RESUMO:
Este artigo tem o objetivo de discutir a constituição das práticas e representações sociais de leitura de professoras aposentadas, mapeando os processos e as funções do ler antes e depois da aposentadoria. Para isso, realizou-se uma pesquisa qualitativa com participação de 55 docentes. Na revisão de literatura, lançou-se mão dos estudos de Batista (1998); Britto (1998); Corsino (2010); Guareschi (1995); Moscovici (1978; 2015); Zilberman (1999). Constatou-se, à luz dos estudos de Serge Moscovici (1978) acerca da Teoria das Representações Sociais, que, no decurso das trajetórias vividas, ocorreram mudanças relacionadas à finalidade das práticas leitoras. Na infância e adolescência, as representações sociais de leitura foram construídas no contexto da ausência de livros e leituras, e nas atitudes vinculadas ao incentivo e à prática, direcionadas à família e à escola. Na fase adulta, antes da aposentadoria, a leitura tinha um caráter obrigatório, vista como fundamental para a atuação docente em sala de aula. Depois de se aposentarem, as práticas de leitura das professoras ganham novos contornos e passam a ser realizadas a partir de seus interesses pessoais, ou seja, leem o que querem e quando querem, sem terem consigo a imposição de realizarem leituras para atender a uma necessidade profissional.
Palavras-chave: Práticas de leitura; professoras; aposentadoria; representações sociais
RESUMEN:
Este artículo tiene como objetivo discutir la constitución de las prácticas y representaciones sociales de la lectura de profesoras jubiladas, mapeando los procesos y funciones de la lectura antes y después de la jubilación. Para ello, se realizó una investigación cualitativa con la participación de 55 docentes. En la revisión de la literatura, utilizamos los estudios de Batista (1998); Britto (1998); Corsino (2010); Guareschi (1995); Moscovici (1978; 2015); Zilberman (1999), entre otros. Fue encontrado, a la luz de los estudios de Serge Moscovici (1978) sobre la Teoría de las Representaciones Sociales, que, en el transcurso de las trayectorias vividas, hubo cambios relacionados con el propósito de las prácticas de lectura. En la infancia y la adolescencia, las representaciones sociales lectoras se construyeron en el contexto de la ausencia de libros y lecturas y en actitudes vinculadas al estímulo y a la práctica, dirigidas a la familia y a la escuela. En la edad adulta, antes de la jubilación, la lectura era obligatoria, considerada fundamental para la enseñanza en el aula. Tras su jubilación, las prácticas lectoras de los docentes adquieren nuevos contornos y comienzan a realizarse en función de sus intereses personales, es decir, leen lo que quieren y cuando quieren, sin tener que realizar lecturas para satisfacer una necesidad profesional.
Palabras clave: Prácticas lectoras; profesoras; jubilación; representaciones sociales
ABSTRACT:
This article discusses the constitution of the practices and social representations of reading of retired teachers, mapping the processes and functions of reading before and after retirement. For this, qualitative research was carried out with the participation of 55 teachers. In the literature review, we used the studies of Batista (1998), Britto (1998), Corsino (2010), Guareschi (1995), Moscovici (1978; 2015), and Zilberman (1999). In light of Serge Moscovici’s (1978) studies on the Theory of Social Representations, we found that during the trajectories lived, there were changes related to the purpose of the reading practices. In childhood and adolescence, the social representations of reading were built in the context of the absence of books and reading and in the attitudes linked to the encouragement and practice directed at the family and school. In adulthood, before retirement, reading had an obligatory character, seen as fundamental for teaching in the classroom. After retirement, the reading practices of female teachers take on new contours and are based on their interests, meaning they read what they want and when they want, without the imposition of reading to meet a professional need.
Keywords: Reading practices; female teachers; retirement; social representations
INTRODUÇÃO
O campo de pesquisa sobre as práticas de leitura se constitui em um profícuo espaço de discussões e reflexões. O ato de ler é fundamental para que o sujeito aprenda sobre os mais diversificados temas, interaja e comunique-se por meio da palavra escrita. Ler é um fenômeno social e está presente no contexto da sociedade grafocêntrica, comumente relacionado à apropriação do conhecimento e ao acesso à cultura socialmente legitimada, possibilitando aprendizado e desenvolvimento social.
“A atenção à leitura ampliou-se, nas últimas décadas, para um conjunto de diferentes áreas do conhecimento” (BATISTA; GALVÃO, 1999, p. 11), sendo objeto de interesse da Linguística, Sociologia, Literatura, História, Antropologia, Pedagogia, dentre outros campos. Os estudos têm focalizado a história da leitura e dos seus suportes, a prática no contexto social, educacional e cultural, a produção e edição de livros e impressos, protocolos de leitura ou centrando-se no sujeito leitor.
Existem, ainda, trabalhos que têm como foco a apropriação de leitura por determinados indivíduos, em que se investigam grupos com o intuito de conhecer suas práticas, condições e representações, como é o caso da pesquisa apresentada neste artigo, que busca compreender a constituição das representações sociais e práticas de leitura de professoras aposentadas, profissionais que, durante muito tempo, foram as protagonistas nas instituições educacionais e tiveram como ofício o processo de ensino e aprendizagem.
Antes de exercer suas profissões, as professoras tiveram vivências com a leitura, sendo elas positivas ou negativas, que as constituíram (ou não) como leitoras. Colocando as docentes no âmago desta pesquisa, o objetivo deste artigo é discutir a constituição das práticas e representações sociais de leitura de professoras aposentadas, mapeando os processos e as funções do ler antes e depois da aposentadoria.
