RESUMO:
O artigo trata da práxis psicanalítica no contexto educacional. No modelo da "pesquisa-intervenção", as autoras ofereceram espaços de conversação a professores(as) de uma escola da rede pública, realizando cerca de dez encontros. Procurou-se incentivar a associação coletivizada entre pares, no intuito de criar condições de se falar sobre o mal-estar no cotidiano escolar, trazido por eles para discussão e relacionado, sobretudo, aos afetos, à violência e às querelas da autoridade. Contextualizando as questões políticas que caracterizam as relações de poder dentro da escola, analisam-se algumas categorias recorrentes na fala dos(as) professores(as), de modo a levantar e elucidar pontos críticos relativos à ação e à reflexão dos educadores a respeito da violência "de que" e/ou "a que" são sujeitos nos dias atuais. A partir da análise desse material, o artigo aborda a questão do desejo no espaço escolar diante dos imperativos sociais e institucionais, relacionando-os à violência enquanto sintoma social para além dos muros da escola.
Palavras-chave: Psicanálise; Educação; Conversação; Violência; Escolas.
ABSTRACT:
The article deals with the psychoanalytic practice in the educational context. In the model of "intervention research", the authors offered dialogue spaces to teachers in a public school, performing about 10 meetings. It was sought to encourage collectivized association among peers in order to elaborate the malaise in everyday school life, brought by them for discussion especially related to emotions, violence and quarrels of authority. Contextualizing the political issues that characterize the relations of power within the school, some categories were analyzed in the speech of the teachers to lift and to elucidate the action points and critical reflection of educators about the violence "that they are submitted" and "are the subject" nowadays. From the analysis of this material, the article addresses the issue of desire at school in front of social and institutional imperatives, relating them to violence as a social symptom beyond the school walls.
Keywords: Psychoanalysis; Education; Conversation; Violence; Schools.
INTRODUÇÃO
O presente texto é fruto de um trabalho híbrido, de pesquisa e extensão, realizado com um grupo de professores do Ensino Médio e Fundamental da rede pública, de uma escola situada numa cidade de grande porte do estado do Rio de Janeiro. O cenário dessa escola reflete uma série de precariedades infraestruturais e socioeconômicas, ao atender uma população cuja renda apresenta grande disparidade em relação aos moradores e às pessoas que circulam no entorno da escola. A escuta e a palavra foram o motor do trabalho, gerando nas duas psicanalistas coordenadoras do grupo a tensão peculiar a uma "pesquisa-intervenção" (COSTA, 2002; CASTRO; BESSET, 2008) dentro da escola, sobretudo por termos partido de uma proposta, a princípio unilateral, de "escutar" os professores como uma aposta de transformação. Houve dificuldades para se iniciar os encontros, mas a série de tentativas de nossa parte imprimia a intensidade do nosso desejo de produzir mudanças, na medida em que nos oferecemos como receptáculo da fala sobre o impossível de lecionar em condições sabidamente severas. O trabalho foi estruturado a partir de temas estabelecidos pela demanda dos próprios docentes, que supostamente viram em nossa proposta uma chance para lidar melhor com as situações complexas em que viviam, sobretudo, as dificuldades de relacionamento na escola, os problemas de comportamento e as salientes diferenças entre alunos e entre docentes. Em alguma medida, almejávamos tratar, inclusive, das inúmeras formas em que a violência aparecia naquela instituição escolar. Ao dar a voz aos professores, buscamos o deslizamento de sentidos e a possibilidade de novos destinos para o mal-estar do qual se queixava o corpo docente.
A "conversação" é um dispositivo introduzido por Miller (2003) visando promover espaços de conversa e debate em torno de situações de impasse vividas pelos que dela participam. Segundo Miller (2003) a associação livre pode ser coletivizada na medida em que não somos donos dos significantes, o que importa é que um significante "chame" outro significante. Assim, vários sujeitos podem participar, produzindo uma "associação livre coletivizada", da qual se espera um efeito. A proposta da conversação é permitir que cada sujeito envolvido na situação possa tomar a palavra e agir, inspirado pelos significantes dos outros, saindo de uma posição passiva, repetitiva e paralisante. A experiência da "conversação" em escolas (LACADÉE, 2000; GAVARINI, 2009; SANTIAGO, 2008, VASCONCELOS, 2010) tem revelado que a oferta de um espaço onde se pode falar produz a circulação da palavra e, com isso, a possibilidade de desnaturalização de preconceitos, de flexibilização de identificações, permitindo uma transformação do mal-estar paralisante em saídas produtivas.
Nesse sentido, priorizou-se o recurso à palavra a fim de dialetizar e fazer deslizar significantes, encadeando novos prumos para se dizer o ensino e o encontro com o outro. Ao incentivarmos a fala associativa, sem requisitos quaisquer, tentávamos deslindar o emaranhado novelo das tramas institucionais, dada a sabida precariedade das práticas e dos interditos ao se referir a uma instituição historicamente disciplinar. Alguns encontros foram extremamente marcantes, sobretudo pelo inusitado que o campo trazia: tensão em ser julgado, medo de represálias, críticas à organização do poder institucional, mas também, muitas reflexões sobre as estratégias particulares do fazer docente.
Nossos pressupostos teóricos, por sua vez, basearam-se em conceitos psicanalíticos da teoria freudiana e em contribuições de psicanalistas contemporâneos para pensar a educação e a análise do social como Kupfer (2009), Lajonquière (2010) e Lebrun (2008), entre outros. Por se tratar de um trabalho permeado pela lógica institucional, foi também necessário recorrer às ideias de Foucault (1999, 2000), Bourdieu (2000) e Žižek (1999, 2008), na medida em que esses autores ampliam o escopo clínico, contextualizando as questões políticas que caracterizam as relações de poder dentro da escola. Outro aspecto a se destacar é o fato de as coordenadoras dos encontros serem, além de psicanalistas, também professoras, o que nos colocou duplamente diante do risco da contratransferência. Este texto se faz, portanto, a partir da elaboração da experiência vivida pelas coordenadoras, algo fundamental para a análise do material de campo nesta pesquisa-intervenção (COSTA, 2002; CASTRO, 2008).
