RESUMO:
No cenário educacional contemporâneo, marcado pela globalização e valorização da formação acadêmica, imigrantes saem de seus países em busca de melhores oportunidades educacionais. Ao se deslocarem de seus lugares de pertença, estes imigrantes têm que lidar com a distância dos referenciais culturais e sociais que norteavam o seu dia a dia e com a diferença cultural e educacional do novo contexto, o que, por sua vez, pode gerar um estado de vulnerabilidade psíquica e sofrimento. Diante de tal problemática, nosso objetivo nesta pesquisa foi compreender os impactos da migração internacional na saúde mental de estudantes de graduação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Para tal, buscamos identificar quais são os fatores de risco pré e pós-migratórios à saúde mental dos estudantes, os sintomas psíquicos pós-migração e os fatores de proteção pré e pós-migratórios. Seguimos o viés epistemológico da investigação qualitativa, de caráter descritivo, exploratório e transversal. Para coleta de dados, utilizamos formulário sociodemográfico intercultural e entrevista semiestruturada. A sistematização foi realizada via técnica de análise de conteúdo. Dificuldades foram encontradas pelos participantes, mas a imigração/mobilidade acadêmica também se mostrou como possibilidade de continuidade de um projeto de vida.
Palavras-chave: mobilidade acadêmica; saúde mental; ensino superior; latino-americanos
RESÚMEN:
En el escenario educativo contemporáneo, marcado por la globalización y la valorización de la formación académica, los inmigrantes salen de sus países en busca de mejores oportunidades educativas. Al trasladarse de sus lugares de pertenencia, estos inmigrantes tienen que lidiar con la distancia de los referentes culturales y sociales que guiaron su vida cotidiana y con la diferencia cultural y educativa del nuevo contexto, lo que, a su vez, puede generar un estado de vulnerabilidad psíquica y sufrimiento. Ante esta problemática, nuestro objetivo en esta investigación fue comprender los impactos de la migración internacional en la salud mental de los estudiantes de pregrado de la Universidad Federal de la Integración Latinoamericana (UNILA). Para ello, se buscó identificar los factores de riesgo pre y post-migratorios para la salud mental de los estudiantes, los síntomas psicológicos post-migratorios y los factores de protección pre y post-migratorios. Seguimos el sesgo epistemológico de la investigación cualitativa, con carácter descriptivo, exploratorio y transversal. Para la recolección de datos, se utilizó un formulario sociodemográfico intercultural y una entrevista semiestructurada. La sistematización se realizó mediante la técnica de análisis de contenido. Los participantes encontraron dificultades, pero la inmigración/movilidad académica también se mostró como una posibilidad para la continuidad de un proyecto de vida.
Palabras clave: movilidad académica; salud mental; educación superior; latinoamericanos
ABSTRACT:
In contemporary educational scenario, marked by globalization and the valuing of academic education, immigrants leave their place of origin seeking better educational opportunities. When moving from their home countries, these immigrants will have to deal with the distance from the cultural and social references that guided their daily life and with the cultural and educational difference of the new context, which in turn, can generate a state of psychic vulnerability and suffering. Faced with this problem, this research aimed to understand the impacts of international migration on the mental health of undergraduate students at the Federal University of Latin American Integration (UNILA). To this end, we sought to identify the pre and post-migratory risk factors for students' mental health, post-migration psychological symptoms, and pre- and post-migratory protective factors. We conducted a qualitative investigation, with a descriptive, exploratory, and transversal character. For data collection, we used an intercultural sociodemographic form and semi-structured interviews. We systematized the results using the content analysis technique. Participants pointed out the difficulties they found, but immigration/academic mobility was also seen as the possibility to continue a life project.
Keywords: academic mobility; mental health; university education; latin american
INTRODUÇÃO
Quando alguém parte além das fronteiras dos costumes e das crenças que demarcam seu território físico e cultural de pertença, leva consigo a intensidade da força do devir humano. Ao adentrar o campo de trocas simbólicas em que o eu e o outro (este último estranho, a priori) se encontram em condições de compartilhamento dos mesmos espaços, múltiplas são as possibilidades de relação entre eles. Porém, uma premissa é, desde já, norteadora: nem o habitual residente, nem o migrante internacional serão mais os mesmos (Silva-Ferreira, 2019).
Para o imigrante, a “mala” configura-se como metáfora de sua identidade. É nela que ele guarda sua bagagem subjetiva, construída através da sua cultura, de suas experiências, sonhos, esperanças, medos e nostalgia. Pela incorporação de uma “peça” a mais em cada chegada, e pela despedida temporária ou permanente de coisas, lugares e pessoas que faziam parte de si em cada lugar de partida, o imigrante faz e se refaz. Em sua “mala” ele guarda sua herança cultural, seu projeto de existência, que leva consigo em cada chegada e em cada partida. Migrar significa, sob essa perspectiva, “re-significar” o conjunto de relações de amparo e desamparo proporcionadas pela cultura (Pieroni, Fermino & Caliman, 2014).
No entanto, a imigração não faz parte apenas de um deslocamento individual e subjetivo, ela é um fenômeno inter-relacionado às estruturas sociais e às condições de existência e qualidade de vida. Nas migrações de caráter voluntário, determinantes sociais como desemprego, baixa qualidade de vida e ausência de um horizonte de oportunidades (dentre elas, as educacionais) influenciam a decisão de migrar. Já nas migrações de caráter involuntário, o sujeito depara-se com condições de existência ameaçada por guerras, fome, perseguições políticas, religiosas, de gênero etc., e assim parte com pouco ou nenhum planejamento para lugares onde possa se sentir mais seguro (Martins-Borges, 2017).
Diante desse deslocamento subjetivo e social, o imigrante está sujeito a experienciar o desamparo e o mal-estar cultural, podendo vivenciar uma condição de indeterminação existencial, significada pelo sentimento de não pertencimento, que se articula às expressões de sofrimento (Dunker, 2015). Tal inter-relação se faz na esfera social, em uma dialética de exclusão e inclusão, articulada pela historicidade - por exemplo, heranças coloniais e escravocratas -, pela organização social e a forma como esta influencia as relações entre as pessoas (Sawaia, 2001). Assim, esse mal-estar também representa um sofrimento pautado por um déficit de reconhecimento social e político decorrente da necessidade humana de sermos reconhecidos em nossa identidade e em nosso valor como seres humanos. Sendo assim, devemos refletir sobre as fronteiras sociais e, no presente caso, educacionais, que impediam ou impedem o desenvolvimento do potencial humano ou da própria sobrevivência de grupos e nações, impostas tanto dentro dos países de origem quanto no país de recepção (Sawaia, 2001).
Desse modo, é no conjunto de sentidos de um “lugar pertencente” que a cena da imigração requer elaboração por parte do sujeito migrante. “Onde estou?”, “por que estou aqui?”, “faço parte deste lugar?” são alguns dos questionamentos existenciais do imigrante que remetem a uma demanda de “re-conhecimento”, de uma busca por um lugar onde seja reconhecido e no qual se reconheça integrado. Ao conjecturarmos dessa forma, evidenciamos que a experiência subjetiva de desamparo do imigrante remete a um não lugar, ou seja, um sujeito dividido entre dois mundos aparentemente antagônicos. “Estou e não estou”, “sou e não sou”, fazem parte do conflito psíquico reeditado pela imigração.
Importante considerar que, para analisarmos a imigração como um fator de risco à saúde mental, é necessário compreendê-la como um fenômeno multifacetado e multideterminado, que, de acordo com a sua dinâmica social, política e subjetiva, pode se apresentar de forma mais acentuada como fator de risco potencializando vulnerabilidade ou até mesmo de proteção e de construção de uma posição resiliente (Girardi, 2015). Dentre os sintomas observados em pessoas que imigraram, estão os estados psíquicos de despersonalização, tristeza profunda, anedonia, isolamento social, conflitos na relação com os autóctones, ansiedade, incertezas com relação ao projeto existencial e ainda queixas de ordem psicossomática que representam a possibilidade de expressão corpórea da angústia (Martins-Borges, 2013).
IMIGRAÇÃO E EDUCAÇÃO SUPERIOR
No que concerne à educação, há imigrantes que objetivam se inserir nas instituições universitárias como forma de potencializar seu capital educacional. Destes, há uma parcela que planeja a entrada na universidade desde a sua partida, ou seja, já saem de seus países com o propósito de alcançar um maior desenvolvimento educacional. Porém, também há aqueles que inicialmente não planejaram adentrar no ensino superior, mas, após um tempo de residência no país de destino, encontraram na educação superior a possibilidade de reconfiguração do seu projeto existencial (Silva-Ferreira, 2019).
Podemos identificar alguns perfis de imigrantes universitários de acordo com a motivação da imigração e a classe social: a) imigrantes que se deslocam de forma autônoma, ou seja, estudantes que utilizam recursos financeiros próprios para financiar os estudos no exterior e fazem parte de uma elite econômica e educacional; b) imigrantes que são contemplados com incentivos acadêmicos, como bolsas de estudo, e que migram dentro da lógica de cooperação educacional entre os países e instituições - neste caso, é comum que haja critérios meritocráticos (desempenho) e/ou sociais/financeiros que combatem as desigualdades educacionais; c) os que migram por razões de vulnerabilidade econômica e reiniciam seu projeto de vida educacional; e, por fim, d) as pessoas em condição de imigração forçada (refugiados ou imigrantes humanitários), que deixam seus países de origem e encontram no acesso à universidade uma oportunidade de recomeço (Zamberlam et al., 2009).