Investigamos as representações sociais de leitura de professoras aposentadas a partir da Teoria das Representações Sociais. Ao fazer uso dessa construção teórica, apoiamo-nos nas pesquisas do romeno Serge Moscovici que, no raiar da década de 1960, introduziu o conceito a partir do livro Psychanalyse: son image et son public, publicado em 1961, no qual averiguou como o pensamento popular francês foi penetrado pela psicanálise. Moscovici (2015) define representações sociais como um sistema de valores, ideias e práticas que tem duas funções: a primeira determina uma ordem que direciona os sujeitos tanto no mundo material quanto no social, controlando-o; e a segunda função possibilita a comunicação entre pessoas de uma mesma coletividade, oferecendo a elas um código que nomeie e classifique questões que envolvem as perspectivas individual e social.
A teoria proposta por Moscovici (1978) indica que as representações sociais se constituem por duas faces indissociáveis - a figurativa e a simbólica -, que nos orientam a compreender as faces de determinada prática, neste caso, as da leitura. E, neste estudo, interessa-nos a relação das professoras não somente com o ato de ler, mas também com indivíduos e grupos que influenciaram (ou não) essa prática. Ao colocar em discussão as práticas e representações sociais de leitura, busca-se entender como elas foram construídas e quais transformações sofreram no decorrer da trajetória das professoras. A representação social é “um conceito: dinâmico, gerador (generativo), relacional, amplo, político-ideológico (valorativo) e, por isso tudo, social” (GUARESCHI, 1995, p. 203).
Investigar as representações sociais de professoras aposentadas possibilita penetrar no universo de pessoas que tiveram a leitura como objeto principal da sua prática profissional, indiferente de qual tenha sido a disciplina ministrada ou a modalidade de ensino em que exerceram seu ofício. Também é possível compreender como foram instauradas as suas relações com o ler desde a infância e adolescência - quando a leitura apresentava-se como uma possibilidade no que se refere ao acesso aos livros, aos suportes e às práticas leitoras -; perpassando pela fase adulta, quando a leitura é o suporte para o desenvolvimento do ofício professoral, e, por fim, culminando no momento atual, quando a leitura não tem mais um caráter obrigatório e pode ser realizada (ou não) a partir dos interesses pessoais.
Ao fazer essa investigação, pretendeu-se avançar os estudos sobre as práticas de leitura de professoras, sem abrir mão de discutir suas singularidades, já que são profissionais que tiveram um importante papel no processo de ensino e na constituição de indivíduos leitores. “O professor e a professora [...] não são vistos apenas como ‘aqueles que ensinam’ [...]. Eles são sujeitos históricos. São produtores de linguagem. Linguagem que os constitui como sujeitos humanos e sociais sempre imersos em uma coletividade” (SOUZA; KRAMER, 2003, p. 15, grifo das autoras).
Por compreender as professoras como sujeitos históricos, no âmbito desta pesquisa, procuramos construir respostas para as seguintes indagações: como eram as vivências de leitura de professoras aposentadas em outras fases da vida, em que a leitura não tinha um caráter profissional? Elas eram realizadas com que frequência e intensidade? Essas vivências eram positivas ou negativas? De onde vinha o incentivo (ou a falta dele)? Como eram essas práticas quando as professoras exerciam a função docente? Seu caráter era predominantemente profissional ou também possuía outras finalidades? E agora que se encontram aposentadas, essas práticas ganharam novos contornos?
A busca por respostas para tais questões permitiu compreender a relação dessas profissionais com a leitura desde a infância. Compreendemos que as aproximações ou os afastamentos dessa prática só podem ser entendidos quando “forem examinados os objetos que se tomam para ler e sua relação com questões políticas, estéticas, morais ou religiosas nos diferentes tempos e lugares em que homens e mulheres, sozinhos ou acompanhados debruçaram-se sobre textos escritos” (ABREU, 1999, p. 15).
Do ponto de vista da sua organização, este artigo está dividido em cinco seções: a primeira traz o percurso metodológico da pesquisa; na segunda são feitas algumas considerações a respeito da leitura e suas práticas; na terceira seção, abordam-se as vivências de leitura das professoras na infância e adolescência, apresentando os seus contatos com o ato de ler. Já na quarta seção, apresenta-se uma discussão a respeito do papel da leitura antes da aposentadoria, sobretudo, na docência. Na seção cinco, abordam-se as representações sociais de leitura na fase de vida em que as professoras se encontram, destacando as mudanças nas práticas leitoras, apontando as semelhanças e diferenças nas representações sociais. Finaliza-se este artigo com as considerações finais, que intencionam deixar aberto o caminho para que novas pesquisas que abordam a leitura de docentes aposentadas sejam realizadas.
PERCURSO METODOLÓGICO
O estudo se insere no âmbito de problemas humanos inscritos na realidade social. Por isso, em termos metodológicos, por se tratar do mais adequado a este tipo de estudo, foi escolhida a abordagem qualitativa. Essa abordagem trabalha com o universo dos significados, “que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO, 2010, p. 21). Segundo a autora, os fenômenos humanos fazem parte da realidade social, já que o homem, a partir da realidade que vive e partilha com os demais, se distingue não apenas por suas ações, mas por seus pensamentos e pelas interpretações que faz deles. O universo da produção humana que pode ser resumido no mundo das relações, das representações e da intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa, dificilmente pode ser traduzido em números e indicadores quantitativos. A pesquisa qualitativa ainda garante a riqueza na coleta dos dados, permitindo análise reflexiva das informações colhidas, de maneira que os objetivos traçados possam ser alcançados.