Um olhar sobre a violência na escola ou algumas faces da violência simbólica
Os encontros com o grupo de professores tinham um pretexto de "formação continuada", porém, o que mais nos interessava, desde o início, era a troca de ideias e o simples intuito de promover a circulação da palavra. Assim, iniciamos o trabalho com um quê de "grupo operativo" (PICHON-RIVIÈRE, 1983), de modo que pudéssemos atuar de acordo com nossa proposta e, também, atender minimamente à "encomenda" da direção, que a princípio só nos permitiu "entrar" na escola caso pudéssemos atuar no âmbito da formação continuada. Ora, inicialmente, quando encaminhamos nosso projeto à escola e fizemos nossa primeira reunião com a direção, recebemos uma negativa, uma recusa de nosso trabalho, sob a justificativa de que "os professores não queriam ser ouvidos". Revisamos então nosso projeto, de modo a conseguir adequá-lo minimamente à demanda da escola, e consolidamos nossa proposta de fala e escuta, sem dúvida, com algum nível de concessão inicial.
Os encontros com os professores se davam uma vez por mês, uma hora antes do início da reunião pedagógica semanal. Eles eram avisados dessa atividade, de forma que só participavam aqueles que desejassem. O grupo com o qual trabalhamos era composto em média por 15 professores. Fizemos cerca de dez encontros no total. As conversações costumavam demorar um pouco para iniciar, havendo um preâmbulo em que ficávamos na sala de professores, aguardando algum quórum mínimo para começar a atividade.
Se, de início, o silêncio das coordenadoras provocou a fala de diversos professores, ao longo dos encontros, acabamos também falando, ao trazer algumas ideias da psicanálise e das ciências sociais, de modo a relativizar pontos de vista já incrustados, preconcebidos, sobre a questão da agressividade humana e da violência nas relações entre alunos e professores na escola. Nesse sentido, nossa atuação algumas vezes corria o risco de resvalar para o terreno pedagógico, informativo, algo que buscávamos incessantemente evitar, apesar de ser justamente esse o pedido da direção e, mesmo, de alguns professores angustiados pela expectativa de fórmulas, modelos, técnicas e respostas imediatas que dessem cabo de todo mal-estar na educação nos tempos presentes.
Por outro lado, depois que as falas se encadeavam, era interessante perceber como os docentes iam chegando e se apropriando daquele espaço privilegiado da palavra, um espaço aberto e coletivo, por vezes sendo necessário encerrar a conversa com algum grau de "corte", de modo a permitir um fechamento do encontro e a nossa saída da sala. Em alguns momentos, também recorremos à interrupção precisa em falas "chave", com inspiração no tempo lógico lacaniano, visando marcar certas intervenções dos próprios professores e, mais ainda, estabelecer um ponto de limite para nossa própria escuta. Parecia haver muito a ser dito pelos professores, porém, algo permanecia sempre "não dito", não apenas pelo impossível estrutural da linguagem, mas pelo imperativo de um segredo ou de um medo que não cessava de se expressar nas entrelinhas de cada narrativa. Alguns professores tergiversavam longamente, compondo um enigma de que só pudemos nos apartar após algum distanciamento, como descreveremos a seguir.
O clima institucional que se colocava diante de nós era, pois, uma ilustração da "violência objetiva" (ŽIŽEK, 2008) fundada no sistema econômico de nossa sociedade, dadas as diferenças, por vezes extremas, entre o nível socioeconômico dos educadores e dos alunos. Ora, essa violência não se expressa somente por meio de uma via direta, física, mas se apresenta disseminada nas ações e designações sociais estereotipadas, aparecendo por uma via simbólica (BOURDIEU, 2000) tanto na diferença de classes, quanto nas relações de poder, mas também nos gestos inconscientes de cada sujeito atuante no espaço escolar. Assim, o trabalho coordenado por duas psicanalistas e pesquisadoras, e acompanhado por duas bolsistas de iniciação científica, uma de cada vez, visava promover um debate em torno de problemas e desafios do cotidiano escolar, questionando tudo o que pareceria dado e imutável nas condições de existência da escola e na práxis educacional, esse microcosmo tão representativo de uma sociedade partida. Contudo, margeávamos o impossível da política institucional, uma política de favorecimento, de contratos precários e de indicações por afinidade e/ou interesse. De certo modo, também estávamos marcadas pelo ímpeto de nosso desejo em atuar ali, portando o fantasma de pesquisadoras, doutoras, de que buscávamos nos livrar e desfazer diante dos professores, pois nossa motivação era de outra ordem. Nosso trabalho advinha da espontaneidade de certo fazer clínico-institucional e da curiosidade de saber um pouco mais sobre o cotidiano docente narrado por eles próprios.
Assim, as reuniões funcionaram como uma atividade de extensão pautada na interação com os professores, almejando enriquecer as análises produzidas no âmbito acadêmico, mas também buscando produzir transformações subjetivas a partir da potência do encontro. Foi possível perceber nitidamente como certas formas de poder simbólico têm efeitos no imaginário do professorado, muitas vezes, provocando uma sensação de impotência e de "menos valia", expressa em suas falas. A violência, fruto do poder simbólico, foi revisitada por intermédio do sofrimento em relação à exigência midiática de ser um "professor-apresentador", uma espécie de "animador", passando pelos imperativos do consumo e da excelência, de forma que inúmeras relações de poder foram aparecendo nas entrelinhas dos discursos dos professores. Com isso, as relações tensas e violentas iminentes e "atuadas" surgiram como um problema recorrente, apresentado de diversos modos, denotando a violência simbólica, naturalizada em relações humanas tão desiguais, presentes na sociedade.
Uma das questões que chamaram atenção nos encontros com os professores dessa escola pública foi a recorrente queixa da falta de autoridade, o desejo de ser reconhecidos e a forma desqualificada como diziam ser tratados: agredidos por alunos e desrespeitados pela própria micropolítica da instituição. Muitas foram as situações de embate nos encontros. Posições contrárias apareciam entre os professores. Nas falas trazidas por eles, alguns queriam derrubar os muros da escola, outros queriam o retorno da palmatória perdida. Ao mesmo tempo em que se dava vazão ao queixume do corpo docente, em depoimentos melancólicos de que nada era possível no presente, de que sentiam saudades do tempo da palmatória, de quando o professor falava e os alunos tremiam, também surgiam falas criativas, ou ao menos, investidas da prática de sala de aula, usando estratégias para reconfigurar um espaço disciplinar obsoleto em um ensino construtivo. Então, nosso trabalho buscava fazer aparecer essas lacunas, para que se pudesse ouvir tais movimentos recônditos no inconsciente institucional, como nos inspirava a análise institucional de Eugène Enriquez (1991) e René Kaës (1991). Nesse sentido, tomemos definição de Cabassut (2009, p. 29), no livro Petite grammaire lacanienne du collectif institutionnel, a respeito da noção de Estabelecimento{Établissement;
(...) tout établissement fonctionne grâce à l'appareil linguistique et au partage de la langue: clarté (du code utilisé), lisibilité (des procédures), matérialité (de l'établissement). L'on comprend alors que l'établissement définit et traite de l'architecture visible de la structure1.
