RESUMO:
Busco entender as articulações que tornam possível que um conjunto de demandas localizadas, trazidas à cena pelo Escola sem Partido, um grupo sem óbvia representatividade na sociedade, ganhe espaço na recente política educacional no Brasil. Em um primeiro momento, são mapeadas articulações entre o movimento, grupos religiosos conservadores e a Rede Atlas, mobilizando a teoria do discurso de Laclau e Mouffe e a noção de redes globais utilizada por Ball. Defendo que tal articulação vem contribuindo para a hegemonização das posições do ESP. Em um segundo momento, em diálogo com a leitura do neoliberalismo como economização da vida, de Brown, levanto hipóteses para entender a relevância das demandas conservadoras para a normatividade neoliberal. Com Laclau, argumento que há uma luta pela representação do povo, que põe em oposição as políticas populistas dos governos do PT e a rede constituída pela articulação entre a Rede Atlas e o Escola sem Partido.
Palavras-chave: Políticas de currículo; Redes globais; Neoliberalismo; Escola sem Partido
ABSTRACT:
I try to understand the articulations that allow the possibility that a set of localized demands, brought to the scene by the Escola sem Partido - ESP (School without ‘Party), a group without obvious representativeness in society, gain space in the recent education policies in Brazil. Initially, articulations between the movement, conservative religious groups and the Atlas Network are mapped, mobilizing Laclau and Mouffe’s theory of discourse and the notion of global networks used by Ball. I argue that such articulation has contributed to the hegemonization of the positions of the ESP. In another moment, in dialogue with Brown’s reading of neoliberalism as economizing life, I raise hypotheses to understand the relevance of conservative demands for neoliberal normativity. With Laclau, I argue that there is a struggle for the representation of the people, which opposes the populist policies of the Workers’ Party governments and the network constituted by the articulation between the Atlas Network and the ESP.
Keywords: Curriculum policies; Global networks; Neoliberalism; Escola sem Partido
INTRODUÇÃO
O foco deste texto não é, especificamente, o Movimento Escola sem Partido (ESP), criado em 2004, e transformado em associação em 2015, por seu fundador, o procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib. Em seus primeiros 11 anos de existência, o movimento teve pouca repercussão nacional, e mesmo a proeminência que ganhou nos últimos anos se baseia em um conjunto de reivindicações pouco substantivas. Falando em nome da liberdade da família na educação das crianças, o ESP tem-se constituído contra o que denomina de doutrinação política e ideológica feita por professores. Sua principal bandeira, o Programa Escola sem Partido, 2vem sendo secundada, recentemente, por um conjunto de outras ações tópicas como, por exemplo, a solicitação judicial de que os critérios de atribuição de grau zero nas redações do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) não incluíssem o desrespeito aos direitos humanos. Ações mais consequentes ocorreram quando dos debates da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), momento no qual, articulado com outros agentes políticos, o ESP pressionou, com sucesso, para a retirada de temas que remetem à diversidade e à pluralidade cultural do documento promulgado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).
Por ser a temática que pesquiso, mas também por seu impacto sobre as políticas educacionais, vou tomar tais debates como ponto de partida para este texto. Em outro lugar (MACEDO, 2017), detalhou um pouco mais sobres as demandas postas pelo ESP no processo político que culminou com a aprovação da BNCC, de modo que não vou retomá-las aqui na mesma forma. As ações de então visaram suspender a discussão da Base e remeter a sua discussão para o Congresso Nacional, culminando com o veto a determinados conteúdos e, até mesmo, termos no documento final. O foco dos vetos é o mesmo que tem sido objeto do Programa Escola sem Partido: posições políticas entendidas por movimentos como o de esquerda, questões de gênero e sexualidade, cultura negra (referida como religião), entre outras.
