RESUMO:
Com base no pressuposto de que rasuras ligadas à segmentação de palavras podem constituir indícios importantes de conflitos vivenciados pelas crianças para delimitar a palavra (orto)gráfica, este trabalho teve como objetivo central apresentar e descrever possíveis fatores que concorrem para a emergência dessas rasuras. Foram analisadas 364 rasuras identificadas em corpus constituído por 1.699 produções textuais elaboradas por crianças da primeira etapa do Ensino Fundamental I ao longo de quatro anos. A análise permitiu constatar a influência capital do letramento para a instauração de conflitos sobre como segmentar. Nas rasuras ligadas à segmentação, fica patente que mesmo a circulação das crianças por práticas sociais orais está, desde o princípio, entrelaçada à circulação dessas crianças por práticas letradas. Essas constatações permitem concluir que a escrita infantil não pode ser interpretada como um mero decalque do falado, mas, sobretudo, como fruto do trânsito das crianças por práticas sociais historicamente constituídas.
Palavras-chave: Oralidade; Letramento; Escrita; Rasura; Segmentação gráfica.
Abstract:
Based on the premise that strikethroughs connected to word segmentation consist in important vestiges of conflicts experienced by children in order to limit the (ortho)graphic word, this research aimed at introducing and describing possible factors that contribute to the emergence of strikethroughs. Three hundred and sixty-four strikethroughs (364) were identified in a corpus consisting of one thousand, six hundred and ninety-nine (1,699) text productions created by Elementary school children of level one, during 4 years. The analysis allowed to conclude the important influence of literacy for the instauration of conflicts on how the segmentation works. In the strikethroughs connected to segmentation, it is clear that, on principle, even the children's course in oral social practices are interlinked to children's course during literacy practice. Results show that children's writing cannot be interpreted as a mere spoken tracing, but, mainly, as a product of children's traffic by historically constituted social practices.
Keywords: Orality; Literacy; Writing; Erasure; Graphic segmentation.
Introdução
Uma das tarefas com as quais as crianças deparam-se na aquisição da escrita é a necessidade de descobrir, com ou sem a ajuda de um professor, para que servem ou, ainda, o que significam os espaços em branco utilizados na escrita convencional para delimitar a palavra (orto)gráfica. Essa descoberta não é tranquila e, talvez por essa razão, não são poucos os estudos dedicados à análise de como crianças aprendem a segmentar em consonância com as normas ortográficas. Estudos como os de Abaurre (1991), Silva (1994), Chacon (2004, 2008, 2009), Capristano (2007a, 2007b, 2013, 2014a, 2014b), Cunha (2004), Ferreiro e Pontecorvo (1996), Paula (2007), Capristano e Chacon (2014), Serra, Tenani e Chacon (2006), Serra (2007), têm mostrado, entre outras coisas, a existência de grande flutuação no modo como crianças distribuem espaços em branco delimitadores da palavra (orto)gráfica em suas produções escritas.
A maioria desses estudos tem analisado segmentações não convencionais de espaços em branco classificadas como (a) hipossegmentações: alocação de espaços em branco aquém dos previstos pelas convenções escritas, que geram junções de palavras em locais não esperados, como "jalicotei" (já lhe contei); (b) hipersegmentações: alocações de espaços em branco além dos previstos pelas convenções escritas, como em "a bacaxi"; e, por fim, (c) mesclas - momentos de convívio entre hipossegmentações e hipersegmentações, como é o caso de "tacon teceno" (tá acontecendo).
Serra, Tenani e Chacon (2006), Serra (2007), Capristano (2007 b, 2010, 2013 e 2014) e Capristano e Chacon (2014), no entanto, dedicaram-se à pesquisa sobre como crianças passam a segmentar respeitando as normas ortográficas, analisando o que chamaremos de rasuras ligadas à segmentação, correspondentes a momentos em que os escreventes, por exemplo, apagam e/ou riscam suas produções escritas, sinalizando alguma preocupação com a distribuição de espaços em branco1. Nesses trabalhos, entende-se a rasura como local privilegiado para a observação da relação sujeito/linguagem e dos caminhos trilhados pelas crianças para delimitar a palavra (orto)gráfica.
Para Capristano (2013, p. 677), essas rasuras assinalam, ainda, "um momento particular da relação sujeito/linguagem, com uma ordem diversa daquela observada em 'erros' ortográficos e em 'acertos', atuando como indício da negociação do escrevente com pontos sensíveis da língua". Seriam, para a autora, momentos que materializariam a divisão enunciativa do escrevente entre possibilidades abertas pela língua e que mostrariam "de forma constante, duas possibilidades de segmentação que se chocam e expõem o conflito do sujeito escrevente com os fatos que determinam a (sua) enunciação escrita" (CAPRISTANO, 2014, p. 8, grifos da autora), fatos estes ligados à circulação das crianças por práticas sócio-históricas orais e letradas.
Seguindo a perspectiva teórico-metodológica proposta por Capristano (em especial, 2013 e 2014), neste trabalho, objetiva-se apresentar e descrever possíveis fatores responsáveis pela emergência de rasuras ligadas à segmentação presentes em produções escritas infantis, examinando cada uma das possibilidades de segmentar que são expostas por essas rasuras. Em função das características do corpus deste trabalho - apresentado em seção subsequente - e da relevância de estudos longitudinais para o entendimento da aquisição da escrita infantil, verifica-se, além disso, como esses fatores atuam ao longo das séries/anos investigados.
Para cumprir esses objetivos, começamos com uma discussão sucinta sobre como a relação fala/escrita será considerada neste trabalho e, partir disso, fornecemos maiores detalhes sobre a interpretação teórica aqui atribuída à rasura ligada à segmentação.
Fundamentação teórica
Na tradição escolar, ainda impera a ideia de que certos usos orais, quando espraiam na escrita, seriam interferências a serem extirpadas. Essa forma de avaliar as relações entre fala e escrita ancora-se no senso comum de que existiriam modos de enunciação puros e de que a melhor escrita seria aquela na qual não se observariam características de enunciados falados.