Para colher informações que possibilitassem a análise referente às práticas e representações sociais de leitura, foi elaborado e aplicado um conjunto de questões que, à escolha da participante, foi enviado no formato impresso ou on-line. Composto por dezessete questões, o instrumento foi aplicado para um total de 55 docentes, constituídos por 53 mulheres e 2 homens que representam, respectivamente, 96% e 4% dos participantes. Fizemos a opção por nos referir aos participantes no feminino, tendo em vista a predominância das mulheres na pesquisa, reflexo do protagonismo do gênero feminino na educação. Suas idades variaram entre 60 e 80 anos, pois, como critério para inserção na pesquisa, a participante deveria ter idade igual ou superior aos 60 anos.
Suas formações acadêmicas são variadas: 36,36% são formadas em Pedagogia; 18,18% em Letras; 9,09% fizeram Magistério; 7,27% cursaram Direito. As faculdades de Geografia, História e Normal Superior foram cursadas por um número igual de professoras, correspondendo a 5,45% cada curso. Ciências Sociais representou 3,64% das entrevistadas, a mesma quantidade das formadas em Estudos Sociais. Já os cursos de Administração, Biologia, Contabilidade, Filosofia, Matemática, Odontologia, Psicologia e Serviço Social contaram com a participação de apenas uma docente. Quanto à formação continuada, 61% possuem alguma pós-graduação, seja especialização Lato Sensu (53%), Mestrado (4%) ou Doutorado (4%).
Visando maior liberdade e espaço para a manifestação das vozes das participantes, na coleta de informações, as docentes responderam às questões propostas sem a presença do pesquisador. Segundo Moscovici (1978, p. 49), as representações sociais podem ser melhor captadas por perguntas abertas, já que “uma pessoa que responde a um questionário nada mais faz do que escolher uma categoria de respostas; ela transmite-nos uma mensagem particular”. Por essa razão, o instrumento foi constituído, em sua maioria, por questões abertas, para permitir a livre expressão das participantes.
Após aplicação do instrumento, as informações colhidas foram tabuladas e analisadas, o que permitiu identificar os discursos a respeito da leitura, que se aproximam ou se contrapõem, na infância e adolescência, na fase adulta e após a aposentadoria. Nesse processo, as teorias e o acesso a obras que destacam a leitura e as representações sociais serviram como suporte para fundamentar as análises.
Considerando os procedimentos éticos necessários para a realização de estudos que envolvem seres humanos, a pesquisa foi submetida à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, via Plataforma Brasil, sendo aprovada em 26 de dezembro de 2019, sob parecer de número 3.790.539.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE PRÁTICAS DE LEITURA
Os estudos acerca da leitura e suas interfaces, no Brasil, ganham maiores proporções a partir de 1970, quando o desenvolvimento das ciências da linguagem foi responsável por conceder um novo status ao ato de ler. A partir da referida década “a leitura foi alçada à condição de um campo delimitado de investigação teórica e metodológica” (ZILBERMAN; SILVA, 1988, p. 7), ganhando novas roupagens e autonomia em relação às práticas de alfabetização e escrita, contribuindo em outras disciplinas: “psicolinguística, sociolinguística e análise do discurso, entre as áreas de mais recente expansão, da teoria da literatura e pedagogia, entre as mais consolidadas” (ZILBERMAN; SILVA, 1988, p. 7).
No que se refere às práticas de leitura, Batista e Galvão (1999, p. 13) afirmam que essa expressão “designa uma tendência a lidar com a leitura em seu acontecimento concreto, tal como desenvolvida por leitores reais, e situada no interior dos processos responsáveis por sua diversidade e variação”. Para além disso, os autores mostram que o termo ainda aponta outros contornos que visam expandir o interesse pela leitura a outras disciplinas do campo das ciências sociais, não buscando apenas examinar o ato de ler a partir de uma perspectiva histórica, social e cultural, mas uma integração dos estudos da leitura com outras possibilidades, abordando a vida cotidiana, o universo mental de pessoas e grupos, a oralidade, a escrita, etc. Isso atribui aos estudos das práticas de leitura “uma dimensão interdisciplinar e uma intensa incorporação, pelas ciências sociais, dos resultados, métodos e perspectivas de diferentes disciplinas” (BATISTA; GALVÃO, 1999, p. 13).
Recorrendo ao Glossário Ceale, na voz de Batista (2014), verifica-se que o uso pedagógico da expressão práticas de leitura, no Brasil, provém de duas tradições de estudos sobre a leitura. Primeiramente, emana de estudos históricos e sociológicos, especialmente daqueles vindos de terras francesas, que ganharam maior expressão a partir de meados da década de 1990. A segunda tradição consiste em uma linha de investigação que é de perspectiva anglo-saxônica e é conhecida como “estudos sobre o letramento”. Na primeira perspectiva, a expressão tem como campo a leitura em sua forma concreta, que engloba elementos que competem para que uma situação seja criada, sempre pela via histórica. Desse modo, ela é diversificada. O interesse dos estudos respalda-se em determinados momentos e grupos sociais específicos, com o intuito de compreender quem lê, o que lê, quando, onde, por quais motivos, de quais modos e em qual intensidade. Para além disso, as investigações dessa primeira linha se interessam em entender como alguns processos - de caráter técnico ou social mais amplo - influenciam na ampliação do público leitor, nos modos e maneiras de atribuir sentido e na própria organização de impressos e suportes.