O que me interessa neste texto é entender - na verdade, tudo que posso, por enquanto, é sugerir algumas explicações tentativas que não esgotam o tema - como é possível que o ESP tenha conquistado tal espaço no cenário da política educacional? Que tipo de articulações têm permitido a demandas localizadas - apresentadas por um grupo de pessoas sem óbvia representatividade na sociedade - serem “universalizadas” na base nacional para os currículos? A resposta mais óbvia seria, é claro, o fato de termos vivido um golpe parlamentar que colocou no poder um presidente refém de parcelas conservadoras do Congresso Nacional. Ainda que julgue que o golpe é, sem dúvida, uma peça importante nesse jogo político, entendo que ele não é explicação suficiente. Afinal, o ESP e, principalmente, os grupos aos quais se associou nos debates da BNCC vêm se consolidando - e se apresentando no cenário nacional - como forças políticas importantes há algum tempo. O que pretendo aqui é mapear a articulação de algumas dessas forças no debate recente da BNCC para produzir um conjunto imbricado de explicações tentativas para a questão que me atordoa: como não percebemos esse movimento sendo urdido ou, se percebemos, por que não lhe demos a devida importância? É possível, do espanto sofrido que essa situação vem nos causando, pensar uma outra política, sem jogar para baixo do tapete o tanto que nossas políticas “inclusivas” também foram deixando de fora ao longo do tempo?
MAPEANDO AS DEMANDAS POR LIBERDADE: LUCRO E FAMÍLIA
O primeiro exercício que quero fazer, neste texto, visa entender as articulações que hegemonizaram posições popularizadas pelo ESP, mas apresentadas por diferentes grupos. Uso, para tanto, o ferramental teórico pós-estrutural e pós-fundacional que venho mobilizando para os estudos das políticas curriculares recentes, constituído pela teoria do discurso (LACLAU, 2008, 2011) e pela noção de redes de políticas como mobilizada por Stephen Ball (2012; e BALL; JUNEMANN, 2012).
Como venho trabalhando com tais autores em diferentes textos, dentre os quais Macedo (2014, 2016, 2017), vou me permitir aqui apenas uma rápida apresentação de alguns aspectos dessas teorias que mobilizo em minha análise. A teoria do discurso se define como uma teoria pós-fundacional da política, ou seja, como uma tentativa de entender a hegemonização de políticas {específicas} sem lançar mão de um fundamento que a justifique. Parte da ideia de que o social é eminentemente político, o que, na definição de Mouffe (2003), significa que ele é marcado por um antagonismo que jamais pode ser erradicado. Esse caráter ontologicamente político não implica, no entanto, que não haja tentativas de controle da significação - e a política é isso -, mas apenas que ela nunca se fará de uma vez por todas. Qualquer hegemonia política, para a teoria do discurso, segue marcada por um exterior que a constitui de dentro e, com isso, impede a totalização. Ela é contingente de tal forma que, se tomamos o sentido mais clássico de hegemonia, talvez seja mesmo um contrassenso imaginar uma hegemonia que está constantemente mudando e que, nesse movimento, se constitui.
A hegemonização ou a tentativa de universalização de uma posição particular exige, para a teoria do discurso, uma articulação entre demandas distintas, ou que a lógica meramente antagônica do social seja atravessada por equivalências que não apagam o antagonismo. No exercício de entender como tais articulações se fazem possíveis, Laclau (2008, 2011) vai propor que a equivalência entre as demandas é produzida quando uma demanda excede o que pode ser representado dentro da ordem simbólica e funciona como um exterior que a constitui. Nesse momento, um significante (demanda) assume uma posição privilegiada e se torna um ponto nodal ou um significante que se universaliza “representando” o conjunto das demandas em jogo. Apesar de continuarem diferidas, as estruturas contingenciais de significação assim produzidas vão criando efeitos de controle.
Uso o significante “liberdade” como aquele que “representa” demandas do ESP que foram se hegemonizando por meio de negociações com outras demandas e me movimento, aqui, para entender as demandas nele condensadas, assim como as articulações que tornaram possível aproximá-las. Esse é o significante reivindicado pelo próprio ESP e pelos grupos com quem tem visivelmente se articulado - bancadas religiosas no Congresso Nacional, Movimento Brasil Livre (MBL), entre outros - tendo como exterior que constitui a articulação, a intervenção estatal e uma suposta doutrinação: “o ensino obrigatório é (…) uma gigantesca intervenção estatal na vida dos indivíduos e suas famílias”. 3Entender as articulações, as reivindicadas e as menos explícitas, do ESP dá continuidade às pesquisas sobre as políticas de currículo que venho coordenando há algum tempo. No caso do ESP, imagino (e espero) que isso torne possível perceber que suas (às vezes, tragicômicas) reivindicações precisam ser compreendidas como uma rede mais complexa de demandas ou como um projeto bem mais consequente do que parece.