Vários estudos no âmbito das teorias linguísticas têm questionado essa visão mais comum das relações fala/escrita - cf., por exemplo, Corrêa (1998, 2004, 2006, 2013a, 2013b), Marcuschi (2001), Signorini et al. (2001) e Tfouni (2010). Entre esses trabalhos, destacam-se os estudos de Corrêa. Para esse autor, "a presença do falado no escrito não registra apenas a relação entre duas tecnologias, mas a relação entre dois modos de enunciação que se constituem mutuamente" (CORRÊA, 2006, p. 269). Nessa perspectiva, fala e escrita são frutos do encontro das práticas orais/faladas e letradas/escritas. O autor propõe, portanto, na contramão das visões mais tradicionais, que a fala vista na escrita é pista da heterogeneidade da escrita e não de uma heterogeneidade acidentalmente presente na escrita. A proposta da heterogeneidade como constitutiva da escrita é explicada considerando-se a relação mantida pelo sujeito escrevente com a linguagem nos modos de enunciação falado e escrito. Nas palavras do autor,
{...} os fenômenos que remetem ao campo do falado não são vistos como "interferência" da fala na escrita, mas como constitutivos da produção escrita, isto é, concebida como um modo de enunciação, a escrita vai além de uma perspectiva meramente textualista para dar atenção ao sujeito e sua relação com a linguagem. O específico das chamadas modalidades oral e escrita da linguagem torna-se, pois, o fato de serem, ambas, heterogêneas, isto é, comportarem em si a presença de práticas sociais de diferentes modos de expressão, o que permite dizer que, em cada uma delas, está presente a alteridade constitutiva {...} (CORRÊA, 2013a, p. 504).
Em estudos sobre segmentações não convencionais, autores como Chacon (2004, 2005), Capristano (2007a, 2007b), Paula (2007) e Tenani (2011), respaldados pela proposta de Corrêa, compreendem essas segmentações divergentes das normas ortográficas "não como marcas de imperfeição de um produto que se tem como modelo, ou, nas palavras de Abaurre, Fiad & Mayrink-Sabinson (1997), como manifestações 'imperfeitas' de uma gramática 'adulta'" (CHACON, 2004, p. 79). Seriam, de modo inverso, marcas que "indiciariam o trânsito do sujeito aprendiz pelos diferentes modos de enunciação da língua" (CHACON, 2004, p. 79).
Nesse sentido, hipossegmentações, hipersegmentações e mesclas são indícios da heterogeneidade da escrita e, por conseguinte, das imagens construídas pelo escrevente, no processo escrever, sobre a (sua) escrita. Esses autores salientam, outrossim, que, embora essas segmentações não convencionais emirjam de um mesmo princípio geral - como resultado da própria heterogeneidade da escrita -, têm funcionamentos particulares. Assim, por exemplo, hipossegmentações, em termos de predominância, indiciariam a circulação dos escreventes por práticas orais, já que, nelas, os escreventes, em geral, "ao apropriar{em}-se da escrita (...), tende {m} a tomá-la como representação termo a termo da oralidade" (CORRÊA, 2004, p. 10). Hipersegmentações, também em termos de predominância2, sinalizariam a circulação dos escreventes por práticas letradas, uma vez que estariam, geralmente, mais ligadas à imagem que os escreventes fariam do que seria próprio/exclusivo da escrita.
Assumimos que o funcionamento das rasuras ligadas à segmentação é mais ou menos semelhante ao das segmentações não convencionais. Elas resultam, da mesma forma, de imagens feitas pelos escreventes da (sua) escrita, imagens permitidas pela circulação desses escreventes por práticas orais e letradas. No entanto, nas rasuras, essas imagens e essa circulação são diferentes, uma vez que, como mencionamos, as rasuras deixam ver duas possibilidades de segmentação divergentes, indicativas do conflito do sujeito escrevente com os fatos determinantes da (sua) enunciação escrita. Ou seja, nas rasuras, como adverte Capristano (2014, p. 8), "vê-se, sempre, alternativas de segmentação em concorrência, coexistindo, embora não de forma indivisa: uma dessas alternativas é sempre eleita e a outra, sempre recusada".
Rasuras ligadas à segmentação teriam, pois, a particularidade de colocar em cena ao menos duas direções que se abrem para o escrevente no momento de segmentar. Aqui, essas duas direções serão concebidas como dois gestos. O primeiro gesto refere-se à primeira escolha do escrevente, aquela observada antes do rasuramento propriamente dito e que, por alguma razão, é recusada. O último gesto, por sua vez, diz respeito à decisão final do escrevente, aquela opção de segmentação que permanece depois do rasuramento.
Material e metodologia
Para o desenvolvimento deste trabalho, dispúnhamos de um banco de produções textuais coletado por integrantes do Grupo de Pesquisa Estudos sobre a linguagem (CNPq), que subsidia, atualmente, também pesquisas do Grupo de Pesquisa Estudos sobre a aquisição da escrita (CNPq). Essas produções textuais foram coletadas durante quatro anos. As coletas foram feitas com a finalidade de organizar dados de escrita de crianças em processo de escolarização que permitissem pesquisas de caráter longitudinal. Para composição desse banco de produções textuais, foram acompanhadas as mesmas turmas da primeira a quarta série do Ensino Fundamental I em duas escolas da rede municipal de ensino da cidade de São José do Rio Preto (SP).
Neste trabalho, elegemos como corpus 1.699 produções textuais coletadas entre 2001 e 2004 em uma das escolas deste banco por meio de 55 diferentes atividades de produção escrita. Nesse corpus, identificamos 364 rasuras ligadas à segmentação3.
Para identificarmos as rasuras ligadas à segmentação, partimos de categorias4 criadas por Capristano (2007b, 2010) com base em Abaurre (1991, 1994), Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabison (1997), Calil (1997, 2007) e Felipeto e Calil (2007). Consideramos como rasuras ligadas à segmentação apagamentos, inserções, escritas sobrepostas e falsos inícios sinalizadores, de diferentes formas, de uma preocupação da criança com a delimitação de espaços em branco.