Em contraposição a tudo que podemos compreender como estabelecido num dado "Estabelecimento", Cabassut (2009) aponta uma diferença em relação ao conceito de Instituição {Institution};
L'existence de deux termes distincts (Institution/Établissement), nous oblige à nous interroger sur la réalité spécifique qu'ils révèlent et sur l'incidence dans nos pratiques respectives des représentations (et donc des actions) qui y sont immanquablement rattachées. Freud nous instruit d'une telle nécessité lorsqu'il écrit que " l'exemple est la chose même ". Autrement dit, la psychanalyse, tant cliniquement que conceptuellement, nous démontre l'importance du signifiant dans la désignation de la chose, l'effet de sens, de non-sens, voire de contre sens, qui y est articulé. (...) il transparaît la dimension d'une construction, active, propre à un désir - singulier ou collectif, voire à la nécessité humaine d'instituer (...), que le détour par les actes de décision et d'instruction souligne. (CABASSUT, 2009, p. 13-14).2
De algum modo, nosso trabalho nos permite dizer que L'établi se ment {"estabelecimento se mente"}, ou seja, que o estabelecido é também uma "mentira", ou ainda, um suporte precário para "a coisa". Procurávamos, portanto, dar vazão às falas, instituintes, no sentido de transformar os sentidos que por ventura apareciam estáveis, estabelecidos, em outras possibilidades de dizer e em novos enlaçamentos institucionais.
Em alguns momentos, fomos chamadas em particular, por alguns professores, para denunciar, no privado, o fato de que estavam de certo modo amordaçados, com medo de falar, por conta dos possíveis olheiros no grupo. A direção e a coordenação pedagógica, praticamente, nunca participaram dos encontros, mas estavam constantemente ali presentes, em forma de "fantasmas". Nós, de nossa parte, ficávamos na corda bamba entre fazer falar e estar lá para ouvir, entre suportar o silêncio e o ataque dos professores que, de alguma maneira, demonstravam em seus olhares certa desconfiança a nosso respeito. Paradoxalmente, escutávamos também que era positiva, querida, nossa presença naquele espaço, pois a tensão e a vazão de alguns "não ditos" que provocávamos, de certo modo, gerava alguma diferença, alguma movimentação naquilo que já estava estabelecido, instituído e cristalizado na mordaça institucional.
Entre os diversos momentos de explosão de falas, afetos, ficamos marcadas e/ou tocadas por algumas situações em especial. A professora que sempre nos dizia que queria uma terapeuta de plantão, mas que queria também "remedinho" para suportar a permanência na escola; o professor que relatou que tinha preconceito, sim, contra os alunos "sujos", "pobres", "mal-educados"; a professora-olheira que indagou para que estávamos ali, qual a utilidade daqueles encontros; o professor que dizia ter vontade de poder dar uns "sopapos" em alguns alunos; a coordenadora que, a portas fechadas, tentava dissuadir um aluno de denunciá-la por tê-lo chamado de "favelado" (e não sabemos nada sobre a "verdade" desses fatos). Destacou-se também a fala afetuosa de uma professora reconhecidamente adorada pelos alunos, uma das únicas que conseguiu falar de seu afeto e de sua disponibilidade para a troca com os estudantes. Uma troca de ternura que passava por certo investimento libidinal corporal, já que beijava e abraçava, de modo terno, os meninos e as meninas, produzindo uma diferença, dita por alguns como "invejável", entre ela e os outros professores, que preferiam manter distância dos alunos. Uma distância física do "corpo" discente, na maioria dos professores que conservava uma postura tradicional.
Em uma das reuniões, um determinado professor relatou o caso de um aluno que sempre o tratava com hostilidade, mesmo que ele nada tivesse feito à criança. A raiva expressa que o menino demonstrava fez com que o educador parasse para questioná-lo sobre a violência gratuita com que o tratava. No momento em que o professor argumentou que nunca havia feito nada que prejudicasse o menino, questionando-o de forma leve e branda, o aluno começou a chorar, demonstrando que o ato do professor teve para aquele aluno o valor de uma intervenção capaz de interromper um ciclo repetitivo de ódio sem endereçamento e sem possibilidade de acolhimento. Na interpretação que pudemos dar ao ocorrido, houve o estabelecimento de uma diferænça (ARREGUY, 2007; 2010), conceito de Jacques Derrida que, ao mesmo tempo, representa uma "diferença-herança" e uma "diferença-errância" entre professores e alunos. A situação parecia fazer surgir, simultaneamente, a repetição de uma relação de violência simbólica pela via da autoridade herdeira das tradições institucionais, bem como o risco de que tal institucionalização e burocratização do laço educativo esvazie sua potência subjetivante e afetiva. Foi a partir do uso delicado do tom da voz e da postura agachada do professor, ao olhar diretamente nos olhos do menino, que algo se modificou, tornando a diferença em uma possibilidade de transformação. Enquanto o menino gritava e chutava, o professor dizia suavemente, agachado, segurando o garoto pelos braços, de modo a contê-lo, olhando em seus olhos: "- Eu já bati em você? Eu já gritei com você? Então, por que está me tratando assim? (sic)". Imediatamente, o garoto parou de chutar e gritar e caiu em prantos, cedendo seu corpo ao abraço do professor. Sua relação com o mestre, a partir dali, mudou para melhor. O relato comoveu a todos no grupo de conversação, pois demonstrou uma quebra com as resistências e agressividade do aluno, sem que isso ocorresse por uma via hierárquica ou punitiva, mas usando a estratégia da proximidade e do afeto.