Mais recentemente, e isso tem ocorrido em meus exercícios para entender os movimentos políticos que buscam viabilizar uma base curricular comum para o currículo em nível nacional, tenho assumido que os mapeamentos de redes de políticas globais, tal como os produzidos por Ball (2012), são úteis para dar conta da hegemonização de determinados discursos. Especialmente no campo das políticas curriculares, no qual as hegemonias tendem a ser fracas - estabelecendo-se, muitas vezes, em torno de significantes nodais flutuantes e antagonismos pouco explícitos -, o mapeamento de redes políticas permite perceber uma relação mais intricada (e topológica) de articulações, evitando certo esquematismo contra o qual Laclau (2008) alerta, mas que segue sendo uma das dificuldades empíricas do uso da teoria do discurso (HOWARTH; NORVAL; STAVRAKAKIS, 2000).
As redes são definidas, por Ball (2012, p. 5), como “comunidades políticas” descentradas, articuladas em torno de problemas sociais comuns, tendo em vista suas soluções. Tal como proposto pela teoria do discurso, tais comunidades, assim como as que as constituem - “capital financeiro filantrópico, think-tanks, partes dos governos e diversos políticos e atores políticos, ao longo dos partidos, nacionais e internacionais” (BALL; JUNEMANN, 2012, p. 85) - não possuem nenhuma essência que as constitua. Os agentes políticos de que fala Ball (2012), como as identidades políticas da teoria do discurso, são constituídos em relação e, nesse processo, produzem, retroativamente, os cenários nos quais se localizam. Se aqui, portanto, faço referência ao ESP e aos grupos com os quais se articula em uma “comunidade política”, não os tomo, nem a eles nem a ela, como essência. São, todas, identidades forjadas pelas “soluções” que propõem para problemas sociais comuns ou por suas demandas não atendidas por um exterior que, assim, as constitui. O recurso à nomeação que aqui uso é possível - porque me refiro ao que já foi - e, talvez, necessário para a compreensão, mas também perigoso. Com ele, corre-se o risco de criar, para o leitor como para o pesquisador, um efeito de essência que reifica as demandas e distorce nossa capacidade de perceber o político.
Ball (2012) vem mapeando as comunidades políticas globais por intermédio do que chama de etnografia da rede, tendo como produto mapas tanto de empresas e de fundações, quanto de sujeitos individuais, filantropos 2.0 e pessoas com influência nas redes. Além dessa mistura de agentes, o autor destaca que as relações entre os diferentes nós da rede são distintas e que o mapeamento não dá conta de tais distinções, o que seria uma limitação do método. Tenho defendido que é essa “desvantagem” que possibilita uma visão mais topológica da política (MACEDO, 2016) e que, com a associação entre o mapeamento das redes e a teoria do discurso, é possível entender melhor a complexidade das articulações que produzem as políticas curriculares {no Brasil}.
Parto, assim, dos nós centrais do ESP, quais sejam grupos religiosos - católicos carismáticos e neopentecostais - para mapear as articulações que estão permitindo que um discurso de grupos tão específicos se espraie na política educacional. São figuras centrais nesse meu movimento, o fundador do ESP, Miguel Nagib e políticos que têm ampliado as demandas iniciais do movimento tanto nos projetos em discussão no Congresso Nacional quanto na pressão que alterou a BNCC. A própria criação do ESP é definida por Nagib, um católico conservador em sua própria definição, como de motivação religiosa: “minha filha mais nova (…) chegou em casa e disse que o seu professor de história (…) havia comparado ‘Che’ Guevara (…) a São Francisco de Assis. Quando eu escutei aquilo, pensei: agora chega”. 4No site do movimento, é possível coletar diversos outros exemplos de interseção entre discursos religiosos e o do ESP: por exemplo, a página funciona também como lugar de divulgação da criação de associações de pais católicos.