Os apagamentos relacionam-se a momentos nos quais o escrevente retorna sobre o material escrito, visando a anular um segmento. Esse segmento pode ser uma letra, uma sílaba, uma palavra ou, mesmo, traços de junções. O apagamento, em geral, ocorre com a borracha e, nessas situações, a análise concentrou-se também na "sombra" deixada pelo apagamento mal sucedido. De maneira eventual, os alunos das séries iniciais, sobretudo os da antiga 4ª série, usam caneta. Nessas ocasiões, o apagamento é realizado por meio da sobreposição de "riscos", ou seja, uma rasura "riscada" (CALIL, 2008) que, em nosso estudo, foi categorizada como apagamento. A inserção pode ser identificada em momentos nos quais o escrevente retorna ao material escrito e acrescenta letras, sílabas, palavras ou traços. Na inserção, fica visível o fato de o escrevente não suprimir o material anteriormente escrito, mas, sim, mudar o fluxo do seu dizer, por meio do acréscimo. A escrita sobreposta, por sua vez, diz respeito a momentos nos quais o escrevente retorna ao material escrito e acrescenta letras, sílabas, palavras ou traços. Diferente do apagamento, os elementos "destruídos" e "construídos" coexistem. Por fim, falso início refere-se aos momentos em que se percebem hesitações, traços que mostram o início de um projeto de escrita abandonado em função de outro. Nessas ocorrências, o escrevente inicia o registro de uma letra, uma sílaba ou uma palavra e a recusa.
Na análise de cada uma das 364 rasuras identificadas no corpus do trabalho, observamos os dois gestos assinalados pela rasura denominados, conforme dito anteriormente, de primeiro gesto (antes da rasura) e de último gesto (após o rasuramento), como descrito na sequência, por meio da análise de alguns exemplos (Figuras 1 a 4):
Na rasura da Figura 1, o primeiro gesto do escrevente foi o registro de "do" e "rio" de modo hipossegmentado. Todavia, o escrevente retorna sobre o material escrito, apaga o grafema "R", visível pelo resíduo de escrita deixado, registrando, como último gesto, "do rio", em consonância com a escrita convencional. Em ocorrências como a da Figura 1, compreendemos que: (a) o primeiro gesto sinaliza a opção pela hipossegmentação de duas palavras da língua ("do" e "rio"), hipossegmentação gerada provavelmente pela atuação das práticas orais pelas quais circula a criança; e (b) o último gesto (após o rasuramento) sinaliza a opção pela separação das palavras "do" e "rio", respeitando as convenções ortográficas, separação possivelmente gerada pela atuação das práticas letradas, escolarizadas ou não, pelas quais a criança circula.
Além de casos como esse, em outras ocorrências, os gestos denotam outras direções tomadas pelo escrevente, como exemplificam as rasuras abaixo:
Na rasura da Figura 2, para registrar a palavra "devagar", o escrevente primeiro registra "Devagar", consoante com as convenções ortográficas; em seguida, recusa esse registro, apagando-o. O primeiro gesto pode ser identificado mediante observação da marca deixada por meio de um apagamento mal sucedido. Após o apagamento, a palavra "devagar" é registrada de modo hipersegmentado, como "de vagar". Na rasura da Figura 3, o escrevente registra "o preso", consoante com as convenções ortográficas, opção que pode ser considerada em virtude do visível registro final do artigo "o" e do início da letra "p" (bem separada do registro do artigo). Por algum motivo, o escrevente retorna ao material escrito, inserindo um traço visando à união das duas palavras ("o" e "preso"), produzindo, em seu último gesto, uma hipossegmentação.
Em outros casos, menos recorrentes, o escrevente registra o primeiro e o último gesto de forma convencional, como no exemplo apresentado a seguir:
Nesse exemplo, o escrevente parece ter voltado sobre a sua escrita para registrar as duas palavras, "Arábia" e "Saudita", mais separadas, ação que parece ratificar a existência de duas e não de uma única palavra. Numa outra perspectiva teórica, rasuras como essa poderiam ser excluídas, já que parece não haver mudança na direção da segmentação, uma vez que as palavras estavam e permaneceram separadas. Apesar disso, ocorrências como essas são consideradas neste trabalho em virtude de, após a rasura, na nossa interpretação, não se tratar mais da mesma palavra, mas sim de "ela mesma, alterada por este tropeço do meio, do corpo ilimitado de alíngua" (AUTHIER-REVUZ, 2011. p. 662, grifo nosso), apontando para uma possibilidade de o dizer ser outro.
Em síntese, como julgamos ser possível observar, cada um dos gestos implicados na rasura pode seguir três direções: hipossegmentação, hipersegmentação ou registro convencional. Para analisar esses gestos e a direção que tomavam, fizemos, além da análise qualitativa buscando identificar fatores responsáveis pela emergência de cada gesto, um levantamento quantitativo, considerando a direção e a distribuição desses gestos ao longo das séries/anos pesquisados. Na próxima seção, apresentamos os principais resultados obtidos por meio dessas análises.
Resultados e discussão
O primeiro gesto: hipossegmentado, hipersegmentado ou convencional
Nas 364 rasuras ligadas à segmentação, o exame do primeiro gesto com relação às possibilidades de registro (hipossegmentado, hipersegmentado ou convencional) permitiu observar os seguintes resultados:
No Gráfico 1, verifica-se que, ao longo dos quatro anos pesquisados, o primeiro gesto do escrevente foi predominantemente o de hipossegmentar. Na primeira série, 66% (69) das rasuras começaram com esse gesto e esse percentual aumentou nos anos subsequentes, registrando-se 69% (82) na segunda série, 79% (66) na terceira série e, por fim, 83% (49) na quarta série.
Essa tendência é compatível com resultados de pesquisa feita, por exemplo, por Ferreiro e Pontecorvo (1996) sobre a segmentação de palavras presente em textos de crianças do Brasil, México, Uruguai e Itália. Nessa pesquisa, as autoras destacaram que "a tendência à hipossegmentação parece dominar sobre a tendência à hipersegmentação, qualquer que seja a língua" (FERREIRO; PONTECORVO, 1996, p. 49).