Diante da situação acima, vemos que a experiência da violência se encontra muito presente em situações escolares corriqueiras, embora não saibamos como lidar com isso. Partindo desse pressuposto, pensamos a escola como um reflexo da sociedade contemporânea. Assim, por um lado, é necessário frisar que a violência simbólica está presente na escola de um modo abrangente, incluindo a interação com outros professores, diretores e até mesmo entre os alunos, já que o conflito simbólico, fundado numa cultura de exploração de uma classe sobre a outra, é refletido, também, em nível micro (FOUCAULT, 2000). Por outro lado, recorrendo à psicanálise, é possível pensar que o mal-estar na instituição escolar remete ao fracasso de tal instituição no que diz respeito aos mecanismos de regulação dos afetos e dos laços sociais, fracasso que deve ser situado também em um contexto mais amplo que o circunscrito aos muros da escola em que se manifesta.
A DIMENSÃO DOS AFETOS: TRANSFERÊNCIAS INTERPOSTAS NA ESCOLA
Sustentando-nos na perspectiva psicanalítica pudemos refletir sobre os elementos que tornam a transmissão possível trazendo elementos novos para essa discussão. Ao defender a ideia de que os educadores não ensinam o seu conhecimento específico, e sim o modo como os seres humanos se relacionam com o saber (FREUD, 1996c; KUPFER, 2009; LAJONQUIÈRE, 2010), a psicanálise coloca no centro da discussão a presença do desejo no processo educativo.
Segundo Kupfer (2009), o que o professor deixa transparecer ao aluno não é o seu saber, mas a intensidade da relação construída com aquele objeto, uma intensidade capaz de despertar no aluno o interesse em ter uma relação parecida com ele. Então, é na tentativa de tomar esse conhecimento do mesmo modo que o professor, que o aluno começa a aprender, porque reconhece no desejo do professor algo do seu. Se, no que concerne ao aprender, a relação do docente com o objeto do saber é mais importante que o objeto em si, a ideia da necessidade de o professor criar motivações em sala de aula, de provocar o interesse dos alunos, passa a ser vista com menos relevância, ao mesmo tempo em que a figura do professor ganha centralidade, uma vez que aprender é aprender com alguém. Essa posição, de certo modo, sustentaria as prerrogativas de um "professor-animador". Entretanto, em que medida poderíamos diferenciar "desejo" de um "imperativo do sucesso" e da obrigatoriedade do "aprender com prazer" numa sociedade globalizada? Ora, falar do desejo no referencial psicanalítico implica na presença do sujeito do inconsciente, tanto do lado de quem ensina quanto do lado de quem aprende, e não somente aplicar a lei da excelência preconizada pelas mídias.
Lajonquière (2010) também trabalha bastante a partir da premissa da possibilidade de ensinar como transmissão do desejo de saber. Se o desejo é o motor do aprender, é importante acentuar o aspecto inacabado do processo educativo, tal como Lacan assinalou no texto Le séminaire - Livre XX - Encore (LACAN, 1975). Tal como já assinalava Freud (1996e) quando aborda o impossível da educação como profissão, em suas Novas conferências introdutórias, a psicanálise revela a precariedade da educação totalitária no modelo tradicional, colocando o sujeito no centro do processo de aprendizagem, com seu saber inconsciente e suas defesas diante daquilo que não se quer saber e do que não se pode ensinar.
Gostaríamos de nos deter agora nas observações que os professores fizeram sobre a dimensão dos afetos presentes no espaço escolar, já que esta é pouco abordada nos espaços educativos e de formação de professores. Enquanto alguns deles afirmavam ser preciso vencer a resistência dos alunos através da amizade e do afeto, outros ponderavam que o melhor caminho para lidar com o ódio dos estudantes - e deles próprios - era pela via da repressão. Entretanto, o discurso dos professores oscilava entre um apelo à punição e à uma crença de que regras devem ser estabelecidas e discutidas junto com o corpo discente, e não impostas.
A psicanálise tem fornecido grandes contribuições ao campo da educação ao se dedicar a discutir a presença do desejo nas relações educativas. Tal abordagem pensa a relação entre professor e aluno como sendo uma relação atravessada pela transferência (KUPFER, 2009), de modo que a aprendizagem pode ser entendida dentro de um contexto de investimento afetivo e de transmissão de ideais, que indicam modos de inserção social e construções de sentidos sobre o mundo e sobre si para os alunos. Freud (1996c) em Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar aborda a dimensão do que é a relação entre professor e aluno, no que diz respeito aos sentimentos, às emoções e ao papel que o professor exerce no psiquismo do aluno. Segundo Freud, os professores, por meio da transferência, podem ocupar o lugar de um "ideal do eu" para o aluno, tal como o pai já ocupou um dia ou ainda, ser alvo de ataque quando se instaura a ambivalência. Por outro lado, a psicanálise também aponta para o fato de que o professor poderá também transferir "conteúdos inconscientes" (KUPFER, 2009) aos seus alunos, o que se aproxima do conceito psicanalítico denominado de "contratransferência" (LAPLANCHE; PONTALIS, 1995). Contudo, quando essa contratransferência se faz presente na relação professor-aluno é de grande importância que esse educador deixe de lado o máximo possível de seus conflitos mais significativos para poder sintonizar o material inconsciente revelado pelo aluno (PEIXOTO, 2012). Nesse sentido, podemos localizar o surgimento e a intensidade dos afetos vividos na transferência (aluno-professor e professor-aluno), que trazem certas implicações no processo de aprendizagem, pois o aluno pode ter sentimentos positivos (transferência positiva) e/ou sentimentos negativos (transferência negativa) que favorecem ou dificultam seu desempenho escolar.
A partir desses pressupostos, utilizando-nos da análise de conteúdo (BARDIN, 1988), pudemos elaborar alguns eixos temáticos baseados nas falas expressas pelos professores, levando em conta as discussões que permeiam o campo da educação. São eles: mal-estar/transferência dos alunos em relação aos professores; mal-estar/transferência dos professores em relação aos alunos; relação família-escola; situação social de desautorização do professor (luta contra o cansaço, autoridade em sala de aula e a desvalorização da profissão); proximidade/singularidade dos alunos; respostas ao que os alunos esperam/transferem para eles; saída possível para as dificuldades deles com os alunos; e a percepção dos professores em relação ao trabalho de conversação e às pesquisadoras.
