RESUMO
O presente artigo tem como objeto de reflexão os enunciados de dois professores acerca do ensino-aprendizagem (não)situado de matemática e física no ensino-fundamental em uma escola pública do município do Rio de Janeiro. Os enunciados que integram o corpus de análise foram coletados durante entrevistas com dois professores realizadas por uma das autoras desse artigo no âmbito do projeto Práticas de Linguagem em Diferentes Áreas do Conhecimento na Escola Pública (PLIEP). A interpretação dos dados, com base na concepção de gêneros do discurso, conceitos espontâneos e científicos, multiletramentos e em categorias da linguística sistêmico-funcional, revela uma maior adesão discursiva do professor de matemática a processos de construção de conhecimento socialmente situados e um distanciamento ideológico de ambos os professores das práticas de multiletramentos que caracterizam a (trans)formação de significados na vida contemporânea.
Palavras-chave: ensino-aprendizagem situado; conceitos científico/espontâneos; gêneros do discurso; multiletramentos
ABSTRACT
This paper focuses on the reflection about two teachers’ utterances concerning the (non)situated teaching-learning processes of Mathematics and Physics in a public elementary school in Rio de Janeiro, Brazil. The utterances that integrate the analysis corpus were collected during interviews with two teachers performed by one of the authors in the scope of the project Language Practices in Different Knowledge Areas in Public Schools (PLIEP). Based on the notions of speech genres, spontaneous and scientific concepts, multiliteracies and on analytical categories proposed by Systemic-Functional Linguistics, the data interpretation indicates the Mathematics teacher’s increased discursive affiliation to socially situated knowledge construction processes as well as an ideological distance of both teachers in relation to the multiliteracies practices that characterize meaning (trans)formation in contemporary life.
Key-words: situated teaching-learning; spontaneous/scientific concepts; speech genres; multiliteracies
Introdução
O PISA (Programme for International Student Assessment )1 avalia, a cada três anos, alunos de 15 anos ao redor do mundo nas áreas de matemática, leitura e ciências. A escolha por essa idade específica se justifica por ser nessa faixa etária que os estudantes dos 64 países participantes concluem o ensino obrigatório. Nas últimas avaliações, o Brasil não ocupou posições satisfatórias nas três áreas mencionadas, ficando com as médias 396, 403, 393, 412 (leitura); 334, 356, 370 e 386 (matemática); 375, 390, 390, 405 (ciências) nos PISAs de 2000, 2003, 2006 e 2009, respectivamente. Dentre os campos considerados no exame, a matemática é, portanto, a área com os piores resultados.
Na avaliação realizada pelo Programa em 2012, os índices publicados continuam demonstrando o fraco desempenho dos alunos das escolas públicas estaduais e municipais2 brasileiras em Matemática. Apesar de um aumento muito sútil na pontuação de Matemática (391 pontos), a pontuação em leitura e ciências, 410 e 405 pontos respectivamente, permanece estagnada e o Brasil continua a figurar entre os países com mais baixo desempenho, amargando a 57ª posição no ranque dos 64 países que participaram do PISA 2012. Embora avaliações institucionais da natureza do PISA, por constituírem instrumentos ideológica e institucionalmente situados que legitimam certas práticas de letramento e deslegitimam outras, forneçam um retrato impreciso das privações sofridas no complexo cenário educacional brasileiro, os resultados parecem corroborar a percepção de que há um abismo entre o desenvolvimento econômico conquistado nas últimas décadas e a capacidade de alunos brasileiros de (inter)agir em práticas de letramento legitimadas pelo PISA em contextos transnacionais.
No que se refere especificamente à matemática, o mau desempenho dos brasileiros nessa área pode aumentar as dificuldades para a construção do conhecimento em física, uma vez que essa especialidade depende da linguagem matemática para expressar concretamente os seus conteúdos3. Além disso, a acumulação de dificuldades pelo aluno no decorrer da vida escolar pode acarretar em barreiras para a aprendizagem dos conteúdos de matemática e física do Ensino Médio e consequente fracasso nas avaliações de ingresso às universidades. O problema mais grave originado pela privação desses conteúdos, contudo, é impossibilitar a participação em e transformação de práticas de letramento em que tais conhecimentos são requeridos.
Dentre os fatores que constituem obstáculos para o engajamento em práticas de letramento em matemática e física, destacamos dois. O primeiro é o ensino descontextualizado, que não considera os conceitos cotidianos dos alunos no processo de construção dos conceitos científicos (Vygotsky, 1934 [1998]). O segundo é a dificuldade de interpretação e apropriação dos textos que circulam nessas áreas do conhecimento, realizados através de gêneros do discurso diversos.
Levando-se em conta esses dois fatores, o presente artigo analisa concepções de ensino-aprendizagem de dois professores - um de matemática e um de física, do ensino fundamental de uma escola municipal do Rio de Janeiro - com o intuito de refletir sobre três questões: 1. O que os gêneros do discurso mencionados pelos professores revelam sobre suas visões acerca do processo de construção de conhecimento em Matemática e Física? 2. Como os professores percebem as inter-relações entre conhecimentos espontâneos e científicos no processo de construção do conhecimento? 3. Como os professores veem a relação de suas disciplinas com a sociedade?
Para refletir sobre essas questões, recorremos aos pressupostos de Bakhtin (1953[2011]) sobre gêneros discursivos, à concepção de ensino-aprendizagem de Vygotsky (1934[1998]), de multiletramentos (Rojo, 2012) e, para a análise da materialidade linguística dos enunciados dos professores, aos construtos da gramática sistêmico-funcional proposta por Halliday (1985[2014]).
Nas seções que se seguem apresentamos a discussão dos pressupostos teóricos que orientam o processo de interpretação dos dados: 1. Por um ensino situado de matemática e física e 2. Análise linguística na perspectiva da sistêmico-funcional; em seguida apresentamos o contexto de pesquisa: 3. Contexto de pesquisa; e, por fim, a interpretação dos dados: 4. Gêneros do discurso e construção do conhecimento em matemática e física seguida das Considerações Finais.
1. Por um ensino situado de matemática e física
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) constituem documentos prefigurativos (Szundy; Cristóvão, 2008) compostos por um conjunto de propostas que fazem circular nas Secretarias de Educação, escolas e universidades ideologias produzidas na esfera acadêmica e que, autorizadas pelo Ministério da Educação (MEC), são propostas como parâmetros para orientar a elaboração de currículos nos estados e municípios.
O Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa (INEP), órgão vinculado ao MEC e responsável pela produção de parâmetros, orientações e leis que regulamentam a educação, reconhece e ao mesmo tempo modaliza o caráter orientador e, portanto, prefigurativo dos PCN. Enquanto tal reconhecimento é enunciado na percepção de que “os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) são a referência básica para a elaboração das matrizes de referência”, o caráter prescritivo dos documentos é relativizado na afirmação de que “segundo as orientações dos PCNs o currículo está sempre em construção e deve ser compreendido como um processo contínuo que influencia positivamente a prática do professor”4. No entanto, mesmo ao tomar o currículo como processo em construção, modalizando, portanto, o caráter deôntico do primeiro enunciado, a segunda afirmação enunciada no site do INEP parece desconsiderar a agentividade do professor no processo de (re/des)construção do currículo na medida em que é o currículo “que influência positivamente a prática do professor”.
À semelhança do que se verifica nos PCN das áreas de ciências sociais e humanas, aqueles de matemática e ciências naturais apostam no ensino-aprendizagem situado como forma de influenciar “positivamente a prática do professor”.
“Essa análise abre uma discussão sobre o papel da Matemática na construção da cidadania, eixo orientador dos Parâmetros Curriculares Nacionais, enfatizando a participação crítica e a autonomia do aluno. Sinaliza a importância do estabelecimento de conexões da Matemática com os conteúdos relacionados aos Temas Transversais Ética, Pluralidade Cultural, Orientação Sexual, Meio Ambiente, Saúde, Trabalho e Consumo, uma das marcas deste parâmetro”. (Brasil, PCN Matemática (5ª a 8ª séries), 1997, p. 15)
“Os objetivos de Ciências Naturais no ensino fundamental são concebidos para que o aluno desenvolva competências que lhe permitam compreender o mundo e atuar como indivíduo e como cidadão, utilizando conhecimentos de natureza científica e tecnológica”. (Brasil, PCN Ciências Naturais (5ª a 8ª séries), 1997, p.32).
Os dois excertos acima revelam o comprometimento desses documentos oficiais com a formação do cidadão crítico, compreendido como alguém que pensará criticamente o meio social em que está inserido, o papel que desempenha nesse meio e os mecanismos de que dispõe para modificá-lo. Tal compreensão passa necessariamente pelo domínio dos conhecimentos científicos de Matemática e Física, visto que os PCN defendem a centralidade desses conteúdos para o desempenho, planejamento e compreensão dos fenômenos físicos que ocorrem ao nosso redor e de atividades práticas diárias, tais como planejamento orçamentário, resolução de problemas financeiros, dentre outras.
A ideia, no entanto, de que propostas curriculares da natureza dos PCN provocariam per se mudanças positivas nas práticas, parece não ecoar em muitas salas de aula onde, não obstante o foco dos PCN no ensino-aprendizado socialmente situado, muitos professores continuam a inscrever suas práticas em uma perspectiva de ensino tradicional, desvinculada das práticas de letramento com as quais os alunos interagem/serão chamados a interagir no mundo social. A ênfase em práticas não situadas que abstraem os conhecimentos científicos da vida como evento se relaciona, por uma lado, a ideologias cristalizadas sobre o fazer científico como a busca por verdades universais e generalizáveis (Bakhtin, 1920-24 [2010]). Por outro, imbrica-se com questões de formação de professores, com a forma autoritária como os documentos oficiais e o conhecimento produzido por especialistas circulam na escola e com a complexidade inerente a processos de mudanças na esfera educacional, atravessados por movimentos ideológicos de permanências e abalos, tanto no nível discursivo quanto nas práticas.
Embora o aprofundamento dessas questões não esteja no escopo desse artigo, parece-nos importante salientar que compartilhamos a posição de Celani (2010, p. 66) de que “salvo em raras exceções, o professor não quer resistir à inovação deliberadamente. Há um número muito grande de razões que o levam a isso”. Ao colocar em diálogo (e em confronto) os enunciados dos professores e as atitudes responsivas ideologicamente orientadas das pesquisadoras ao que foi “dito”, o processo interpretativo de análise realizado nesse artigo pode contribuir para criar inteligibilidades sobre as ideologias que atravessam as visões de professores e pesquisadoras sobre práticas de ensino-aprendizagem (não) situadas.
Dentre as ideologias que influenciam o nosso olhar para os dados está a concepção de Vygotsky (1934[1998]) de que a educação escolar deve se basear em um processo de ensino-aprendizado situado, em que o conhecimento não seja simplesmente transmitido pelos professores, mas, sim, co-construído. Nessa perspectiva, o professor não é visto como o único par mais competente na medida em que o aluno exerce o papel de participante ativo do processo de construção do conhecimento, sendo capaz de, em colaboração com pares mais experientes, potencialmente realizar ações que estão além do seu nível de desenvolvimento. É nesse sentido que Newman e Holzman (2002) propõem que para Vygotsky todo processo de construção de conhecimento constitui um processo de aprendizagem-e-desenvolvimento, ou seja, um processo dialético de aprendizagem conduzindo ao desenvolvimento na ZPD (Zona Potencial de Desenvolvimento). Como aprendizagem-e-desenvolvimento pressupõem desaprendizagens e desestabilizações, a ZPD representa uma zona de conflitos e transformações marcada por relações de poder.
Vygotsky (1934 [1998]) defende a importância da utilização dos conceitos espontâneos do aluno em sala de aula. Os conceitos espontâneos são aqueles aprendidos, de maneira inconsciente, pelo aluno fora do ambiente escolar, em sua vida cotidiana. Já os conceitos científicos são aprendidos de maneira consciente e sistemática. Para Vygotsky, os conceitos espontâneos atuam sobre os científicos e são por eles influenciados. Assim, o desenvolvimento desses conceitos se dá tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima, de forma que um caminha em direção ao outro. A importância da utilização do contexto social dos alunos em sala de aula, portanto, se justifica pelo fato dos conceitos espontâneos serem considerados potencializadores na compreensão dos conceitos científicos. Da mesma forma, o aprendizado dos conceitos científicos será o gatilho necessário para acionar o desenvolvimento da capacidade de abstração do aluno, fundamental para que ele organize e controle de forma consciente suas atividades cotidianas.
Para que a vida social penetre mais efetivamente na escola e esta na vida social, é fundamental considerar as práticas de letramento em que os alunos se engajam no mundo social. Há mais de uma década, Kleiman (1995) definiu os letramentos como “conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos” (Kleiman, 1995, p. 18). Em discussões mais recentes, a definição de letramentos tem sido ampliada de forma a incluir não apenas o texto escrito, mas, também, os textos compostos por multilinguagens, que exigem multiletramentos, isto é, a capacidade de saber produzir e compreender as diversas semioses que compõe um texto (Rojo, 2012). Nesse sentido, ao ignorar os multiletramentos com os quais os alunos interagem no cotidiano, a escola se distancia cada vez mais de uma educação responsável e responsiva às demandas práticas e éticas da vida contemporânea (Szundy, 2014; Oliveira, Szundy, 2014; Szundy, Nascimento, 2016).
