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Aquisição de linguagem a exceder a fala: gestos de bebês e função interpretativa do cuidador

Acquisition of language to exceed speech: babies gestures and interpretative function of the caregiver

RESUMO

A linguagem é um conjunto multimodal, intrinsecamente relacionada à constituição psíquica e pode ser avaliada por outros elementos, além da fala. Objetiva-se discutir os efeitos dos gestos do bebê e da atividade interpretativa do cuidador no processo de aquisição da linguagem em bebês com histórico de internação neonatal. Estudo exploratório, qualitativo e retrospectivo. Amostra composta por quatro díades cuidador-bebê, com histórico de internação neonatal. Dados coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e videogravações. Os resultados indicam que a atenção à produção gestual, à interação cuidador-bebê e à função do cuidador como significador das produções infantis auxiliam o acompanhamento e a avaliação do processo de aquisição de linguagem.

Palavras-chave:
bebês; gestos; aquisição de linguagem; constituição psíquica

ABSTRACT

Language is a multimodal set, intrinsically related to the psychic constitution and can be evaluated by elements other than speech. The objective is to discuss the effects of the baby gestures and the caregiver interpretive activity on the language acquisition process in babies with a history of neonatal hospitalization. Exploratory, qualitative and retrospective study. Sample composed of four caregiver-baby dyads, with history of neonatal hospitalization. Data collected through semi-structured interviews and video recordings. The results indicate that the attention to gestural production, the caregiver-baby interaction and the caregiver function as a signifier of the children’s productions help the monitoring and the evaluation of the language acquisition process.

Keywords:
babies; gestures; language acquisition; psychic constitution

Introdução

A clínica fonoaudiológica é um lugar privilegiado quando tratamos de linguagem, principalmente no que concerne aos distúrbios no processo de aquisição. Porém, não raro, na prática clínica o fonoaudiólogo se deparará com tais casos apenas quando surge o atraso de linguagem oral - a fala - associada a dificuldades na interação social. Segundo Flores e Smeha (2013Flores, M. R., & Smeha, L. N. (2013). Bebês com risco de autismo: o não-olhar do médico. Ágora. Rio de Janeiro, 16/especial: 141-157. ), geralmente, essa procura ocorre após os dois anos de idade.

Essa demora na identificação de quadros de distúrbios da linguagem pode ser endossada pela condição da equipe de saúde em priorizar elementos orgânicos e patológicos, desconsiderando, muitas vezes, aspectos psíquicos (Flores e Smeha, 2013Flores, M. R., & Smeha, L. N. (2013). Bebês com risco de autismo: o não-olhar do médico. Ágora. Rio de Janeiro, 16/especial: 141-157. ). Um estudo de Nogueira e Silva (2018Nogueira, A. L., & Silva, K. C. B. da. (2018). Percepção dos cuidadores sobre o processo de aquisição da linguagem. In: Anais da Semana de Fonoaudiologia Unicamp - SEMAFON, 16., Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, São Paulo.) demonstra que os cuidadores apresentam uma maior atenção a aspectos motores do desenvolvimento nos primeiros 19 meses de vida da criança. As autoras destacam ainda que eles não se atentam aos marcos iniciais da linguagem, como a intenção comunicativa que se apresenta através de gestos, olhares e balbucios.

Destarte, destaca-se que a língua/fala não é sinônimo de linguagem, mas sim um produto desta. Saussure (2006Saussure, F. de. (2006). Curso de Linguística Geral. 27. Cultrix.: 17) afirma que a língua “não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente”. O autor descreve ainda a fala como individual, acessória e mais ou menos acidental. Já a língua, é social e essencial (Saussure, 2006Saussure, F. de. (2006). Curso de Linguística Geral. 27. Cultrix.). Isto é, a fala é o uso que o falante atribui à língua.

Cavalcante e Brandão (2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.: 57) descrevem a fala como “toda forma de produção discursiva para fins comunicativos na modalidade oral” e afirmam que “é o uso da língua na sua forma de sons articulados e significativos, bem como aspectos prosódicos e uma série de recursos expressivos de outra ordem: gestualidade, movimentos corporais, mímica”. Dessarte, a fala e o gesto são indissociáveis nas interações cuidador-bebê, considerando que a língua(gem) é um conjunto multimodal, composta por olhar, gesto, postura corporal, qualidade de voz, prosódia (Cavalcante, 2012Cavalcante, M. C. B. (2012). Hologestos: produções linguísticas numa perspectiva multimodal. Revista de Letras (Fortaleza), 31/1/2: 7-14. ; Lima, Delgado e Cavalcante, 2018Lima, I. L. B., Delgado, I. C., & Cavalcante, M. C. B. (2018). Relação Entre a matriz linguística multimodal e a atenção conjunta de criança com síndrome de Down. Revista do GEL , 15/1: 85-99. https://doi.org/10.21165/gel.v15i1.1835.
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).

Carneiro (2013Carneiro, L. T. (2013). Multimodalidade da linguagem: constituindo gêneros do discurso. Revista eletrônica Letras de hoje. 48/1:108-113. Recuperado de https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/iberoamericana/N%C3%83%C6%92O%20 https:/www.scimagojr.com/index.php/fale/article/view/11755.
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) afirma que o caráter multimodal da comunicação oral faz parte do diálogo entre interlocutores. A autora argumenta que, ao falarmos, usamos não só a voz, mas também o corpo, a partir de gestos, olhares, maneios de cabeça, etc.

Para Kendon (2004Kendon, A. (2004). Gesture: visible action as utterance. Cambridge Univ. Press.), quando a fala não está disponível para ser utilizada, seja por qual razão for, o gesto pode se tornar uma linguagem por si próprio, assim como a oralidade. Nesse aspecto, Norris (2006Norris, S. (2006). Multiparty interaction: a multimodal perspective on relevance. Discourse Studies, 8/3: 401-421.) declara que a linguagem verbal não é a única responsável na estruturação da interação comunicativa. Dessa forma, os gestos se configuram como uma das modalidades possíveis à manifestação da linguagem. Lima, Delgado e Cavalcante (2018Lima, I. L. B., Delgado, I. C., & Cavalcante, M. C. B. (2018). Relação Entre a matriz linguística multimodal e a atenção conjunta de criança com síndrome de Down. Revista do GEL , 15/1: 85-99. https://doi.org/10.21165/gel.v15i1.1835.
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) ainda assinalam que os gestos possibilitam um meio efetivo de interação que pode favorecer o desenvolvimento da linguagem oral.