Apesar das multifacetadas características, a imigração é o denominador comum do fenômeno. Nesse sentido e diante das nomenclaturas existentes, optamos na presente pesquisa por aquela que evidencia a imigração na sua intersecção com o campo acadêmico, que é a denominação imigrante universitário. Por esta ótica, podemos definir que os imigrantes universitários são aqueles que encontram na imigração a possibilidade de qualificação profissional e pessoal para a realização ou reconfiguração de um projeto de vida, e que em geral cursam a graduação ou a pós-graduação completa na instituição, permanecendo por anos no país de destino (Organização Internacional das Migrações [OIM], 2019). Portanto, nesta categoria não se enquadram os estudantes intercambistas que, apesar das semelhanças, se diferenciam, dentre outros aspectos, pelo tempo de permanência na universidade e país de recepção e pela perspectiva concreta de retorno. Por se tratar de um projeto de vida atravessado pela migração, é relevante que se observem as motivações para entrar em uma universidade estrangeira considerando as variáveis de um processo de interação cultural mediado pela diferença, tal como língua, condições socioeconômicas, costumes, valores, sistemas educacionais diferentes, preconceito racial, étnico, de gênero etc.
Com relação aos imigrantes universitários no Brasil, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, INEP (2020), em 2019, o País tinha 17.539 imigrantes universitários no ensino de graduação, sendo 49% oriundos do continente americano, principalmente da América do Sul. Um dos potencializadores desse cenário de internacionalização do ensino superior foi o Programa de Apoio e Reestruturação do Ensino das Universidades Federais (REUNI) do governo Lula, que, diante de um novo paradigma geopolítico do Estado brasileiro, construído no início do último milênio a partir das relações de cooperação sul-sul, criou a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), voltada à integração de estudantes de toda a América Latina e Caribe, e a Universidade Federal da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), destinada à integração de estudantes de países do continente africano que tenham como uma das línguas oficiais o português. Estas se configuram respectivamente como as duas instituições de ensino superior brasileiras com maior número de imigrantes universitários (Silva-Ferreira, 2019).
Além dessas instituições, existem outros programas de integração de imigrantes universitários no sistema de educação superior público brasileiro, sendo um deles o Programa de Estudantes-convênio de Graduação (PEC-G), que oferece oportunidades de formação superior a pessoas de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais. Também há os programas de ações afirmativas para refugiados e/ou imigrantes por acolhida humanitária, incentivados pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello do Alto Comissariado das Nações Unidas (Silva-Ferreira, 2019; Cátedra Sérgio Vieira de Mello [CSVM], 2020).
Com relação à UNILA, em 2019, esta contava com 5.231 estudantes de graduação, distribuídos em 29 cursos. Dos estudantes de graduação, 1.316 eram imigrantes, oriundos de 19 países da América Latina e Caribe, além de países da Europa, Oriente Médio, Ásia e África (Silva-Ferreira, 2019). Além do processo seletivo internacional realizado anualmente, em 2018 a UNILA lançou duas novas formas de ingresso: uma destinada a pessoas em condição de refúgio ou portadoras de visto humanitário, e a outra para indígenas cujas comunidades estejam localizadas no Brasil e em outros nove países da América do Sul (Universidade Federal da Integração Latino-Americana [UNILA], 2020).
Tendo em vista o seu direcionamento político-institucional para a promoção da integração cultural, acadêmica e científica dos povos da América Latina, tal como sua posição geográfica na tríplice fronteira Brasil-Paraguai-Argentina, a UNILA foi eleita como contexto de pesquisa. Sua vocação internacional e seu projeto integracionista e bilíngue (português e espanhol) resultaram em um ambiente singular para a efetivação do presente estudo.
Destacamos, ainda, as escassas pesquisas sobre imigrantes universitários no Brasil. Conforme a revisão de literatura realizada por Silva-Ferreira, Martins-Borges e Willecke (2019), foram encontrados apenas 11 artigos entre 2007 e 2016 nas bases de dados BVS-Psi, Redalyc e EBSCO. Nesse sentido e diante do exposto, nossa proposta no presente estudo é entender os impactos da imigração na saúde mental de imigrantes universitários. Para tal, apresentaremos os principais fatores de risco pré e pós migratórios, os sintomas psíquicos após a imigração e os fatores protetivos pré e pós-migratórios.
MÉTODO
Para a realização da presente pesquisa, de caráter qualitativo, descritivo e exploratório, utilizamos um formulário sociodemográfico intercultural e um roteiro semiestruturado para a realização das entrevistas.4 Seguimos as normas da resolução 510/16 do Conselho Nacional de Saúde, que versa sobre os princípios éticos nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, e o projeto foi aprovado junto ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Também disponibilizamos aos participantes os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) com versões em português, espanhol e crioulo haitiano.
Seguindo os princípios da pesquisa qualitativa, este estudo caracterizou-se por ser construtivo-interpretativo, dialógico e pela sua atenção às experiências singulares dos participantes. Assim, como na produção construtivo-interpretativa, foi preciso que interpretássemos e compreendêssemos o sentido e o significado das expressões dos participantes; também foi fundamental que mantivéssemos uma postura dialógica, visto que a interação com o participante teve fundamental relevância no processo, sendo ainda condição sine qua non valorizarmos a construção teórica dos processos subjetivos tanto no nível social como no subjetivo (Rey, 1999).
Os critérios para participar da pesquisa foram: 1) ser estudante de graduação da UNILA; 2) fazer parte de um programa de auxílios de assistência estudantil e/ou convênio internacional que tenha como parâmetro a condição socioeconômica para a aquisição de auxílio financeiro; 3) apresentar boa compreensão e expressão oral da língua portuguesa; 4) ter 18 anos ou mais; e 5) não ter vínculo com os pesquisadores.
Para a seleção dos participantes, utilizamos a técnica de “Bola de Neve”, que é um método não probabilístico que consiste na indicação de potenciais participantes por informantes-chave, documentos, e/ou pelos próprios entrevistados (Vinuto, 2014). Os informantes-chave iniciais foram os psicólogos da Seção de Psicologia da UNILA; estes solicitaram a autorização do potencial participante para o fornecimento do seu e-mail de contato e/ou telefone. Já o contato prévio com o grupo de haitianos foi mediado por um estagiário desta nacionalidade, que trabalhava na Pró-reitoria de Relações Internacionais e Institucionais.
Nem todos os contatos se concretizaram em participações, sendo que, dos 28 contactados, dez não puderam participar. Os motivos foram: dificuldade de conseguir um tempo livre para a entrevista, ausência no dia da entrevista e desistência; um participante foi excluído, pois teve uma grave crise de saúde mental dias antes, e, devido aos riscos psicológicos, optamos pela sua não participação.
Desse modo, entre os meses de março e abril de 2018, participaram da pesquisa 18 imigrantes universitários (identificados no presente texto pela letra P, seguida de um número), de sete nacionalidades latino-americanas (Colômbia, Haiti, Venezuela, Uruguai, Peru, Equador e Bolívia). Este número de participantes resultou da conclusão de que as entrevistas propiciaram repetição de conteúdos e, consequentemente, havia material consistente para atender os objetivos da pesquisa (Minayo, 2017). As entrevistas com os hispanofalantes foram realizadas em espanhol, traduzidas para o português e submetidas à análise de tradução por pares. Já as entrevistas com os falantes de crioulo haitiano foram realizadas em português. Todas as entrevistas foram individuais e gravadas (voz) mediante autorização prévia do participante.
Para a transcrição e a codificação do conteúdo, utilizamos como referência as orientações de Manzini (2008). As partes com ruídos que impossibilitaram a compreensão da palavra ficaram entre parênteses e assinaladas com a palavra “inaudível”; os silêncios superiores a cinco segundos foram identificados pela expressão da quantidade de segundos, por exemplo, (6s); as emoções, como risos ou lágrimas, foram destacadas entre dois parênteses, por exemplo, ((risos)); as reticências entre parênteses (...) simbolizam cortes no discurso devido à necessidade de síntese e/ou complementação do conteúdo; e, finalmente, as perguntas adicionais ou verbalizações de entendimento por parte do pesquisador ficaram entre colchetes [ ].
Após cada entrevista, aplicamos o formulário sociodemográfico do Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas (NEMPsiC). Este foi construído pelo NEMPsiC e utilizado com o objetivo de auxiliar na compreensão das especificidades migratórias e socioculturais dos participantes da pesquisa. O formulário é composto de 47 perguntas divididas em oito categorias. São elas: dados pessoais, escolaridade e ocupação, renda, moradia, utilização do SUS e/ou SUAS, religião/crença, rede social, língua e dados sobre a imigração. O roteiro de entrevista, por seu turno, foi integrado por questões envolvendo a etapa pré-migratória, partida, pós-migração, inclusão na universidade, integração local, saúde e projetos futuros, de forma que os participantes pudessem se expressar livremente sobre essas experiências.
Por fim, as entrevistas foram submetidas à técnica de análise de conteúdo (Campos, 2004). As categorias foram construídas conforme pré-direcionamento do roteiro de entrevista, que teve como norte os objetivos de pesquisa. Segundo Campos (2004), as categorias podem ser caracterizadas como grandes enunciados que englobam um número variável de temas. Deste conjunto de temas, extraímos as subcategorias e as unidades temáticas construídas segundo seu grau de intimidade ou proximidade semântica, de forma que, decorrente de sua análise, pudessem revelar significados e elaborações relevantes para atender aos objetivos da investigação. As subcategorias e as unidades temáticas foram criadas a partir das similaridades entre as falas dos participantes e dos conteúdos de relevância implícita (Campos, 2004). A partir dessas descrições, foi possível identificar (ou não) semelhanças com os resultados de outros estudos, assim como analisar as narrativas a partir de dados do questionário sociodemográfico e sob a óptica da psicanálise.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
De acordo com os objetivos da pesquisa, identificamos três categorias: Fatores de risco, Sintomas psíquicos e Fatores de proteção. Por conseguinte, cada categoria foi composta por subcategorias e unidades temáticas, que estão detalhadas em seus respectivos quadros.
A primeira categoria, Fatores de risco, é composta por duas subcategorias. A primeira, Pré-migratórios, diz respeito aos fatores anteriores à imigração. Porém, é importante considerar, principalmente em relação à construção das duas primeiras unidades temáticas, que há diferentes realidades educacionais e sociais/humanitárias entre os países de origem dos participantes. Já a subcategoria Pós-migratórios representa os fatores de risco encontrados após a chegada ao Brasil. Estas duas categorias estão compostas, respectivamente, por cinco e seis unidades temáticas, que representam os principais fatores que influenciaram negativamente a saúde mental dos imigrantes universitários da presente pesquisa.