Esses letramentos e multiletramentos, os textos presentes em matemática e física, tal como todos os outros textos criados pelo ser humano, são realizados por meio de gêneros discursivos. Bakhtin (1953 [2011]) define gêneros discursivos como formas relativamente estáveis de enunciados que “refletem as condições específicas de cada referido campo [da atividade humana] não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais mas, acima de tudo, por sua construção composicional” (Bakhtin, 1953 [2011], p. 262). Dado o fato de que organizam a atividade humana e são por ela transformados, os gêneros discursivos são sócio historicamente construídos e, por isso, se modificam à medida que o homem e a cultura se transformam.
Para uma melhor conceituação dos gêneros discursivos bakhtinianos é necessário compreender como o autor define os enunciados e como os difere das categorias palavra e oração. A palavra, bem como a oração, não requerem um ato comunicativo. Isto significa que a palavra ou a oração por si só não são dialógicas, na medida em que, quando consideradas nessa perspectiva descontextualizada, não representam a intenção do falante, não são direcionadas a outro participante do discurso e nem carecem de avaliação ou resposta por parte desse outro. Assim, não são passíveis de interpretação quando desvinculadas de um determinado contexto. Portanto, o verdadeiro sentido de uma palavra só será depreendido no interior do gênero discursivo através do qual esta retrata e refrata significados. Por outro lado, o gênero discursivo selecionado pelo(s) participante(s) de determinada interação também determinará quais palavras e quais tipos de oração deverão constituir esse gênero na situação comunicativa em tela. Na análise dialógica do discurso pensada por Bakhtin (1953[2011]), portanto, os enunciados implicam não apenas em palavras ou conjuntos de orações, mas refletem, sobretudo, o dialogismo presente em determinada situação comunicativa, a própria situação comunicativa e, desse modo, apontam para o gênero discursivo em que estão inseridos. Os enunciados, assim, funcionam como o elo entre palavra, oração e contexto.
Nessa perspectiva, as capacidades de entender o texto e identificar a que gênero pertence são insuficientes em processos de construção de conhecimento responsivos à contemporaneidade. É preciso que o aluno seja capaz de entender o porquê da escolha de um gênero e não de outro, quais os significados criados por aquele texto, a quem esse texto é dirigido e porquê o é, que escolhas verbais e não verbais foram realizadas e porquê, como o gênero organiza/é organizado pelo contexto, a que interesses serve e com que outros textos/gêneros dialoga. Essas escolhas verbais e não verbais correspondem, também, aos conceitos científicos próprios de matemática e física. Portanto, para apreender um gênero discursivo, o conteúdo organizado por esse gênero e as (inter)ações que provocam, o aluno também precisa compreender os conceitos científicos que determinado gênero faz circular. Assim, é fundamental que o aluno seja capaz de interpretar o texto, o que, como demonstram Ricon e Almeida (1991) e Lopes (2007), é fator indispensável para a compreensão dos conteúdos de matemática e física.
As abordagens de Bakhtin e de Vygotsky constituem os alicerces teóricos que informam nossa interpretação das perspectivas pedagógicas e sobre linguagem enunciadas pelos dois professores participantes desta pesquisa. Tais concepções serão interpretadas a partir da materialidade linguística dos enunciados provenientes de entrevistas realizadas com os professores. Para a análise dessa materialidade, recorremos à perspectiva sistêmico-funcional de Halliday (1985 [2014]).
2. Análise linguística na perspectiva sistêmico-funcional
Para Halliday (1985[2014]), a linguagem é fundamental para a construção da experiência humana. Ela possui um propósito e, por isso, é um recurso funcional (Eggins, 1994[2000]). O autor sugere que a análise linguística deve se basear no uso, e não apenas na estrutura. Neste caso, a segunda será determinada pelo primeiro. Assim, as escolhas linguísticas realizadas pelos participantes de uma situação comunicativa não representam categoriais gramaticais abstratas na medida em que indicam quem são os interlocutores, o processo e as circunstâncias assim como os papeis desses interlocutores, seus status sociais e suas intenções comunicativas. Nessa perspectiva, a materialidade linguística irá refletir as escolhas dos interlocutores em uma situação comunicativa.
De acordo com a proposta sistêmico-funcional de Halliday (1985[2014]), uma forma linguística utilizada por um interlocutor deve ser interpretada não apenas por sua relação sintagmática com os elementos ao redor, mas, também, por sua relação paradigmática com os elementos com os quais compartilham características em comum. Portanto, na perspectiva sistêmica-funcional, a interpretação das escolhas do interlocutor não está atrelada apenas àquilo que de fato foi produzido linguisticamente, mas, também, às razões que o levaram a eleger uma forma em detrimento da outra dentre as diferentes possibilidades oferecidas pela língua.
A proposta de Halliday (1985[2014]), portanto, enfatiza a relevância do contexto para a interpretação e análise da materialidade linguística, convergindo com a afirmação de Malinowski (1923[1946], apud Eggins 1994 [2000], p. 51) de que [...] “uma palavra sem o seu contexto linguístico é um mero fragmento e nada representa por si mesma; assim, na realidade de uma língua viva falada, o enunciado só possui sentido no contexto de situação”.
A escolha dos elementos que comporão a sentença expressa pelo falante, ou de forma oral ou de forma escrita, leva em consideração os elementos do contexto de situação, que, por sua vez, está inserido em um contexto de cultura. Para Halliday (1985[2014]), o primeiro contexto corresponde ao registro, isto é, “uma variedade funcional da língua - os padrões de instanciação do contexto geral associados com um dado tipo de contexto” (Halliday, 1985 [2014], p. 51). O contexto de registro está relacionado aos tipos de texto, isto é, aos tipos de instanciações. As instanciações, por sua vez, são definidas como “um exemplo de um sistema subjacente e não possui existência significativa exceto como tal. Um texto em inglês não possui outro valor semiótico do que em referência ao sistema do inglês” (Halliday, 1985[2014], p. 49). Dessa forma, o texto funciona como um instante do contexto de registro. Já o contexto de cultura é definido pelo autor como:
“[aquilo a] que os membros de uma comunidade podem dar significado em termos de cultura; isto é, nós interpretamos cultura como um sistema de significados de alto nível - como um ambiente de significados em que vários sistemas semióticos operam, incluindo língua, paralíngua e outros sistemas que acompanham a língua e são expressos através do corpo” (Halliday, 1985[2014], p. 55).
Halliday (1985[2014]) divide o contexto de registro em três variáveis: o campo (field), o modo (mode) e as relações (tenor). O campo representa o assunto sobre o qual os interlocutores falam, o modo representa como esse assunto é tratado e as relações evidenciam quem são os participantes do discurso. Tais variáveis se relacionam, respectivamente, às três funções da linguagem: ideacional, textual e interpessoal. As três meta-funções são definidas por Butt, Fahey, Feez, Spinks & Yallop:
“A linguagem tem uma função representacional - usamo-la para codificar a nossa vivência e experiência do mundo; faculta-nos imagens da realidade (física ou mental). Ajuda-nos, portanto, a codificar significados da nossa experiência, isto é, a codificar significados Ideacionais” (FUNÇÃO IDEACIONAL)”. (Butt, Fahey, Feez, Spinks & Yallop, 2000, apud Gouveia, 2009, p. 4).