Assim, antes de se investigar a fala deve-se considerar que ela é apenas parte de um todo - a linguagem - a qual deve ser estudada em sua totalidade. A partir dessa perspectiva, Lima e Cavalcante (2015Lima, I. L. B., & Cavalcante, M. B. C. (2015). Desenvolvimento da linguagem na clínica fonoaudiológica em uma perspectiva multimodal. Revista do GEL, 12/2: 89-111.) declaram que a linguagem só é possível em um contexto de prática dialógica, levando-se em conta todo contexto comunicativo, não apenas as produções verbais. Dessa forma, ao longo do processo de aquisição da linguagem faz-se necessário considerar a gesticulação como parte essencial e intrínseca (Cavalcante e Brandão, 2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.; Cavalcante, 2018Cavalcante, M. C. B. (2018). Contribuições dos estudos gestuais para as pesquisas em aquisição da linguagem. Linguagem & Ensino, Pelotas, 21: 5-35. https://doi.org/10.15210/rle.v21i0.15112.
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).

Dito isso, é imprescindível um olhar integral à linguagem, já que ela é fator essencial no desenvolvimento do bebê, pois, de acordo com Rechia (2016Rechia, I. C. (2016). Maturação da via auditiva e a aquisição da linguagem em crianças nascidas pré termo tardio e a termo com e sem risco psíquico. (Tese de doutorado). Rio grande do Sul: Universidade Federal de Santa Maria. ), influencia os processos de aprendizagem e socialização. A autora ainda afirma que o processo de aquisição de linguagem aponta para a interação de fatores biológicos e sociais. A partir dessa constatação, é possível verificar a intrínseca relação entre os aspectos psíquicos e linguísticos. Para a autora, a linguagem se configura como força fundante e, antes de ter como função a expressão, em sua atividade discursiva, possui papel constitutivo para o sujeito. Ferreira Júnior, Flores e Cavalcante (2015Ferreira Junior, J. T., Flores, V. do N., & Cavalcante, M. C. B. A. (2015). Teoria de Benveniste sobre a pessoalidade e seus desdobramentos na enunciação infantil. DELTA, São Paulo, 31/2: 527-558. https://doi.org/10.1590/0102-44509841905164449.
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) destacam que é a linguagem que fornece os meios para essa subjetivação.

Scarpa (2001), de forma contundente, enfatiza que o campo da aquisição da linguagem é, inexoravelmente, uma área multidisciplinar, já que engloba indagações pertinentes à Linguística, Psicologia, Psicolinguística e Fonoaudiologia. No presente trabalho, o qual se fundamenta a partir da premissa de que aspectos psíquicos e linguísticos estão intimamente relacionados, inclui-se a Psicanálise, sobretudo a tradição lacaniana, como um campo de investigação bastante fértil e que auxilia na compreensão de impasses precoces no processo de aquisição de linguagem.

Para Kruel et al (2016Kruel, C. S., Rechia, I. C., Oliveira, L. D., & Souza, A. P. R. de. (2016). Categorias enunciativas na descrição do funcionamento de linguagem de mães e bebês de um a quatro meses. CoDAS, Santa Maria, 28/3: 244-251. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20162015190.
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), a interação entre aquele que cuida e exerce a função materna e o bebê é fundamental no processo de aquisição da linguagem, uma vez que permite a constituição psíquica e linguística do infante. Para Flores et al (2011Flores, M. R., Beltrami, L., & Souza, A. P. R. de. (2011). O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrbios da Comunicação, 23/2: 143-152.: 144-145), essa interação com o Outro primordial, “portador dos significantes e que faz a mediação simbólica”, é fundamental já que ele “garante sua existência enquanto sujeito da linguagem”.

Os autores Flores et al (2011Flores, M. R., Beltrami, L., & Souza, A. P. R. de. (2011). O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrbios da Comunicação, 23/2: 143-152.) e Kruel et al (2016Kruel, C. S., Rechia, I. C., Oliveira, L. D., & Souza, A. P. R. de. (2016). Categorias enunciativas na descrição do funcionamento de linguagem de mães e bebês de um a quatro meses. CoDAS, Santa Maria, 28/3: 244-251. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20162015190.
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) declaram que a fala materna - ou daquele que exerce tal função - é importante nesse processo de subjetivação do sujeito, que se torna indispensável no processo aquisicional. Segunda as autoras, a fala materna pode ser realizada através do manhês que se caracteriza por:

[...] um modo especial de fala materna dirigida ao bebê, tendo características peculiares em relação à sintaxe (frases curtas e repetições), léxico (simplificação morfológica e multifuncionalidade de palavras) e prosódia (tom de voz mais agudo, velocidade lenta e alongamento de vogais) (Flores et al, 2011Flores, M. R., Beltrami, L., & Souza, A. P. R. de. (2011). O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrbios da Comunicação, 23/2: 143-152.: 144).

Segundo Flores et al (2011Flores, M. R., Beltrami, L., & Souza, A. P. R. de. (2011). O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrbios da Comunicação, 23/2: 143-152.), esse tipo de fala faz com que o bebê busque o seu interlocutor com o olhar, estabelecendo uma relação com o Outro primordial. De acordo com as autoras, o bebê diante da fala materna eliciada se vê “convocado e atraído em responder a ela, o que o faz querer achar formas de se expressar e de também fisgar o gozo desse Outro” (Flores et al, 2011Flores, M. R., Beltrami, L., & Souza, A. P. R. de. (2011). O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrbios da Comunicação, 23/2: 143-152.: 144).

As autoras supracitadas (2011) afirmam que essa interação dá início à protoconversação, a qual permite o surgimento de um primeiro mecanismo que se trata da operação de preenchimento do lugar enunciativo. Essa protoconversação se dá através de manifestações verbais ou não, como a produção e a organização corporal (Flores et al 2011Flores, M. R., Beltrami, L., & Souza, A. P. R. de. (2011). O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrbios da Comunicação, 23/2: 143-152.; Jerusalinsky, 2009Jerusalinsky, J. (2009). A criação da criança: letra e gozo nos primórdios do psiquismo. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Pontifícia universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.).

Splendore, Constantini e Silva (2019Splendore, K. M., Constantini, A. C., & Silva, K. C. B. da. (2019). Investigação da prosódia e da linguagem na interação mãe-bebê. Work. Pap. Linguíst., 20(1): 172-188, Florianópolis, jan./jul. https://doi.org/10.5007/1984-8420.2019v20n1p172.
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), em uma pesquisa com 10 díades mãe-bebê, com faixa etária entre 3 e 8 meses, demonstram que as mães concebem seus filhos como parceiros dialógicos, sendo que os mesmos são atraídos pelas propriedades prosódicas específicas da fala dirigida ao bebê, o manhês, dadas por taxa de elocução diminuída e extensão vocal aumentada, indicando que a prosódia materna desempenha uma função linguística desde os primeiros meses de vida.