Da parte dos professores em relação aos alunos, identificamos um conflito muito grande sobre a necessidade de conter sentimentos ou de permitir sua expressão de alguma forma. As falas dos professores oscilavam entre a necessidade de "reprimir" o que estavam sentindo, seja através de remédios ou do "anestesiamento", ou por outro lado, de se "envolverem" com os alunos e mergulharem em um trabalho afetivo com eles, o que alguns relatos apresentaram como saída para os impasses vividos nessa relação. Sustentando uma posição mais radical, que soou como um desabafo, um dos professores apontou como saída a prescrição de remédio tarja preta para os educadores a fim de que eles suportassem as dificuldades do cotidiano escolar.
À medida que os encontros eram realizados, os relatos dos educadores demonstravam que a relação entre eles e seus alunos era atravessada por sentimentos hostis. Se, por um lado, o eixo referente ao "mal-estar/transferência" dos alunos em relação aos professores evidencia a agressividade e a prevalência de uma postura ofensiva dirigida aos professores pelos estudantes, por outro, no que concerne ao "mal-estar/transferência" dos professores em relação aos alunos, observa-se a descrença na atividade docente e a dificuldade, alegada pelos próprios professores, de lançarem um novo olhar sobre os sujeitos com quem interagiam. Além do sentimento de "impotência", destacava-se ainda o "medo" como um elemento que permeava constantemente o trabalho dos professores com os estudantes. Esse medo, certamente, revelava preconceitos historicamente construídos, mas, mais que isso, apresentava-se nas entrelinhas de relações institucionais de insegurança e incerteza, já que a maioria dos professores da escola era composta de contratados e não de concursados estáveis. Essa situação em si já representava a imbricação de uma lógica de "violência objetiva" (ŽIŽEK, 2008), sistêmica do capitalismo caracterizada pela incerteza sobre sua manutenção no trabalho, além de uma "violência subjetiva" pela impotência diante das dificuldades com os alunos.
Uma fala presente em quase todas as reuniões, de forma um pouco variada e proferida por vários professores, foi sobre a problemática relação entre a família e a escola. Segundo os professores, além de ensinar a parte pedagógica, muitas vezes, cabe também a eles o papel de cuidar dos estudantes, cumprindo assim funções que caberiam aos pais desses alunos. Tal eixo foi construído a partir das múltiplas queixas dos professores voltadas para esse assunto, já que estes profissionais, muitas vezes assumem o papel de educadores e de pais. Eles reclamavam que muitos alunos chegam à escola sem a educação básica, que deveria vir de casa. Segundo eles, os pais não têm tempo para seus filhos, devido ao excesso de trabalho e porque evitam um desgaste maior em casa, o que de fato vem ao encontro da hipótese sustentada por alguns psicanalistas de que, inseridos na cultura do gozo, os pais parecem querer evitar o conflito com seus filhos (COSTA-MOURA, 2003). Mas, quantas outras intercorrências estariam impedindo o ato de educar na contemporaneidade? Em 2009, o psicanalista José Outeiral, recém-falecido, no programa Café Filosófico da TV Cultura3 em que discute sobre a família (e a escola) na contemporaneidade, argumentou que de fato muitas crianças sofrem atualmente de déficit de atenção, só que não se trata de um déficit de atenção próprio a elas mesmas, pois na realidade esse "déficit" não diz respeito a uma falha no funcionamento de seus organismos, mas de um déficit de atenção dos pais para com os filhos, um problema sistêmico e generalizado hoje em dia dados os excessos da vida cotidiana nas sociedades de consumo. No entanto, culpabilizar os pais seria mais um engodo a se evitar, já que sabemos que a autoridade parental se sustenta também socialmente através de mecanismos simbólicos, cuja eficácia depende de parâmetros coletivos mais amplos, aos quais nem sempre a família tem condições de se contrapor.
De maneira semelhante, nota-se que a perda de respeito do aluno para com o professor esteve muito presente nos relatos da equipe docente. Assim, a "situação social de desautorização do professor" surgiu de forma recorrente nas queixas dos professores, já que, segundo eles, a autoridade é vista pelos alunos como algo a ser constantemente enfrentado e superado, deixando de lado o respeito para com o professor. Em nossos encontros com a equipe pedagógica, buscamos construir, juntamente com eles, quais seriam as saídas para essa falta de autoridade.
Nesse sentido, foi possível destacar alguns relatos que se referem às respostas dos professores ao que os alunos "transferem" para eles. A maioria dos professores considerou que os estudantes esperam que eles assumam a postura de animadores da classe, como se lhes coubesse promover a motivação e o dinamismo em sala de aula a fim de que os alunos aprendam e mais que isso, se divirtam. Seguia-se, portanto, a lógica do imperativo do gozo da atualidade, tal como Žižek (1999) define, ou seja, de que muito além da repressão social, típica dos moldes tradicionais da educação, era preciso ter prazer com o dever, ou ainda, o prazer se tornava um dever.
Levando em conta a singularidade de cada aluno, ficou evidente que os professores gostariam de ter um olhar mais individualizado em relação a cada um eles e dizem sentir-se, por sua vez, cobrados a fazer isso com os alunos, mas percebem que essa atitude é muito difícil de ser praticada diariamente. Contudo, a partir de alguns relatos feitos em um dos encontros com a equipe pedagógica, notamos que alguns dos professores conseguiam ter iniciativas para promover aproximação entre escola, alunos e pais, proporcionando a cada esfera a possibilidade de ver a outra de maneira diferente dos lugares fixados pelo cotidiano institucional.
Os professores problematizaram também, de que maneira os atuais recursos tecnológicos, como a internet, têm colocado em questão a relevância de se aprender com o professor, na medida em que os alunos demandam deles a eficiência de ferramentas como o Googlepor exemplo. Até que ponto a escola e o professor, em si mesmos, estariam obsoletos, como problematiza Paula Sibilia em seu recém-lançado Redes ou paredes: escola em tempos de dispersão. As articulações de Sibilia (2012) vão no mesmo sentido das questões trazidas pelos professores, ao questionarem se a escola tal como se compôs historicamente, hoje não estaria em estado de falência, diante dos milhares de ofertas de conhecimento (e prazer) acessíveis pelas mídias de rede.
