensão acerca da diferença conceitual e/ou de propósito comunicativo entre o que é um objetivo e um procedimento metodológico, bem como acerca das relações entre ambos os movimentos retóricos.

Não obstante tais equívocos e/ou inadequações dos estudantes, é preciso notar que estar no processo de elaboração dessas noções já representa um grande ganho para eles. Isso se justifica na medida em que a EAM, conforme explicitam Feuerstein et al. (1994), representa um caminho pelo qual as orientações do mediador, envoltas em elementos da cultura, que em nosso caso diz respeito à cultura acadêmica, poderão transformar a disposição do mediado para aprender. Portanto, o nosso papel como mediadores foi o de apresentar um pouco dessa cultura aos estudantes recém-ingressos na universidade, utilizando o QNP como uma ferramenta facilitadora desse processo.

Compreendemos aqui que a apreensão de conceitos como questão, hipótese e objetivo é uma tarefa que se dá em dois níveis: o primeiro deles engloba a apresentação desses elementos e suas respectivas definições e o segundo nível consiste em, de posse dos conceitos relacionados a cada um dos elementos que compõem o quadro, proporcionar aos alunos a possibilidade de montar a engrenagem da pesquisa e testar-lhe o funcionamento, através da metáfora visual desse esquema, representada aqui pelo QNP. Portanto, o trabalho de mediação pode possibilitar não apenas a compreensão acerca dos aspectos técnico e conceitual que envolvem a construção de um objeto de pesquisa como também o entendimento acerca dos propósitos comunicativos (cf.: Swales 1990) aos quais o gênero projeto de pesquisa busca atender na comunidade discursiva dos acadêmicos.

• Dificuldade em planejar com coesão (unidade) os eixos do quadro

Conforme apresentamos anteriormente, visto de uma forma simplista, o quadro norteador nada mais é que uma tabela a ser preenchida. O engenho contido nessa ferramenta está exatamente nas relações de interdependência que as células dessa tabela comportam entre si, pois essas relações representam aquelas constituídas pelos elementos que compõe um objeto de pesquisa. Compreender essa simbologia é requisito imprescindível para o emprego eficaz do QNP. Da mesma forma, o desconhecimento dessas relações de dependência pode minar a eficácia do referido recurso. Logo, antes de efetivar o uso do QNP pelos estudantes, empreendemos uma série de exposições, envolvendo não apenas a sua função organizadora de informações, mas também, e principalmente, o seu papel como um instrumento de sofisticada elaboração intelectual.

Mesmo assim, no exercício de orientação e refinamento dos quadros formulados, como parte do processo de mediação, deparamo-nos com um grupo de equívocos derivados exatamente do desconhecimento dessas relações. Isso, certamente, implica na pouca ou quase nenhuma familiaridade com esta prática social que, para os estudantes, estava apenas começando a ser apropriada. As referidas relações são responsáveis, entre outras coisas, pela coesão inerente aos eixos do quadro, reconhecidos aqui como questão, hipótese e objetivo. A dificuldade em formular esses elementos, mantendo os laços necessários, pode gerar falhas na argumentação e lacunas, posteriormente, na justificativa, enfraquecendo a força da proposta, conforme observamos a seguir.

Quadro 5
Exemplo de dificuldades em dar coesão aos eixos do QNP

No quadro acima, mais uma vez temos o recorte de uma questão, de uma possível hipótese e de um objetivo. Nesse recorte, observamos a construção de um problema central no qual questão, hipótese e objetivo parecem não estar satisfatoriamente interligados, conforme evidenciam os comentários da professora. Considerando que a hipótese deve aproximar-se do que seria uma possível resposta para a questão a ela relacionada, no exemplo acima podemos notar que a hipótese levantada parece responder a uma questão diferente daquela que a ela se relaciona. Isso se justifica porque a pergunta estrutura-se com o pronome ‘Qual’ enquanto a hipótese apresentada suscita uma questão estruturada com o pronome ‘Como’, conforme evidencia o comentário 1.

Já o comentário 2 aponta para a aparição, no eixo do objetivo, de uma nova categoria teórica - as implicações pedagógicas - a qual destoa da linha de raciocínio retratada nas células anteriores. A orientação dada aponta para a inserção dessa categoria, tanto na questão quanto na hipótese, estabelecendo, assim, as relações de interdependência necessárias ao QNP. A partir desse exemplo de objeto de pesquisa em construção, podemos afirmar que problemas com o estabelecimento de coesão entre os eixos do QNP podem gerar incoerências e contradições na elaboração da justificativa do projeto de pesquisa. As incoerências podem, dessa maneira, apresentar-se de diversas formas, desde o excesso de objetivos até a fuga do tema.