“A linguagem tem uma função textual - usamo-la para organizarmos os nossos significados ideacionais e interpessoais num todo linear e coerente. Permite-nos, portanto, codificar significados de desenvolvimento textual e organização retórica, isto é, significado textuais (FUNÇÃO TEXTUAL)”. (Butt, Fahey, Feez, Spinks & Yallop,2000, apud Gouveia, 2009, p. 4).
“A linguagem tem uma função interpessoal - usamo-la para codificar interacção e mostrarmos quão defensáveis achamos as nossas posições, os nossos enunciados. Ajuda-nos, portanto, a codificar significados de atitudes, interacção e relações sociais, isto é, significados interpessoais (FUNÇÃO INTERPESSOAL)”. (Butt, Fahey, Feez, Spinks & Yallop,2000, apud Gouveia, 2009, p. 4).
Essas três funções, por sua vez, são realizadas linguisticamente pela Transitividade, Tema e Modo oracional respectivamente. Os três níveis e subníveis não se encontram separados, mas, ao contrário, se relacionam intrinsecamente e são igualmente levados em consideração pelo interlocutor na construção de significados.
O sistema TEMA é formado pelo tema e pelo rema. O tema é definido por Halliday (1985[2014], p. 120) como “o ponto de partida da mensagem”. Desse modo, corresponde à parte inicial da oração. O rema, por sua vez, é a parte final da oração. Segundo o autor, a fronteira entre o primeiro e o segundo é definida pelo primeiro elemento experiencial, isto é, pelo primeiro participante, processo ou circunstância da oração. Além de diferenciar tema e rema e estipular os limites entre um e outro, Halliday (1985[2014]) também subdivide o tema em três tipos distintos: o tema textual, o tema interpessoal e o tema tópico.
O tema textual corresponde aos elementos cuja função fundamental é manter a coesão e coerência do texto. São eles: conjunções, adjuntos conjuntivos e continuativos5. As conjunções, segundo Halliday (1985 [2014]), são os elementos que ligam as orações. O autor classifica os adjuntos conjuntivos como grupos adverbiais ou sintagmas preposicionais que ligam a oração ao texto que a precede. Já os continuativos são, para o autor, “um pequeno grupo de palavras que assinalam um movimento no discurso” (Halliday, 1985 [2014], p. 138). Os elementos textuais, portanto, auxiliam a manutenção da fluidez do discurso.
O tema interpessoal corresponde ao tema modal (modal/comment adjunct) ou ao vocativo6. O tema modal “expressa o julgamento ou atitude do interlocutor/escritor em relação à mensagem” (Halliday, 1985 [2014], p. 139). Dessa forma, a função do tema interpessoal é indicar o ponto de vista de quem enuncia a mensagem.
Por fim, temos o tema tópico, o qual corresponde ao assunto que será abordado, ao tópico da mensagem. Segundo o autor, nem sempre o tema tópico corresponde ao sujeito da oração. Quando isso acontece, temos o tema não marcado; quando não, o tema é marcado. O tema não marcado é a estruturação padrão da língua e, por isso, não contribui para chamar a atenção do leitor/ouvinte. Por outro lado, o tema marcado é utilizado quando se deseja enfatizar um elemento do texto que não funciona como o sujeito da oração.
Para Halliday (1985[2014]), o tema tópico é representado pelo primeiro elemento experiencial da oração, o qual, por sua vez, se relaciona com o sistema de TRANSITIVIDADE. Dessa forma, é necessário conhecer e reconhecer os componentes do sistema TRANSITIVIDADE a fim não somente de classificar o tema tópico, mas, também, de acessar a oração em sua meta-função ideacional.
O sistema de TRANSITIVIDADE é representado pelos participantes, pelos processos e pelas circunstâncias. Os processos dividem-se em duas categorias: os processos majoritários e os secundários. Os majoritários podem ser: material, mental, relacional. Já os secundários são: comportamental, verbal e existencial. Cada um desses processos possui diferentes participantes.
Os processos materiais são aqueles que demandam a utilização de alguma quantidade de energia para serem realizados. Nesse caso, os participantes podem ser: ator (aquele que dá início ao processo), meta (aquele que sofre o processo), scope (um participante que parece ser um elemento circunstancial, mas é necessário para que o sentido do verbo seja completo), cliente ou receptor (isto é, aquele para quem os bens e serviços são feitos e aquele a quem os bens e serviços são dados, respectivamente).
Os processos mentais são aqueles que representam “sentidos”. Eles podem denotar emoção, cognição, desejo e percepção. Seus participantes são o senser, isto é, aquele que sente, pensa, deseja ou percebe, e o fenômeno, ou seja, aquilo que é sentido, que é objeto do pensar, desejado ou percebido.
Os processos relacionais servem para caracterizar ou identificar (Halliday, 1985 [2014]). Há três tipos de processos relacionais: intensivo (x é y); possessivo (x tem y); circunstancial (ou o processo em si carrega um valor circunstancial ou um dos participantes se assemelha a uma circunstância, embora não seja um elemento opcional e, portanto, é exigido para que o sentido da oração possa ser completo). No primeiro caso, os participantes são o intensificador e o intensificado. No segundo, temos o possuidor e o possuído. Por fim, no processo circunstancial, a classificação da oração será de acordo com a circunstância que ela representa.
Segundo Halliday (1985[2014]), os processos secundários, por sua vez, estão na fronteira que divide os processos majoritários. Assim, entre um processo material e um mental, temos o comportamental, cujos participantes são o behaver e o behaviour. Já entre os processos mentais e os relacionais, encontram-se os processos verbais, que têm como participantes: sayer (aquele que diz); receiver (aquele para quem a mensagem é dirigida); verbiage (aquilo que é dito); alvo (aquele que é “atingido” pelo processo. Nesse caso, a mensagem que é dita não é dirigida para o outro interlocutor, mas representa uma crítica, uma acusação etc.). Os processos existenciais, por sua vez, apresentam apenas um participante, o existente, e representam algo que existe ou acontece.
Por fim, Halliday (1985/2014) apresenta as circunstâncias. Esses componentes do sistema de TRANSITIVIDADE são caracterizados por não serem obrigatórios na oração, isto é, não serem exigidos para que o sentido completo possa ser atingido. Além disso, as circunstâncias apresentam mobilidade e podem expressar localização (temporal ou espacial), meios, maneira, causa, grau, concessão, comparação, condição ou default.