O fato de erros de segmentação e o primeiro gesto observado em rasuras ligadas à segmentação tenderem a envolver a alocação de espaços em branco aquém dos previstos pelas convenções escritas pode estar relacionado à característica mais geral das hipossegmentações. Como antecipado, elas são caracterizadas por indicar, em termos de predominância, a circulação dos escreventes por práticas orais. Nas hipossegmentações, as crianças parecem, em geral, construir a imagem de que a escrita funciona "como representação termo a termo da oralidade" (CORRÊA, 2004, p.10). A predominância de hipossegmentações nesse primeiro gesto, em vista disso, parece ligar-se ao fato de, no início da aquisição da escrita, as práticas orais constituírem uma referência importante, embora não exclusiva, para a produção escrita das crianças e, consequentemente, para a circulação delas por práticas letradas.
Ainda com relação às rasuras nas quais o primeiro gesto é uma hipossegmentação, o Gráfico 1 permite observar semelhança entre os percentuais obtidos nas duas primeiras séries (66% e 69%) e entre os percentuais das séries finais (79% e 83%). Dessa semelhança infere-se uma diferença no tocante à representação da segmentação de palavra entre as séries iniciais e finais. Nota-se, nestas últimas, uma intensificação da recusa das hipossegmentações, ou seja, acentua-se a presença das hipo como primeiros gestos no ato de rasurar.
Na observação qualitativa de rasuras nas quais os escreventes optam primeiro por hipossegmentar, averigua-se que a emergência dessas rasuras é provocada, principalmente, pelo conflito do sujeito escrevente com clíticos9. De fato, em grande parte dessas rasuras, o escrevente parece estar em dúvida quanto ao estatuto gráfico dessas unidades da língua, como demonstram os exemplos abaixo10:
Na rasura da Figura 5, ao grafar "ali do lado", o escrevente parece pretender registrar "dol{ado}", hipossegmentado, fato observado pela marca de apagamento da letra "l". Após o apagamento, registra "do lado", em consonância com as convenções ortográficas. De modo análogo, na rasura da Figura 6, o escrevente grafa "nal[oja]", insinuando uma hipossegmentação, fato resgatado pelo traço que indicia a gênese de um "l" que, na sequência, é abandonado pelo escrevente, que registra "na loja"13.
Ambos os exemplos apontam um conflito gerado pelo não reconhecimento da autonomia gráfica dos clíticos "do" e "na". Nessas rasuras, o escrevente, num primeiro momento, parece interpretar esses clíticos como sílabas pretônicas de uma palavra trissilábica: "dolado" e "naloja". Ou seja, eles parecem reconhecer a dependência fonológica desses clíticos com relação aos seus hospedeiros e, em contrapartida, não notar a autonomia gráfica desses clíticos. Nesse sentido, essas rasuras sinalizam, de forma predominante, momentos em que o escrevente supõe que características dos enunciados falados - nesse caso, a dependência de clíticos fonológicos como "do" e "na" com relação aos seus hospedeiros - poderiam ser transferidas para os enunciados escritos sem alteração. Mostram, como consequência, que a imagem que o escrevente faz da (sua) escrita está, nesse momento, plasmada no modo de enunciação oral.
O Gráfico 1 permite constatar, também, a menor incidência de hipersegmentações no gesto inicial dos escreventes. Retomando esse gráfico, é possível observar que, na primeira série, essas ocorrências representam 22% (23) do total de rasuras, na segunda série, 20% (23), na terceira série, 10% (8), e, por fim, na quarta série, 7% (4). Os dados levantados indicam que, desde a primeira série, ocorrências nas quais o gesto inicial é uma hipersegmentação são muito menos frequentes do que aquelas em que esse gesto é uma hipossegmentação e, com o avanço dos anos de alfabetização - consequentemente, com a maior participação das crianças em práticas sociais letradas institucionalizadas escolares e não escolares -, esse percentual vai reduzindo-se.
O menor número de rasuras nas quais o primeiro gesto do escrevente é o de hipersegmentar, desde a primeira série, pode ter sido motivado pela vinculação preferencial das hipersegmentações com práticas letradas. Lembremos, ainda, que o primeiro gesto implicado na rasura é sempre recusado, uma possibilidade de segmentação abandonada pelo escrevente. Portanto, os escreventes, nesse primeiro gesto, recusam menos as informações ligadas a sua circulação por práticas letradas. Isso nos leva a sugerir que a menor incidência dessas rasuras está associada ao fato de, no início da aquisição da escrita, as práticas letradas constituírem uma referência importante, embora não exclusiva, para a produção escrita das crianças.
Na observação qualitativa de rasuras nas quais os escreventes optam primeiro por hipersegmentar, verifica-se que a emergência dessas rasuras é provocada, sobretudo, pelo reconhecimento de palavras no interior de outras. Ou seja, as rasuras instauram-se, em geral, em momentos nos quais "uma letra ou uma pequena sequência de letras tanto podem constituir uma parte de uma palavra quanto podem corresponder a uma palavra inteira" (CHACON, 2005, p. 83). O exemplo a seguir ilustra esse comportamento:
Nessa rasura, o gesto inicial do escrevente gerou a hipersegmentação "de cartaveis". A sequência de letras "de" pode ser empregada, pelo menos, de duas formas na escrita: (a) como parte de uma palavra, por exemplo, "descartáveis" ou "padecer"; (b) como uma palavra (preposição) "cheguei de Recife". Na rasura apresentada na Figura 7, portanto, parece que o escrevente considerou primeiro que a sílaba pretônica "de" funcionaria graficamente como uma preposição e, por essa razão, deveria ser delimitada por brancos.