A segunda perspectiva aponta para o conceito de “práticas de letramento”, das quais as práticas de leitura fariam parte (BATISTA, 2014). Ainda conforme o autor, uma prática de letramento tem um caráter abstrato e pode ser percebida sempre com base em um “evento de letramento”. Este, por sua vez, possui um caráter concreto e caracteriza uma circunstância em que a escrita faz parte da interação, de forma direta ou indireta, por meio da escrita ou por influenciar a fala.
Em se tratando de uma pedagogia recente, a expressão práticas de leitura “refere-se à (i) criação de situações reais de leitura em sala de aula, bem como à (ii) busca de apreensão e negociação dos significados que os aprendizes atribuem à leitura em geral, bem como à leitura de diferentes gêneros” (BATISTA, 2014, on-line). Quanto à criação de situações reais de leitura, retoma-se a noção de “usos sociais da língua escrita” ou de “usos sociais da leitura”, que buscam trazer e recriar, dentro do âmbito educacional, as práticas de leitura que ocorrem fora dela, não limitando a atividades para desenvolver o aprendizado do ler e do escrever.
Magda Soares (2009) associa a leitura às práticas sociais, no contexto do letramento, entendido como “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (SOARES, 2009, p. 49). No contexto do letramento, a autora aponta o uso social e cultural da leitura e a importância dela para que o indivíduo faça parte da sociedade e seja capaz de participar das práticas sociais, que envolvem as habilidades de leitura e escrita aprendidas e desenvolvidas, na maioria das vezes, nas escolas, local onde as práticas leitoras têm o seu campo de difusão. Foi legitimado que é dentro dessa instituição que a leitura deve ser ensinada, incentivada, consolidada, tornada um hábito, visando à aquisição de conhecimento, à progressão educacional, cultural, social.
Para as práticas de leitura, foram produzidos sentidos e significados diversos e, hoje, há uma unanimidade acerca do valor que o ato de realizá-la proporciona. Muito além de se limitar ao benefício da aquisição do conhecimento, a leitura tem “a tarefa de forjar cidadãos críticos, conscientes da sua força coletiva no processo de transformação social” (MELO, 1999, p. 93).
Todavia, para forjar esse cidadão leitor, antes de ter contato com a leitura na escola, muitos indivíduos já têm uma proximidade com essa prática por influência e incentivo da família, seja por meio de leitura de histórias, ensinamento dos pais ou pela própria leitura do mundo que o cerca. Algumas dessas relações com a leitura durante a infância e a adolescência serão discutidas na próxima seção.
ENTRE INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: VIVÊNCIAS DE LEITURA
Ao propor uma análise das representações sociais de leitura de professoras aposentadas a partir da Teoria das Representações Sociais, tem-se o intuito de dar destaque aos conhecimentos do senso comum, produzidos e engendrados socialmente, tendo em vista que, nessa teoria, “o fenômeno em questão é da ordem dos diferentes tipos de teorias populares, senso comum, e saberes cotidianos” (WAGNER, 1995, p. 150). As professoras, a partir de investimentos afetivos, cognitivos e sociais, produzem representações sociais para a leitura, permeadas de valores e crenças e construídas a partir de suas experiências docentes.
Moscovici (1978) mostra que toda representação social é formada por imagens e expressões que percorrem a sociedade. Uma representação social, concomitantemente, se forma a partir da organização tanto dessas imagens quanto dessas expressões, pois ela tem como característica acentuar e simbolizar ações e situações que são habituais a nós. “Encarada de um modo passivo, ela é apreendida a título de reflexo, na consciência individual ou coletiva de um objeto, de um feixe de ideias que lhe são exteriores” (MOSCOVICI, 1978, p. 25). Ou seja, a construção das representações sociais acontece na relação do indivíduo com o seu grupo social, captando figuras e linguagens fundamentadas nas ações que são comuns dentro e fora do seu meio. A produção dessas representações ocorre por dois processos sociais denominados, por Moscovici (1978), de ancoragem e objetivação. Esses mecanismos são elaborações cognitivas engendradas no mundo social que tornam concreto o que é abstrato, possibilitando inserção de uma ideia no universo de representações dos indivíduos.
Veloso (2001) destaca que compreender os processos que constituem uma representação social é tão importante quanto mapear o seu conteúdo, de modo que as redes de significações que são produzidas pelos sujeitos em suas relações cotidianas sejam reconstituídas. Assim, é salutar investigar como as professoras participantes construíram suas referências de sentido para a prática de leitura, os indivíduos que as influenciaram e os conteúdos em circulação que alimentaram as suas relações com o ato de ler. Para isso, torna-se necessário conhecer as vivências de leitura das docentes em fases anteriores a que elas se encontram e, assim, compreender como suas significações foram constituídas, como se configuraram em diferentes momentos da vida, verificando mudanças no decorrer de suas trajetórias.
Ao trazerem à tona as suas vivências de leitura na infância e adolescência, os discursos das professoras participantes do estudo se dividem. A maioria - 67,27% - destaca uma relação positiva com a leitura, seja por meio do contato com livros e materiais impressos em casa e na escola, seja pelo incentivo vindo das professoras ou pelo exemplo de pais leitores. Em contrapartida, 23,64% das docentes participantes declaram ausência de práticas de leitura durante a infância, seja por falta de incentivo ou escassez de livros e materiais para ler. Um terceiro grupo, constituído por 9,09% das respondentes, diz ter tido contato com a leitura, entretanto, essas práticas eram desprovidas de elementos que despertassem interesse, pois atendiam a uma imposição da escola.