Além das dimensões textuais e ideacionais, há, ainda, como mencionado, a dimensão interpessoal. Nesse caso, segundo aponta Halliday (1985 [2014]), temos a expressão do ponto de vista do escritor/interlocutor, do seu papel social e do seu nível de hierarquia em relação ao outro participante. A função interpessoal é linguisticamente representada pelo sistema de MODO, o qual é composto pelo modo e pela informação de tempo verbal ou modalização. Através desses itens, temos acesso ao modo oracional (isto é, declaração, interrogação ou imperativo), bem como ao grau de certeza e/ou formalidade do interlocutor.
Dessa forma, as diferentes funções linguísticas podem ser depreendidas não somente do material linguístico expresso em uma oração, mas também daquilo que não foi exposto. Contudo, não se limita a isso. Ao analisar o que é dito e o que não é dito, temos acesso ao modo como o interlocutor utiliza a linguagem para representar e modificar o mundo à sua volta. Portanto, a linguagem reflete e refrata a realidade, uma vez que não apenas se refere ao mundo, mas também contribui para moldá-lo e mudá-lo (Bakhtin,1953[2011]). Por meio da palavra, temos acesso à mensagem e a atitude do interlocutor frente a essa mensagem (Bakhtin, apud Faraco, 2009). Ao analisarmos a materialidade linguística do discurso, não acessamos somente o que é dito ou o que não é dito por uma pessoa, mas as próprias compreensões acerca das experiências em que estão imersas.
Por isso, para compreender quais as concepções dos professores participantes em relação ao processo de ensino-aprendizagem em matemática e física, recorremos ao modo como os professores representam essa parte de sua experiência social, como se posicionam em relação ao outro, a si mesmos e às suas aulas. Para tanto, a representação é realizada no plano ideacional, levando-se em conta o componente interpessoal, e expressa e organizada de modo coesivo por meio do plano textual, os quais, conforme já exposto, são concretizados por diferentes elementos linguísticos. Assim, as categorias da linguística sistêmico-funcional de Halliday (1985[2014]) nos oferece o aparato analítico para interpretarmos possíveis significados enunciados pelos professores na materialidade de suas falas durante as entrevistas de forma a atravessar essa materialidade no exercício de compreender também alguns dos significados refratados.
3. Contexto de pesquisa
A presente pesquisa tem como participantes dois professores de uma escola municipal de ensino fundamental da cidade do Rio de Janeiro. Insere-se no projeto Práticas de Linguagem em Diferentes Áreas do Conhecimento na Escola Pública (PLIEP)7, desenvolvido em 2012 e 2013 por docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com apoio financeiro da FAPERJ. O PLIEP contou com a participação e colaboração de professores e alunos do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Linguística Aplicada da UFRJ, professores e estudantes de pré-iniciação científica de três diferentes escolas públicas do município do Rio de Janeiro e estudantes de iniciação científica da Faculdade de Letras da UFRJ. Contudo, é preciso ressaltar que os dois professores entrevistados não participaram das atividades de formação do projeto PLIEP, embora atuem em uma das escolas participantes.
Os dados para esta pesquisa foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas gravadas em áudio e transcritas, realizadas na escola durante os intervalos de aulas dos professores. O primeiro professor, identificado como Paulo, leciona matemática e sua entrevista durou cerca de 50 minutos; o segundo, nomeado como Daniel, ensina ciências8 na escola e sua entrevista durou cerca de 30 minutos; e a entrevistadora, por sua vez, é identificada pela letra D. A evidente discrepância temporal entre a entrevista realizada com Paulo e àquela realizada com Daniel se justifica não por uma recusa do segundo em responder às perguntas, mas, sim, por, diferentemente do primeiro, este dar respostas mais curtas aos questionamentos da pesquisadora. Ambos os professores ministram aulas no nono ano do ensino fundamental.
A interpretação dos dados que se segue busca analisar as concepções dos dois professores sobre o processo de ensino-aprendizagem de matemática e física para, assim, responder às três perguntas que orientam a análise dos dados: O que os gêneros do discurso mencionados pelos professores revelam sobre suas concepções acerca do processo de construção de conhecimento em Matemática e Física? Como os professores percebem as inter-relações entre conhecimentos espontâneos e científicos no processo de construção do conhecimento? Como os professores veem a relação de suas disciplinas com a sociedade?
As concepções que orientam a interpretação dos dados são as de gênero discursivo de Bakhtin (1953[2011]), de ensino-aprendizado e de conceitos científicos e espontâneos propostas por Vygotsky (1934[1998]) e as categorias propostas por Halliday (1985[2014]) para análise da materialidade linguística em sua gramática sistêmico-funcional, isto é, as categorias de tema, rema, transitividade e modo. Os dados correspondem aos enunciados produzidos pelos professores durante as entrevistas.
A seção que se segue se dedica à interpretação desses enunciados.
4. Gêneros do discurso e construção do conhecimento em matemática e física
Para a análise das concepções dos professores acerca dos gêneros discursivos que orientam os processos de construção do conhecimento em matemática e física, foram selecionados excertos das entrevistas em que os professores mencionam os gêneros que circulam em suas aulas, bem como as formas como são utilizados em sala de aula. Como esses excertos constituem respostas às perguntas realizadas pela entrevistadora, consideramos fundamental refletir sobre as perguntas que levaram os professores a falar sobre gêneros discursivos.
Os enunciados que compõem as perguntas da entrevistadora e respostas dos professores foram separados em orações que, em seguida, foram analisadas de acordo com a perspectiva sistêmico-funcional de Halliday (1985[2014]). Tais enunciados são analisados de acordo com os conceitos de tema/rema, transitividade e modo/resíduo, que se relacionam, respectivamente, às metafunções textual, representacional e interpessoal. Os resultados estão resumidos em tabelas.
As perguntas feitas aos professores de matemática e física que buscavam compreender o trabalho com os gêneros do discurso em suas aulas foram:
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D: “eh:: há algum trabalho de...nas suas aulas....há algum trabalho de leitura com os alunos?...mesmo que você não seja... professor... de língua portuguesa...”
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D: = “mas você acha assim... que::... por exemplo...as dificuldades dos alunos além de matemática como você falou... também pode ter alguma relação com a língua:gem...dificuldade de interpretação::...você acha que:... seria interessante um trabalho assim com professor de português talvez...ou de lí::nguas?” (física)
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D: “eh: em relação aos tipos de texto...que tipos de texto...quando falo não só são os textos escritos...mas os grá::ficos... eh: o que é dito na sala...a linguagem que é usada pelos alunos pelo professor...eh:: qual...qual você diria quais são os principais que você observa e::...com mais frequência durante as suas aulas?”