Na primeira subcategoria dos fatores de risco, analisamos, na narrativa dos participantes, os elementos sociais e subjetivos anteriores à imigração que potencialmente exerciam força para a desestabilização do equilíbrio psíquico. Na unidade temática Conflitos sociais e educacionais, identificamos como os conflitos sociais pré-migratórios apontam para uma complexidade de fatores em torno da imigração de universitários na América Latina, bem como sentimentos de mal-estar social e exclusão educacional antecedentes e motivadores do processo migratório. Os discursos também expuseram uma conjuntura educacional latino-americana desigual e excludente, em que se destacam ainda os impactos do processo da mercantilização da educação pública e a consequente exclusão social potencializada por este último (Perrotta, 2015; Zamberlam et al., 2009).
As fortes barreiras educacionais nos países de origem também foram observadas na pesquisa de Girardi (2015) com os participantes haitianos que imigraram após o terremoto de 2010. Importante recordar que tal acontecimento destruiu boa parte da capital Porto Príncipe e agravou a crise humanitária no Haiti e, consequentemente, as possibilidades educacionais. Além da dimensão educacional, também devemos considerar os riscos inerentes à inanição social e à ineficiência do Estado naquele país:
“A educação para as crianças você tem que pagar todos os estudos. (...) Ah! Então, tem que pagar tudo, do primeiro ano da escola na vida, até o final, até que você consiga emprego. E às vezes você tem que pagar para conseguir um emprego, pagar de alguma forma, entendeu? Dinheiro e tal... E o saneamento básico, a limpeza das ruas é muito, muito, muito mal, isso... (...) E essas coisas, a política… A fome, muita fome, tem muita fome, sim!” (P15, Haitiana).
Outro cenário que se repetiu nos discursos dos estudantes foi o da realidade colombiana e seu processo de exclusão educacional. Este, fortemente influenciado pelos ditames liberais e economicistas da educação, gerou, por exemplo, a existência de uma educação superior pública, mas não gratuita. Decorrente desta mercantilização da educação, instalou-se um processo de exclusão das camadas mais vulneráveis economicamente que ou impedia o acesso ao ensino superior ou gerava dívidas aos estudantes e suas famílias. Tal contexto de exclusão se tornou uma das pautas da juventude colombiana que envolvem a revolta social de 2021(Oliveira, 2021).
Já a Imigração forçada surge como um fator de risco que caracteriza um histórico de violência. Esta unidade temática difere também da anterior devido à ausência de preparação para a imigração, além da reduzida possibilidade de retorno em decorrência de conflitos que colocam em risco a vida dos imigrantes (Martins-Borges, 2013). Nessas migrações, narradas especificamente por estudantes haitianos e venezuelanos, as possibilidades de escolha ilustrada por indagações - onde ir, como ir e com quem ir - são diminuídas devido à urgência do deslocamento:
“Eeee, eu sou da Venezuela, você conhece a situação da Venezuela... eu não vim por minha vontade, me arrastaram até aqui. (...) Então depois de meses, cerca de quatro meses eu me vi desesperada e vi que tinha que sair do país porque já tinha dias sem comer, a situação piorava e eu tenho um irmão pequeno, me sentia impotente porque queria trabalhar e não havia trabalho, o dinheiro não dava.” (P14, Venezuelana).
Como exemplificado na narrativa, nesses casos ocorre comumente a ausência de um projeto migratório anterior. Este tipo de migração acontece devido aos riscos da permanência, e é acompanhada por sentimentos de desespero, humilhação/perseguição e desesperança, que impulsionam o sujeito a se deslocar de forma abrupta dos seus lugares de pertença e buscar oportunidades de recomeço (Martins-Borges, 2013).
Já na terceira unidade temática, Conflitos familiares, analisamos os fatores de risco que envolvem as relações no ambiente familiar. Dos conteúdos apresentados, ressaltamos o conflito na relação de dependência-independência entre pais e filhos, o sentimento de culpa, a percepção de controle familiar e a fragilização dos laços afetivos. Lembramos que a imigração universitária para cursar a graduação é majoritariamente composta por jovens, que estão em uma fase de transição da identidade adolescente, mais tutelada familiarmente, para a identidade adulta e suas prerrogativas de autonomia e responsabilidades. Nesse sentido, a imigração pode também ser motivada por uma possibilidade de fuga dos conflitos familiares, o que aponta para uma ausência de fator protetivo, que tende a impactar na estabilidade psíquica pós-migração: “Eu me sentia como um peso para minha mãe. E eu vim porque aqui eu poderia viver sozinha, me manter sozinha... eu estava sendo uma carga para minha mãe.” (P2, Colombiana).
Tais conflitos também foram encontrados na pesquisa de Francisco (2019) com universitárias haitianas em Belo Horizonte (MG). Segundo a autora, a migração das participantes foi cercada por medo, ambivalência, negociações e embates com a família. No caso do nosso estudo, este conflito apresentou-se tanto em homens quanto em mulheres, o que não exclui as diferenças culturais de gênero no processo migratório estudantil.
Na quarta unidade temática - Histórico de sofrimento psíquico -, observamos a frequência com que os imigrantes relataram sintomas anteriores à imigração, reatualizados na pós-migração. Nesse sentido, corroboram-se os estudos de Moro (2015) e Woodward (2010), segundo os quais situações de estresse na imigração tendem a “re-atualizar” conflitos psíquicos anteriores em função da fragilização das defesas psíquicas e sociais:
“Não foi uma decisão ruim, mas reconheço que encontrei as coisas mais difíceis do que estavam antes, lá sofria de depressão e estava mal, mas neste momento é muito mais difícil, porque estou em outro país com um idioma novo e com pessoas que apenas pensam na universidade, e eu já podia ter terminado meu curso na Colômbia porque tenho 22 anos.” (P1, Colombiana).
Conforme a narrativa da participante, ela já vivenciava um quadro de sofrimento psíquico anterior à vinda para o Brasil, o qual foi agravado diante dos desafios linguísticos e da dificuldade de construção de laços. Na pesquisa de Woodward (2010) com imigrantes universitários na Inglaterra, também se identificou que, mesmo diante da significação do curso universitário no exterior como desejo de desenvolvimento e de superação de sentimentos de culpa e do sofrimento do passado, os estressores decorrentes do deslocamento migratório e da adaptação à instituição acadêmica estrangeira implicaram a necessidade de elaboração de experiências traumáticas do passado.
Como última unidade temática dos fatores de risco pré-migratórios, emergiu a Falta de preparo para a imigração. Os imigrantes relataram com frequência terem poucas informações sobre o Brasil, Foz do Iguaçu e também sobre a universidade, ou, ainda, terem representações parciais e estereotipadas sobre a cultura brasileira. Como veremos nas categorias seguintes, a deficiência no preparo para a imigração pode potencializar a emergência de um processo de estresse aculturativo. Assim, o estudo corrobora que a ausência de informações realistas sobre os ambientes onde se projetaram estudar e viver, a idealização dos contextos e o potencial despreparo para a imigração constituem intensificadores do choque cultural, assim como identificado no trabalho de Silva-Ferreira, Martins-Borges e Willecke (2019), que destaca que este é o fator de risco mais contornável, principalmente entre os imigrantes voluntários: “Do Brasil nada. Nem sequer imaginava que existia o português. Nada, nada... E da UNILA somente o que estava escrito no site, porém era pouco o que entendia.” (P2, Colombiana).
Dando sequência à análise, buscamos identificar os fatores pós-migratórios. Os principais fatores encontrados foram: a dinâmica das separações e perdas, o estresse adaptativo, a dificuldade financeira, a dificuldade com a língua, o etnocentrismo acadêmico e as experiências de discriminação.
A primeira unidade temática, Separações e perdas, refere-se a uma dinâmica característica do processo migratório que remete aos conflitos psíquicos expressos pelo sentimento de falta. Com a emergência desta falta (real e/ou simbólica), o imigrante se depara com uma sensação de perda e incompletude imaginária devido à distância dos elementos de sentido que faziam parte do cotidiano e organizavam as relações com a realidade (Betts, 2005; Moro, 2015). De forma concreta, as principais separações e perdas diante da chegada ao novo contexto estavam relacionadas com os familiares e amigos, a comida, as paisagens e os eventos culturais. Tais perdas recorrentemente exaltavam a nostalgia e idealização do objeto perdido: “((Risos)) Isso foi o mais difícil desse mundo! É difícil. (...) Foram duas vias de separação: separar-me do seio familiar e de me separar do meu lugar, como se diria? Do que... do meu vínculo social”. (P6, Colombiano).
Podemos observar que o processo de separação e perda dos elementos afetivos que compunham a “cotidianidade” dos imigrantes os remeteram a um trabalho de luto devido à sensação de perda. Tais perdas desencadeiam sentimentos de nostalgia, ou seja, um desejo de retorno à condição anterior e, ainda, uma exaltação do “objeto perdido”. Outras narrativas destacaram também o simbolismo da ausência dos alimentos típicos. Nesse sentido, o alimentar-se aparece associado a memórias afetivas de nutrição, carinho e intimidade com pessoas e lugares; e distanciar-se dessa cotidianidade cultural é distanciar-se não só de pessoas, mas muitas vezes da própria identidade.
Sobre esta conexão com os símbolos culturais cotidianos, percebemos que a cultura e os seus significantes exercem uma função materna, ou seja, uma função de amparo psíquico ao sujeito, e que a separação provocada pela imigração pode remeter a um sentimento de vazio (Martins-Borges, Jibrin & Barros, 2015). Outro exemplo do sentimento de “perda do lugar” se refere à nostalgia em relação às paisagens cotidianas. À medida que estas memórias dos lugares são formadas por experiências afetivas que envolvem a sensação de pertencimento, é comum que o imigrante desenvolva um “apego ao lugar” e passe a valorizar o “lugar perdido”. No entanto, com a imigração, terá que elaborar esta cotidianidade perdida e muitas vezes idealizada, juntamente com todos os núcleos de sentidos que a compunham.