Funcionamento análogo pode ser visto na rasura da Figura 8, abaixo. Nela, ao grafar "aconteceu", o escrevente registra primeiro "aconte ceu", sinalizando que interpretou "ceu" como uma palavra da língua (seu ou, menos provavelmente, céu):
O Gráfico 1 permite visualizar, por último, que, ao longo das séries pesquisadas, de modo mais ou menos regular, o registro inicial foi convencional: na primeira série, 12% (12), na segunda série, 11% (13), na terceira série, 10% (09), e, na quarta série, também 10% (06). A rasura abaixo exemplifica esse funcionamento. Nela, o escrevente grafa "tinha" e "lá" de forma convencional e, após rasuramento, hipossegmenta, registrando "tinhala":
O menor número de rasuras nas quais o primeiro gesto do escrevente corresponde ao esperado pelas normas ortográficas pode ser explicado, a nosso ver, pela circulação da criança por práticas letradas. À semelhança do ocorrido com as rasuras nas quais o primeiro gesto corresponde a uma hipersegmentação, essas rasuras indiciam que os escreventes, nesse primeiro gesto, recusam menos as informações ligadas a sua circulação por práticas letradas e mostram, assim, que, no início da aquisição da escrita, as práticas letradas são uma forte referência para a produção escrita dessas crianças.
Observadas qualitativamente, as rasuras nas quais o primeiro gesto é convencional são marcadas pela singularidade, uma vez que os fatores que permitem a emergência de cada uma delas são bastante particulares. Identificamos apenas uma tendência: 9 (22,5%) das 40 rasuras incidiam sobre o registro de palavras homônimas como, por exemplo, em:
Dessas nove ocorrências, oito referem-se ao emprego do "porque" e uma à da palavra "Bonfim". Ambas são palavras homófonas (porque/por que/porquê/por quê e Bonfim/bom fim), cuja instabilidade gráfica contribui para a instauração do conflito, já que podem ser registradas de diferentes formas, mantendo-se a semelhança fônica. Nesse caso, assim como em outros analisados anteriormente, o conflito parece ser motivado pela circulação dos escreventes por informações letradas, em especial aquelas que ditam que essas palavras podem ser registradas de modos diferentes18.
Sintetizando os resultados relativos ao primeiro gesto, podemos dizer que os escreventes, na maioria das vezes, hipossegmentam. Essa tendência aumenta ao longo das séries, marcando a forte influência da circulação do escrevente por práticas orais. Com menor incidência, o primeiro gesto foi hipersegmentado ou convencional, mostrando a atuação da circulação das crianças por práticas letradas nas decisões que elas tomam sobre como segmentar.
O último gesto: hipossegmentado, hipersegmentado ou convencional
No último gesto pressuposto na rasura, o escrevente também poderia se conduzir ou ser conduzido para três diferentes direções: uma hipossegmentação, uma hipersegmentação ou, ainda, um registro convencional. Para verificarmos as escolhas dos escreventes, quantificamos os dados considerados como último gesto de maneira semelhante à quantificação realizada para o primeiro gesto. A partir dessa quantificação, chegamos aos resultados expressos no Gráfico 2:
O Gráfico 2 permite observar que, na primeira série, em 83% (86) das rasuras, a escrita final correspondeu ao esperado pelas convenções ortográficas. Essa porcentagem, ao longo dos anos, foi aumentando, registrando-se, na segunda série, 87% (103 rasuras) e, na terceira série, 93% (77 rasuras). Na quarta-série, nota-se um pequeno declínio: 90% (53) dos registros.
O fato de, indiferentemente da série pesquisada, o último gesto corresponder, na maioria das vezes, à escrita convencional pode ser interpretado como um importante índice do processo de alfabetização e do letramento desses escreventes. Lembremos que o último gesto corresponde à escolha final da criança, ou seja, à direção eleita por ela para segmentar. Nessas rasuras, fica, pois, patente, que as escolhas finais desses escreventes são produto da circulação deles por práticas letradas (escolarizadas ou não).
Olhando qualitativamente para as rasuras em que o último gesto é convencional, observamos que, em sua maioria, a decisão do escrevente envolve o estatuto gráfico dos clíticos, como demonstram os exemplos a seguir:
Na rasura da Figura 11, o escrevente primeiro opta por hipossegmentar "Abruxinha" e, depois, em seu último gesto, registra convencionalmente "A bruxinha", parecendo ser afetado pela autonomia gráfica do artigo "a", correspondente a um monossílabo não acentuado, portanto, um clítico. Na rasura da Figura 12, "Se você (...)", de modo semelhante, no último gesto, o escrevente parece ser afetado pela autonomia gráfica da conjunção "se". Nesse último exemplo, é interessante destacar que o escrevente registra a conjunção condicional "se" com "e", mesmo ela sendo pronunciada com "i". Na mesma frase, registra o pronome "me" como "mi" em "miquiser". O registro convencional de "se", contrastado com o registro não convencional de "me", mostra, mais uma vez, a forte influência letrada na produção escrita desta criança.
No Gráfico 2, vê-se, ainda, que, com menor incidência, o último gesto recaiu sobre uma hipersegmentação ou sobre uma hipossegmentação. Com relação à hipersegmentação, verifica-se que, na primeira série, 10% (11) das ocorrências funcionaram assim. Esse percentual reduziu-se ao longo das duas séries posteriores: na segunda série, 9% (11) e, na terceira série, 1% (1). Na quarta série, observamos um aumento para 5% (3). Todavia, esse aumento ocorreu devido ao fato de duas das três ocorrências recaírem sobre a homonímia "porque". Como dito antes, dados como esses têm comportamento especial, dada a instabilidade gráfica deles, já prevista na língua (cf. nota 19).
Relativamente às rasuras em que o último gesto corresponde a hipossegmentações, o Gráfico 2 permite averiguar que, em 2001, 7% (7) das ocorrências tinham esse funcionamento. Esse número manteve-se mais ou menos igual nos anos subsequentes: 4% (4 rasuras) em 2002, 6% (5 rasuras) em 2003 e 5% (3 rasuras) em 2004.
A baixa incidência de último gesto hipersegmentado ou hipossegmentado pode igualmente ser explicada pela circulação da criança por práticas letradas. De forma mais específica, por um lado, essa circulação faz com que as crianças, no tocante à segmentação, se afastem das práticas orais e, portanto, se aproximem dos modos canônicos de delimitar as palavras orto(gráficas), deixando de ter a hipossegmentação como uma possibilidade de segmentar. Por outro lado, a aproximação dos modos canônicos de delimitar palavras ortográficas faz com que as crianças também deixem de hipersegmentar, uma vez que, embora a hipersegmentação seja interpretada, neste trabalho, como predominantemente determinada pela inserção das crianças em práticas de letramento, ela não deixa de ser um erro ortográfico e, portanto, não deixa de estar em divergência com o esperado pelas convenções ortográficas.