Assim, o respeito às relações de interdependência existentes entre esses itens no QNP pode diminuir consideravelmente a incidência de tais equívocos e pode ser considerado um primeiro passo rumo à elaboração de uma boa justificativa. Para isso, o trabalho de mediação do professor é fundamental, pois a experiência de aprendizagem mediada requer, segundo Feuerstein et al. (1994), três critérios de mediação, os quais devem se constituir em matéria de atenção deliberada por parte do mediador: 1) Intencionalidade/Reciprocidade; 2) Significado e 3) Transcendência.

O primeiro deles é responsável pela interação com o sujeito mediado, por meio do qual o mediador seleciona, interpreta e interfere no processo de construção do conhecimento, como vimos demonstrando nos quadros acima, nas quais é possível identificar a implicação de troca e permuta de saberes entre ambos. O segundo critério refere-se ao valor, à importância atribuída à atividade pelos estudantes e permite ao mediador compreender até que ponto existe envolvimento/engajamento por parte deles na atividade. Por fim, o terceiro critério permite aos aprendizes a percepção de princípios, conceitos ou estratégias acerca do que estão aprendendo e que possam ser generalizados para outras situações, ou seja, possam estender o conhecimento adquirido, através daquela experiência de aprendizagem mediada, para outros contextos.

Para além das relações de interdependência que proporcionam coesão à construção do objeto de pesquisa, existe a necessidade de atribuir uma relação lógica entre as ações previstas para o alcance de uma determinada meta, que pode ser o estabelecimento de hipóteses para determinadas questões ou, ainda, a previsão de ações que culminariam na realização de um determinado objetivo. Em uma primeira análise, podemos pensar que a coesão no planejamento da pesquisa constitui um nível macro, evidenciado apenas nos estágios mais avançados da elaboração do projeto de pesquisa, porém, a análise dos dados dos quais dispomos nos provou o contrário. Em alguns dos QNPs vistos, observamos que, já na elaboração das questões, hipóteses e objetivos, foi possível estabelecer uma sequência de ações necessárias para aquele fim e que a não-observância dessas relações acabou gerando problemas tanto no QNP quanto, em uma perspectiva maior, no próprio projeto.

Observemos o exemplo a seguir:

Quadro 6
Exemplo de dificuldades em dar coesão ao plano da pesquisa

No exemplo acima, também recortado de outro QNP, o comentário número 1, ainda que aparentemente pareça incoerente, representa uma tentativa da estagiária em fazer com que os estudantes compreendam a interligação entre os 3 eixos do quadro. Uma vez que eles utilizaram a palavra “ou ” na redação da pergunta, a mediadora queria suscitar neles uma definição maior quanto ao foco da questão. Nesse sentido, qual seria mesmo o foco: o domínio da leitura ou dificuldades relativas a essa atividade? Afinal, nos pareceram dois enfoques diferentes, visto que os aspectos da prática de leitura que já são dominados pelas crianças se diferem, em grande parte, das dificuldades que elas poderiam apresentar no desenvolvimento dessa prática. Em acréscimo, na mediação presencial, outra sugestão da estagiária para os estudantes foi a de que eles evitassem questões cuja resposta pudesse ser reduzida a um simples “sim” ou “não”, ou ainda, que a resposta pudesse se encontrar possivelmente na própria redação da pergunta.

O comentário 2, por sua vez, buscou evidenciar a necessidade de elaboração de um objetivo que já trouxesse em si uma ação referente à questão levantada e, por isso, a necessidade de uma maior definição quanto ao que de fato seria enfocado na pesquisa. Uma vez que a equipe questionou-se acerca do domínio da leitura em um momento específico da vida escolar da criança, para responder à questão levantada, era esperado que fosse empreendido algum movimento no intuito de “aferir” o domínio da leitura apresentado pelas crianças. Essa relação lógica, desencadeada pela questão, direciona a redação do objetivo, cabendo àquele que o elabora a tarefa de materializar essa relação, tornando-a possível no desenho do objeto de pesquisa.

Até agora, voltamo-nos para as dificuldades relacionadas à estrutura do QNP como elemento de visibilidade para a construção do objeto de pesquisa. Essas dificuldades foram evidenciadas aqui, principalmente, pelas relações de interdependência existentes entre os eixos do quadro, que são, respectivamente, questões, hipóteses e objetivos. Essa etapa da análise voltou-se para uma perspectiva mais abstrata do fazer acadêmico, à qual relacionamos a concatenação de ideias e construção de um objeto de pesquisa metodologicamente operável, mencionadas no início deste artigo. Passaremos agora à análise da última categoria, a qual está relacionada à habilidade de escrita dos alunos, uma vez que a produção de gêneros acadêmicos é uma tarefa complexa e que demanda clareza e sofisticação textual por parte dos que se propõem a executá-la.