Para o primeiro grupo, cujas professoras afirmaram vivências positivas com a leitura, essa prática se configurou de diferentes formas: 36,11% fazem referência ao caráter positivo da leitura em diferentes situações; 30,56% afirmam que o ato de ler se deu a partir do incentivo e exemplo provido dos pais ou familiares; 22,22% designaram à instituição escolar e às professoras a responsabilidade de propiciar o acesso à leitura; 11,11% falam do interesse por ler, mas alegaram a dificuldade de acesso a livros e materiais de leitura.
A família, primeira instância social que acolhe a criança e a insere no mundo da cultura, pode somar na formação do leitor. Tendo em vista que o hábito de ler é um comportamento que se desenvolve a longo prazo, quanto mais cedo ocorrer a proximidade com a leitura, mais estreitos serão os laços do indivíduo com o ato de ler. Muitos são os discursos que apontam para essa instituição como propulsora da prática da leitura, desenvolvida com interesse e satisfação:
Meu gosto pela leitura começou na infância e intensificou na adolescência por influência dos adultos que assinavam vários jornais e compravam coleções de romances e os clássicos da literatura brasileira (PA03, 70 anos, graduada em Geografia, aposentada há 12 anos).
Foram muito positivas [as experiências com leitura]. Lembro dos livros que li na infância, das poesias. Meu pai comprava livros para nos incentivar a ler (PA15, 73 anos, graduada em Serviço Social, aposentada há 30 anos).
Desde a infância fui incentivada pelo meu pai, que sempre leu muito, em uma época que não havia tantas opções, os livros nos permitiam a diversão ao mesmo tempo que contribuíam para a nossa formação (PA31, 63 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 20 anos).
Essas lembranças agradáveis constituem uma imagem idealizada da família mediadora do ato de ler, que se encontra associado ao incentivo e ao acesso a materiais de leitura: os pais, além de incentivarem, adquiriam livros, revistas, jornais que propiciavam acesso aos conteúdos que poderiam ser lidos. Esse fomento não se limitava à aquisição de materiais, já que o adulto poderia, simplesmente, comprar livros e ele mesmo não ter o hábito de ler. Alguns relatos, como o de PA31, mostram que o estímulo à leitura acontecia também pelo exemplo.
O envolvimento dos pais com práticas leitoras e estímulo para inserir os filhos no circuito da leitura indica que a familiaridade com livros e leitura pode instaurar práticas, constituir comunidades de leitores, produzir uma cultura letrada. Pois, nessas vivências, as pessoas não apenas leem, elas falam sobre as leituras, revelam o que sentem, provocam, instigam. “A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros” (CHARTIER, 1999, p. 16). Durante a leitura, o corpo e os gestos também dão visibilidade para essa relação positiva com o livro, assim como o texto e as intenções do leitor determinam gestos. É perceptível, por meio das falas das professoras, que existia uma mobilização por parte dos familiares, com o intuito de despertar e manter um hábito leitor: compravam, assinavam jornais e revistas, de modo que as professoras, enquanto crianças, dispunham sempre de conteúdos para ler. Batista (1998, p. 36) recorre às palavras de François de Singly para justificar que, “em se tratando de leitura, a herança ou a transmissão intergeracional é um dos principais fatores responsáveis pela criação do gosto ou da necessidade de leitura”.
Para as professoras que rememoram suas vivências a partir da instituição educacional, a leitura é relembrada pelas estratégias estabelecidas pela escola, que tem a responsabilidade de ensinar a criança a ler. Importante lembrar que a “leitura tem uma existência histórica, pois se associa à adoção do alfabeto como forma de comunicação e à aceitação da escola como instituição responsável pela aprendizagem” (ZILBERMAN, 1999, p. 71). É nesse âmbito que a leitura foi institucionalizada e inserida no currículo escolar, apresentando-se como prática, presente em diferentes disciplinas, mas, também, como objeto de aprendizagem e de ensino sistemático. Como objeto de ensino nas aulas de Português, a alfabetização é o primeiro aprendizado, que irá sustentar o desenvolvimento das habilidades de leitura e a imersão plena do leitor no universo do escrito. Tomada como prática, cabe à escola a função de ensinar a ler, promover e incentivar a leitura, mesmo que isso ocorra a partir de um caráter pragmático, mas que seja capaz de gerar o aprendizado e desenvolvimento dos alunos, atendendo às exigências curriculares e à construção de condições para o seu uso social, consoante as mais diversificadas demandas que extrapolam o universo escolar. Contudo, a instituição educacional pode ser responsável por desenvolver a prática de leitura pela natureza do prazer e encanto, do envolvimento com os textos e com o conhecimento, conforme os depoimentos das docentes:
[As vivências de leitura] Sempre foram positivas, pois estudei em um colégio particular onde tínhamos que ler 1 (um) livro por semana, obrigatoriamente, criando assim o hábito e o prazer de ler (PA28, 62 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 04 anos).
A minha vivência com leitura na adolescência foi positiva. Quando era estudante lia vários livros para apresentar trabalhos literários e apreciava bastante pois nessa época, não tinha outros compromissos, dedicava mais as leituras, tinha mais interesse pois o meu objetivo era descobrir novos horizontes e ter boas notas nas provas (PA47, 65 anos, formação em Magistério, aposentada há 15 anos).