Cavalcante (1999Cavalcante, M. C. B. (1999). Da voz à língua: a prosódia materna e o deslocamento do sujeito na fala dirigida ao bebê. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. ; 2018Cavalcante, M. C. B. (2018). Contribuições dos estudos gestuais para as pesquisas em aquisição da linguagem. Linguagem & Ensino, Pelotas, 21: 5-35. https://doi.org/10.15210/rle.v21i0.15112.
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) destaca que o cuidador atribui voz ao bebê, permitindo que ele assuma o lugar de interlocutor (sujeito falante), mesmo antes de qualquer intenção comunicativa do bebê. Dessa forma, o cuidador realiza a função de intérprete por meio do uso do manhês.

É importante enfatizar também que, através do manhês e da suposição de sujeito realizada pela mãe, o bebê, que ainda não tem plena capacidade para ocupar seu lugar no diálogo, é representado pela mãe. Dessa forma, ela assume, no início, alternadamente as duas posições: ela interpreta a vocalização do bebê e fala por ele. Assim, é construído um espaço de interação e através da relação de afeto, a mãe facilita à criança a continuidade do diálogo. (Splendore, Constantini e Silva, 2019Splendore, K. M., Constantini, A. C., & Silva, K. C. B. da. (2019). Investigação da prosódia e da linguagem na interação mãe-bebê. Work. Pap. Linguíst., 20(1): 172-188, Florianópolis, jan./jul. https://doi.org/10.5007/1984-8420.2019v20n1p172.
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: 186)

Para Lemos (1986), o cuidador tem papel na significação das ações da criança, através de uma interpretação constante. A autora ainda afirma que essa atividade interpretativa não tem caráter de atribuição de “um estatuto sintático à contribuição ainda primitiva da criança” (Lemos, 1986: 244). Para a autora, é através de processos dialógicos que a interpretação/tradução dos “fragmentos, informes ou restritos a uma função de índices de esquemas interacionais, ganham eficácia cognitiva e comunicativa” (Lemos, 1986: 244).

É importante sublinhar ainda que De Lemos (1995De Lemos, C. T. G. (1995). Língua e discurso na teorização sobre aquisição da linguagem. Letras de Hoje. 30/4: 9-28. ) retoma a concepção saussureana da língua como sistema, o que permite considerar e valorizar, nos estudos aquisionais, a interpretação do adulto. Diante dessa perspectiva, o outro não é mais tomado enquanto individualidade, mas sim é concebido a partir da sua posição subjetiva, a qual lhe possibilita interpretar as produções da criança. O efeito dessa interpretação nunca é previsível, pois se mostra apenas a posteriori, seguindo a premissa psicanalítica inaugurada por Freud (1895/1996Freud, S. Projeto para uma psicologia científica. (1895/1996). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (1: 335-454). Imago. ).

Para Kruel et al (2016Kruel, C. S., Rechia, I. C., Oliveira, L. D., & Souza, A. P. R. de. (2016). Categorias enunciativas na descrição do funcionamento de linguagem de mães e bebês de um a quatro meses. CoDAS, Santa Maria, 28/3: 244-251. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20162015190.
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), essa interpretação feita pelos cuidadores pode assumir duas formas: a interpretação verbal dos gestos do bebê ou a adoção de um comportamento corporal (interpretação não verbal) perante uma demanda do bebê.

Tal interpretação é possível, dado que, como expõem Cavalcante e Brandão (2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.: 55-56), “gesto e fala se encontram integrados numa mesma matriz de produção e gesticulação”, o que implica dizer que “são constitutivos de um único sistema linguístico”. Assim, podemos concluir, como já afirmamos anteriormente, que o processo de aquisição da linguagem é multimodal, uma vez que o gesto se configura como coparticipante nesse processo, isto é, ele é um dos constituintes da matriz da linguagem (Cavalcante e Brandão, 2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.).

Os gestos são entidades linguísticas, como declara McNeill (1995Mcneill, D. (1985). So you think gestures are nonverbal? Psychological Review. 92/3: 350-371.: 354), pois são símbolos equivalentes a várias unidades linguísticas em significado e função. McNeill (1985Mcneill, D. (1985). So you think gestures are nonverbal? Psychological Review , 92/3: 350-371.: 11) ainda afirma que “a ocorrência de gestos ao longo da fala implica que durante o ato de fala dois tipos de pensamento, imagístico e sintático, estão sendo coordenados”, se tornando, assim, partes de um único sistema linguístico.

Cavalcante (2012Cavalcante, M. C. B. (2012). Hologestos: produções linguísticas numa perspectiva multimodal. Revista de Letras (Fortaleza), 31/1/2: 7-14. ) declara que o gesto é importante para o processo de interação entre os interlocutores e ressalta que há um contínuo de movimentos que compõe o que se chama de gestos, o “contínuo de Kendon”, de Adam Kendon (1982). Este contínuo é formado por gesticulação, pantomima, emblemas e Língua de Sinais (Cavalcante e Brandão, 2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.; Lima e Cavalcante, 2015Lima, I. L. B., & Cavalcante, M. B. C. (2015). Desenvolvimento da linguagem na clínica fonoaudiológica em uma perspectiva multimodal. Revista do GEL, 12/2: 89-111.). Tais gestos podem “desempenhar diferentes funções, como representar objetos ou fazer referência a eles, entre outras” (Lima e Cavalcante, 2015Lima, I. L. B., & Cavalcante, M. B. C. (2015). Desenvolvimento da linguagem na clínica fonoaudiológica em uma perspectiva multimodal. Revista do GEL, 12/2: 89-111.: 93). No presente trabalho, a Língua de Sinais não será analisada.

A gesticulação caracteriza-se como os gestos que acompanham o fluxo da fala, envolvendo braços, movimentos de cabeça e pescoço, postura corporal e pernas, possui marcas da comunidade de fala e marcas do estilo individual de cada um; a pantomima são gestos que ´simulam´ ações ou personagens executando ações, é a representação de um ato individual, tem um caráter de narrativa, pois envolve uma sequência de microações; os emblemas ou gestos emblemáticos são aqueles determinados culturalmente (são convencionais) tais como o uso, em nossa cultura, do gesto que envolve a mão fechada e polegar levantado significando aprovação [...] (Cavalcante e Brandão, 2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.: 57).

Este contínuo pode ser estabelecido através de quatro relações entre gesto e fala: “contínuo 1 (relação com a produção de fala); contínuo 2 (relação com as propriedades linguísticas); contínuo 3 (relação com as convenções), contínuo 4 (relação com o caráter semiótico)” (Lima e Cavalcante, 2015Lima, I. L. B., & Cavalcante, M. B. C. (2015). Desenvolvimento da linguagem na clínica fonoaudiológica em uma perspectiva multimodal. Revista do GEL, 12/2: 89-111.: 93), tal como apresentado no quadro 1 abaixo:

Quadro 1
Contínuo de Kendon

Aureliano, Lima e Cavalcante (2021Aureliano, T. M. L., Lima, K. A. de, & Cavalcante, M. C. B. (2021). Apontar e produção vocal em bebês de 9 meses. Claraboia. 15: 7-27. ISSN: 2357-9234.) ressaltam que os gestos pantomímicos são aqueles que simulam ações e possuem um caráter narrativo, sem a obrigatoriedade de apresentar fala na sua execução. A gesticulação se caracteriza por traços, tanto de comunidades linguísticas, quanto de caracteres individuais, os quais envolvem movimentos corporais que acompanham o fluxo contínuo da fala. Os chamados gestos emblemáticos são aqueles que imitam ações e são determinados culturalmente.