• Dificuldade no domínio da linguagem acadêmica

A elaboração de um projeto de pesquisa tem como propósito comunicativo principal levar à comunidade científica a necessidade de atualizações quanto ao que se tem produzido em uma determinada área do conhecimento. Como toda prática discursiva inerente a um grupo específico de indivíduos, a redação acadêmica possui padrões de escrita, e de apresentação de textos, que são reconhecidos e esperados por todos aqueles que os praticam. Dessa forma, para fazer-se entender em uma comunidade acadêmica implica necessariamente dominar o gênero que se pretende produzir.

Em nossa tarefa de apresentar aos alunos de LPTA e de Metodologia Científica a ferramenta QNP como mecanismo facilitador na elaboração dos projetos de pesquisa, deparamo-nos com a dificuldade que alguns desses estudantes apresentaram em expressarem-se de maneira clara e satisfatória, fazendo uso da linguagem acadêmica. Atribuímos essa constatação não às especificidades estruturais do QNP, mas sim ao fato de ser este o primeiro esforço materializado de forma escrita rumo à produção do projeto em si. Assim sendo, estamos nos referindo ao material produzido pelos estudantes que nos coloca em um primeiro contato com a sua capacidade de escrita.

Uma vez inseridos nesse contexto, não nos privamos de orientar os discentes para a resolução dessas dificuldades. Abaixo, exemplificamos uma dessas ocorrências.

Quadro 7
Exemplo de dificuldade no domínio da linguagem acadêmica

No exemplo acima, temos as colunas questão, objetivo e hipótese, respectivamente. A célula em destaque, para a qual também aponta o comentário, apresenta uma tentativa de redação da hipótese, que teve de ser reelaborada devido ao tom impreciso no qual foi redigida. Como justificativa para a necessidade de alteração, ressaltamos que o QNP, bem como o próprio projeto de pesquisa, exige um tom mais objetivo, inerente a todas as produções do meio acadêmico. Vale ressaltar, no entanto, que quando utilizamos a expressão “tom objetivo” não estamos nos referindo à objetividade no sentido correlato ao da perspectiva da neutralidade científica; nossa orientação sinaliza para uma redação que demonstre de maneira mais direta e mais clara a suposição levantada.

Vejamos mais um exemplo:

Quadro 8
Outro exemplo de dificuldade de domínio da linguagem acadêmica

No exemplo acima, observamos um outro momento no qual evidenciamos a dificuldade dos alunos em se expressarem com desenvoltura por meio da linguagem acadêmica. Observamos o emprego de uma construção - totalmente incomum à linguagem padrão da sociedade - que dá à hipótese elaborada um caráter extremista e de fácil refutação, ou seja, trata-se de uma atitude desaconselhada na esfera acadêmica. Como solução, foi orientado aos alunos que substituíssem o período problemático por expressões modalizadas, dando ao texto não apenas um maior distanciamento, sinalizando para uma postura mais reflexiva, como também uma maior credibilidade.

Ainda relacionada à habilidade de escrita, identificamos erros de ortografia, sintaxe e coesão textual, que são elementos relacionados à superfície linguística do conteúdo do QNP, mas também inerentes às exigências da escrita formal, típica dos gêneros acadêmicos. Justificamos a análise desses elementos pela considerável recorrência com a qual esses equívocos apareceram nas produções por nós acompanhadas. Abaixo, temos exemplos dessas dificuldades detectadas no QNP:

Quadro 9
Mais um exemplo de dificuldade no domínio da linguagem acadêmica

O quadro 9 apresenta uma situação na qual o emprego da locução prepositiva incorreta obscureceu o entendimento do que se pretendia propor, levando o leitor a um entendimento contrário àquilo que se queria provar. Isso denota a ausência de um exercício metalinguístico no qual os estudantes realizem uma reflexão sobre o que escreveram, buscando perceber se o sentido do que foi dito não está afetado por alguma expressão. Ao explicar a diferença entre as expressões “de encontro” e “ao encontro”, a mediadora tenta provocar entre os estudantes a reflexão sobre os usos de expressões dessa natureza.