PA28 e PA47 falam de uma prática obrigatória na escola, entretanto, muito além de atender a essas necessidades, a leitura caracteriza uma oportunidade de prazer, entretenimento e encanto. Mesmo que o intuito da instituição fosse a realização de trabalhos, provas, etc., visando à avaliação e atribuição de notas, foi possível construir uma relação de encontro com a leitura e os livros. Corsino (2010, p. 188) pontua que “a escola ocupa um lugar importante na formação de leitores tanto pelo acesso a obras de qualidade, quanto pela qualidade das mediações entre as crianças e os livros”.
Das professoras que destacaram as vivências positivas com a leitura, 11,11% direcionaram suas falas para a dificuldade de acessar livros e bibliotecas, o que não foi empecilho para que desenvolvessem formas de ler:
Na minha infância não existia a facilidade que existe hoje. Tudo era copiado do quadro, mas eu lia e relia várias vezes em casa. Lia Almanaque, Folhinha Mariana, livro do Jeca Tatu. Qualquer papel escrito que eu achava na rua, levava para casa. Na fase da adolescência e adulta, pedia livros emprestados, ia nas bibliotecas ler (PA21, 75 anos, graduada em Letras, aposentada há 16 anos).
Na minha época o acesso aos livros era mais difícil, mas como gostava muito de ler, lia o que aparecia à minha disposição (PA29, 72 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 26 anos).
Na minha infância e adolescência, não tive acesso a livros, mas quando aparecia, gostava de ler (PA13, 64 anos, formação em Magistério, aposentada há 02 anos).
Tendo em vista que as professoras participantes da pesquisa viveram a infância e a adolescência entre as décadas de 1940 e 1960 - já que possuem entre 60 e 80 anos - o acesso aos livros, bibliotecas e materiais de leitura era mais difícil do que nos dias atuais. Segundo Paiva (2014, on-line), “no Brasil, as ações de promoção e acesso à leitura são implementadas pelo MEC desde a sua criação, em 1930”. Todavia, é apenas nos anos de 1980 que a formação de leitores passa a ser discutida pelas políticas públicas. Algumas iniciativas foram significativas na distribuição de livros literários, por exemplo, o Programa Nacional Sala de Leitura - PNSL (1984-1987) -; o Proler, criado em 1992 pela Fundação Biblioteca Nacional, do Ministério da Cultura; o Pró-leitura na formação do professor (1992-1996) e o Programa Nacional Biblioteca do Professor (1994). Em 1997, foi criado o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) que, de acordo com Paiva (2014, on-line), “destina-se à composição e distribuição de acervos de literatura para as bibliotecas das escolas públicas brasileiras que atendem a todos os segmentos da Educação Básica”.
Diferente do primeiro grupo que relatou vivências positivas com a leitura, um segundo grupo, representado por 13 docentes (23,64%), relatou a ausência ou desencontros com a leitura, atribuídos à falta de incentivo (5 respostas); falta de acesso a livros e materiais de leitura (5 respostas); ingresso precoce ao mercado de trabalho e desinteresse (4 respostas). O analfabetismo dos pais se faz presente nas justificativas das professoras e revela desigualdade social e exclusão:
Quase não tive o hábito de leitura na infância e nem na adolescência, pois nessa época por não ter muito conhecimento e nem incentivo da família. Pois analfabetos e com pouco esclarecimento. Comecei a gostar da leitura depois que comecei a trabalhar (lecionar) (PA08, 73 anos, graduada em Matemática, aposentada há 05 anos).
Nestes dois períodos não tinha o hábito de leitura. Só o necessário da escola. Pais analfabetos, não liam nada (PA23, 71 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 29 anos).
PA08 e PA23 revelam processos tardios em sua constituição como leitoras, construíram hábitos e gosto pela leitura mediados pela profissão. Os relatos confirmam dados de pesquisas sobre a relação entre leitura e escolaridade dos pais. Failla (2016) afirma que a prática leitora é uma construção influenciada pelos genitores: “a família tem um papel fundamental no despertar do interesse pela leitura, seja pelo exemplo, ao ler na frente dos filhos, ou ao promover a leitura para os filhos” (FAILLA, 2016, p. 35). A autora aponta que os filhos de pais que não dominam a leitura e a escrita tendem a ler menos do que os filhos dos pais que possuem um nível mais elevado de letramento e exercício frequente dessas práticas.
No entanto, a ausência de estímulo familiar não significa a não leitura como destino. Galvão (2004) aponta casos atípicos de trajetórias leitoras construídas por pessoas que não tiveram circunstâncias favoráveis à leitura no seio da família. Na direção dessas práticas apontadas pela autora, em nosso estudo, identificamos pais que, mesmo não tendo domínio sobre as práticas leitoras, desempenham um papel fundamental nas vidas escolares dos filhos, como relata PA40, oriunda de uma família numerosa, em que irmãos e sobrinhos formavam uma grande classe na sala de casa, com a finalidade de ler, fazer as tarefas e ouvir histórias. A mãe, mesmo não tendo domínio sobre a tecnologia da leitura e escrita, tinha o papel de induzir a prática:
[...] Mamãe, mesmo sendo analfabeta, foi quem impulsionou os filhos a se empreenderem no mundo da leitura, cada dia um era responsável por ler uma história para o grupo. [...] (PA40, 63 anos, graduada em Letras, aposentada há 08 anos).