As perdas referentes aos vínculos sociais, como os aniversários, as reuniões de família e os momentos de maior instabilidade na terra natal, evocam sentimentos de impotência, preocupação e frustração. Tais momentos em que o imigrante universitário deseja estar presente, mas não pode, exigem que este elabore o próprio distanciamento que lhe faz experimentar a impossibilidade de não poder estar em dois locais ao mesmo tempo, o que o expõe à ambivalência.
Desse modo, a unidade temática Estresse adaptativo apresenta estreita relação com a unidade temática anterior, visto que a primeira trata simbolicamente de um “mundo perdido”, e esta, de um “mundo desconhecido”. Assim, esta unidade traçou os estressores intrínsecos ao contexto social de chegada, que dificultaram a adaptação dos imigrantes universitários. Os principais estressores adaptativos foram: impacto climático, relações interpessoais, falhas institucionais de acolhimento, ausência de atividades culturais na cidade, transporte público ineficiente, precarização do Sistema Único de Saúde (SUS).
Por sua vez, a fala de P12 representa a temática trazida por cinco participantes referente à ausência institucional, principalmente na chegada e no acolhimento, ressaltando ainda a importância do acolhimento institucional, como destacado por outros pesquisadores (Prieto-Welch, 2016; Saladino & Martinez, 2015).
“Observei muita ausência institucional. Como que se está trazendo de outro país, é não sei (...), cerca 500 estrangeiros por semestre em torno de 17 e 18 anos, e a primeira reunião oficial de boas-vindas com a universidade demorou meses e muitas coisas demoramos muito para aprender porque a universidade não se apresentou.” (P12, Uruguaia).
Os estressores adaptativos ressaltados corroboram o já observado: quando o imigrante se depara com uma sociedade distinta, deve aprender novas lógicas e significados que fazem parte do processo de adaptação na nova cultura (Birol, 2017). Contudo, além de um estresse intrínseco ao processo de aprendizagem que o ambiente desconhecido demanda, é imperioso pensar que isto faz parte de um conjunto de fatores individuais, institucionais e sociais/culturais que podem dificultar a aprendizagem e a adaptação do imigrante universitário ao novo contexto (Barea, 2008).
A unidade temática Dificuldade financeira mostrou o quanto essa questão influencia a vida dos imigrantes universitários. Dos 18 participantes, 12 viviam apenas com os auxílios financeiros da universidade - o equivalente a dois terços do salário mínimo -; 5 com os auxílios e a ajuda dos familiares; e somente um com a ajuda dos familiares. Nas narrativas, os estudantes demonstraram dificuldades referentes às necessidades básicas para viver e estudar, como alimentação, moradia, internet e contato com a família, que reverberavam negativamente em vários aspectos de suas vidas - o que inclui a saúde mental: “E assim quando eu cheguei eu fui para o hotel e não tinha dinheiro para comer, eu sabia que ia fazer um sacrifício para seguir o curso, mas ainda é um sacrifício que eu estou fazendo, entendeu?” (P18, Haitiano).
Já a unidade temática Língua representa a dificuldade mais citada e ressaltada pelos estudantes na chegada ao Brasil e/ou à universidade (17 dos 18 participantes). No âmbito acadêmico, aprender conteúdos complexos em uma língua cujo domínio ainda não foi alcançado demanda esforço por parte dos imigrantes. Porém, o esforço também é perceptível por parte de quem ensina, dada a complexidade de lecionar em salas com grupos culturalmente e linguisticamente heterogêneos. Lembramos que, além de um projeto bilíngue, a universidade tem o desafio de lidar com o multilinguismo devido à presença de estudantes com línguas maternas diferentes: guarani, quéchua, aimará, crioulo haitiano, francês, árabe, russo etc. Essa complexidade implica desafios e obstáculos aos estudantes, professores e técnicos administrativos e, consequentemente, à política linguística da universidade:
“(...) não é fácil ter aulas de cálculo em português, ou seja, não está somente enfrentando desafio de aprender cálculo, mas também está rompendo com o desafio de estar aprendendo em português, onde as letras se pronunciam diferentemente e o sotaque de um professor a outro muda (...)” (P12, Uruguaia).
Como mostramos acima, a língua é um dos principais elementos de uma cultura e guarda em si simbolismos, formas de expressar sentido e modelos de interação entre as pessoas (Nathan, 1994). Com relação a essa dificuldade e seus efeitos, o estudo corrobora o risco de isolamento sociocultural junto aos conterrâneos, o qual pode causar prejuízos na sociabilidade e na adaptação à nova cultura. Já com relação à aprendizagem, observamos que, ao não dominar ainda a língua de estudo, os imigrantes universitários necessitam de mais tempo ou técnicas adicionais para compreender o conteúdo. Quando não dispõem dessa compreensão, limitam a expressão do pensamento nas avaliações e na participação em sala de aula. Constatamos ainda em alguns casos que esta limitação provocou um isolamento acadêmico e repercutiu em maior risco de reprovação e evasão.
Por sua vez, a unidade temática Etnocentrismo acadêmico revelou conflitos em torno das diferenças culturais e relações de poder que resultaram em violências simbólicas, principalmente em sala de aula. O etnocentrismo acadêmico, segundo Marginson (2014), consiste em uma intensa valorização dos elementos epistemológicos da instituição de acolhida e uma negação/indiferença aos conteúdos de formação do imigrante universitário. Tal posicionamento, velado ou explícito, acaba por produzir um verdadeiro “epistemicídio” (Santos, 2007), que consistiria na inferiorização e no “assassinato” do conhecimento do outro. Segundo Carvalho (2018), o convívio multilíngue exige o desenvolvimento da consciência da cultura do outro e a necessidade de valorização dessa cultura para que haja a promoção de práticas de ensino e aprendizagem integradoras: “Minhas aulas são todas em português, nunca tive um professor que desse aula em espanhol, somente leio em português, meus professores em geral não me passam texto em espanhol e isso às vezes me cansa muito.” (P12, Uruguaia).
As narrativas também apontaram para a sensação de haver preferência para com os brasileiros, a repressão na utilização da língua materna e a preferência etnocêntrica na escolha da bibliografia. Tais observações podem simbolizar a valorização de uma cultura, mas também podem representar certa zona de conforto cultural-educacional incompatível com uma pedagogia intercultural. Um olhar mais atento sobre as narrativas possibilitou identificar que este etnocentrismo acadêmico também perpassava as relações entre os próprios estudantes e era influenciado por representações sociais e preconceitos sobre nacionalidades e etnias, visto que as principais queixas de isolamento e estigmatização em sala de aula foram de estudantes negros e de etnicidade indígena.
Em relação íntima com a anterior, a unidade temática Experiências de discriminação traz o quanto um conjunto de preconceitos de raça, nacionalidade, classe social, gênero e identidade político-institucional resultou em violências enfrentadas após a imigração. Observamos ainda que essas discriminações foram descritas tanto dentro quanto fora da universidade.
Como primeiro ponto de discriminação, identificamos o racismo enfrentado principalmente pelos estudantes negros e de fenótipo indígena. Em relação aos estudantes negros originários do Haiti, é possível observarmos que o racismo não era vivenciado na cultura haitiana, o que os levou a um “estranhamento” ao experienciarem essa questão no Brasil. Por outro lado, retornamos às reflexões sobre como o fantasma histórico da escravidão ainda permanece nas entranhas da sociedade brasileira, e como a democracia racial ainda se mantém como mito:
“Só que na semana passada teve alguém que passou na nossa frente quando a gente estava indo pra aula e falou muita besteira: ‘Volta pros seus países!’ ‘UNILA traz esses haitianos...’ falou muita coisa, e isso afeta nossa saúde mental, afeta nossa mente. Mas fazer o quê? (...) Às vezes deixa triste, pelo fato de que você deixou o seu país por algo que não tem lá, e você está aproveitando para conquistar em outro lugar que não é seu, que não é seu país como a pessoa falou.” (P17, Haitiano).
As narrativas também evidenciam a racialização dos espaços da cidade e sentimentos de impotência diante de uma sensação de “não ser bem-vindo”, que inibe o sujeito nas suas interações cotidianas e impacta na sua autoestima. Conforme Fanon (1980), o racismo tem uma função de inferiorização que oprime o negro não apenas emocionalmente, mas também intelectualmente, o que por sua vez escancara as heranças coloniais e os discursos historicamente reproduzidos sobre o negro e o índio na cultura brasileira. Também como observado por outros pesquisadores, o racismo é uma das principais formas de discriminação ao imigrante universitário que foge a um padrão ideal de “branquitude” (Silva & Morais, 2012; Francisco, 2019).
Observamos ainda o impacto da xenofobia na saúde mental e no sentimento de pertença dos imigrantes. As agressões xenofóbicas veladas ou explícitas promovem uma sensação de “não-lugar” no imigrante, criando obstáculos à identificação e vinculação à nova cultura (Bauman, 2017; Sayad, 1998). Nesse sentido, a violência faz com que o imigrante, para se proteger, viva de forma mais segregada. Outro ponto observado nas entrevistas é o estado de vigilância constante, que leva o imigrante a reprimir expressões que “denunciem” seu “status de estrangeiro”, como falar sua língua, usar vestimentas típicas ou circular na rua.
Outro tema de discriminação ressaltado pelos estudantes diz respeito à identidade político-institucional da UNILA. O acirramento dos conflitos políticos no Brasil em torno da dicotomia “esquerda” e “direita”, “bom” e “mau”, e principalmente a emergência de uma onda nacionalista e conservadora, segundo os estudantes, fizeram aumentar as experiências de hostilidade fora dos muros da universidade.