No desenvolvimento dessa atividade pelos grupos em sala de aula, novas expressões foram discutidas, não apenas quanto às diferenças de significação, mas também no que concerne ao entendimento que determinados termos e/ou palavras não permitem alcançar, devido exatamente aos seus usos inadequado e/ou distraído. Vejamos mais um exemplo:

Quadro 10
Último exemplo de dificuldade no domínio da linguagem acadêmica

No quadro 10, deparamo-nos com uma situação na qual a omissão do referente da expressão “desses conteúdos” impede a compreensão satisfatória do questionamento levantado pela equipe. O comentário postado pela estagiária, neste contexto, teve o intuito de mostrar aos alunos a necessidade de clareza inerente à redação acadêmica, sugerindo-lhes o exercício de colocarem-se no lugar do leitor, para enxergar que possíveis problemas podem minar a sua compreensão. Apesar da relativa estabilidade dos gêneros, defendida por Bakhtin (2003), esses aspectos são constituintes, como já dissemos acima, de um arcabouço de práticas de letramento (cf.: Street 1995) que compõem o universo cultural do saber-fazer científico. Por este motivo, sendo a esfera acadêmica marcada pelo uso da forma padronizada da língua, é importante que os estudantes reflitam sobre sua escrita a fim de atender a essas exigências, tanto quanto é necessário atentar para as relações entre questões, hipóteses e objetivos por eles elaborados.

Com este exemplo, portanto, concluímos a exposição das principais dificuldades encontradas na elaboração dos QNPs das equipes assistidas. Esse exercício nos ajudou a compreender a existência de dois tipos de problemas relacionados à construção do objeto de pesquisa. O primeiro deles diz respeito à dimensão mais profunda do quadro, ou seja, a apresentação e a concatenação das ideias nas células da tabela, englobando as dificuldades de apreensão de conceitos, as dificuldades em dar coesão ao quadro e, por último, as dificuldades em dar coesão ao plano de ações proposto. Já o segundo tipo de problemas estaria relacionado a uma dimensão perceptível na superfície do quadro, englobando os problemas de domínio da linguagem acadêmica.

Embora não tenhamos mostrado aqui a versão final dos QNPs, pois o que nos interessava era demonstrar as dificuldades enfrentadas no processo de sua elaboração, podemos garantir que foram bastante satisfatórias não apenas as respostas imediatas aos comentários tecidos pela docente-estagiária, mas também as mudanças de percepção desses processos por parte dos estudantes. A partir de tais modificações, as avaliações sobre o que foi realmente aprendido por meio dessa experiência foram bastante positivas, uma vez que, além de as versões finais exibirem relações mais consistentes entre os elementos analisados, os estudantes, ao apresentarem e defenderem seus projetos para uma banca formada pelos colegas de turma e, às vezes, por mestrandos e doutorandos convidados, demostraram posturas argumentativas bastante convincentes sobre seus objetos de estudo. Por fim, os estudantes avaliaram a experiência como bem sucedida, manifestando o desejo de prosseguir no exercício de aprimoramento de sua construção do conhecimento por meio da reflexão acerca da atividade de pesquisa.

Considerações finais

A análise aqui desenvolvida permitiu-nos refletir sobre as dificuldades apresentadas por estudantes da graduação ao elaborarem um projeto de pesquisa como exercício inicial da atividade de investigação cientifica. Esse percurso foi possível com o uso do QNP como etapa preliminar do ensino desse gênero, servindo de instrumento mediador para os alunos na compreensão das relações de interdependência existentes entre questão, hipótese e objetivo, e permitindo ao professor, que acompanha a construção desse objeto de pesquisa, um exercício de orientação mais eficiente e pontual a partir das dificuldades encontradas. Assim sendo, para além da dimensão mais complexa da elaboração do QNP, identificamos também a dimensão mais imediata, localizada na superfície do texto, compreendendo problemas referentes ao domínio da própria língua materna e também da linguagem acadêmica.

Essas constatações sinalizam para o sucesso do emprego do QNP como etapa anterior à própria redação do projeto de pesquisa e imprescindível ao sucesso dessa tarefa, uma vez que, conforme dissemos acima, para elaborar-se um projeto, é necessário, antes de tudo, ter um objeto de pesquisa coerente e bem construído. Em acréscimo, pudemos constatar que a Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM) tem como principal função ajudar os estudantes a se tornarem mais flexíveis e mais receptivos a interagir com novos conhecimentos, desenvolvendo estratégias outras que viabilizem a percepção dessas informações. Nessa perspectiva, o processo de mediação parece ir além de uma simples tarefa escolar que segue uma determinada orientação e que busca a chegar a um determinado produto.