No que tange às ações legislativas, a maioria dos projetos de lei que segue o modelo proposto5 pelo ESP foi apresentada por políticos das bancadas religiosas. 6São as Frentes Parlamentares Católica e Evangélica que têm dominado as comissões em que os projetos são discutidos e que foram os principais interlocutores do MEC nos movimentos que levaram à eliminação de discussões de gênero e sexualidade da BNCC. O projeto do Programa Escola sem Partido, atualmente em tramitação na Câmara Federal, tem como relator o deputado Flavinho (PSC/SP), vice-presidente da Frente Parlamentar Católica e liderança de parlamentares carismáticos. Como ele, são cerca de 40 deputados 7bastante atuantes no Congresso Nacional em temas ligados a comportamento.
A Frente Parlamentar Evangélica é, ainda, mais proeminente, contando com 75 parlamentares (PRANDI; SANTOS, 2017 8), em sua maioria ligados às igrejas neopentecostais. Segundo Burity (2016), desde os anos 1980, tais igrejas têm lutado por representação política e a ampliado, desafiando “a hegemonia prevalente em resposta a exclusões percebidas ou em função da pluralização social e cultural” (BURITY, 2016, p. 127). Com a maioria de suas propostas vinculadas aos costumes, a Frente Evangélica teria surgido da preocupação com a ampliação dos movimentos em “defesa dos homossexuais, dos comunistas, das feministas, da liberalização do aborto, do uso de drogas e de outros temas contrários à moral pregada por suas igrejas” (PRANDI; SANTOS, 2017, p. 188). A despeito do anticatolicismo que tem caracterizado o movimento neopentecostal (BURITY, 2016) e que justificou a própria criação da bancada evangélica em 1986 (PRANDI; SANTOS, 2017), as articulações entre ambas as frentes parlamentares têm feito avançar as demandas conservadoras do ESP.
Ao descrever a criação do movimento, Nagib faz referência, também, à experiência americana: “tomamos conhecimento de que um grupo de pais e estudantes, nos EUA, movido por idêntica preocupação, já havia percorrido nosso caminho e atingido nossa meta: NoIndoctrination.org”. 9As principais demandas do projeto americano vão no sentido da defesa da escolarização em casa (homeschooling) ou das escolas comunitárias geridas por pais (charter schools), com o consequente não-financiamento da educação pública. Embora o site citado pelo ESP esteja fora do ar, o movimento de onde provém o bordão “diga não à doutrinação”, por ele utilizado, segue sendo levado a cabo por diferentes grupos religiosos americanos. Tais projetos contam, no entanto, com apoio de redes protagonizadas por conglomerados financeiros, cujo discurso religioso moralista é articulado com a “doutrinação” pela ideologia liberal. Moura (2016) explora a interferência da renovação carismática católica, e de grupos internacionais como a Opus Dei, na política americana, que coincidiu com o fracasso do “New Deal” e a chegada de Reagan ao poder pelo partido conservador. Esse é um dos núcleos da rede da qual participa o ESP que quero explorar neste texto, qual seja a Atlas Network, uma das redes globais mapeadas por Ball. 10Segundo Baggio (2016), o atual presidente da rede é ligado à Opus Dei, instituição hierárquica da Igreja Católica, fundada em 1928, cuja mensagem conservadora rivalizou com ordens jesuítas e, na América Latina, com a Teologia da Libertação. Ao mesmo tempo, a Atlas Network vem financiando inúmeras campanhas destinadas e protagonizadas por grupos evangélicos nos EUA, especialmente por supremacistas brancos. São campanhas contra aborto, direitos LGBTI, imigrantes ou, simplesmente, contra a regulação ambiental. Neste último caso, a campanha “We get it”, por exemplo, argumenta que a regulação ambiental implicará em mais regulação estatal e aumento de preços que inviabilizará a vida dos mais pobres. Em nome do cuidado bíblico para com os pobres, a campanha assume que é preciso “acredita(r) na Terra e em seus ecossistemas - criados pelo desenho inteligente e o poder infinito de Deus e sustentado por Sua fiel providência - são robustos (...), explicitando Sua Glória”11.