De acordo com Faria Filho (1999), estudos demonstram que, desde a alvorada do século XX, “havia já uma tendência bastante cristalizada, mesmo entre as populações pobres e trabalhadoras, no sentido de considerar a escolarização e os atributos do alfabetismo como sendo a forma de acesso de uma cultura superior” (FARIA FILHO, 1999, p. 147). Em pesquisas mais recentes - como a Retratos da Leitura no Brasil, publicada em 2016 - crenças se mantêm presentes, principalmente por pessoas menos escolarizadas e com uma precária situação socioeconômica, que veem no ato de ler uma maneira de acessar o conhecimento, mas também a possibilidade de progredir economicamente, já que, de acordo com Failla (2016), são os que mais afirmam que um indivíduo pode vencer na vida por intermédio da leitura.
Um terceiro grupo - caracterizado por 9,09% das professoras - relatou seus contatos com a leitura por uma perspectiva de desprazer e obrigação. Diferente do grupo anterior, que tinha dificuldade de acesso ao livro, mas descobriu o prazer do texto, este grupo lia de forma compulsória e no atendimento das imposições da instituição escolar, que exigia a leitura para trabalhos e avaliações. A relação com a leitura se revela tensa e difícil:
Não tenho muita recordação da leitura na infância. Na adolescência é que a prática da leitura aconteceu, pois da 5ª a 8ª série era exigido a leitura de livros para fazer provas escritas (livros literários) (PA12, 61 anos, graduada em Normal Superior, aposentada há 06 anos).
Lia muito pouco, tanto na infância como na adolescência, quase como obrigação, não por prazer, na minha época não se dava muita ênfase à leitura, na escola. O acesso era restrito (PA46, 72 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 05 anos).
As condições e práticas de leitura das docentes participantes apresentam construções variadas, de modo que destacam o caráter positivo em suas vidas e a relevância que representou, sendo vista como um alicerce para a vida pessoal e profissional: “A leitura me ajudou na vivência e na profissão” (PA53, 65 anos, graduada em Normal Superior, aposentada há 07 anos). Para aquelas cujas vivências se configuraram de forma negativa, a leitura é descrita como uma prática difícil e limitada, realizada de forma compulsória. Entre esses dois grupos, há ainda uma terceira via - a da leitura imposta como trabalho, mas, que se constituiu como referência positiva na formação leitora. O prazer do texto se sobrepôs às imposições escolares.
O OFÍCIO E A VIDA ADULTA: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE LEITURA NA DOCÊNCIA
De acordo com Alves-Mazzotti (2008), estudar as representações sociais é buscar compreender a formação e funcionamento dos sistemas de referências que se utiliza para a classificação de indivíduos e grupos com a finalidade de interpretar os eventos da realidade cotidiana. Para tanto, é salutar conhecer a relação das professoras participantes deste estudo com a leitura no período em que atuavam no ensino e os sentidos que atribuem a essa prática quando associada ao exercício docente. Ainda de acordo com a autora, é nos eventos cotidianos que o ser humano tem acesso às informações, palavras, imagens e ideias que são responsáveis por nortear o seu comportamento e a conduta e constituir as suas representações sociais.
Nas representações sociais em circulação, a leitura é o alicerce de uma trajetória escolar bem sucedida e de longa duração, ler funciona como agente facilitador no processo de aprendizagem, se apresenta como passaporte para entrada no mundo do conhecimento. “A leitura constitui elemento fundamental na estruturação do ensino brasileiro porque forma sua base: está no começo da aprendizagem e conduz a outras etapas do conhecimento” (ZILBERMAN, 1999, p. 79).
Por também construir uma representação social da leitura como um bem em si e atribuir a ela um caráter basilar para a profissão docente, as professoras participantes, durante a sua atuação, viam na prática leitora uma ferramenta que possibilitava uma melhor atuação em sala de aula, sendo evidente que, nos seus discursos, de forma mais explícita ou menos acentuada, as práticas leitoras ocorreram, sobretudo, no ambiente educacional.
Dado o lugar do ler no ofício docente, as professoras ancoraram a leitura na necessidade e na obrigação. A partir desses dois sentidos, é possível demarcar as representações sociais de sua atividade profissional, já que atribuem ao ato de ler a função de atender às necessidades impostas pelo campo educacional, conforme os depoimentos que se seguem:
A leitura era a base do meu trabalho, professor que não lê não desenvolve suas competências (morre) (PA14, 60 anos, graduada em Geografia, aposentada há 11 anos).
Não tinha como exercer dignamente minha profissão se eu não fosse leitora. A palavra, portanto, que responde a essa pergunta é: FUNDAMENTAL (PA17, 68 anos, graduada em Letras, aposentada há 12 anos).
Tendo em vista a responsabilidade docente, os discursos apontam para a leitura como suporte e preparo para estarem frente a uma turma de alunos. PA14 fala da importância da leitura como base para um bom desenvolvimento do trabalho, ao comparar a falta de leitura com a morte, a docente associa a prática leitora à sobrevivência, ou seja, o professor morre quando não se conecta com a vida que pulsa nos livros e na leitura. Para PA17, o ato de ler é um fator imprescindível para executar a profissão, partindo da necessidade de ser uma professora competente, que desenvolve o seu ofício com qualidade e domínio adequado sobre a sua disciplina.
Nas falas das professoras, a leitura é essencial para a aquisição de conhecimentos, visando qualificar sua atuação profissional, pois assim poderiam garantir aos estudantes a apropriação do conteúdo disciplinar e a formação ética, política e humana:
[A leitura era] Fundamental, principalmente porque a minha função era transmitir aos alunos a necessidade e prazer de se fazer um ser humano completo, íntegro, ético através de leituras e convívio pessoal (PA26, 64 anos, graduada em Letras, aposentada há 16 anos).