Na observação qualitativa das rasuras em que o último gesto é uma hipersegmentação, a maior parte dos registros - 9 (34,6%) dos 26 registros identificados - funciona como o exemplo apresentado a seguir:
No último gesto explicitado na rasura da Figura 13, o escrevente insere um espaço em branco entre "a" e "lerta", criando uma sequência que poderia corresponder a um clítico e uma pseudopalavra22, o que permite mostrar que nem sempre a circulação por práticas letradas conduz o escrevente ao acerto. Esse tipo de ocorrência sinaliza um reconhecimento de palavras no interior de outras, uma vez que "a", na escrita e na língua, tanto pode ser sílaba pretônica de uma palavra (alerta), como uma palavra gramatical, por exemplo, em "a casa"; portanto, a sílaba isolada guarda relação homonímica com um clítico da língua.
Soma-se a isso o fato de "lerta" ser um dissílabo possível na língua. Sobre isso, Abaurre (1991) já havia explicitado o fato de as crianças parecerem privilegiar palavras dissílabas paroxítonas. Para essa autora, ocorrências como essa nos permitem inferir que "as crianças podem estar operando com algum tipo de forma canônica da palavra na língua, para cujo estabelecimento pode estar contribuindo a percepção que já têm da organização rítmica e prosódica dos enunciados" (ABAURRE, 1991, p. 208).
Examinado qualitativamente as rasuras em que o último gesto é uma hipossegmentação, vemos que esse gesto ocorre, principalmente, em momentos nos quais os escreventes devem registrar elementos clíticos, como exemplifica a rasura abaixo:
Na tarefa de grafar 'a voz', o escrevente realiza o primeiro registro em consonância com as convenções ortográficas; o último gesto, por sua vez, é o registro hipossegmentado: "avois". Nessa ocorrência, o clítico 'a' parece ser considerado sílaba pretônica do substantivo que o sucede.
Como síntese dos resultados relativos ao último gesto, podemos destacar que os escreventes tendem a escolher o registro que concorda com as convenções ortográficas e isso em todas as séries pesquisadas. Na perspectiva assumida neste trabalho, a prevalência dessas ocorrências que equivalem a um "acerto" e, em contrapartida, o fato de uma parcela pequena das ocorrências terem como último gesto um "erro", sinalizam forte influência das práticas letradas sobre a relação sujeito/linguagem, ratificando, dentre outras coisas, a inexistência de um "grau zero de letramento" ou um "iletramento" (TFOUNI, 2010) quando se pensa nas etapas iniciais da aquisição da escrita.
Trânsito: práticas orais e letradas
Neste trabalho, também nos interessava examinar o cruzamento entre o primeiro e o último gesto, com a finalidade de verificar quais os caminhos percorridos pelos escreventes ao rasurar. As análises separadas do primeiro e do último gesto, feitas nas seções precedentes, já nos forneceram indicações de como esse cruzamento ocorre. Aqui, apenas daremos voz e vez àquilo que, a nosso ver, pode ter ficado subentendido nas análises anteriores.
Para analisar o cruzamento entre o primeiro e o último gesto, ancorados nas pesquisas de Corrêa (2004, 2013a, 2013b), Chacon (2004, 2005), Capristano (2007a, 2007b) e Paula (2007), partimos da suposição de que: (a) o registro inicial ou final hipossegmentado sinalizaria, em termos de predominância, influências das práticas orais; (b) o registro inicial ou final hipersegmentado, em termos de predominância, a influência de práticas letradas; e, por último, (c) o registro inicial ou final convencional, em termos de predominância, indiciaria, igualmente, a influência das práticas letradas.
Com base nessa suposição, os caminhos encontrados foram: do oral para o letrado, do letrado para o oral e do letrado para o letrado24. Esses caminhos estão distribuídos da seguinte forma ao longo dos anos:
Como é possível observar no Gráfico 3, o trajeto oral → letrado foi o mais recorrente em todas as séries analisadas, aumentando ao longo dos anos, já que, na 1ª série, o percentual de rasuras com essa trajetória era de 67,3% (70), atingindo, na 4ª série, 79,6% (47). O trajeto letrado → oral foi o de menor incidência, registrando-se, na 1ª série, 8,7% (9), na 2ª série, 3,4% (4), na 3ª série, 7,2% (6) e, na 4ª série, 3,4% (2). Por último, o trajeto letrado → letrado foi mais recorrente na primeira série, na qual identificamos um percentual de 24% (25), percentual que se reduz na segunda série para 22,1% (26), atingindo, posteriormente, na terceira série, um índice de 16,8% (14) e, na quarta série, de 17% (10).
No trajeto oral → letrado, como exemplificam as rasuras das Figuras 15 e 16, o primeiro gesto ancora-se em práticas orais e, após o rasuramento (apagamento, inserção, escrita sobreposta ou outro gesto análogo), os escreventes mostram sua circulação por práticas letradas:
Os escreventes, ao grafarem "a carta" (Figura 15) e "por todas" (Figura 16), inicialmente, parecem atribuir ao artigo "a" e à preposição "por" o caráter de sílaba pretônica das palavras "carta" e "todas". Esse tipo de ocorrência, como adiantamos, tem sido interpretado como calcado em práticas orais, já que, nelas, em geral, os escreventes registram os clíticos amalgamados às palavras de conteúdo que lhes servem de hospedeiras, transformando esses clíticos em sílabas pretônicas dessas palavras. Após o apagamento, os escreventes parecem lidar com e/ou reconhecer a autonomia gráfica do artigo e da preposição, inserindo espaços em branco de forma convencional.
As rasuras das Figuras 17 e 18 exemplificam os casos em que o trajeto se deu das práticas letradas para as práticas orais:
Na Figura 17, o escrevente precisa grafar "estou com dor". Em seu primeiro gesto, registra "estou com" de acordo com as convenções ortográficas, separando o item lexical "estou" da preposição "com", provavelmente ancorado em suas práticas letradas. Todavia, o escrevente rasura, registrando "estoucom". O último gesto pode ter sido motivado pelo conflito do escrevente com o clítico "com": uma sílaba de uma palavra (como em comprido) ou um elemento independente, autônomo (como em com certeza)?