CONTEXTUALIZANDO O MAL-ESTAR PARA ALÉM DA ESCOLA: A PALAVRA E O LAÇO SOCIAL NO CONTEMPORÂNEO
Entendendo que os discursos dos professores expressam laços sociais que estão presentes na escola, nosso trabalho também nos fez pensar sobre o contexto social na educação atual. Como constatado anteriormente (COUTINHO; OLIVEIRA, 2013), as condições sociais que são pilares de sustentação da prática educativa, dadas as muitas alterações sociais, históricas e políticas nos últimos tempos, trazem questões tanto para o corpo docente quanto para o discente. Uma delas está relacionada ao confronto com a fragilidade da dimensão da palavra, ou melhor, o esvaziamento da palavra, tanto nos laços entre alunos quanto destes com os professores e vice-versa.
Através da teoria lacaniana, podemos considerar que o ser humano se constitui a partir do encontro com o "outro" da linguagem, ou seja, com o "outro" enquanto universo de significantes que é prévio ao seu nascimento biológico (LACAN, 2005). Assim, a linguagem, em sua função simbólica, desnaturaliza o homem e o insere na cultura, marcando a ruptura do sujeito com o mundo natural que lhe subtrai a ordem da necessidade inserindo-o no registro do desejo. Esta operação lhe impõe renúncias, na medida em que a suposta verdade de seu desejo jamais é toda dita, já que o ser falante está sempre sujeito à parcialidade da linguagem, que nunca diz tudo. Fala-se, assim, em uma "violência" fundante e intrínseca (LACAN, 2008), uma "violência primária" (AULAGNIER, 1975), que está ligada à linguagem e que nos define como humanos ao impor ao bebê a perda de seu "objeto de satisfação primordial" (FREUD, 1996a), para que possa se subjetivar. Essa "violência" de uma perda fundante do psiquismo se mostra presente de várias maneiras, como por exemplo, no fato de que não podemos escolher nossos próprios pais, ou no fato da mãe pressupor um saber ao seu filho quando este ainda é bebê, ou ainda, no fato de nossos desejos serem incomensuráveis em relação ao que podemos ter, ser ou dizer. Tudo isso constitui uma situação de desamparo paradoxalmente constitutiva do humano, na medida em que toda perda, a princípio, pode ser experimentada pelo sujeito como uma forma de violência. Ademais, a vida em sociedade em si mesma implica em um mal-estar ligado à renúncia pulsional em nome das leis de uma cultura (FREUD, 1996b, 1996d). Assim, diferentemente de outros animais, a sexualidade humana é atravessada pelo registro simbólico, constituindo todo circuito pulsional em que se sustenta o desejo e a agressão. Tal registro nos traz ainda a dimensão de que nem tudo é possível, que somos seres limitados e não podemos ser qualquer coisa, pois a linguagem nos constrange a dar nome àquilo que sempre vai escapar.
A clínica nos aponta, porém, que, diante do fracasso da necessária violência fundamental, constitutiva, em dominar algo da dimensão pulsional por meio do patrimônio simbólico - o que, para a psicanálise, coincide com a própria tarefa da educação - surgem as violências reais, seja por parte de quem educa, seja daquele que é educado, seja contra si próprio, seja contra outros. O fracasso dos mecanismos sociais de regulação da pulsão por meio da palavra autorizada e legitimada socialmente, evidencia-se nos vários espaços em que se exerce a tarefa educativa: na escola, na família, nos espaços públicos, etc. (LEBRUN, 2008; COSTA-MOURA, 2003). É nesse contexto que podemos pensar a angústia e os atos violentos na relação entre professores e alunos, tão frequentemente evocados pelos professores com os quais trabalhamos, como sintomas sociais contemporâneos.
No âmbito das ciências sociais, como defendem Santos (2001) e Dubet (SPOSITO; PERALVA, 1997), também têm se discutido a fragilidade dessa dimensão da palavra e dos acordos nos laços sociais hoje, com repercussões importantes, particularmente nas relações de ensino. Para ambos os autores, a escola ainda é considerada em sua função de socialização, mas os conflitos sociais que ali se reproduzem sem encontrar meio de expressão e encaminhamentos, fazem a violência nascer sob a forma de relações cada vez mais tensas e conflituosas, a começar pela própria violência disciplinar e simbólica do saber escolar que impõe um conjunto de valores aos alunos sem questionamentos sobre as particularidades dos grupos culturais de onde eles se originam. Tomando de empréstimo a expressão de Colombier (1989 citado por SANTOS, 2001, p. 109), a violência na escola nasce da "palavra emparedada" dentro de uma lógica da exclusão e da recusa. Assim, a violência escolar articula-se com uma das novas questões sociais globais no âmbito de um fenômeno social caracterizado como o "enclausuramento do gesto e da palavra" (SANTOS, 2001, p. 107). Para romper com essa clausura, afirma o autor:
(...) o objetivo é fortalecer as instituições, criando regras livremente consentidas e levando em conta os conflitos de forma a organizar meios para a sua resolução: contra a palavra emparedada, impõe-se restaurar a autoridade legítima do professor e a mediação da linguagem mediante uma enunciação legítima, na qual se afirma a pedagogia do desejo e das forças da vida, percebendo-se a instituição escolar como uma rede de relações. (SANTOS, 2001, p. 109)
Nesse sentido, pensamos que a compreensão das relações entre a escola e as práticas da violência passa pela reconstrução da complexidade das relações sociais que estão presentes no espaço social da escola e pela compreensão das profundas transformações na sociabilidade atual dadas na virtualização da vida. Por outro lado, é na presença de um "outro", de carne e osso, que pode se dar o desejo pelo conhecimento. Ora, se as relações estabelecidas no espaço escolar são muito complexas, pois envolvem pessoas de diferentes raças, crenças e ideais, pode-se pensar os conflitos e os afetos como potencialmente criadores de laços sociais.