Assim, as diversas facetas das experiências de discriminação parecem demonstrar um conflito sobre a posse imaginária do território e dos possíveis bens ali presentes. Estes conflitos com a diferença, alinhados a traços histórico-culturais e sociopolíticos, alimentam uma dinâmica de narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 2006/1921).
Desse modo, podemos considerar, a partir das narrativas anteriores, a relação intrínseca entre saúde mental e determinantes sociais, como raça, etnia, classe social, gênero e nacionalidade, os quais implicam a emergência do sofrimento ético-político que envolve a díade social inclusão-exclusão (Sawaia, 2001). Por sua vez, esses determinantes, vinculados à dimensão migratória e seus fluxos, desafiam as políticas de permanência institucionais e nacionais guiadas pelo Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) para que se criem programas que atendam às especificidades das demandas e aos desafios da permanência de imigrantes universitários, como destacado nas pesquisas de Ragnini et al. (2021), Silva-Ferreira e Zdradk (2020).
Como vimos na categoria Fatores de risco, o processo migratório é composto por um conjunto de elementos pré e pós-migratórios que, potencialmente, impactam na saúde mental e provocam sofrimento psíquico. Mediante tal compreensão, a segunda categoria - Sintomas psíquicos - representa os principais sintomas observados e relatados pelos imigrantes universitários após chegarem ao Brasil e à universidade.
A primeira subcategoria, Estados ansiosos, é composta por três unidades temáticas: choque cultural, descontrole do peso e crise de ansiedade. Todavia, é importante destacar que a ansiedade é considerada um estado normal que tem a função de destinação de energia psíquica e de concomitante preparação do sujeito para experiências novas que remetem a expectativas e/ou medo. Porém, dentre as várias formas de manifestação da ansiedade, existem aquelas que causam intenso desprazer, dificultam a adaptação, provocam prejuízo social e/ou sofrimento psíquico (Freud, 2006/1925).
A primeira unidade temática, Choque cultural, traz um fenômeno que os participantes descreveram ocorrer após a chegada e nas primeiras experiências de interação. Como a própria metáfora indica, um “choque” é provocado pelo encontro com a diferença cultural e com o desconhecido (Birol, 2017). Assim, observamos que, semelhante aos estados ansiosos, este choque pode ser sutil, agudo ou com efeitos duradouros, e representa uma dinâmica entre o mundo psíquico e o novo ambiente cultural:
“Depois eu estava na minha casa, por exemplo, e a gente falava espanhol e quando saía na rua era um choque, porque você sai e não sabe que tem que mudar. Então quando a pessoa fala, você pensa “ah agora tem falar português”. Até agora é um choque, até agora às vezes eu acordo e não consigo falar bem, mas é como um bloqueio mental assim. Não é que não sei, é que às vezes não, não dá pra falar.” (P14, Venezuelana).
A segunda unidade temática, Descontrole do peso, refere-se à ansiedade que, segundo os imigrantes, provoca uma alteração na forma de se alimentar. Fatores como a mudança na rotina, a ausência de exercícios, a diferença nos alimentos encontrados no Brasil e o sofrimento psíquico, influenciam nesse processo. Segundo Freud (2006/1925), a tensão no aparelho psíquico repercute na ansiedade, e faz com que o ego busque alternativas de satisfação conhecidas para lidar com o desprazer e a tensão frente ao desconhecido. Nesse sentido, a satisfação oral propiciada pela alimentação revela-se como um paliativo ao mal-estar causado pela ansiedade após a imigração: “E minha ansiedade por comer tem piorado. E isso, minha rotina é essa, sentar-me todos os dias e como que conscientemente eu quero fazer as coisas, mas inconscientemente estou rendida (...)” (P2, Colombiana).
A terceira unidade temática, Crise de ansiedade, foi destacada pelos imigrantes universitários em momentos de desamparo e de maior intensidade dos sintomas ansiosos. Esse desamparo pode vir associado ao sentimento de perda de horizonte e também à incerteza frente ao estresse adaptativo no novo contexto. Representado pela crise de ansiedade, o desamparo pode significar um enfraquecimento das defesas ativas antes da imigração, e que acompanha a necessidade de compreensão sobre este estado mental nunca experimentado até então:
“Na saúde mental, minha ansiedade atacou mais. Faz (...) um mês que eu procurei a psicóloga porque eu tive um ataque de ansiedade aqui, e foi muito forte, foram coisas... começou atacar de um dia para o outro, e eu senti que não estava mentalmente bem (...) na Colômbia eu nunca tive isso, ou eu reprimia isso, porque eu tinha que estar forte para minha família, sabe?!” (P7, Colombiano).
Observamos que os estados ansiosos se manifestaram de diferentes formas e em diversas circunstâncias, porém, geralmente em relação ao desconhecido interno ou externo. Assim, eles podem representar uma expressão do conflito psíquico pós-migração em torno da perda da familiaridade e do “controle” sobre a realidade (Betts, 2005; Pocreau, 2018).
Já a subcategoria Somatizações representa os sintomas que tiveram a função de expressar, por meio do corpo, os conflitos e o sofrimento psíquico vividos pelos imigrantes universitários após a imigração. O primeiro sintoma destacado foi a Alteração do sono, seguido de Dores de cabeça e Amigdalite e Dores de estômago. Os participantes expressaram que esses sintomas iniciaram ou se intensificaram após a imigração. No mais, eles os relacionavam com a adaptação climática, o estresse aculturativo e a sensação de estranhamento. Segundo os participantes, houve maior prevalência desses sintomas no primeiro ano no Brasil: “Sim, mudou. Agora eu estou sempre doente. Lá eu nunca tive nada de doenças, essas doenças.” (P15, Haitiana).
Outra questão importante a ser considerada é que as formas de expressão sintomática também estão sujeitas aos códigos culturais dos imigrantes. Em relação à hipótese de as somatizações serem formas comuns de expressão de sofrimento dos imigrantes, destacamos as considerações de Girardi e Martins-Borges (2017) de que não é apenas a diminuição de contato com a língua materna que potencializa a somatização, mas também a lógica de significados culturais que está prejudicada pela distância da terra natal.
A terceira subcategoria, Sofrimento acadêmico, refere-se ao impacto da imigração no percurso educacional. É importante relembrar que o ambiente acadêmico é composto por desafios de adaptação e guarda em si formas de expressão de mal-estar próprias de seu contexto. A primeira unidade temática, Desorganização da rotina, foi destacada pelos imigrantes como uma das questões vivenciadas ao ingressarem na universidade - o que é compreensível ao se levar em consideração que o estudante terá que se adaptar a um novo sistema de ensino, às novas responsabilidades cotidianas, à exigência de autonomia e de desempenho acadêmico concomitantemente à adaptação sociocultural:
(...) me senti muito desorientada, é como se não me encontrasse, é como estivesse perdida, não se sabe como fazer as coisas, então foi como chegar a casa e estar sozinha outra vez, e ter que ser uma adulta responsável ((risos)).” (P1, Colombiana).
A segunda unidade temática, Dificuldade de concentração, representa outro sintoma dentro do ambiente acadêmico, que pode ter diferentes origens e intensidades. Uma dessas origens diz respeito ao impacto das diferenças linguísticas na relação ensino-aprendizagem e ao esforço cognitivo para aprender um conteúdo sem o domínio da língua. Tal dificuldade pode gerar fadiga cognitiva e desinteresse pelo conteúdo e pelas aulas (Prieto-Welch, 2016). Outro aspecto que podemos destacar deste sintoma é sua estreita relação com a aprendizagem e com a autoimagem acadêmica do imigrante: “Minha concentração era muito baixa, não concentrava nada, nada. (...) Até o ano passado eu não tinha mesmo, essa concentração para estudar, para qualquer coisa.” (P13, Boliviano).
A dificuldade de aprendizagem e o fracasso acadêmico são problemas multifatoriais, que geram sofrimento e impactam diretamente na autoestima e na trajetória do imigrante dentro do ambiente universitário. Dentre seus efeitos, podemos elencar o isolamento acadêmico, a impossibilidade de se matricular em novas disciplinas, o risco da perda dos auxílios estudantis e bolsas de estudo e a alteração da autoimagem acadêmica.
Por sua vez, a subcategoria Estados depressivos engloba um conjunto de expressões do sofrimento psíquico que diferem em intensidade, mas, em alguns casos, e como observado nas histórias individuais, se relacionam entre si. Nesse sentido, a primeira unidade temática, Solidão, representa um sentimento característico de quem se deslocou de seu lugar de pertença, onde mantinha boa parte de suas relações sociais e afetivas, e teve que construir novas relações cotidianas (Moro, 2015).
Conforme destacamos a seguir, o sentimento e a percepção de “ser estrangeira”, que, nesse caso, se vincula a um sentimento de “estrangeiridade”, pode remeter a uma das principais questões existenciais do ser humano, que é lidar com a solidão, com o desamparo e com a falta constituinte, como nos advertiu Freud (2006/1885). Tapar a solidão, ou seja, tapar a falta reeditada por uma condição de desamparo pós-migração, remete a um impossível, visto haver indícios de se tratar de um “in-familiar”, de um desamparo primordial que não pode desaparecer totalmente (Freud, 2019/1919):
“(...) e para mim, ser estrangeira e estar em Foz, é enfrentar uma palavra chave que é a solidão! Estar sozinho... e a solidão é o maior medo na vida, como que para mim as pessoas em geral têm muito medo de estar sozinhas. E quando a solidão chegou para mim eu comecei a tapar a solidão. Tapar as ‘solidões’ com pessoas, tapar a solidão com festas, tapar a solidão com cigarros, com cerveja e ir tapando a solidão. Porém, chega um momento que nada disso... tipo, você faz tudo isso e continua se sentindo sozinha.” (P12, Uruguaia).