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D: “eh::... e assim em relação as suas aulas...quais são os principais tipos de texto que você encontra? Texto eu falo::... no sentido... não só texto escrito...mas pode ser grá::ficos...eh::..vídeos... se você trabalha com vídeos...todas esse/todas essas mídias...todos esses... esses tipos de meios de comunicação...quais os principais que você...encontra e que você utiliza nas suas aulas de ciências?” (física)
Ao todo, foram encontradas dezenove orações nas perguntas de D, as quais foram analisadas segundo as metafunções textual, interpessoal e ideacional. Os resultados estão apresentados na tabela 1 a seguir:
A análise revela que na maior parte das orações: aquelas em que há tema tópico não marcado, o professor ocupa a posição de sujeito, sendo representado pelo vocábulo “você”, ou, então, a posição é ocupada por um sujeito já mencionado no discurso (as dificuldades dos alunos, isto, um trabalho com línguas, o que, quais). Dessa forma, a posição de tema não marcado é preenchida por elementos que, embora representem o ponto de partida do enunciado (Halliday, 1985 [2014]), não constituem informação nova, uma vez que podem ser inferidos a partir do contexto ou remetem ao que já foi dito. A construção sintática não marcada, por seu caráter canônico, não contribui para destacar os temas assim estruturados. Portanto, os professores não constituem o elemento central das questões realizadas.
Por outro lado, os temas marcados contribuem para enfatizar uma determinada informação e chamar a atenção do interlocutor para essa parte da mensagem. Nos dados apresentados, os temas marcados são: suas aulas, as dificuldades dos alunos, em relação aos tipos de texto, quando, a linguagem, em relação as suas aulas, texto, quais. Assim, os tópicos marcados perpassam uma linha temática cujo principal objetivo é descobrir quais são os diferentes tipos de textos encontrados nas aulas dos professores de Matemática e Física, bem como as principais dificuldades que esses professores encontram no trabalho com tais textos em sala de aula. Esse é, portanto, o foco principal da entrevista. É importante, ainda, salientar que a expressão gêneros discursivos é omitida das questões realizadas e frequentemente substituída por “tipos de textos (orais e escritos)”, o que indica a percepção da entrevistadora de que os professores não estão familiarizados com esse jargão científico.
A análise ideacional demonstra, por sua vez, a maior utilização de processos relacionais e verbais. Os processos relacionais são majoritariamente intensivos, isto é, x é y, o que sinaliza a expectativa por respostas que definam ou classifiquem os gêneros discursivos que circulam em ambas as aulas, bem como a forma como os professores trabalham com esses gêneros. Essa expectativa é semelhantemente revelada nas escolhas interpessoais realizadas pela entrevistadora. A maior parte das orações se encontra no presente e há apenas um modalizador, o que contribui para enfatizar seu caráter de verdade, legitimando as posições ideológicas da pesquisadora. Desse modo, as questões pretendem, primordialmente, compreender não suposições ou hipóteses acerca do trabalho com os gêneros discursivos em matemática e física, mas, sim, as características desses gêneros e como são de fato trabalhados.
Para responder essas questões principais e, portanto, às perguntas que guiam essa pesquisa, foram selecionados cinco excertos das entrevistas com os professores de matemática e de física. A escolha dos excertos levou em consideração a relação desses com as perguntas realizadas pela entrevistadora brevemente analisadas acima. Desse modo, os trechos selecionados indicam a percepção dos dois professores sobre os principais gêneros discursivos que circulam em suas salas de aula, bem como suas concepções de ensino-aprendizado em relação e/ou conflito com as ideologias enunciadas pela entrevistadora em suas perguntas/comentários. O resultado da análise dos extratos está resumido na tabela 2 na página seguinte.
A tabela 2 retrata, no total geral, os temas tópicos, o tempo verbal e os tipos de processos mais recorrentes nos enunciados dos professores. A análise textual revela que o tema mais encontrado, tanto nos excertos enunciados pelo professor de matemática quanto naqueles proferidos pelo professor de física, foi o tema em posição não marcada, isto é, tema na posição de sujeito da oração. Conforme já sinalizado, a utilização da posição canônica não contribui para chamar a atenção do leitor/ouvinte para o tema da oração. Além disso, a posição de tema geralmente corresponde à informação dada, seja pelo contexto discursivo, seja por se referir a algo já expresso durante o diálogo. Tanto em relação ao professor de matemática quanto em relação ao de física, o tema não marcado aparece tanto por se referir a uma informação dada contextualmente como a uma expressa anteriormente no texto, como pode ser observado nos seguintes trechos: “...eu trago às vezes alguns textos...eh:eh: com(...)” (Paulo, excerto 2); “(...) mas como eu falei... a minha preocupação...com eles...(...) (Daniel, excerto 3).
Contudo, o tema também funciona como o ponto de partida do enunciado, ou seja, como o tópico sobre o qual se dirá algo. Assim, percebemos que o tema não marcado recorrente nos enunciados do professor de matemática foi o pronome “eu”, enquanto que nos enunciados do professor de física temos frequentemente o pronome “eles”. Dessa forma, o professor de matemática escolhe partir das suas opiniões e das suas ações em sala de aula para apresentar os gêneros discursivos com os quais trabalha em classe, bem como suas concepções de ensino-aprendizado. Por outro lado, o professor de física situa como ponto de partida os alunos, o interesse desses alunos e as ações desses alunos para definir suas concepções de ensino-aprendizado. Apenas quando se refere diretamente aos gêneros discursivos encontrados em suas aulas é que o professor de física utiliza o pronome “eu” como ponto de partida, como podemos ver no seguinte trecho: “eu durante:: algum tempo...eu usava textos complementares quando eu dava aula na..no sexto ano...” (excerto 2, professor Daniel).
Portanto, por meio da análise dos enunciados de ambos os professores, notamos a ênfase em apenas uma das partes envolvidas no processo de ensino-aprendizado, isto é, ou o professor é colocado como organizador central desses contextos, ou o aluno assume o papel decisivo para que o ensino seja considerado eficaz. A posição assumida por Paulo e Daniel, desse modo, diverge da proposta defendida por Vygotsky de co-construção do conhecimento, em que professores e alunos atuam ativamente e em colaboração para a compreensão dos conceitos científicos aprendidos no ambiente escolar. Assim, ainda que os professores, em suas falas, destoem em alguns raros momentos da oposição “eu/eles” ou “eles/eu”, demonstram uma concepção de ensino-aprendizado majoritariamente atada ao modelo tradicional de ensino-aprendizado, para o qual os professores são os únicos detentores do conhecimento considerado válido, cabendo aos alunos apenas o dever de escutar e aprender passivamente o que lhes é ensinado.