Tratando da mutação do laço social, Lebrun (2008) levanta alguns pontos em suas consequências no que diz respeito à educação. Trata-se, segundo ele, de uma etapa seguinte àquela que Hannah Arendt havia bem identificado quando evocava a crise da educação na Modernidade:
No mundo moderno, o problema da educação se deve ao fato de que, por sua própria natureza, a educação não pode desprezar a autoridade nem a tradição, e que deve mesmo assim exercer-se num mundo que não está estruturado nem pela autoridade nem reservado para a tradição. (ARENDT, 1957 citada por LEBRUN, 2008, p. 180)
Nota-se uma dificuldade geral de pais e professores de sustentar uma oposição, uma negatividade, quando necessário, pela falta de sustentação de sua palavra no social. Estes são deixados a sós, entregues a si mesmos e seus inconscientes, como diz Lebrun (2008, p. 197). Nesse sentido, muitas vezes, os pais, deslocados de sua própria parentalidade, buscam mais ser amados e do que ocupar o lugar daqueles que são capazes de suportar as descontinuidades próprias ao desejo humano. E, com isso, perpetuam o desamparo de crianças e jovens que ainda precisam de referências externas para que possam construir seus próprios caminhos e inserções no laço social.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Ao relatar as dificuldades vivenciadas no cotidiano escolar, o fórum de interlocução entre os docentes ampliou-se e propiciou novos desdobramentos para os questionamentos trazidos pelos mesmos. Podemos afirmar, então, que esse espaço de fala foi importante não apenas por acolher a experiência dos professores no que diz respeito àquilo que é da ordem do mal-estar na educação, mas também por possibilitar uma circulação nas produções discursivas dentro da escola, fazendo bascular as relações de poder que as sustentam (FOUCAULT, 1999, 2000) e permitindo a emergência do desejo de ensinar, ainda que pontual, em meio ao excesso de queixas e lamentações.
A partir da psicanálise, podemos pensar que os imperativos institucionais contribuem para o enfraquecimento da palavra e da autoridade dos professores, o que como vimos, sustenta-se muito mais na presença do sujeito professor e em seu desejo de saber. Do lado dos alunos, tais dispositivos, impossíveis de ser identificados e confrontados, promovem um retorno de violência disruptiva, sem endereçamento nem legenda especificados. Nesse sentido, a violência nas escolas pode ser pensada como um sintoma social, na medida em que revela os impasses sociais diante da falta de dispositivos institucionais que preservem as singularidades e o desejar.
Esse fato evidenciou-se pela colocação de um dos professores acerca da importância das reuniões para a saída de uma "zona de conforto", nas palavras dele, de um "anestesiamento" ocasionado pela naturalização das condições precárias de trabalho encontradas no magistério.
A proximidade aos alunos, embora seja dificultada pela falta de tempo dos professores, ou, algumas vezes, pela falta de disposição dos mesmos, apareceu no discurso dos professores como uma maneira de superar os impasses na relação entre educadores e estudantes. Segundo relatado em um dos encontros, as iniciativas da escola que promovem essa aproximação abrem caminho para que alunos e professores vejam uns aos outros de "maneira mais humana". Assim, segundo eles, tais experiências parecem favorecer a convivência em sala de aula na medida em que representam uma oportunidade para que professores e alunos se percebam como sujeitos singulares.
Por outro lado, ficaram nítidas algumas dificuldades contemporâneas do fazer docente. Diante do enfraquecimento da autoridade do professor - legitimado socialmente tanto pela desvalorização da carreira, quanto pela perda do antigo status de detentor do saber para as mídias, e sobretudo para a informação em rede - muitas vezes, só resta a experiência de submeter-se ao poder imposto pela instituição. Se pudermos comparar diferentes perspectivas epistemológicas, podemos afirmar que há diversos "dispositivos de poder" sustentados de modo horizontal, os "micropoderes" (FOUCAULT, 1999, 2000) que refletem e reforçam uma condição de "violência objetiva", vertical, da qual falou Žižek (2008), a violência exploratória do capitalismo global.
Desse modo, é preciso desviar o olhar quase exclusivo para as situações corriqueiras de violência física ou verbal, muito aclamadas por exemplo por pesquisas que enfocam o bullying, para uma violência conjuntural, que torna professores meros operários do conhecimento, controlados, disciplinados, impotentes para a crítica e para a transformação social. Ao sobrevalorizar a "violência subjetiva" (Žižek 2008) como se fosse a causa principal (ou única) da violência nas escolas, criam-se demandas de diagnóstico, "medicalização" e "judicialização" da infância e da juventude, patologizando, punindo e, assim, velando tanto os afetos quanto as condições conjunturais que geram tais comportamentos.
Em todo caso, pensamos que o espaço de fala entre os professores, orientado pela psicanálise, pôde promover novas interlocuções entre eles que permitiu o deslocamento do lugar de "queixa" e "impotência" mais familiar nas reuniões espontâneas entre os mesmos, para uma reflexão sobre novas vias de atuação. Assim, à medida que os educadores não receberam das pesquisadoras respostas fechadas de como deveriam conduzir a tarefa docente, foram convocados a falar sobre o mal-estar vivenciado na relação com os alunos através da troca de experiência e interlocução com seus pares, o que lhes permitiu repensar o modo como vinham respondendo a isso e inaugurar novas possibilidades para seu fazer educativo. Por outro lado, embora se tenha sinalizado a importância política da profissão docente, ainda existem muitas resistências e controvérsias nesse plano, sobretudo pelos preconceitos inconscientemente arraigados e pela falta de crença no potencial de transformação social em um contexto de violência objetiva.
REFERÊNCIAS
- ARREGUY, M. E. Deslizamentos linguageiros da palmatória: a diferænça na relação professor-aluno a partir de um excerto das Confissões de Santo Agostinho. Actas Freudianas, Juiz de Fora, v. 8, p. 58-71, 2007.
- ARREGUY, M. E. Da violência física à violência simbólica: expressões e inversões na hierarquia professor-aluno. In: I SEMINÁRIO INTERNACIONAL "CONTRIBUTOS DA PSICOLOGIA EM CONTEXTOS EDUCATIVOS", 2010, Braga, Portugal. Anais do I seminário internacional "contributos da psicologia em contextos educativos" (texto completo). Braga: Universidade de Minho, 2010, p. 929-939.
- AULAGNIER, P. Violence de l'interprétationParis: PUF, 1975.
- BARDIN, L. Análise de Conteúdos Lisboa: Edição 70, 1988.
- BASTOS, M. B. Inclusão escolar: inclusão dos professores? In: KUPFER, M. C.; COLLI, F. A. G. Travessias: inclusão escolar - a experiência do grupo ponte pré-escola terapêutica lugar de vida. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
- BOURDIEU, Pierre. Sobre el poder simbolico. In: Intelectuales, política y poder. Buenos Aires: UBA/Eudeba, 2000, p. 65-73.
- CABASSUT, J. Petite grammaire lacanienne du collectif institutionnelNîmes: Champ Social Éditions, 2009.