Cavalcante e Brandão (2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.), segundo dados encontrados em duas díades mãe-bebê, em uma pesquisa longitudinal, declaram que as primeiras gesticulações se apresentam em torno dos 7 meses dos infantes. A partir dos dados dessa pesquisa, as autoras declaram que a gesticulação se mostra mais evidente entre os 10-12 meses, já os emblemas entre 10-17 meses e a pantomima entre 10-16 meses. Ainda afirmam que o gesto predominante no período entre 7-17 meses é o emblema, principalmente o gesto de apontar. Já a gesticulação aparece em menor proporção devido a sua dependência da fala. Em relação à pantomima, a menor proporção deve-se à dependência de contextos lúdicos e do incentivo materno para sua ocorrência.

Apesar destes gestos surgirem em graus variados nesse período, Lima e Cavalcante (2015Lima, I. L. B., & Cavalcante, M. B. C. (2015). Desenvolvimento da linguagem na clínica fonoaudiológica em uma perspectiva multimodal. Revista do GEL, 12/2: 89-111.: 93-94) afirmam que os dados “revelam uma aquisição, estruturação e uso dessas manifestações de forma organizada e sincronizada, sendo semanticamente e pragmaticamente coexpressivos”. Cavalcante (2012Cavalcante, M. C. B. (2012). Hologestos: produções linguísticas numa perspectiva multimodal. Revista de Letras (Fortaleza), 31/1/2: 7-14. ) afirma que o cuidador tem papel fundamental nesse processo, pois o incentivo e a interpretação da produção gestual do infante permitem sua consolidação.

Cavalcante e Brandão (2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.) ainda afirmam que o desconhecimento da função da gesticulação como participante do processo de aquisição pode ser um empecilho à entrada da criança na linguagem. De acordo com Flores et al (2011Flores, M. R., Beltrami, L., & Souza, A. P. R. de. (2011). O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrbios da Comunicação, 23/2: 143-152.: 145), há um “processo de desapropriação da experiência enunciativa inicial do bebê, que poderá se refletir na emergência posterior de um sintoma na linguagem, que pode ser falar pouco ou não falar”.

Isso ocorre, pois, como declaram Hoogstraten, Souza e Moraes (2018Hoogstraten, A. M. R. J. V., Souza, A. P. R. de, & Moraes, A. B. de. (2018). Indicadores clínicos de referência ao desenvolvimento infantil e sua relação com fatores obstétricos, psicossociais e sociodemográficos. Revista Saúde e Pesquisa, 11/3: 589-601. https://doi.org/10.17765/1983-1870.2018v11n3p589-601.
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: 590):

[...] a linguagem que compartilham é integrante da estruturação do funcionamento psíquico e a constituição do psiquismo é entendida como elemento organizador do desenvolvimento infantil em todas as suas vertentes (física, cognitiva, linguística e psicomotora).

Kupfer et al (2010Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. et al. (2010). Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 13/1: 31-52.) relatam que tais consequências podem ser detectadas precocemente através de indicadores de referência ao desenvolvimento na infância, os quais podem ser avaliados a partir da interação entre cuidador e bebê. Esses autores idealizaram e validaram um instrumento, nomeado como Protocolo IRDI (Indicadores Clínicos de Referência para o Desenvolvimento Infantil), fundamentado na teoria psicanalítica (Kupfer et al, 2010Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. et al. (2010). Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 13/1: 31-52.). Esse instrumento tem o objetivo de monitorar o risco ou problemas de desenvolvimento infantil nos primeiros 18 meses de vida do bebê, por meio de 31 indicadores clínicos (Hoogstraten, Souza e Moraes, 2018Hoogstraten, A. M. R. J. V., Souza, A. P. R. de, & Moraes, A. B. de. (2018). Indicadores clínicos de referência ao desenvolvimento infantil e sua relação com fatores obstétricos, psicossociais e sociodemográficos. Revista Saúde e Pesquisa, 11/3: 589-601. https://doi.org/10.17765/1983-1870.2018v11n3p589-601.
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).

O desenvolvimento humano é concebido como o produto de uma dupla incidência; de um lado, incidem os processos maturativos de ordem neurológica e genética, e de outro lado, os processos de constituição do sujeito psíquico. [...]. Na pesquisa IRDI, privilegiou-se, sem desconsiderar o âmbito da maturação, a articulação entre desenvolvimento e sujeito psíquico. (Kupfer et al, 2010Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. et al. (2010). Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 13/1: 31-52.: 50)

Crestani, Moraes e Souza (2015Crestani, A. H., Moraes, A. B. de, & Souza, A. P. R. de. (2015). Análise da associação entre índices de risco ao desenvolvimento infantil e produção inicial de fala entre 13 e 16 meses. Rev. CEFAC, São Paulo, 17/1: 169-176. https://doi.org/10.1590/1982-021620153514.
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) enfatizam que o instrumento IRDI foi o resultado de um estudo nacional multicêntrico, iniciado em 2000 e conduzido por diversos pesquisadores, com o objetivo de orientar os pediatras e profissionais de puericultura a respeito dos indicadores de desenvolvimento psíquico saudável para bebês de 0 a 18 meses de idade.

Segundo Campana, Lerner e David (2015Campana, N. T. C., Lerner, R., & David, V. F. (2015). CDRI as an Instrument to Evaluate Infants With Developmental Problems Associated With Autism. Paidéia (Ribeirão Preto) [online]. 25/60:85-93. ISSN 0103-863X. https://doi.org/10.1590/1982-43272560201511.
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), o IRDI foi elaborado a partir de quatro eixos fundamentais em torno dos quais se organiza a subjetividade. São eles: Suposição do Sujeito, Estabelecimento de Demanda, Alternância Presença/Ausência e Função Paterna. De acordo com os autores, tais eixos representam funções que são participantes do processo de constituição do sujeito e ocorrem conjuntamente.