A Atlas é globalmente apresentada, em seu website, como “uma organização sem fins lucrativos, conectando uma rede global de mais de 475 organizações de mercado livre em 90 países em torno de ideias e recursos necessários para o avanço da causa da liberdade”12. A organização está espalhada pelo mundo, contando com 186 parceiros nos EUA, 138 na Europa e Ásia Central e 81 na América Latina e Caribe13, com perfil assumidamente conservador. Entre os diferentes financiadores da rede, 14estão, por exemplo, as fundações ligadas (diretamente ou por intermédio de outras instituições) à família Koch, magnatas do ramo de petróleo e ativistas políticos americanos vinculados a alas radicais do partido republicano15. Os Koch são os principais mantenedores do American Legislative Exchange Council (ALEC),17 uma “organização não partidária de legisladores voluntários dedicada aos princípios da limitação do governo, mercado livre e federalismo”, associada ao “think tank” State Policy Network. Essa última rede oferece formação para candidatos a cargos legislativos e tem formado expressiva bancada na Câmara e no Senado americanos, com a defesa de, entre outros temas, redução de impostos, desregulamentação de temáticas ambientais, privatização da educação.18
No Brasil, são 15 os nós da Rede Atlas19, alguns com abrangência nacional, outros estaduais, e, segundo Ball, ela se intersecciona com o Todos pela Educação, cuja influência nas políticas educacionais recentes tem sido cada vez mais ampla. Tais nós se organizam, no Brasil, também em torno de alguns clusters, como a Rede Liberdade, a qual congrega mais ou menos os mesmos parceiros referidos na Atlas/Brasil e se apresenta como “a rede nacional de organizações liberais e libertárias, que influencia políticas públicas, por meio de projetos próprios ou de seus membros”.20 Como ocorre nos EUA, o conglomerado Rede Atlas/Brasil-Liberdade opera em diferentes frentes políticas que vão da atuação mais direta em movimentos de rua à formação de quadros para o parlamento, passando pelo financiamento de campanhas publicitárias visando à total desregulamentação da economia. Mesmo que a agenda econômica liberal que a rede sustenta não tenha relação direta ou necessária com demandas morais conservadoras, aqui, como nos EUA, a articulação entre ela e tais demandas vem produzindo a hegemonização de um discurso que significa liberdade pela contraposição ao Estado. A proposta dessa articulação é a eliminação do Estado como instância de regulação, seja econômica, seja de conflitos políticos produzidos pela diferença. Como exterior constitutivo que viabiliza a assunção da liberdade a ponto nodal da rede que aqui desenho, o Estado e o caráter político do social são apresentados como o grande inimigo tanto do crescimento econômico quanto das famílias.
Assim, vou fechando o primeiro exercício que faço, neste texto, com a tese de que as demandas conservadoras do ESP ganham visibilidade por sua articulação com amplas e poderosas redes internacionais, redes essas que vêm atuando diretamente em diferentes frentes nas políticas latino-americanas. O recente apoio do MBL ao ESP é, talvez, uma das faces mais evidentes de tal articulação e explicita, de forma muito clara, como ambos se beneficiam desse imbricação. Por um lado, a expertise do MBL na produção de movimentos sociais a partir da mídia vem ampliando a penetração das demandas do ESP junto a grupos menos conservadores. Por outro, as demandas do ESP - ou mais precisamente aquilo a que o movimento se opõe - têm criado, para o MBL pós-impeachment uma nova agenda de ação, sem a qual ele não sobrevive. É preciso lembrar que o MBL nasceu dentro do “Students for Liberty”, conforme depoimento de um de seus fundadores, Juliano Torres, sendo, nesse sentido, afinado com as demandas por liberdade da Rede Atlas, do qual é parte. As principais lideranças do movimento foram formadas por “think tanks” da Rede, em um projeto que, como venho argumentando, transcende fronteiras nacionais.