A análise interpessoal dos trechos selecionados aponta o tempo presente como o mais recorrente. Conforme mencionado anteriormente, o tempo presente contribui não só para situar temporalmente as ações no agora, mas também para atribuir aos enunciados um caráter de verdade. Podemos observar esse fato nos enunciados “... eu acho que a matemática...eu acredito... não acho não... eu acredito que a matemática não... ela é mais uma... no papel de... formar um cidadão crítico...tá?” (Paulo, excerto 1) e DANIEL: “bom... no nono ano... a gente usa...eh::... gráficos...” (Daniel, excerto 3), em que a escolha do presente do indicativo atribui às afirmações dos professores acerca dos gêneros com os quais trabalham e seu proceder pedagógico em sala de aula o caráter de certeza, de um acontecimento ou opinião constante, e não de suposições ou especulações sobre o tema proposto. Desse modo, sendo o enunciado um elemento dialógico e considerando o objetivo das questões propostas pela entrevistadora, temos que os enunciados produzidos pelos professores são, em sua maioria, uma resposta positiva, de aceitação, ao acordo implicitamente proposto através das perguntas realizadas pela entrevistadora, isto é, a busca por respostas que definam e classifiquem as práticas pedagógicas dos professores de matemática e física.
A análise ideacional, por sua vez, revela a ampla recorrência de processos materiais expressos pelos verbos usar, fazer, trabalhar, por exemplo, nas orações de ambos os professores. Sendo esses os processos do fazer e do acontecer, notamos que os professores optam por classificar e definir o processo de ensino-aprendizado e o trabalho com os gêneros não apenas por meio de uma atitude avaliativa, mas, principalmente, descrevendo as ações que desempenham em sala de aula, as escolhas pelos gêneros que serão abordados e os métodos utilizados para o trabalho com eles.
Contudo, é também necessário destacar a importância dos processos relacionais nessa análise, uma vez que foram esses o outro tipo de processo mais utilizado pelos dois professores para expressar os significados das experiências vivenciadas. Os processos relacionais, em sua maioria intensivos, aparecem em momentos em que os professores são convidados a comentar sobre sua opinião em relação ao trabalho situado com os gêneros que mencionam durante a entrevista. Podemos observar a utilização dos processos relacionais para esse fim nos seguintes excertos:
“é possível::..é possível sim...é óbvio que a gente limita aí o número de conteúdos a ser trabalhados dessa maneira...quando eu falo isso ( ) não é um documentário com função didática...quando você trabalha com um
( ) didática...aí é diferente...aí tá voltado pra aquilo...mas não sendo é mais complicado” (excerto 3, professor Paulo).
“eu acho isso relativo... porque eles são... de origem principalmente do Parque União... e:: eh:: eu já dei aula no Paraíso... e eles não tinham o menor... interesse...” (excerto 1, professor Daniel).
Nos dois primeiros casos, o processo relacional intensivo é usado pelo professor tanto para explicar sua posição quanto a utilização dos conteúdos de matemática na compreensão da sociedade em que o aluno vive. Observamos essa posição quando o professor informa a dificuldade que encontra em trabalhar documentários de forma situada por meio da matemática e também quando ilustra o sucesso que obteve ao relacionar o conteúdo de matemática com a questão da seca no nordeste.
Na afirmação do professor de física “eu acho isso relativo... porque eles são... de origem principalmente do Parque União... e:: eh:: eu já dei aula no Paraíso... e eles não tinham o menor... interesse...” (excerto 5, professor Daniel), percebemos que, enquanto os processos relacionais são utilizados pelo professor de matemática para demonstrar uma atitude positiva e otimista em relação ao trabalho situado com gêneros, o uso do processo relacional pelo professor de física apresenta um pessimismo com relação ao trabalho situado com gêneros materializado pela modalização “eu acho isso relativo” e pela declarativa negativa “eles não tinham o menor interesse”. Como retrata esse excerto, o pessimismo do professor em relação ao trabalho situado com gêneros é associado à origem dos alunos, o que pode indicar que, na concepção desse professor, a falta de contato com práticas de letramento legitimadas pela escola em suas comunidades tem como principal implicação o desinteresse dos alunos, dificultando o processo de construção do conhecimento em sala de aula. Novamente, o professor de física ratifica seu posicionamento de que o processo de ensino-aprendizado eficaz depende da adesão incondicional dos alunos ao, imediatamente após especificar a relatividade do uso das práticas de letramento cotidianas para a construção do conhecimento, apontar a origem dos alunos, isto é, a comunidade carioca conhecida como Parque União, e a desmotivação dos estudantes como obstáculos para o ensino de física. Além disso, em nenhum momento Daniel menciona qualquer tentativa de sua parte de despertar o interesse desses alunos ou demonstra como os letramentos provenientes de áreas periféricas atuam como empecilhos ao processo de ensino-aprendizado.
Os enunciados do professor de física convergem com uma concepção pedagógica tradicionalmente encontrada nas escolas brasileiras. Para tal perspectiva, a escola atua como guardiã do saber considerado digno de ser conhecido e repele práticas de letramento socialmente marginalizadas, tais como aquelas provenientes das camadas sociais menos privilegiadas. Dessa forma, os conhecimentos cotidianos dos alunos não são considerados relevantes para o processo de ensino-aprendizado e a escolha dos gêneros discursivos a serem trabalhados em sala de aula torna-se um ato artificial, baseado nas crenças do professor e no conjunto de práticas de letramento socialmente consideradas superiores e relevantes. A consequência dessa concepção de ensino-aprendizado é a manutenção de um status quo que contribui para a exclusão dos alunos detentores de outras práticas de letramentos, além de impossibilitar o trabalho situado com os gêneros discursivos em sala de aula.
Com relação ao professor de matemática, a inclinação, ainda que observada em alguns momentos, para um processo de ensino-aprendizado situado é demonstrada por meio de seus enunciados compilados no primeiro trecho. A presença dos advérbios “sempre” e “nunca” e da estrutura modalizadora “tem que ser” (obrigação) para descrever o papel da matemática, como observado no excerto: “... eu acho que a matemática...eu acredito... não acho não... eu acredito que a matemática não... ela é mais uma... no papel de... formar um cidadão crítico...tá? eu ach/eu acredito que esse tem que ser o viés no ensino da matemática...” (excerto 1 , professor Paulo) materializam tal tendência . De caráter interpessoal, esses elementos se localizam em pontos extremos do continuum de polaridade, refletindo uma postura enunciativa comprometida com um ensino-aprendizado que contribua para a formação do cidadão crítico.
A interpretação realizada nos parágrafos acima sugere que ambos os professores parecem enunciar o trabalho com os gêneros e o processo de ensino-aprendizado não como uma atividade co-construída, apenas possível com a participação ativa de professores e alunos, mas, antes, como uma via de mão única. Nesse contexto, é o professor quem escolhe os gêneros que serão trabalhados, é ele quem decide como serão trabalhados, se por meio de debate, se como atividades complementares. É ele quem organiza, por si só, a aula e quem decide os conteúdos trabalhados. Em outro extremo, cabe ao aluno ser o único organizador de como se dará o processo de construção de conhecimento em sala de aula, seja pelas suas atitudes, seja pelo seu interesse.