Nesse contexto, o registro da preposição "com" impõe barreiras ao escrevente, já que, do ponto de vista morfossintático, essa preposição é dotada de sentido, pois é uma palavra gramatical, mas, do ponto de vista fonológico, é uma forma dependente, um clítico. Quando crianças brasileiras têm dificuldade de reconhecer clíticos fonológicos como palavras que devem ser delimitadas por brancos na escrita, elas, de modo geral, unem os clíticos à palavra fonológica que os sucede (cf. CUNHA, 2010). Entretanto, na ocorrência "estoucom", a criança subverte essa tendência geral, unindo "com" à palavra que a antecede "estoucom", possivelmente, interpelada pelo fato de a palavra que sucede a preposição "com" ser o tema central do texto do qual essa rasura foi recortada: a "dor". Ou seja, nossa hipótese é a de que a escolha pela união de estou e com (pouco comum em produções textuais de crianças brasileiras) pode sinalizar uma forte influência da temática da produção textual na definição sobre como segmentar.
Na rasura da Figura 18, o escrevente registra "no trânsito", separando o clítico "no" da palavra prosódica "trânsito". Nessa rasura, como na anterior, parecem ecoar, nesse primeiro gesto, as experiências letradas do escrevente. No entanto, na sequência, o escrevente acrescenta um traço de inserção, objetivando unir as duas palavras, formando "notrânsito". O último gesto parece supor a escrita como representação de sequências faladas, já que o clítico ganha estatuto de sílaba inicial da palavra "trânsito".
Por último, as rasuras apresentadas nas Figuras 19 e 20 exemplificam o caminho menos recorrente, no qual os escreventes parecem transitar das práticas letradas para as práticas letradas:
Nessas rasuras, os escreventes precisam grafar as palavras "dezembro" e "era". No primeiro gesto, os escreventes grafam essas palavras de forma hipersegmentada ("de zembro" e "é ra") e, no último gesto, registram de acordo com o esperado pelas convenções ortográficas. Ambos os gestos emergem, provavelmente, de conhecimentos oriundos das experiências letradas vividas pelo escrevente.
A hipersegmentação poderia ser considerada, por leitores incautos, um índice de "desconhecimento"; entretanto, na perspectiva assumida neste trabalho, essas hipersegmentações permitem observar que os escreventes, ao grafarem "de zembro" e "é ra", parecem conferir à sílaba inicial desses dois vocábulos o estatuto de palavras (a preposição "de" e o verbo ser, conjugado como "é"). Ou seja, os escreventes parecem lidar com a possibilidade de autonomia desses elementos, o que os motivaria a propor o espaçamento não convencional. A junção feita com um traço e o apagamento de "ra" e sua reescrita junto à "é", por sua vez, indiciam que os escreventes podem ter recuperado uma memória de que era e dezembro são palavras que devem ser delimitadas por brancos. Não coincidentemente, essas são palavras bastante comuns nas práticas escolares institucionalizadas: a primeira é frequente em narrativas infantis (Era uma vez...) e a segunda é comumente objeto de ensino, já que nomeia um dos meses do ano.
Outras rasuras que mostram o trânsito do escrevente das práticas letradas para as práticas letradas envolvem o espaço gráfico do caderno escolar e, mais especificamente, as margens que limitam o espaço destinado à produção escrita:
O escrevente grafa "branc" e, dada a impossibilidade de continuar o registro da palavra "brancas" na mesma linha em virtude do reconhecimento da margem como um limite gráfico a ser respeitado, apaga e grafa essa palavra na linha seguinte. Interpretamos ocorrências como essa como índices de um movimento que leva o escrevente das práticas letradas em direção às práticas letradas, já que, nelas, concorrem informações sobre a necessidade de respeitar as margens do caderno escolar (informação letrada) e uma tentativa de ratificar que "brancas" é uma unidade, ou seja, uma única palavra. Em todo o corpus, foram encontradas 11 ocorrências envolvendo o conflito com a margem e os limites de palavra gráfica, que representam 3% das ocorrências de rasuras ligadas à segmentação.
As observações feitas aqui sobre o cruzamento entre o primeiro e o último gesto possibilitam constatar que as rasuras ligadas à segmentação emergem como produtos do entrelaçamento de práticas sócio-históricas orais e letradas. Elas permitem averiguar, mais ainda, que o trânsito preferencial do escrevente, nessas rasuras, ocorre das práticas orais para as práticas letradas, ou seja, os conflitos vivenciados pela criança sobre como segmentar instauram-se no cruzamento/entrelaçamento das práticas orais com as práticas letradas.
Considerações finais
Neste trabalho, conduzido pela perspectiva teórico-metodológica aberta em estudos de Capristano (em especial, 2013, 2014a e 2014b), tivemos o propósito de apresentar e descrever alguns fatores responsáveis pela emergência de rasuras ligadas à segmentação presentes em produções escritas infantis. Buscamos detalhar fatores determinantes para o aparecimento de cada um dos gestos pressupostos na ação de rasurar, que, aqui, foram nomeados como primeiro e último gesto. Como resultado mais geral, vimos que as rasuras ligadas à segmentação sinalizam que a criança aprende a segmentar de acordo com o previsto nas convenções ortográficas, guiando-se por informações obtidas em seu trânsito por práticas orais e letradas, havendo, preferencialmente, no primeiro gesto, forte influência das primeiras e, no último gesto, forte influência das últimas.
O corpus deste trabalho permitiu, também, verificar como esses fatores atuavam ao longo das séries/anos investigados. A esse respeito, vimos grandes semelhanças no comportamento das rasuras quando observadas longitudinalmente: desde a primeira série, o primeiro gesto do escrevente tende a ancorar-se em suas práticas orais, enquanto o último gesto, também desde a primeira série, tende a surgir como resultado da circulação do escrevente por práticas letradas.