O eixo Suposição do Sujeito é caracterizado pela ação do cuidador de antecipação da existência de um sujeito psíquico no bebê que ainda não se encontra realmente constituído, permitindo que a subjetivação do sujeito ocorra. O Estabelecimento de Demanda é a interpretação feita pelo cuidador de uma ação do bebê, como o choro, a agitação motora, a sucção da própria língua. Dessa forma, o cuidador estabelece que tal ação do bebê é um pedido dirigido a ele. Tal atividade é a base para que o infante se insira na linguagem e na relação com o outro. A Alternância Presença/Ausência é caracterizada pela descontinuidade, marcada por essa presença/ausência do cuidador, na qual há um intervalo para uma possível resposta da criança. Tal eixo é responsável pela construção das representações simbólicas que permitem que a criança se torne um sujeito da linguagem. E a Função Paterna (FP) é representada pela separação simbólica entre a díade cuidador-bebê, realizada por um terceiro ou pelo próprio cuidador, responsável por introduzir a ordem e as regras culturais, de forma a permitir que o bebê surja como sujeito singular, diferente do cuidador (Kupfer et al, 2010Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. et al. (2010). Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 13/1: 31-52.).

Esses indicadores, quando presentes, apontam um desenvolvimento positivo, e, na sua ausência, devem ser interpretados como sinais de alerta e não como uma profecia negativa (Hoogstraten, Souza e Moraes, 2018Hoogstraten, A. M. R. J. V., Souza, A. P. R. de, & Moraes, A. B. de. (2018). Indicadores clínicos de referência ao desenvolvimento infantil e sua relação com fatores obstétricos, psicossociais e sociodemográficos. Revista Saúde e Pesquisa, 11/3: 589-601. https://doi.org/10.17765/1983-1870.2018v11n3p589-601.
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). Para Flores e Smeha (2013Flores, M. R., & Smeha, L. N. (2013). Bebês com risco de autismo: o não-olhar do médico. Ágora. Rio de Janeiro, 16/especial: 141-157. ), a detecção precoce desses sinais é importante, pois a intervenção nesse período da vida tem mostrado resultados favoráveis, uma vez que o sujeito ainda está em vias de constituição psíquica e linguística.

Trata-se de propor estratégias de detecção que permitam uma intervenção a tempo, ou seja, em um momento em que as áreas mais nobres do aparelho psíquico ainda estão em construção, antes que os processos psicopatológicos propriamente ditos se instalem. (Kupfer et al, 2010Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. et al. (2010). Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 13/1: 31-52.: 61, grifos dos autores).

O referido protocolo propõe que a interação daqueles que exercem a função parental é fundamental na constituição psíquica do infante, sendo que tal processo influi no desenvolvimento de outros aspectos da criança, como a linguagem (Hoogstraten, Souza e Moraes, 2018Hoogstraten, A. M. R. J. V., Souza, A. P. R. de, & Moraes, A. B. de. (2018). Indicadores clínicos de referência ao desenvolvimento infantil e sua relação com fatores obstétricos, psicossociais e sociodemográficos. Revista Saúde e Pesquisa, 11/3: 589-601. https://doi.org/10.17765/1983-1870.2018v11n3p589-601.
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). Essa perspectiva fundamenta o presente trabalho, o qual objetiva demonstrar que o processo inicial de aquisição da linguagem pode ser observado por outros meios, além da fala/língua, uma vez que o gesto permite uma análise da interação da criança com o outro.

Dessa forma, também é importante observar a relação entre cuidador-bebê, dado que é o adulto cuidador que fornece a língua/fala para que essa interação aconteça. Na clínica fonoaudiológica, a observação dessa interação é uma importante ferramenta, a fim de avaliar a constituição do sujeito, em seus aspectos linguísticos e psíquicos, assim como possíveis impasses.

Mariotto e Pesaro (2018Mariotto, R. M. M., & Pesaro, M. E. (2018). O roteiro IRDI: sobre como incluir a ética da psicanálise nas políticas públicas. Estilos Da Clínica, 23/1: 99-113. https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p99-113.
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) destacam que, recentemente, o protocolo IRDI tem sido um instrumento de referência em estudos fonoaudiológicos. As autoras apontam seu uso adaptado, por exemplo, na construção de indicadores clínicos de risco para a constituição do sujeito da escrita, tomando como base o modelo de organização dos sintomas de linguagem e os quatro eixos para constituição do sujeito da escrita. Há, ainda, sua adaptação para o formato de questionário retrospectivo para pais, visando aprimorar o diagnóstico diferencial dos transtornos de linguagem. Em outros estudos fonoaudiológicos, o IRDI foi utilizado com o objetivo de investigar as relações enunciativas estabelecidas entre pais e crianças com risco ao desenvolvimento infantil, sobretudo em relação os efeitos da presença do risco no processo de aquisição da linguagem. Pesquisas dessa natureza apontam para o potencial preventivo do IRDI, uma vez que se evidenciaram dificuldades precoces na linguagem correlacionadas aos indicadores.

Hoogstraten, Souza e Moraes (2018Hoogstraten, A. M. R. J. V., Souza, A. P. R. de, & Moraes, A. B. de. (2018). Indicadores clínicos de referência ao desenvolvimento infantil e sua relação com fatores obstétricos, psicossociais e sociodemográficos. Revista Saúde e Pesquisa, 11/3: 589-601. https://doi.org/10.17765/1983-1870.2018v11n3p589-601.
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), a partir da utilização do Protocolo IRDI, salientam que as operações que marcam a constituição psíquica se tornam evidentes a partir dos seus efeitos indiretos observados no laço entre o cuidador primordial e o bebê. As autoras ainda apontam que o referido instrumento precisa de uma interpretação singular na clínica, o que aponta a importância de inseri-lo nas equipes de saúde mediante formação cuidadosa dos profissionais acerca da constituição psíquica. As autoras ainda defendem que não basta a inserção dos instrumentos no sistema de saúde, é preciso criar equipes de detecção e intervenção precoce que sustentem as equipes da atenção primária, realizando, quando necessário, um trabalho em tempo como atestam estudos importantes de sucesso com intervenções precoces.

No que concerne a estudos sobre a multimodalidade da linguagem, Pereira e Maldonade (2020Pereira, K. G., & Maldonade, I. R. (2020). Aspectos multimodais relacionados à posição do fonoaudiólogo no processo terapêutico. International Journal of Development Research, 10/3: 34292-34299. ISSN: 2230-9926.) sublinham que, no Brasil, há uma produção significativa de trabalhos. Contudo, ainda são poucos os que tratam do tema nas intervenções fonoaudiológicas.

Ressalta-se que a divulgação desse conhecimento é extremamente importante, visto que, atualmente, as crianças apenas chegam à clínica fonoaudiológica em um momento posterior, quando a fala não surge ou quando não há interação social. Uma intervenção precoce pode trazer melhores resultados terapêuticos, pois permite a atuação em um período de constituição do sujeito e de intensa neuroplasticidade.