LIBERDADE E O FIM DO POLÍTICO
O segundo exercício com o qual quero dar continuidade a este texto se refere à estratégia de hegemonização de uma normatividade (neo)liberal, posta em ação, entre outras, pela Rede Atlas, para a qual a articulação com grupos conservadores, como o ESP, tem sido de grande valia. Argumento que essa estratégia tem apostado na tentativa de eliminação do político - que aponta para o antagonismo constitutivo do social (MOUFFE, 2003) -, substituindo-o pelo que Brown (2015, p. 17) definiu como “uma forma peculiar de razão que configura todos os aspectos da existência em termos econômicos”. Tento entender a contribuição da articulação com o ESP para tal finalidade21, ainda apresentando tentativas de hipóteses com as quais venho construindo meus esforços de pesquisa.
O ESP foi constituído sob a perspectiva de oposição tanto ao Estado - e sua pressuposta laicidade - quanto ao político e sua inerente diferença. A estratégia inicial do movimento, que se mantém de forma menos exclusiva, foi a judicialização da educação. Para além da proposição de leis com finalidade punitiva das unidades escolares e dos professores, termos como “corpo de delito”; “modelo de notificação extrajudicial”; “flagrando um doutrinador” ; “planeje sua denúncia” nomeiam links da página de entrada do movimento na internet. Por mais contraditório que possa parecer o recurso ao legislativo e ao judiciário quando se desqualifica o Estado como interlocutor, o que está em jogo é a substituição do antagonismo próprio das políticas democráticas por modelos gerenciados por algum critério supostamente objetivo. Se, em movimentos como o ESP, a objetividade é lida como legalismo, na normatividade neoliberal, o legal será substituído, sem dificuldades, pelo econômico.
O que parece estar em perigo no processo de reificação, pelo econômico, do social - sua despolitização - é, assim, a própria democracia. Ainda que o próprio termo democracia, e as promessas que ele carrega, seja controvertido, compartilho com Brown (2015) a possibilidade de usá-lo sem referência a nenhum sentido originário, particular. Parece ser suficiente para justificar sua utilização o fato de se tratar de algo que se opõe “a um fenômeno contemporâneo que transmuta regras em governança e em gerenciamento na ordem que a racionalidade neoliberal está trazendo à cena” (BROWN, 2015, p. 20). Apesar de reconhecer o imbricamento entre democracia e liberalismo e o seu caráter excludente - universalizando “normas de um familialismo burguês, heterossexual, masculino e branco” (BROWN, 2015, p. 205) -, a autora defende que a própria “pressuposição de que {o povo} deveria governar colocou modestos constrangimentos nos possíveis poderosos usurpadores” (BROWN, 2015, p. 207). Nesse sentido, ela argumenta que a economização neoliberal - que substitui totalmente o político pelo econômico - desmonta uma tensão que sempre perpassou as relações entre estado e mercado e inviabiliza o controle de forças antidemocráticas. Nas palavras de Brown (2015, p. 208), “o que desaparece é essa capacidade {da democracia liberal} de limitar, essa plataforma de crítica”.
Tomo aqui a leitura de Brown (2015, p. 210) de que “a racionalidade neoliberal de economização do político, sua rejeição à própria ideia de social, e seu deslocamento da política para a governança diminui os espaços significantes para a cidadania ativa e o próprio sentido de cidadania” em conjunto com a discussão do populismo tal como apresentada por Laclau (2008). Faço isso porque julgo que, ao buscar uma leitura positiva do populismo, geralmente desqualificado na teoria política, o autor apresenta uma aguda análise da democracia na América Latina. Ao partilhar com Brown a ideia de que democracia e liberalismo são distintos e não podem ser confundidos, Laclau (2008) argumenta que, na América Latina, o liberalismo foi sempre oligárquico, desqualificando as demandas populares. Em que pese a condensação de muitas demandas distintas sob o termo “populares”, e a inevitável exclusão que ela provoca, a articulação de tais demandas na forma de políticas populistas antiliberais produziu desenhos políticos promissores para a democracia. As alternativas populistas da América Latina são, para Laclau (2008), vital para a democracia na medida em que, num contexto de expressiva exclusão, ampliaram a participação popular na vida política. É, nesse sentido, que o autor recupera o populismo como “instituição” que cumpriria, sem romantismos, a promessa da democracia, qual seja dar ao povo o poder de governar.