A unidade temática Tristeza refere-se não apenas a esse sentimento como inerente à condição humana, mas também como um desamparo que pode estar relacionado com a sensação de perda de algo concreto do mundo externo. A tristeza é apontada como emoção estranha ao próprio sujeito, que, em um primeiro momento, não compreende a origem e o porquê da eclosão desse sentimento e da perda do “controle emocional”, como trazido por P16. Nesse sentido, e de acordo com Martins-Borges (2013), a tristeza profunda é recorrentemente um dos sentimentos que emergem no imigrante após seu deslocamento: “Às vezes eu estou chorando, mas eu não sei por quê. Às vezes eu estou chorando, mas não sei, fico triste… Isso acontece.” (P16, Haitiano).
A terceira unidade temática, Alteração da autoimagem, aborda narrativas em que os imigrantes universitários relataram o impacto migratório na alteração da percepção de si. Essa alteração pode se caracterizar por um não reconhecimento, uma desorientação e uma crise existencial, que remetem ao estranhamento com algo inquietante do próprio sujeito (Freud, 2019/1919). Já no ambiente universitário, a alteração da autoimagem pode ser compreendida como uma ferida narcísica e de desvalorização da autoimagem acadêmica: “(...) sim, não me reconhecia, estava assim me perguntava, quem sou eu? Para que estou aqui? Se não tem ninguém, estou sozinha, vou ficar sozinha a vida toda, isso e um monte de coisas ilógicas passavam na minha cabeça.” (P14, Venezuelana).
Por fim, a última unidade temática, Ideação e/ou tentativa de suicídio, configura um quadro de sofrimento psíquico intenso em que o imigrante universitário é tomado por sentimentos de desesperança, tristeza profunda, cansaço, solidão e um desespero que faz com que a busca por um alívio através da morte seja cogitada, sem que se possam medir as próprias consequências. O desamparo profundo e a percepção de ausência de alternativas para sair de tal condição são elementos de quem se percebe desprovido de recursos para lidar com a nova condição existencial e/ou com o enfrentamento de um sofrimento psíquico em um contexto desconhecido:
“E para ser sincero teve um momento onde minha esposa e eu queríamos tirar a nossa vida. Ela me expressou isso, [Ela te disse isso?] Sim, me expressou isso e eu comprei comprimidos e tal, e quis tirar a vida e eu não consegui, ela vomitou, mas eu não pude, eu tentei com uma faca, mas não pude tão pouco...” (P6, Colombiano).
Os casos graves que envolvem os imigrantes universitários guardam um complicador que é a potencial ausência de cuidador próximo, ou seja, de suporte social. A respeito dos estados depressivos identificados, percebemos que o significante central se refere a um sentimento de desamparo pós-migração. Deste desamparo podem emergir as atuações, que, segundo Zimerman (2004), constituem formas de conduta e comunicação não verbal que substituem angústias e conflitos que não são simbolizados, recordados, verbalizados ou contidos. O impacto migratório e o desamparo podem ser tão intensos que podem gerar passagens ao ato. Estas, de acordo com Millaud (2009), se reservam aos atos impulsivos e violentos, como a autoagressão (tentativa de suicídio) ou a heteroagressão (homicídio), sendo que a principal função desses atos, segundo Lacan (2005/1963), seria a tentativa de sanar a angústia, como exemplificado na narrativa anterior.
A terceira e última categoria, Fatores de proteção, está composta por duas subcategorias e tem o objetivo de expor os elementos que auxiliaram os imigrantes universitários a diminuírem o impacto da migração. A primeira, pré-migratórios, refere-se aos fatores protetivos anteriores à imigração e está constituída por três unidades temáticas. Já a subcategoria pós-migratórios engloba os fatores protetivos encontrados ou desenvolvidos após a chegada ao Brasil e se compõe de seis unidades temáticas. Assim, a categoria Fatores de proteção engloba desde o amparo advindo objetivamente do outro (familiar, instituição, comunidade etc.) até os recursos próprios que cada imigrante possuía e/ou desenvolveu para lidar com as adversidades.
A primeira subcategoria, Pré-migratórios, apresenta os elementos de suporte social e subjetivo que tiveram a função de facilitar tanto o processo de migração quanto a chegada e a adaptação dos imigrantes, favorecendo assim a estabilidade psíquica. Desse modo, a primeira unidade temática, Apoio familiar, corresponde ao suporte afetivo e material dado pela família. Culturalmente, a família exerce função de cuidado e proteção, e é nesse ambiente que os sujeitos constroem boa parte de suas memórias afetivas e sua própria identidade:
“Meus pais estavam muito contentes, felizes, muito fortes, muito felizes que eu iria estudar em outro país. Eles aconselharam muito: ‘Se você vai sair para ir a outro país, você tem que, que ser o mais original!’ (...) eles têm muita confiança em mim! Essa é uma responsabilidade que eu tenho ((risos))!” (P10, Peruano).
Tal fator protetivo também foi observado por Girardi (2015) em pesquisa com imigrantes universitários na UFSC. Observou-se, nesse estudo, que houve um estreitamento dos laços afetivos e uma maior frequência de contatos. Segundo Doku e Meekums (2014), este laço familiar permite a manutenção da cultura e da identidade frente à angústia da separação e ao sentimento de perda.
A segunda unidade temática, Contatos prévios no Brasil, demonstrou ser uma variável relevante, principalmente no momento da chegada ao novo país. Esta rede social prévia pode ser um familiar, uma pessoa próxima ou um gesto de acolhimento entre os conterrâneos (P8); ela pode fazer de uma experiência potencialmente impactante - devido ao desconhecimento do contexto - um momento semelhante à chegada em sua própria casa, permitindo diminuir a ansiedade da chegada e aumentar a sensação de segurança. Os contatos prévios e a segurança emocional propiciada por eles parecem estar intrinsecamente ligados às ações de acolhimento, solidariedade e hospitalidade, que, nesses exemplos, estão relacionadas a laços afetivos e dinâmicas de identificação (familiares, conterrâneos, amizade, igreja):
“E então foi, quando cheguei em Foz, fui bem recebido (...) Acho que foi uma iniciativa de um professor colombiano que estava aqui. (...) E ele comunicou os estudantes para acolher os novos estudantes colombianos de 2015. Foi um lindo gesto! Eu me senti muito bem, porque só minha mãe que me acolhia no aeroporto quando chegava... foi me sentir em casa, um pouco.” (P8, Colombiano).
Segundo Subuhana (2009), Silva-Ferreira, Martins-Borges e Welleck (2019), os coletivos, as associações e os programas de acolhimento que recebem imigrantes universitários, juntamente com as redes virtuais construídas para a recepção e integração dos recém-chegados, possibilitam a redução do impacto cultural negativo e facilitam a construção de uma nova rede de apoio.
A terceira e última unidade temática dos fatores de proteção pré-migratórios, Conhecimento linguístico e cultural, refere-se à preparação e/ou às experiências anteriores dos imigrantes que permitiram que estes estivessem menos vulneráveis ao impacto migratório e ao choque cultural e acadêmico. Como vimos ao longo dos resultados, a diferença linguística exerce influência na aprendizagem e na sociabilidade, como apontado por Doku e Meekums (2014), Prieto-Welch (2016) e corroborado pelos poucos estudantes que já conheciam a língua portuguesa antes de migrarem para estudar na universidade:
“Acho que esta é uma diferença que eu vejo em comparação com os meus outros colegas que chegaram da Colômbia pela primeira vez, e eu vejo que eles têm um conflito, um tipo de choque. Então eu acho que foi importante o fato de eu ter estudado português antes.” (P8, Colombiano).
A preparação linguística e cultural permite uma maior otimização do tempo de estudo, confiança para se expressar e facilidade para compreender as lógicas institucionais. Além das questões acadêmicas, esta preparação apresenta-se como um importante fator na sociabilidade fora dos muros da universidade (Silva-Ferreira; Martins-Borges & Welleck, 2019).
Por fim, a segunda subcategoria, Pós-migratórios, traz os fatores que se destacaram enquanto potenciais mantenedores e/ou facilitadores do equilíbrio psíquico dos imigrantes universitários após a chegada ao Brasil e/ou à universidade. A primeira unidade temática, Qualidade educacional, corresponde à percepção e satisfação dos estudantes com a experiência de aprendizagem na universidade. Mediante a análise das entrevistas, observamos que a satisfação com a qualidade do ensino ofertado sanava as “incertezas” sobre se realmente a imigração e/ou a decisão de sair do mercado de trabalho para cursar a universidade teria sido acertada.
A satisfação com a escolha tomada representa para o imigrante universitário o conforto psíquico de sentir que “está no caminho certo”. Para além da aprendizagem clássica em sala de aula, outra característica ressaltada pelos estudantes refere-se à construção de um espaço educativo plural e permeado pela interculturalidade. No caso da UNILA, os encontros com a diferença também possibilitaram uma ampliação dos conhecimentos e da forma de lidar com a alteridade:
“Você se encontra com muitas coisas na UNILA! Muita! Costumes, dialetos, pessoas diferentes, e isso lhe ensina algo também, muitas coisas. (...) Eu gosto bastante porque não se limita ao acadêmico. Se aprende andando nos corredores da UNILA!” (P3, Colombiana).
Analisando ainda o impacto das diferenças culturais no ambiente educacional e a singularidade do contexto da universidade, as experiências de acolhimento docente merecem destaque enquanto características de qualidade educacional. A forma como o professor acolhe a diversidade e planeja sua aula para uma classe multicultural faz toda a diferença para que o imigrante se sinta confiante para se expressar e se desenvolver no ambiente acadêmico. Tal elemento se refere igualmente à preparação da instituição para lidar com a diferença cultural (Saladino & Martinez, 2015; Silva-Ferreira, Martins-Borges & Welleck, 2019).