Por meio desses resultados foi possível constatar a influência capital do letramento para a instauração dos conflitos sobre como segmentar. Nas rasuras ligadas à segmentação, fica patente que mesmo a circulação das crianças por práticas orais é, desde o princípio, atravessada por e/ou está entrelaçada à circulação simultânea dessas crianças por suas experiências letradas. Essas constatações autorizam-nos a concluir que a escrita infantil, já em seus passos mais iniciais, não pode ser interpretada como um mero decalque do falado, mas, sobretudo, como fruto do trânsito das crianças por práticas sociais orais e letradas, historicamente constituídas.
Esperamos que as reflexões desenvolvidas neste trabalho possam somar-se às demais pesquisas que se propõem a reconhecer a heterogeneidade da escrita, abrindo espaço para um olhar diferente sobre os enunciados escritos pelas crianças: não mais como espaço do "erro", da "interferência da fala", mas como um acontecimento sócio-histórico, marcado pela relação sujeito/linguagem.32
Por fim, esperamos, também, ter contribuído para a desmistificação do caráter de sujeira normalmente atribuído à rasura, uma vez que as discussões impetradas neste trabalho corroboram a tese de que as rasuras indiciam conflitos do escrevente com a língua/linguagem, conflitos que colocam em cena uma das diversas facetas da complexa relação sujeito/linguagem.
REFERÊNCIAS
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1
Nesses trabalhos, há flutuação no modo como essas marcas - apagamento, riscos etc. - são nomeadas (rasuras, reelaborações, marcas de correção) e, por conseguinte, no modo como elas são interpretadas do ponto de vista teórico.
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2
Falamos em "predominância" porque supomos que hipossegmentações também podem resultar da circulação da criança por práticas letradas e, da mesma forma, que hipersegmentações podem ser produto da circulação da criança por práticas orais. A esse respeito, conferir Capristano (2007a, 2007b).
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3
Na identificação das rasuras, o corpus foi examinado três vezes por duas pessoas diferentes para que fosse possível, de fato, confirmar a identificação das rasuras ligadas à segmentação. Além disso, o trabalho de identificação foi feito com auxílio de uma lupa de leitura LL-975 (aumento 2X, com luz).
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4
Uma exemplificação e uma explicação dessas categorias podem ser encontradas também em Capristano (2010).
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5
Leitura preferencial: São José do Rio Preto , 09/05/2001.
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6
Leitura preferencial: Devagar se chega lá .
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7
Leitura preferencial: O preso .
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8
Leitura preferencial Ué Arábia Saudita? Nem tanto.
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9
Clíticos são monossílabos átonos que compreendem grande parte das chamadas palavras funcionais. Por serem destituídos de acento, são, fonologicamente, formas dependentes que se apoiam no acento da palavra seguinte ou precedente (cf. BISOL, 2005, p. 163).
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10
Esse comportamento das rasuras ligadas à segmentação é observado também em estudos sobre segmentações não convencionais - a esse respeito, conferir, por exemplo, a pesquisa de Tenani (2010).
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11
Leitura preferencial: Mas a polícia vê que tem um cemitério ali do lado mas nem ligam acham .
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12
Leitura preferencial: Comprar um sapato na loja .
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13
Essas duas rasuras exemplificam o que na seção Material e Metodologia chamamos de falso início .
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14
Leitura preferencial: Copos descartáveis .
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15
Leitura preferencial: Um dia aconteceu uma tragédia o carro da mulher .
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16
Leitura preferencial: Admirado com as comidas que tinham lá .
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17
Leitura preferencial: Não acho certo porque não aconteceu .
-
18
Paranhos (2014) destaca a influência das palavras homônimas na ocorrência de segmentações não convencionais em produções textuais de alunos do 5º ao 8º ano. Segundo a autora, hipersegmentações em que o escrevente depara-se com um conflito gerado pela homonímia "resultam em representações gráficas de sequências em que há um clítico prosódico, que corresponde a palavras funcionais ou itens gramaticais" (PARANHOS, 2014, s.p) como é o caso do "por" (preposição). Para a autora, essas hipersegmentações devem receber tratamento teórico e metodológico específico, dada a sua peculiaridade morfossintática e semântica.
-
19
Leitura preferencial: A bruxinha e o elefante .
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20
Leitura preferencial: Se você não me quiser, tudo bem outra quer .
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21
Leitura preferencial: Alerta (entre linhas)
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22
Nos estudos de Cunha (2004) e Tenani (2011), dados como "lerta" são denominados como pseudopalavras , uma vez que embora não tenham significado conhecido na língua, em termos de estrutura, são dotados de acento primário e, nesse sentido, poderiam configurar-se como uma palavra.
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23
Leitura preferencial: com a voz .
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24
Não encontramos, em nenhuma série, rasuras em que o caminho do escrevente tenha sido do oral para o oral . Esse dado, por si só, é bastante significativo e harmoniza-se com as conclusões deste trabalho, apresentadas na seção final.
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25
Leitura preferencial: O rato recebeu a carta do rato .
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26
Leitura preferencial: tem muita paciência pelas coisas e é muito inteligente e quer elogios por todas as coisas que faz .
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27
Leitura preferencial: 3ª ai mãe estou com dor de ouvido .
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28
Leitura preferencial: as pessoas no trânsito .
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29
Leitura preferencial: eu vou dezembro .
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30
Leitura preferencial: os carros eram diferentes.
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31
Leitura preferencial: pintinhas brancas (final de linha).
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32
cf. CORRÊA, 2013.
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*
Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora (Graduação) da Universidade Paranaense (UNIPAR) Campus Umuarama. Membro dos Grupos de Pesquisa Estudos sobre a Aquisição da Escrita (CNPq) e Estudos sobre a Linguagem (CNPq). E-mail: tatianehsmachado@gmail.com
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Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora (Graduação e Pós-graduação) da Universidade Estadual de Maringá (UEM) Campus Maringá. Líder do Grupo de Pesquisa Estudos sobre a Aquisição da Escrita (CNPq) e membro do Grupo de Pesquisa Estudos sobre a Linguagem (CNPq). E-mail: capristano1@yahoo.com.br
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2016
Histórico
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Recebido
11 Dez 2014 -
Aceito
23 Nov 2015