A mediação possibilita ao sujeito ser capaz de transpor saberes construídos nessa experiência para outros contextos, atestando, assim, uma modificação em seus modos de ser e de agir. Contudo, neste processo, não é apenas o estudante que parece ter o que modificar, mas o próprio mediador também tende a modificar-se, pois passa a compreender que ele/ela precisa desenvolver um grande exercício de alteridade. Com isso, aprendemos, portanto, que é preciso buscar modos de atingir significativamente o desejo de aprendizagem dos mediados sem que estes se sintam acuados pela autoridade docente; autoridade esta que, muitas vezes, esteve presente nas orientações e se fez incisiva, já que a tendência de todo discurso pedagógico é ser impositivo.

Pelos resultados que obtivemos no final da disciplina, acreditamos que fomos fieis a estes princípios e critérios da atividade de mediação. Entre esses resultados, podemos citar o fato de que nenhum dos estudantes deixou de procurar a mediação da estagiária e do professor da disciplina, bem como nenhum deles deixou de apresentar um QNP sem as devidas relações feitas e como um mínimo de coerência interna e/ou de embasamento teórico-metodológico. Nesse sentido, para além dos ganhos pedagógicos que essa atividade nos permitiu atingir, as considerações tecidas sobre ela nos incitaram a pensar ainda sobre o recente debate que tem sido travado nos eventos destinados a discutir o tema dos gêneros textuais e suas relações com a área do ensino de leitura e escrita.

Como mostram Bawarshi e Reiff (2010), o tema gêneros (tex­tuais/discursivos) encontra agenda no interior da Linguística Sistêmico Funcional (cf.: Martin e Rose 2008), também chamada de escola de Sydney da teoria de gêneros, assim como da Abordagem Sócio-Retórica, conhecida como escola norte-americana de gêneros (cf.: Swales 1990; Miller 1984; Bazerman 2005) e da Abordagem Sócio-Discursiva, conhecida como escola de Genebra (cf.: Bronckart 1999; Dolz e Schneuwly 1996; Adam 1990). Neste ponto, parece afigurar-se como relevante, no cenário internacional das teorias de gêneros, a chamada escola brasileira de gêneros ou The Brazilian synthesis, nas palavras de Bawarshi e Reiff (2010), ou The Brazilian approach to genre, segundo Swales (2012), ou ainda A Brazilian perspective, como prefere Vian Jr (2012). Essa perspectiva, mais próxima do que estamos fazendo no Brasil em relação ao estudo e à aplicação das teorias de gênero, parece vir contribuindo de forma decisiva para a compreensão dos fenômenos que envolvem a temática.

Mais importante do que a maneira como escola brasileira de gêneros é denominada por esses autores, é o fato de que todos concordam que a característica dessa abordagem se centra na síntese teórica e metodológica das outras escolas. De acordo com Bawarshi e Reiff (2010: 75), “os estudos de gênero no Brasil oferecem uma maneira de ver essas tradições como compatíveis e, por isso, fornecem ferramentas analíticas e teóricas pelas quais mostram como os gêneros funcionam linguística, retórica e sociologicamente. Nessa mesma linha de racio­cínio, Swales (2012: 113) sugere “que a abordagem brasileira de gênero propõe que os enfoques retóricos, linguísticos e sociológicos podem ser integrados, com resultados proveitosos não apenas para a compreensão teórica de gêneros, mas também para sua aplicação no ensino”. Portanto, ao trabalharmos com os gêneros do universo acadêmico nas disciplinas LPTA e Metodologia Científica, em especial o projeto de pesquisa, conforme relatado neste texto, percebemo-nos entrelaçando os enfoques de cada uma das escolas de gênero aludidas e ressaltamos, com isso, a relevância cada vez maior de disciplinas dessa natureza para os cursos de graduação.

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  • 1
    . Leitura e Produção de Textos Acadêmicos (doravante LPTA), no caso do primeiro autor, é ministrada no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará e Metodologia Científica, no caso do segundo autor, é ministrada no Curso de Pedagogia da mesma universidade.
  • 2
    . Estágio de Docência em Linguística da co-autora Sayonara Costa na disciplina de LPTA, sob a orientação do professor da disciplina, o primeiro autor deste paper, com as colaborações de Messias Dieb, segundo autor do trabalho.
  • 3
    . O habitus é um conjunto de disposições psíquicas que funcionam como um sistema de esquemas de pensamento, de percepção, de avaliação e de ação; é uma espécie de “gramática geradora” de nossas práticas, de nossos pensamentos e de nossos atos. Neste sentido, “o habitus científico é uma regra feita homem ou, melhor, um modus operandi científico que funciona em estado prático segundo as normas da ciência sem ter estas normas na sua origem: é esta espécie de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda a regra que permite gerar a conduta adequada” (Bourdieu 1998: 23).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2014
  • Aceito
    01 Set 2015
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