A segunda unidade temática, Rede de apoio, assim como o próprio conceito sugere, representa o conjunto de relações e/ou serviços que dão suporte ao imigrante universitário em seu dia a dia ou, ocasionalmente, quando percebe que precisa de ajuda. Os discursos dos participantes permitem subdividir a rede de apoio entre socioafetiva e institucional. A primeira é constituída por um laço afetivo que difere de relação para relação, mas que exerce função de amparo emocional e/ou material nos momentos oportunos. Destacaram-se como representantes da rede de apoio socioafetiva: a família, os veteranos do curso, os moradores da cidade, o apoio do(a) parceiro(a) amoroso(a), e os conterrâneos:
“(...) a turma de veteranos se uniu para nos receber, como hospedagem solidária. E cheguei na casa de uns uruguaios, ‘muitoooo’ especiais!!! Eles nos deram... receberam a mim e meu esposo e nos deram uma habitação, comida, tranquilidade realmente (...). A recepção foi boa, foi seguro, foi tranquilo, nos sentimos acolhidos, nos abraçaram.” (P4, Colombiana).
Observamos maiores indícios de adaptação sociocultural em imigrantes que tinham conseguido estabelecer vínculos tanto com os conterrâneos quanto com os brasileiros. Visto que o imigrante universitário, ao deixar o seu país, se afasta de uma série de vínculos que formavam a sua rede de apoio, as novas amizades e o equilíbrio entre relações com conterrâneos/estrangeiros e locais consistem na equação ideal para a redução do impacto dos fatores de risco e para o favorecimento da integração na nova sociedade (Garcia, 2012; Subuhana, 2009).
Os primeiros representantes da rede de apoio dos imigrantes universitários são conterrâneos ou falam a mesma língua, algo facilitado pelo fato de a UNILA ser composta por múltiplas culturas. Ao entender que a língua constitui um obstáculo ao vínculo, apenas posteriormente a rede de apoio tende a ser composta por brasileiros. De acordo com Garcia (2012), é importante que exista uma ampla rede de apoio, porque, se esta for constituída apenas por pares, o imigrante universitário terá maiores dificuldades em aprender a língua e a cultura local, limitando, assim, a possibilidade de integração.
No âmbito externo, foram os cursos de português para imigrantes, o SUS e as igrejas que recorrentemente se destacaram como ambientes de amparo e acolhimento. Neste quesito, o acolhimento ao imigrante é fundamental para a restituição de sua vitalidade e autonomia no país anfitrião e representa um modelo cultural de convivência de fortalecimento mútuo.
O serviço de atendimento psicológico da UNILA destacou-se como um espaço de amparo e apoio aos imigrantes universitários; ele acolhia anualmente cerca de um em cada dez imigrantes matriculados na universidade. Assim, o atendimento psicológico oferecido constitui um suporte institucional que auxilia o imigrante a lidar com o sofrimento psíquico, a adaptação educacional e a desenvolver autonomia e autocuidado:
“No terceiro ano foi o ano que comecei a consultar com o psicólogo e mudou completamente. Sabe, tipo muito, porque minha ansiedade diminuiu, comecei a sanar, encerrar coisas, minha qualidade de vida aumentou muitíssimo, e como que tomei decisões adequadas, cuidei muito da minha vida acadêmica, cuidei muito de mim!” (P12, Uruguaia).
A terceira unidade temática, Lazer e esporte, refere-se às atividades que, segundo os participantes, proporcionam uma diminuição do estresse e da tensão do dia a dia. Por outro lado, essas atividades também propiciam sociabilidade e integração com outros grupos, o que favorece a construção de vínculos diversos e de uma nova rotina. Nas pesquisas de Garcia (2012) e Silva e Morais (2012), essas atividades também se relacionam com a diminuição dos sintomas ansiosos e depressivos, além de promoverem identificação mútua, pertencimento e maior inserção social: “Eu sou o diretor de futsal da minha atlética, e na terça-feira e quinta jogamos, e isso me ajudou, me areja a mente, isso me ajuda realmente.” (P6, Colombiano).
Além das atividades coletivas, também foram nomeadas atividades mais intimistas e sublimatórias como forma de lidar com a tensão psicológica após a chegada ao Brasil. Destacaram-se as atividades artísticas, que denotam também a internalização da cultura brasileira pela via da música e da arte. Assim, a identificação e a valorização dos aspectos positivos da cultura local, sem que esta seja uma ameaça à herança cultural do imigrante, representam, segundo Berry (2004), a dinâmica ideal no encontro intercultural que é a integração. Remetendo ao movimento antropofágico brasileiro, a integração seria composta por uma deglutição e internalização da cultura do outro sem a negação da herança cultural (Sobrevilla, 2001).
Em sequência, a unidade temática Manutenção da cultura de origem traz a experiência da imigração como possibilidade de “re-conhecimento” mediante a identificação com a própria cultura e o fortalecimento da identidade cultural, ou seja, um retorno ao quadro cultural distanciado pela imigração. Importante recordar que o processo de identificação remete à internalização do objeto, sendo que, ao ser reconhecido na realidade, este retroalimenta o vínculo libidinal e a sensação de segurança do ego no ambiente desconhecido (Freud, 2006/1921). Dessa forma, a manutenção dos símbolos culturais (dança, música, comida, língua, ritos etc.) também constitui a manutenção de um universo de significações que diz ao sujeito quem ele era e de onde ele veio (Hall, 2015; Pocreau, 2018):
“Eu sempre... meus amigos falam, eles falam, você tem que tocar no violão uma música romântica ((risos)) ou uma música de outro país. Mas eu gosto muito do meu país, não sei se você conhece a canção ‘Condor pasa’, é uma música indígena.” (P10, Peruano).
Recuperando então o conceito de objeto transicional de Winnicott (1975), observamos que a permanência dos objetos culturais representa, para os participantes, um laço que sustenta a identidade cultural e possibilita a estabilidade frente à tensão interna provocada pela separação decorrente da imigração. Tal fator de proteção também foi destacado por Girardi (2015) e Maciel (2017) e vai ao encontro do papel essencial da cultura na constituição da psique humana e na formação dos quadros de referência e interpretação da realidade (Devereux, 1981). A este respeito, a cultura, enquanto função materna, representa a codificação e interpretação do real, e a permanência destes objetos simbólicos reproduz o berço cultural que conforta o sujeito frente à angústia. Segundo Pocreau (2018), a internalização desses cuidados maternos/culturais constrói uma pele cultural que protege o sujeito das excitações do real mediante um universo de significações.
Já a Interculturalidade engloba uma série de aspectos sobre encontros criativos e trocas culturais que proporcionam aos imigrantes romper com amarras históricas, quebrar preconceitos, construir redes sociais transnacionais e desenvolver novas formas de enxergar e se relacionar consigo mesmo e com o mundo. As narrativas permitiram observar como a interculturalidade também possibilitou aos imigrantes a elaboração de conteúdos e cadeias de sentido da própria cultura. Destacamos, na fala que se segue, a ressignificação sobre os elementos culturais que oprimiam a língua materna e a identidade étnica, além de demonstrar a heterogeneidade cultural e as relações de poder em torno da cultura (Hall, 2015; Polar, 2011):
“Porque quando você está na Bolívia todo mundo fala espanhol, castelhano se chama lá, e quando alguém fala em quéchua, é um pouco discriminado, ‘Você é campesino, você tal, tal, tal...’ Aí fica envergonhado, nunca fala quéchua mesmo sabendo, e não fala nada de quéchua. (...) E aconteceu isso comigo, eu queria mostrar mesmo o que eu sabia e o que eu falava também. Eu sei falar quéchua, então na quéchua se fala assim, e começava a falar em quéchua com os meus colegas.” (P13, Boliviano).
A última unidade temática, Autonomia, refere-se às narrativas dos participantes que apontam como o processo migratório auxiliou no desenvolvimento de novas formas de lidar com as próprias decisões, responsabilidades e dificuldades. Dessa maneira, destacamos dois conceitos que nos auxiliam a entender a dinâmica desse processo: resiliência e sublimação. O primeiro, como a capacidade de reorganização e resistência psíquica frente a situações adversas; e o segundo, como um mecanismo de defesa capaz de transformar um conteúdo hostil em algo criativo e valorizado culturalmente (Devereux, 1981; Freud, 2006/1915).
As narrativas dos participantes retrataram como a imigração e as adversidades encontradas podem ativar mecanismos de defesa criativos e o desenvolvimento de habilidades para lidar com o desequilíbrio do impacto migratório. Por exemplo, destacou-se que o processo sublimatório possibilita transformar um conteúdo que molesta em uma produção valorizada socialmente, mediante recursos criativos que possibilitem reparar a autoimagem ameaçada pelo choque cultural e que, no caso, também remete à contribuição dos imigrantes universitários às comunidades de acolhimento:
“Do transporte público! Por isso meu TCC é sobre isso. Ah foi o jeito sabe. Eu sinto que a cidade tem um problema com isso, (...) Vou ter que fazer um projeto, algo, dar um jeito para solucionar este problema. Então tudo isso que me molestava eu decidi transformar em pesquisa ((risos)).” (P5, Colombiano).
Observamos o quanto a imigração e a experiência educacional intercultural possibilitaram um processo de emancipação e um novo posicionamento subjetivo em relação aos próprios desejos e às responsabilidades. Podemos destacar os tabus culturais sobre a sexualidade e a contribuição da imigração no rompimento de fronteiras internas e externas. Tal emancipação, que se refere à relação entre migração, gênero e cultura, também foi identificada nas pesquisas de Assis (2007).