Além disso, defende-se que a intervenção terapêutica fonoaudiológica deva privilegiar o trabalho com os elementos linguísticos de forma global, sem etapas previamente estabelecidas, pois as modalidades linguísticas fazem parte de um todo. A partir dessa perspectiva, a atuação clínica deve se configurar a partir de uma prática dialógica que preconiza a inserção da criança em uma realidade linguística.

A partir dos pressupostos teóricos analisados ao longo desta introdução, o presente trabalho objetiva discutir os efeitos dos gestos de bebês com histórico de internação neonatal e da atividade interpretativa de cuidadores3 3 Neste trabalho, privilegia-se o uso do termo cuidador, em referência ao(s) adulto(s) responsável(is) pelos cuidados essenciais com um bebê. no processo de aquisição da linguagem, em sua intrínseca relação com a constituição psíquica.

Método

Tipo de Estudo

Estudo exploratório, qualitativo e retrospectivo, realizado a partir de uma amostra de conveniência de uma pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP), com o número do parecer 1.846.495.

O trabalho foi desenvolvido no Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel O. S. Porto”, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (CEPRE/FCM/UNICAMP), e faz parte de um estudo maior denominado “Sinais de risco e sofrimento psíquico na primeira infância: identificação e estratégias de intervenção”

A amostra é composta por 4 (quatro) díades cuidador-bebê, em dois momentos distintos, com uma diferença de seis meses entre eles. Os bebês têm histórico de internação em Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e acompanhamento em um Ambulatório de Monitoramento Auditivo e de Desenvolvimento da Linguagem. Esses bebês eram acompanhados longitudinalmente no referido Ambulatório, pois fazem parte de uma categoria de crianças que podem apresentar perda auditiva com início tardio.

Destaca-se que uma internação por período maior de cinco dias em UTI configura-se como critério para acompanhamento auditivo, uma vez que é indicador de risco para perda auditiva. De acordo com o Joint Committee on Infant Hearing (2019Joint Committee On Infant Hearing. (2019). Year 2019 Position Statement: Principles and Guidelines for Early Hearing Detection and Intervention Programs. Journal of Early Hearing Detection and Intervention. 4/1: 1-128. https://doi.org/10.26077/bzva-n144.
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), os principais riscos são: permanência em Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (UTIN) por mais de 48 horas; peso ao nascer abaixo de 1500g ou 2500g; hiperbilirrubinemia; prematuridade e baixo peso; consanguinidade; alcoolismo materno e ventilação mecânica por período mínimo de cinco dias.

Coleta de dados

Os encontros foram videogravados pela pesquisadora e ocorreram em uma sala de atendimento, nas dependências do CEPRE/UNICAMP, após o acompanhamento regular no Ambulatório de Monitoramento Auditivo e de Desenvolvimento da Linguagem.

No primeiro encontro, foi realizada uma entrevista semiestruturada, em que o cuidador foi questionado em relação às suas percepções sobre a interação com o bebê, desenvolvimento global, linguagem e rotina, a partir de relatos a respeito dos seguintes aspectos: identificação das reações dos bebês aos sons; reconhecimento da diferenciação entre a relação do bebê com os cuidadores principais e com outras pessoas fora do círculo familiar; iniciativa comunicativa dos cuidadores; identificação das preferências dos bebês e interpretação dos seus estados emocionais.

No segundo encontro, também videogravado, os dados da entrevista foram atualizados. É importante sublinhar que as entrevistas foram realizadas no contexto de um diálogo, com questões abertas, com o objetivo de escutar a narrativa dos pais.

Nos dois encontros, após a entrevista, os cuidadores foram convidados a brincar livremente com seus filhos, de 5 a 10 minutos. Foram disponibilizados brinquedos diversos, devidamente higienizados, em uma sala com tapete em Etil Vinil Acetato (EVA), bebê-conforto e um conjunto com uma mesa e duas cadeiras com dimensões para crianças. Além das entrevistas e dos vídeos, foram utilizadas para a análise as anotações da pesquisadora a respeito da interação entre os participantes.

Participantes

Os bebês participantes da presente pesquisa foram selecionados a partir dos seguintes critérios: histórico de internação neonatal; acompanhamento regular no Ambulatório de Monitoramento Auditivo e de Desenvolvimento da Linguagem; idade, no primeiro encontro, entre 0 e 17 meses e comparecimento nos dois encontros previstos. Dessa forma, foram incluídas quatro díades cuidador-bebê, que compõem a amostra analisada.

No quadro abaixo, são apresentadas as quatro díades, a partir de informações relativas à idade, período de internação neonatal e também sobre o acompanhamento no Ambulatório de Monitoramento Auditivo e de Desenvolvimento da Linguagem. Todos esses dados foram retirados dos prontuários dos participantes no CEPRE (FCM/UNICAMP). Os nomes são fictícios.

É importante destacar que, nos casos em que os bebês nasceram prematuros, indica-se a idade corrigida, ou seja, a idade ajustada em comparação ao tempo de gestação de um bebê nascido a termo (40 semanas).

Quadro 2
Apresentação das díades

Forma de análise dos dados

Em relação às videogravações, após a seleção das cenas pertinentes ao estudo, foram realizadas as transcrições manuais. Foram selecionadas as cenas em que se observaram os gestos do bebê, a interação entre a díade e a atividade interpretativa do cuidador no contexto comunicativo. As informações coletadas nas entrevistas semiestruturadas e nos prontuários do Ambulatório de Monitoramento Auditivo e de Desenvolvimento da Linguagem do CEPRE (FCM/UNICAMP) foram sistematizadas e cotejadas com as cenas das videogravações.

As cenas foram analisadas de acordo com a literatura levantada na introdução deste trabalho, principalmente em relação a dois eixos teóricos, quais sejam: matriz multimodal da linguagem, a qual engloba os gestos como parte do processo aquisicional, e a concepção psicanalítica sobre a constituição psíquica pela e na linguagem, através de uma perspectiva dialógica de interação.

Resultados e discussão

Na análise realizada, a partir das entrevistas, videogravações, dados de prontuário, anotações da pesquisadora e relato dos cuidadores, foi possível verificar a interação efetiva entre cuidador e bebê em todas as díades e evolução no processo de aquisição de linguagem, no segundo encontro. Também se constatou que todos os cuidadores utilizaram o manhês na fala dirigida aos bebês e que estes responderam, por meio de contato visual, gestos, sorriso e balbucio. Esses dados indicam que, apesar da condição de internação neonatal, o processo de constituição psíquica e de aquisição de linguagem apresentou-se dentro dos parâmetros esperados em relação à faixa etária.

A seguir, foram elencados dois tópicos para sistematizar a discussão.