- CASTRO, L. R.; BESSET, V. L. Pesquisa-Intervenção na Infância e Juventude. Rio de Janeiro: Nau, 2008.
- COSTA, M. V. et al Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em Educação. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.
- COSTA-MOURA, R. Lá onde a palavra de desfaz, começa a violência. In: GRYNER, S.; RIBEIRO, P. M. C. M.; OLIVEIRA, R. C. de. Lugar de palavras. Rio de Janeiro: Nau, 2003.
- COUTINHO, L. G.; OLIVEIRA, B. O. A palavra e o laço social entre adolescentes na escola. Interacções, Santarém, v. 9, p. 215-228, 2013.
- ENRIQUEZ, E. (1988). O trabalho da morte nas instituições. In: ENRIQUEZ, E. A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991.
- FOUCAULT, M. (1975). Vigiar e punirnascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.
- FOUCAULT, M. Microfísica do poderRio de Janeiro: Graal, 2000.
- FREUD, S. (1895). Projeto para uma Psicologia CientíficaRio de Janeiro: Imago, 1996a. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 1).
- FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa modernaRio de Janeiro: Imago, 1996b. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 7)
- FREUD, S. (1914). Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar Rio de Janeiro: Imago , 1996c. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 13).
- FREUD, S. (1929). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 21).
- FREUD, S. (1932). Novas conferências introdutórias sobre psicanáliseRio de Janeiro: Imago, 1996e. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 22).
- GAVARINI, L. Como os adolescentes da periferia (se) falam? Jogos na forma de se endereçar aos pesquisadores. Estilos da Clínicav. 14, n. 27, p. 48-82, 2009.
- KAËS, R. (1988). Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In: ENRIQUEZ, E. et al. A instituição e as instituições: estudos psicanalíticosSão Paulo: Casa do Psicólogo, 1991).
- KUPFER, M. C. Amor e saber: a psicanálise da relação professor aluno. In: COHEN, R. H. Psicanalistas e educadores: tecendo laços. Rio de Janeiro: Wak editora, 2009.
- LACADÉE, P. De la norme de la conservation au détail de la conversation. In: LACADÉE, P.; MONNIER, F. (Org.). Le Pari de La Conversation. Paris: Institut Du Champ Freudien: CIEN (Centre Interdisciplinaire sur l'Enfant), 2000.
- LACAN, J. A. Le séminaire: livre XX, Encore - 1972-1973Paris: Éditions du Seuil, 1975.
- LACAN, J. A. O seminário: livro 10, a angústia - 1962-63. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005.
- LACAN, J. A. O Seminário: livro 11, os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise - 1964. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
- LAJONQUIÈRE, L. Figuras do infantil: a psicanálise no cuidado cotidiano com crianças Petrópolis: Vozes, 2010.
- LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário de PsicanáliseSão Paulo: Martins Fontes, 1995.
- LEBRUN, J. A perversão comum: viver juntos sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
- MILLER, J. La Pareja y el Amor: conversaciones clinicas en Barcelona. Barcelona: Eólia, 2003.
- PEIXOTO, M. H. O manejo da transferência e da contratransferência na relação professor-aluno adolescente. 2012. 133 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica - Área de concentração: Tratamento e Prevenção Psicológica), Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2012.
- PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal São Paulo: Martins Fontes, 1983.
- SANTIAGO, A. L. O mal-estar na educação e a Conversação como metodologia de pesquisa: intervenção em Psicanálise e Educação. In: CASTRO, L. R.; BESSET, V. L. (Org.) Pesquisa-Intervenção na Infância e Juventude. Rio de Janeiro: Nau editora, 2008. p. 113-131.
- SANTOS, J. V. T. A violência na escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 105-122, 2001.
- SIBILIA, P. Redes ou paredes: a escola em tempo de dispersãoRio de Janeiro: Contraponto, 2012.
- SPOSITO, M.; PERALVA, A. Quando o sociólogo quer saber o que é professor - entrevista com François Dubet. Revista Brasileira de Educação, n. 5/6, p. 222-231, 1997.
- VASCONCELOS, R. Violência escolar: uma das manifestações contemporâneas do fracasso escolar. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
- ŽIŽEK, S. Sociedade autocrítica, submissão, prazer e gozo. Pulsional - Revista de Psicanálise São Paulo: Livraria Pulsional, Ano XII, n. 127, nov. 1999.
- ŽIŽEK, S. Violence New York: Picador, 2008.
-
1
Tradução nossa: (...) todo estabelecimento funciona graças ao aparelho linguístico e ao que se compartilha da língua: clareza (em relação ao código utilizado), capacidade de leitura (dos procedimentos), materialidade (do estabelecimento). Entendemos então que o estabelecimento define e trata da arquitetura visível da estrutura.
-
2
Tradução nossa: A existência de dois termos distintos (Instituição e Estabelecimento) nos obriga a nos perguntarmos sobre a realidade específica que eles revelam e sobre a incidência de nossas respectivas práticas de representação (e, portanto, das ações) que estão ali irreprochavelmente ligadas. Freud nos informa sobre tal necessidade quando escreve que " o exemplo é a coisa em si ". Dito de outro modo, a psicanálise, tanto clinicamente quanto conceitualmente, nos demonstra a importância do significante na designação da coisa, o efeito de sentido, de não sentido, até de contrassenso, que ali está articulada. {o conceito de instituição}; transparece a dimensão de uma construção, ativa, própria de um desejo - singular ou coletivo -, ou seja, a necessidade humana de instituir (...), que a passagem pelos atos de decisão e de instrução sublinha.
-
3
Disponível na internet em: https://vimeo.com/124546368 (acessado em 24/072015).
-
*
Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ. Doutora em Pesquisas em Psicopatologia e Psicanálise pela Universidade de Paris Diderot -UP7. Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF. Coordenadora do GAP(E) - Grupo Alteridade Psicanálise e Educação - UFF. E-mail: mariliaetienne@id.uff.br
-
**
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Professora da Faculdade de Educação da UFF. Pesquisadora do GAP(E) - Grupo Alteridade Psicanálise e Educação - UFF e do NIPIAC - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa para a Infância e Adolescência Contemporâneas - UFRJ. E-mail: lugageiro@uol.com.br
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Set 2015
Histórico
-
Recebido
01 Abr 2014 -
Aceito
19 Abr 2015