O populismo como representação das demandas populares, com sua aposta na democracia, seria incompatível com a “economização normativa {neoliberal} da vida política” (LACLAU, 2008, p. 201); ele, mais que depende do homo politicus, efetivamente, o produz. A economização hostiliza a política e “substitui valores legais da democracia (...) e a deliberação pública por governança e novo gerenciamento” (LACLAU, 2008, p. 207). Para alguns autores (PANTELIMON, 2014), ela tem se manifestado, no terreno da política, como uma espécie de neopopulismo22, que prometeria respostas para a exclusão de amplos setores populares por discursos globais que impactam tanto o mercado como os valores. Com o uso da mídia e da tecnologia, é criada uma fratura social entre governantes e governados, com a produção forçada de demandas “populares” e, assim, do próprio “povo”. Massiva divulgação de casos de corrupção, sempre apresentada como política, cria uma demanda por ordem - jurídica, assim como econômica - a ser oferecida por um líder neopopular, competente no manejo da vida economizada.
Digo tudo isso para formular uma última questão, sem muita possibilidade de resposta, para além das hipóteses que venho buscando construir. Em poucas palavras, o que ganham discursos que economizam a vida, como os mobilizados pela Rede Atlas, com a articulação com demandas conservadoras como as do ESP? Tenho tentado entender esse movimento pela óptica de uma luta pela representação do povo, na qual importa, não apenas substituir as demandas populares, mas “rearticular o sentido de povo” (BURITY, 2016, p. 117). Assumindo a posição de Laclau (2008), de que o populismo latino-americano articula demandas populares democráticas, e tem sido efetivo nessa tarefa, é importante para o projeto de economizar - e, portanto, despolitizar - a vida que ele seja desmobilizado ou substituído. Pensar a articulação entre demandas “neoliberais” da Atlas e conservadoras do ESP como parte desse movimento me parece tentador especialmente quando as políticas de esquerda, especialmente as levadas a cabo pelo Partido dos Trabalhadores, são um dos discursos exteriorizados pelas demandas por liberdade que ela postula. Estou aqui, obviamente, assumindo a figura de Lula como uma liderança populista que, portanto, amplia e politiza a participação popular. Na luta por redefinir o “povo” para além/aquém do político, o projeto religioso conservador neopentecostal e/ou do movimento católico de renovação carismática, “potencialmente regressivo e autoritário” (BURITY, 2016, p. 122), torna-se um aliado importante do neoliberalismo. Nesse sentido, é relevante destacar o que Burity (2016, p. 122) chama de “atração do neopentecostalismo pelo modelo de mercado”.
Longe de mim o desejo de, com essa leitura, desvalorizar a importância das lutas e das {ainda poucas} conquistas dos grupos socialmente “minoritários” nesse processo. Há algum tempo, venho argumentando que o retorno de certo universalismo no currículo é parte de uma “reação” racista, sexista etc. a tais conquistas, que o movimento do ESP torna explícita (MACEDO, 2017). Considerando as políticas postas em ação pelos governos do PT, é possível - indo, eu diria, um pouco além de Laclau - pensar a ampliação das demandas populares que conquistaram representatividade para englobar uma multiplicidade desses grupos. A diversidade, e seus antagonismos incontroláveis e produtivos, atrapalham a economização da vida social, porque seguem povoando o mundo exatamente com isso - vida. Por isso, é preciso resistir, por compromisso ético-político devido ao “outro como singularidade sempre outra” (DERRIDA, 2010, p. 49): repolitizar o social e tomar de volta a liberdade,
essa palavra que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e não há ninguém que não entenda (MEIRELES, 1983).
REFERÊNCIAS
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Projeto financiado pelo CNPq, FAPERJ e pelo programa Prociência da UERJ.