1. Percepção dos cuidadores

1.1. Sobre o entendimento acerca do desenvolvimento global

No primeiro encontro, quando perguntados sobre o desenvolvimento global do bebê, os cuidadores, de modo geral, mostraram-se preocupados prioritariamente com o desenvolvimento motor e cognitivo da criança, mas não citaram a linguagem. Dessa maneira, as questões sobre desenvolvimento foram, inicialmente, sempre respondidas com elementos relativos à motricidade, como a mãe de Alan que afirma que o pai da criança se preocupa com o desenvolvimento motor do filho e que ela e o marido o estimulam em relação a isso. Já a mãe de Paulo relata que, apesar da baixa estatura do filho, ele está bem e avalia o desenvolvimento positivamente, sem especificar a qual aspecto do desenvolvimento se refere. A mãe de Diogo afirma “Não deu trabalho nenhum, ele é normal”, e o pai de Caio “Ele é bem inteligente por ser prematuro, desenvolvimento positivo”.

Já em relação ao segundo encontro, dois cuidadores demonstram uma atenção mais direcionada à cognição. A mãe de Alan afirma que o filho reconhece as cores e tem a habilidade de elencar alguns números em sequência. Ela relata também que o filho já identifica algumas brincadeiras e tem iniciativa de se relacionar com outras crianças da mesma faixa etária, quando está na creche. Já a mãe de Paulo declara que o filho compreende frases simples e diz que “ele é muito inteligente”. Quanto à mãe do Diogo e o pai do Caio, eles demonstraram uma atenção mais explícita ao desenvolvimento motor, visto que as duas crianças fazem acompanhamento em fisioterapia. A mãe do Diogo refere que o filho está engatinhando e consegue dar alguns passos. O pai do Caio ressalta que no primeiro encontro com a pesquisadora, seis meses antes, o filho ainda não andava, mas que no segundo encontro ele já estava andando.

Destaca-se que, espontaneamente, os cuidadores privilegiam os aspectos motores e cognitivos ao analisarem o desenvolvimento global da criança.

1.2. Sobre o entendimento dos cuidadores acerca da concepção de linguagem

Em relação ao primeiro encontro, os comentários específicos sobre a linguagem foram feitos, de forma unânime, em relação à fala e a partir da comparação com outras crianças do círculo social e familiar dos cuidadores, como no caso da mãe de Paulo: “Ele fala mais que a prima que já tem dois anos”.

Ao serem questionados diretamente, os cuidadores percebem que o bebê responde e interage através de olhar, gestos e balbucios, porém, não relacionam espontaneamente tais elementos à linguagem. Novamente, observa-se que a linguagem é entendida pelos cuidadores como sinônimo de fala, isto é, em sua modalidade de linguagem oral.

Já no segundo encontro, em período posterior ao primeiro ano de vida dos bebês, os cuidadores demonstram estar mais atentos às questões da linguagem, sobretudo em relação ao surgimento ou ausência das primeiras palavras. Destaca-se novamente que os cuidadores associam, primeiramente, linguagem à fala, desconsiderando outros aspectos, como as vocalizações, o balbucio e a gesticulação. A mãe de Paulo, por exemplo, afirma “Ele já monta frases”. E o pai de Caio: “Da última vez ele não falava nada, não andava e agora está”. Ou ainda a mãe de Alan que cita a produção frasal do filho “Ele bem desenvolvido. Faz frase com três palavras”.

Entretanto, após direcionamento da pesquisadora, nas duas entrevistas semiestruturadas, os cuidadores se referem a outros aspectos da linguagem, além da fala, e demonstram estar mais atentos à intenção comunicativa. A mãe de Diogo citou o balbucio e a interação: “Chama mãe, balbucia bastante [...] e interage com outras crianças”. O pai de Caio pede para o filho interagir com a pesquisadora, mandando um beijo para ela. A mãe de Alan relata que o filho tem iniciativa de interação com os pares, já que vai até eles e participa das brincadeiras. A mãe de Paulo relata que ao conversar com o filho, mesmo que não responda com palavras, ele utiliza outros recursos: “Eu falo cadê a pepeta? Vai lá, pega a pepeta. Aí ele abaixa, ele procura, ou lembra onde deixou e vai lá e pega”. Em outro momento da entrevista, a mãe incentiva o filho a falar parabéns através de um gesto: “Como que fala o parabéns? Bate palminha!”.

Interessante sublinhar que o processo de entrevista semiestruturada, em dois momentos, cumpriu o papel de sensibilizar os cuidadores a respeito da importância dos gestos, além da fala, no processo de aquisição da linguagem. Porém, ressalta-se que os cuidadores ainda priorizaram a fala como objeto central da linguagem.

Esses resultados indicam a necessidade de maior divulgação científica acessível ao público leigo no que concerne à multimodalidade da linguagem. Compreender a linguagem como sinônimo de fala é extremamente reducionista e impede que os cuidadores estejam atentos a outros elementos, muito anteriores ao surgimento das primeiras palavras.

2. A matriz multimodal da linguagem e os Indicadores de Referência ao Desenvolvimento Infantil (IRDI)

A análise da produção gestual do bebê, incluindo a gesticulação, pantomima e emblema, foi realizada a partir de uma perspectiva de contexto dialógico, na qual a função do cuidador como intérprete se manifesta através da interlocução. Os indicadores de referência ao desenvolvimento infantil (IRDI) auxiliaram nessa análise, pois evidenciam a intrínseca relação entre o processo de aquisição de linguagem e a constituição psíquica. Seguem abaixo algumas cenas, analisadas a partir desta perspectiva:

Quadro 3
Análise das cenas

Na cena 1, observa-se que a fala da mãe dirigida ao bebê, o manhês, captura a atenção do filho, facilitando a interação. Além disso, a mãe atribui significado à ação de Paulo, afirmando que ele apreciou o objeto devido a sua ação de trazê-lo junto ao corpo e balbuciar de forma concomitante. Como afirma Lemos (1986), essa atividade interpretativa possibilita que o bebê faça parte da dinâmica de interação. Ou seja, o cuidador permite que o lugar discursivo seja atribuído ao bebê. Pode-se observar que tal atividade se dá em um processo dialógico, no qual o cuidador vai atribuindo sentido às gesticulações e balbucios. Pode-se verificar que a gesticulação do bebê, associada ao balbucio, fornece o contexto para a mãe realizar a interpretação e permite que o lugar enunciativo do bebê seja preenchido. Essa mãe supõe um sujeito em seu filho, que ainda está em vias de constituição psíquica, ao lhe atribuir preferências. De acordo com a teorização psicanalítica, isso é essencial para o processo de subjetivação (Kupfer et al, 2010Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. et al. (2010). Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 13/1: 31-52.; Hoogstraten, Souza e Moraes, 2018Hoogstraten, A. M. R. J. V., Souza, A. P. R. de, & Moraes, A. B. de. (2018). Indicadores clínicos de referência ao desenvolvimento infantil e sua relação com fatores obstétricos, psicossociais e sociodemográficos. Revista Saúde e Pesquisa, 11/3: 589-601. https://doi.org/10.17765/1983-1870.2018v11n3p589-601.
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).