Todavia, a análise dos enunciados do professor de matemática sugere que ele apresenta certa inclinação em relação a um processo de ensino-aprendizado situado, que procura lançar mão de conceitos espontâneos. Além disso, o professor enuncia a ideologia amplamente circulada nos PCN, nos textos acadêmicos e na mídia de que o papel fundamental da sua disciplina na sociedade é formar o cidadão crítico, como podemos observar em: “... eu acho que a matemática...eu acredito... não acho não... eu acredito que a matemática não... ela é mais uma... no papel de... formar um cidadão crítico...tá?” (excerto 1, professor Paulo). Desse modo, difere do professor de física nesses dois aspectos, uma vez que para Daniel as aulas de física no ensino fundamental são apenas uma preparação para o ensino médio e o conhecimento cotidiano não é considerado primordial para a construção do conhecimento.
Quanto aos gêneros mencionados pelos professores, observamos a filiação de ambos a uma abordagem tradicional, na medida em que afirmam circular em suas aulas os conteúdos comuns às aulas de física e matemática, documentários, notícias de jornais e gráficos. Não houve menção ao trabalho com outros gêneros presentes no cotidiano dos alunos, como páginas de relacionamento na internet, jogos online ou videogames. De fato, ambos os professores alegam, durante a entrevista, que tal tecnologia é um empecilho no processo de ensino-aprendizado: “eh:: eles tem dificuldade em.. em... em abstrair muitas informações.. e::... talvez isso aconteça/ seja um mal... dessa geração porque...tudo é muito rápido e muito curto e as informações são curtas... e::... devido... a::...a::...sites de relacionamento...a/ não tem textos... muito longos... as frases são curtas então... não tem... muito::...” (Daniel, excerto 6) e “eu diria duas dificuldades...a primeira é que independente de ser um aluno de origem pública ou não...é a questão da motivação...né?...a escola...hoje...perde muito para os atrativos que...que... a tecnologia oferece...fora do espaço escolar...” (Paulo, excerto 6).
Os posicionamentos negativos de Daniel e Paulo diante das novas tecnologias e das práticas de letramento em que os alunos se engajam na Internet indicam um alinhamento dos professores aos letramentos tradicionais que caracterizam as práticas de ensino-aprendizagem das linguagens matemáticas e físicas no ensino básico, voltadas, em geral, para o trabalho da fórmula pela fórmula, ou seja, para a abstração do conhecimento científico. Como o alinhamento a práticas não situadas de construção de conhecimento e a resistência às novas tecnologias podem ter como consequência a formação de cidadãos incapazes de operar e/ou agir eticamente com os multiletramentos que orientam a vida contemporânea nos campos do trabalho, da vida pública e da vida privada (The New London Group, 2000), é fundamental que ideologias cristalizadas como àquelas enunciadas pelos participantes desse estudo sejam abaladas em processos de formação inicial e continuada.
Considerações finais
Na análise dos enunciados respostas de Paulo, professor de Matemática, e Daniel, de Física, às perguntas realizadas por uma das autoras durante entrevistas semiestruturadas individuais com ambos, recorremos às noções de função textual, interpessoal e ideacional da gramática sistêmico-funcional de Halliday (1985 [2014]) para interpretar as concepções dos dois professores sobre o processo de ensino-aprendizagem (não)situado de Matemática e Física em suas práticas no ensino fundamental. Em diálogo com as categorias da sistêmico-funcional, nossa interpretação buscou aportes nas concepções de gêneros do discurso (Bakhtin, 1953 [2011]), conceitos científicos e espontâneos (Vygotsky, 1934 [1998]) e multiletramentos (Rojo, 2012) para refletir sobre os significados enunciados por Paulo e Daniel no que diz respeito aos gêneros do discurso que (não) circulam em suas aulas, às inter-relações entre conceitos científicos e espontâneos no processo de construção do conhecimento e à relação de suas práticas em sala de aula com a vida social.
Entendemos que o fato de Paulo nomear gêneros como problema, filme, documentário, gráficos, entre outros, e mencionar problemas sociais como a questão da globalização, da água, a seca no semiárido e questões do dia a dia para (não) situar e avaliar o processo de ensino-aprendizagem de Matemática em sua prática no ensino-fundamental revela uma filiação maior desse professor à ideologia, amplamente transmitida em políticas de ensino e avaliação (LDB, PCN, OCEM, PISA, SAEB, ENEM etc.) e no meio acadêmico, de que é fundamental situar os processos de construção do conhecimento, tornando-os relevantes para a vida.
Diferentemente, a alusão de Daniel somente a textos complementares e a gráficos, a presença mais frequente do tema não marcado “eles” nos seus enunciados e a sua avaliação sobre as dificuldades que a origem mais humilde dos alunos impõem ao processo de ensino-aprendizagem, revelam a concepção do professor de que o fracasso na construção do conhecimento de física se deve mais à falta de comprometimento e interesse dos alunos, fortemente determinada pelo ambiente que eles vivem, do que à práticas (não) situadas de ensino-aprendizagem.
Em relação aos multiletramentos com os quais os alunos interagem no mundo digital, a ideologia enunciada por Daniel de que as linguagens utilizadas nessas práticas de letramento são inferiores àquelas legitimadas pela escola assim como a avaliação de Paulo de que as interações dos alunos com essas tecnologias tornam a escola pouco atraente, indicam posicionamentos tecnofóbicos que, se não deslegitimados em processos de formação inicial e continuada, contribuirão para apartar (ainda mais) a escola dos significados em fluxo no mundo contemporâneo.
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3
. O professor de Física Nelson Riski Filho ressalta, em sua dissertação de mestrado, a importância dos conhecimentos matemáticos em Física: “Somando-se a isto, em meu senso comum percebia a dificuldade tradicional que os alunos apresentam em Matemática, que é um pré-requisito ao conteúdo de Física [grifo nosso], concluindo que talvez tenha sido essa a causa de culminar e perpetuar-se o mito atribuído a Física de ser um bicho-papão para os estudantes” (RISKI, 2011: 9)
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7
. O projeto Práticas de Linguagem em Diferentes Áreas do Conhecimento na Escola Pública (PLIEP) foi contemplado com recursos do Edital 16/2011 - “Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas da Rede Pública Sediadas no Estado do Rio de Janeiro – 2011” da FAPERJ. A primeira autora desse artigo coletou dados no PLIEP como parte de seu projeto de iniciação científica e a segunda coordenou o projeto. Agradecemos à Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo apoio financeiro ao PLIEP e ao CNPq pela bolsa de iniciação científica. Site www.pliep.pro.br.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2017
Histórico
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Recebido
10 Jun 2015 -
Aceito
03 Maio 2017