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Este programa é a face mais debatida do ESP, constituindo-se em uma cruzada legislativa para criar leis, nos diferentes legislativos federal, estaduais e municipais, impedindo e punindo os docentes e as escolas que promoverem o que chamam de doutrinação política ou ideológica.
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3
Disponível em: <https://www.programaescolasempartido.org/faq>. Acesso em: 15 ago. 2018.
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4
Disponível em: <http://escolasempartido.org/artigos/499-entrevista-concedida-pelo-coordenador-do-esp-ao-diario-de-mogi>. Acesso em: 15 ago. 2018.
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5
Disponível em: <https://www.programaescolasempartido.org>. Acesso em: 15 ago. 2018.
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Entendo que o termo bancada religiosa, ou, pejorativamente, bancada da bíblia, como constituída por um conjunto de demandas específicas que não representam a totalidade dos adeptos das religiões.
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A Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana conta com mais de 200 deputados, mas o número de parlamentares atuantes nas temáticas aqui tratadas é bem inferior.
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A Frente Parlamentar evangélica, criada em 2015, contava com 180 signatários com mandato (https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=53658), mas nem todos são atuantes membros do que tem sido denominado pela mídia bancada da bíblia.
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Disponível em: <http://www.escolasempartido.org/quem-somos>. Acesso em: 15 ago. 2018.
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Quando esteve no Brasil, em 2009, o pesquisador insistiu na importância de novos atores políticos na definição das políticas educacionais no país: Instituto Millenium, Rede Atlas, Instituto Liberdade, Instituto Liberal (BALL, 2010). Naquele momento, pouco tínhamos percebido da presença massiva dessas instituições nas políticas públicas. Como veremos ao longo deste texto, no entanto, são esses os nomes que produzem as redes de sustentação de demandas de grupos como o ESP.
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11
Disponível em: <https://cornwallalliance.org/2009/05/evangelical-declaration-on-global-warming/>. Acesso em: 15 ago. 2018.
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12
Disponível em: <https://www.atlasnetwork.org/>. Acesso em: 15 ago. 2018.
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13
Disponível em: <https://www.atlasnetwork.org/partners/global-directory>. Acesso em: 18 ago. 2018.
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14
Disponível em: <http://conservativetransparency.org/>. Acesso em: 18 ago. 2018.
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15
Para mais informações: https://www.newyorker.com/magazine/2010/08/30/covert-operations
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18
Disponível em: <https://www.alec.org>. Acesso em: 18 ago. 2018.
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Instituto Ludwig Von Mises Brasil; Instituto Millenium; Instituto Liberdade; Instituto Liberal de São Paulo e Rio de Janeiro; estudantes para a liberdade (Students for Liberty ) São Paulo ; Centro Mackensie de Liberdade Econômica; Livres; Líderes do Amanhã; Instituto de Formação de Líderes de São Paulo, Belo Horizonte e Santa Catarina; Instituto de Estudos Empresariais; Instituto Atlantos.
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20
Disponível em: <https://redeliberdade.org/#/sobre>. Acesso em: 18 ago. 2018.
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Embora julgue necessária uma análise mais global dessas articulações, fico aqui apenas com o exemplo do ESP pelas dificuldades mesmas de pensá-las em termos globais. No caso da Atlas Americana, por exemplo, a polarização entre democratas/liberais e republicanos/conservadores não implica a rejeição de qualquer dos dois lados ao liberalismo econômico, definindo-se muito mais em termos comportamentais, ainda que a posição de ambos em termos de políticas sociais seja distinta. Nesse sentido, nos EUA, redes como a Atlas se opõem frontalmente a conglomerados liberais como os financiados pela Fundação Gates, oposição que não se transfere claramente para países latino-americanos, incluindo o Brasil. Nesses, as políticas de esquerda, em geral populistas, têm sido o inimigo preferencial, o que permite, por vezes, a articulação local dessas redes globais em oposição.
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Na acepção da teoria do discurso, não faria sentido a apropriação do termo populismo pelo neoliberalismo, na medida em que o caracterizaria como representação das demandas populares.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Out 2018 -
Data do Fascículo
2018
Histórico
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Recebido
16 Ago 2018 -
Aceito
21 Ago 2018