Por fim, também nos chamou a atenção a identificação de novos significados do processo migratório iniciado pelo desenraizamento e pela violência da imigração forçada. A junção entre fatores protetivos individuais, culturais e políticos pode possibilitar um amortecimento do impacto migratório ao potencializar a resiliência e a constituição de uma bagagem cultural diversificada. Nesse sentido, podemos considerar que, apesar do potencial impacto migratório negativo, na imigração de universitários os fatores protetivos possibilitam uma reorganização da psique e ganhos em torno do crescimento intrapessoal e interpessoal:
“Ah nossa, muito, muito, amadureci... quando vim de lá pra cá, eu acho que ainda era uma adolescente, eu trabalhava e tudo, era uma pessoa responsável, mas isso aqui, o fato de migrar... que fiquei sozinha, comi com moradores de rua uma vez, trabalhei como nunca na minha vida tinha trabalhado, aprender outro idioma, amadureci, muito, muito, muito, muito! E eu acho que sou uma pessoa mais inteligente, mais preparada pra vida!” (P14, Venezuelana).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a realização desta análise sobre as experiências e narrativas destes(as) 18 imigrantes universitários(as) da UNILA, foi possível identificar os fatores de risco pré e pós-migratórios. A respeito dos fatores de risco, observamos múltiplas realidades sociais, políticas e educacionais, o que demanda cuidados sobre as generalizações em relação a esses estudantes. Porém, destacaram-se os conflitos sociais e educacionais nos países da América Latina, onde a carência de oportunidades no ensino superior público gratuito e o risco de inanição social predominaram enquanto elementos de mal-estar social e propulsores da migração. Observando a relação entre o acesso ao ensino superior público e as principais nacionalidades que buscaram vaga na UNILA (Paraguai, Colômbia, Peru, Haiti etc.), podemos refletir sobre o fenômeno de certos fluxos migratórios estudantis como um eco das realidades sociopolíticas e do processo de desmonte e precarização da educação pública na América Latina.
Em paralelo, a violência da imigração forçada e sua força traumática revelaram biografias marcadas por momentos de vulnerabilidade social e psíquica durante o processo migratório. Sobre os conflitos familiares, estes indicaram a importância de se observar a questão geracional na imigração e a dinâmica de dependência/independência dentro dessas relações. Constatamos ainda como a presença de histórico de sofrimento psíquico e a fragilização das defesas na imigração podem favorecer a re-atualização dos sintomas. Por fim, a falta de preparo para a imigração caracterizou-se como um elemento que agrava o choque cultural e educacional na chegada ao Brasil.
A respeito dos fatores de risco pós-migratórios, identificamos a diferença da língua como uma das principais dificuldades iniciais. Também nos chamou a atenção o caso de os hispanofalantes terem sentido este impacto dentro de uma universidade bilíngue, e em uma região de fronteira com países hispanofalantes, o que também nos remete a pensar sobre as diferenças linguísticas e suas cadeias de sentido dentro de uma “mesma língua”. Identificamos também que na imigração está intrínseca a dinâmica das separações e perdas, o que nos fez compreender o quão a distância do universo cultural e social remete o estudante a um processo de luto em relação ao país de origem e a uma ambivalência em relação às duas realidades. Em diversas ocasiões durante as entrevistas, os pontos que remetiam a lembranças da terra natal foram os que causaram mais emoção nos estudantes.
Na nova realidade, além do luto, prevaleceu o estresse para se adaptar e entender as características da nova sociedade e realidade educacional, cujas dificuldades foram acentuadas decorrentes das problemáticas gerais da própria cidade. Conjuntamente a esse estresse, a classe social e as dificuldades financeiras demonstraram serem questões importantes para o surgimento de um mal-estar pós-migratório. As diversas formas de discriminação também impactaram negativamente na sensação de pertencimento via discursos ou atos que, sutilmente ou diretamente, exerciam força de inferiorização. Neste campo, a compreensão da ausência de competência cultural, do narcisismo das pequenas diferenças e de elementos históricos do Brasil e de Foz do Iguaçu se fez pertinente para tentar compreender a presença do etnocentrismo acadêmico, do racismo e da xenofobia seletiva como violências presentes nas experiências dos estudantes. Em relação ao etnocentrismo acadêmico, percebemos que, além de significar um silenciamento e uma desvalorização do conhecimento e da cultura do outro, ele também pode representar uma faceta velada da xenofobia, ou simplesmente a ausência de preparação/habilidades para lidar com a interculturalidade na sala de aula.
Com relação ao sofrimento psíquico pós-migratório, a principal forma de expressão de desamparo e sofrimento foram os estados depressivos. Podemos pensar que, de forma geral, o estado depressivo tem como característica um desinvestimento da realidade. Nesse sentido, pensar que um dos principais pontos da dinâmica do imigrante é lidar com uma nova realidade, nos faz refletir sobre o simbolismo de não se investir energia em uma realidade aparentemente estranha e hostil. Já os sintomas ansiosos foram também diversamente citados como forma de reação frente ao desconhecido, que, por sua vez, representou o conflito entre o mundo psíquico e o novo ambiente cultural. Já as somatizações surgiram como formas de o corpo expressar o desconforto após a imigração. Ainda a respeito do desconforto, o sofrimento acadêmico via desorganização da rotina e dificuldade de concentração surgiu como ponto que também se relacionava com a dificuldade de aprendizagem, cujo fantasma do não cumprimento da “missão” de se formar também implicava em elemento de sofrimento psíquico.
Referente aos principais fatores de amparo e proteção à saúde mental dos estudantes, podemos observar que, nos elementos pré-migratórios, se destacaram a proteção e o apoio familiar, que auxiliavam tanto no planejamento e nos recursos materiais como no suporte afetivo e de confiança antes, durante e depois da chegada ao Brasil. Os contatos prévios foram narrados como essenciais para a diminuição do impacto da chegada e também contribuíram para a formação de uma nova rede social. Observamos ainda como a preparação linguística e cultural de alguns participantes favoreceu a sociabilidade e aprendizagem nos primeiros meses na universidade, em contraposição ao choque acadêmico e social de outros participantes que chegaram com poucos conhecimentos linguísticos e culturais.
Após a imigração, identificamos que a qualidade educacional, aliada à representação do valor do diploma internacional, produz uma motivação para que seja aproveitada a oportunidade e que o estudante se sinta confiante na sua escolha. Outro aspecto da qualidade educacional foi também a singularidade do projeto UNILA em proporcionar uma aprendizagem intercultural e diversa. Sobre a rede de apoio, destacou-se uma diversidade de relações e serviços que auxiliavam os imigrantes nos momentos de dificuldade, como os familiares, os amigos, a Igreja, o serviço de psicologia, os professores e o SUS. A respeito das amizades, as narrativas indicaram que, quanto maior a integração entre os imigrantes universitários e os estudantes nacionais, maior a adaptação sociocultural e acadêmica dos imigrantes.
A manutenção da cultura, além de ser apontada como fator central para o equilíbrio psíquico do imigrante, destacou-se, em alguns casos, como mecanismo para que os símbolos culturais reprimidos no próprio país pudessem emergir como organizadores da identidade étnica. Tal questão reflete não apenas um fenômeno individual, mas igualmente a repressão histórica que o período colonial exerceu sobre as culturas tradicionais na América Latina e, no presente caso, na Bolívia.
Relacionada ao ponto anterior, a interculturalidade também proporcionou que os imigrantes ampliassem o olhar sobre si mesmos e suas culturas e desenvolvessem competências para lidar e respeitar as diferenças. Conjuntamente com este fator, o ganho de autonomia revelou-se como um dos principais frutos da imigração, possibilitando não apenas a independência sobre certas relações familiares, mas também sobre amarras culturais. Sobre a relação com a cultura, destacou-se a relevância explicativa do conceito de sublimação no encontro intercultural (Devereux, 1981). De acordo com Marsillac (2014), a sublimação também pode surgir como resposta criativa à angústia do não lugar, sendo este também um “lugar” de criação, o que representou, nesse sentido, não apenas o desamparo e a falta, mas também o lugar de construção do desejo e da posição resiliente frente aos impactos da experiência migratória e educacional.
Diante do exposto, consideramos relevante que as políticas institucionais e nacionais de internacionalização do ensino superior e de ações afirmativas para refugiados estejam atentas aos impactos do processo migratório e educacional, e que assim possam pensar ações e projetos de saúde mental que minimizem os fatores de risco e potencializem os fatores de proteção, como nos modelos descritos por Ragnini et al. (2021), Silva-Ferreira e Zdradk (2020). Também esperamos que as contribuições do presente estudo, junto à compreensão das motivações e dos desafios de imigrantes universitários latino-americanos para chegar, permanecer e se formar em uma universidade estrangeira, auxiliem psicólogos, professores, gestores e educadores em geral na práxis da psicologia intercultural, da pedagogia intercultural e na construção de programas de inclusão, permanência e conclusão de curso voltados às especificidades de acolhimento e integração de imigrantes universitários.
Reconhecemos como limitações do estudo a utilização da língua portuguesa nas entrevistas com os estudantes haitianos, o que prejudicou potencialmente a expressão verbal dos participantes; e, também, a heterogeneidade de nacionalidades e de perfis migratórios, que teve como ponto positivo permitir uma amplitude de narrativas, inclusive de raça, gênero e cultura, mas não, infelizmente, um aprofundamento sobre cada realidade social, educacional e cultural.
Por fim, e diante da escassa literatura sobre os impactos da imigração na saúde mental de imigrantes universitários na América Latina, esperamos que novas pesquisas possam aprofundar e expandir os resultados encontrados neste estudo exploratório. Tais resultados ainda indicam a necessidade de novas investigações referentes ao impacto das classes interculturais na atividade docente, à necessidade de identificação das competências culturais de professores e técnicos administrativos e sua relação com o processo formativo institucional, e à análise dos resultados das políticas de inclusão e revalidação de diploma de refugiados no ensino superior.
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Os autores agradecem, primeiramente, às (aos) participantes da pesquisa que a tornaram possível. Estende os agradecimentos aos colegas do Núcleo de Pesquisa sobre Psicologia, Migrações e Culturas (NEMPsiC) pelas trocas e discussões durante a construção da investigação. Por fim, agradecem igualmente à Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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Para ter acesso ao detalhamento completo da pesquisa, o leitor poderá buscar a dissertação de mestrado “Imigração e saúde mental: Narrativas de estudantes latino-americanos em uma universidade intercultural”, defendida junto ao programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC (Silva-Ferreira, 2019).
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Para ter acesso ao detalhamento completo da pesquisa, o leitor poderá buscar a dissertação de mestrado “Imigração e saúde mental: Narrativas de estudantes latino-americanos em uma universidade intercultural”, defendida junto ao programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC (Silva-Ferreira, 2019).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
02 Out 2020 -
Aceito
02 Jul 2021