Além disso, observa-se também que apesar do gesto necessitar do fluxo de fala e a produção oral de Paulo ser restrita a balbucios, estes são acompanhados por movimentos corporais. Isto demonstra que, embora a fala ainda não seja a principal modalidade comunicativa de Paulo, ele já está inserido na linguagem, através de gestos, olhares e expressões faciais, os quais compõem a matriz multimodal da linguagem.

Dessa forma, verifica-se que tal contexto comunicativo é permeado por uma realidade linguística a qual permite a interação entre a díade cuidador-bebê e possibilita ao bebê constituir-se como sujeito da interlocução. É importante sublinhar que esses elementos se apresentam em período que precede a fala, o que pode auxiliar os profissionais que trabalham com a primeira infância no acompanhamento e avaliação do processo de aquisição de linguagem e constituição psíquica, muito antes da emergência das primeiras palavras.

Já na cena 2, pode-se observar que a fala já aparece no contexto comunicativo e marca sua presença de forma mais significativa do que na primeira gravação do infante, analisada na cena número um. Porém, observa-se que mesmo antes de utilizar a fala como recurso comunicativo, ele utiliza um gesto emblemático, o ato de estender o braço que segura a bolacha em direção à mãe, o que em si já demonstra a intenção comunicativa de Paulo. Esse gesto demonstra sua intenção e gera uma resposta corporal da mãe, qual seja, estender o braço e pegar a bolacha da mão da criança, que, em seguida, retoma a sua atividade anterior.

Essa cena ainda permite verificar que, além de a gesticulação se manifestar, ela vem acompanhada do gesto emblemático, tal como demonstram Cavalcante e Brandão (2012Cavalcante, M. C. B., & Brandão, L. W. P. (2012). Gesticulação e Fluência: contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), 1: 55-66.), ao afirmarem que as produções infantis são embasadas nos emblemas.

Em acréscimo, essa cena corrobora a compreensão de que a ocorrência de um gesto não impede a emergência de outro, pois eles se complementam e ancoram a interlocução entre os pares, o que justifica a teorização relativa à matriz multimodal da linguagem.

Sob a perspectiva dos indicadores de referência ao desenvolvimento infantil, pode-se observar que a mãe, a partir do movimento corporal e da produção oral do filho, interpreta essas manifestações como sendo dirigidas a ela, o que determina o estabelecimento da demanda (Kupfer et al, 2010Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. et al. (2010). Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 13/1: 31-52.). Dessa forma, as ações do bebê vão se consolidando como integrantes da linguagem, o que auxilia sua subjetivação.

A cena 3 permite verificar a importância da ação materna de incentivo e consolidação da ação - o gesto pantomímico de bater palmas -, além de demonstrar a importância de contextos lúdicos para a sua ocorrência.

Além disso, sob a perspectiva dos indicadores de referência ao desenvolvimento infantil, observa-se que essa mãe estabelece uma suposição de sujeito, interpretando que o filho não queria mais desenhar, além de introduzir uma nova brincadeira, a partir de um repertório musical socialmente compartilhado. É interessante também destacar a alternância presença-ausência (Kupfer et al, 2010Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., & Bernardino, L. M. F. et al. (2010). Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 13/1: 31-52.; Campana, Lerner e David, 2013Campana, N. T. C., Lerner, R., & David, V. F. (2015). CDRI as an Instrument to Evaluate Infants With Developmental Problems Associated With Autism. Paidéia (Ribeirão Preto) [online]. 25/60:85-93. ISSN 0103-863X. https://doi.org/10.1590/1982-43272560201511.
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), pois a mãe começa a cantar uma música e, diante da reação do filho, que lhe dirige o olhar, solta suas mãos e aguarda. Nesse intervalo, a criança, sozinha, começa a bater palmas. O referido indicador - a alternância presença-ausência - é imprescindível para a constituição psíquica, visto que auxilia a criança a separar-se simbolicamente de seus cuidadores e sustenta suas produções autônomas.

Ao compararmos as cenas 3 e 4, com a mesma criança, em um intervalo de 6 meses, observa-se que a necessidade de incentivo materno é menos intensa no segundo encontro, o que demonstra uma efetiva evolução da criança no processo de aquisição de linguagem. Novamente, observa-se a importância da alternância presença-ausência, pois justamente a produção do gesto da criança aparece após o intervalo propiciado pela mãe.

Em todas as cenas, pode-se observar a interação como objeto fundamental da interlocução. Dessa forma, o cuidador sempre tem a função de significador dos gestos e balbucios do infante. O bebê é colocado em posição de interlocutor, uma vez que o cuidador o supõe como sujeito da interação.

Considerações finais

As cenas analisadas no presente trabalho permitem a reflexão a respeito do processo de aquisição da linguagem que, tradicionalmente, privilegia a emergência das primeiras palavras e seu desenvolvimento na infância. Porém, como vimos neste estudo, a linguagem é permeada por diversos aspectos que se coadunam, a partir da interação entre os pares comunicativos, de forma a permitir que a criança seja colocada em lugar de enunciação e se constitua como sujeito psíquico e linguístico, em uma perspectiva efetivamente dialógica e multimodal.

Ressalta-se a necessidade de um olhar ampliado para a linguagem, tanto no âmbito da clínica terapêutica fonoaudiológica, quanto em relação aos profissionais que atuam com a primeira infância, sobretudo nos campos da Saúde e da Educação. É indispensável maior divulgação científica e formação continuada de equipes multiprofissionais no que concerne ao impacto da atenção a outros aspectos que compõem a linguagem, além da fala, e que podem auxiliar no acompanhamento e avaliação do desenvolvimento infantil, como os gestos e a interação entre cuidadores e bebês.

A pesquisa que originou o presente estudo, de cunho exploratório, indica que a atenção à produção gestual, à interação cuidador-bebê e à função imprescindível do cuidador como significador das produções infantis auxiliam o acompanhamento e a avaliação do processo de aquisição de linguagem, em sua intrínseca relação com a constituição psíquica.

Destaca-se que há escassez de estudos a respeito do processo inicial de aquisição de linguagem em bebês com histórico de internação neonatal, o que justifica mais estudos sobre essa temática. Novas pesquisas longitudinais que incluam bebês que tiveram intercorrências neonatais devem ser estimuladas, sobretudo com o progressivo aumento das possibilidades de sobrevida de recém-nascidos de alto risco.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - São Paulo - Brasil (FAPESP) - processos 16/21630-0 e 17/13697-0.

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    Neste trabalho, privilegia-se o uso do termo cuidador, em referência ao(s) adulto(s) responsável(is) pelos cuidados essenciais com um bebê.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2019
  • Aceito
    11 Maio 2022
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