A leitura tinha papel de reflexão, estudos e informações buscando a concretização e resolução dos problemas surgidos durante a aprendizagem dos alunos (PA32, 80 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 22 anos)
[A leitura] Era muito importante, pois precisava estar sempre buscando conhecimentos, visando o aperfeiçoamento, eficiência no crescimento dos meus alunos (PA47, 65 anos, formação em Magistério, aposentada há 15 anos).
Por estarem em atuação profissional, é de se compreender a necessidade da leitura como forma de aprimorar o trabalho. A preocupação em levar um conteúdo de qualidade para os alunos revela o empenho em realizar leituras que favoreçam a apropriação de conhecimentos e saberes necessários para ser um bom professor e apontam para a constituição do aluno enquanto cidadão.
No entanto, Batista (1998) afirma que “os professores seriam, antes de tudo, leitores ‘escolares’ e tenderiam a investir, mesmo em suas leituras não diretamente voltadas para a escola e a prática docente, nas competências e nas disposições escolares” (BATISTA, 1998, p. 31, grifo do autor). As falas de PA03 e PA20 dão a ver as escolhas que caracterizam o que este autor considera como leitores escolares, cujas leituras incluem livros didáticos, trabalhos escolares, conteúdos da disciplina:
Lia mais por obrigação livros didáticos para preparar aulas, manter informada nos acontecimentos e descobertas científicas (PA20, 73 anos, graduada em Biologia, aposentada há 10 anos, grifo nosso).
[A leitura] Era muito voltada para o meu aprimoramento de sala de aula. Lia muitos livros didáticos e de cunho político (PA03, 70 anos, graduada em Geografia, aposentada há 12 anos).
Nessa discussão, destacamos a relevância de que o professor se considere leitor, que leia como parte do seu ofício professoral. Mas é necessário lembrar que o “leitor escolar” é um leitor limitado, encontra-se expropriado de um acesso mais alargado à cultura.
No universo tomado como referência neste estudo, há registro de prática leitora com traços que vão além da questão profissional. Mesmo vista como necessária para o preparo de aulas e aquisição de conhecimento, a leitura caminha pelos trilhos do prazer do texto, sem desassociá-la de uma função pragmática. A leitura não tinha um caráter obrigatório, o prazer do texto não era pensado apenas como evasão e entretenimento. As professoras realizavam leituras com investimentos que atendessem necessidades profissionais e de cunho pessoal: distrair, conhecer-se e conhecer o mundo, ampliar referências, tornar-se um profissional competente:
Lia por prazer na certeza de preparar melhor os trabalhos didáticos e ampliar meus horizontes (PA21, 75 anos, graduada em Letras, aposentada há 16 anos).
Eu acho que ele [o papel da leitura na atuação docente] continuou sendo aquela mesma ideia do princípio; o material que me fazia ser um bom profissional, material para informação e ao mesmo tempo o prazer de ler, para saber a respeito do assunto e o prazer de ler para manter aquele nível de profissional eficiente, eu queria ter o orgulho de ter um conhecimento vasto a respeito do assunto e isso me fazia ler muito (PA50, 75 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 06 anos).
Neste mesmo campo de sentido, tem-se a referência às práticas de leitura como aprimoramento pessoal. Nessas falas, nota-se que, mesmo não sendo citada de forma direta, a relação com o trabalho em sala de aula se faz presente, pois os investimentos refletem no indivíduo enquanto professor:
A leitura para mim aprimorou meu vocabulário, favoreceu meu aprendizado, desenvolveu a minha escrita e favoreceu meu aprendizado em todos os sentidos, além de ter me dado prazer (PA09, 62 anos, graduada em Estudos Sociais, aposentada há 06 anos).
[O papel da leitura] Era de ampliação do universo cultural, melhorar o vocabulário e do entretenimento (PA13, 64 anos, formação em Magistério, aposentada há 02 anos).
Além da leitura como necessidade fundamental para a docência, há os discursos que ancoram a leitura na obrigação. Da mesma forma como realizaram leitura compulsória na adolescência, o fazem na vida adulta, em seu exercício professoral. As participantes realçam, em suas falas, a leitura apenas como investimento profissional, associando a leitura a um caráter de cunho obrigatório: era preciso ler de qualquer forma. Isso se dá pelo fato de a leitura ser o principal instrumento para ser professor. Indiferente de qual seja o conteúdo, ler é o princípio básico para o profissional da área, seja de exatas, biológicas ou humanas. Ademais, o próprio sistema de preparo e avaliação do aluno requer que a leitura seja um compromisso de todas as áreas do conhecimento.
A maior parte [das leituras] era por obrigação profissional (PA12, 61 anos, graduada em Normal Superior, aposentada há 06 anos).
[O papel da leitura na atuação docente era] Obrigatório (PA44, 63 anos, graduada em Direito, aposentada há 06 anos).
Mesmo implícita a presença de outras leituras, a prática por obrigação sobressai nos discursos das docentes. Se Batista (1998) considera o professor como leitor escolar, para Britto (1998), eles são leitores interditados, são frutos de uma sociedade letrada, mas tem uma relação limitada com produtos de escrita. “O fato é que, para boa parte dos professores, a prática de leitura limita-se a um nível mínimo pragmático, dentro do próprio universo estabelecido pela cultura escolar e pela indústria do livro didático” (BRITTO, 1998, p. 78).
No sistema de significação das professoras, a leitura é vista como fundamental para a profissão docente, ancorando a necessidade e a obrigação, de modo que existe uma predisposição a pensar a prática leitora a partir da sua função educacional, sendo esta uma perspectiva que a limita e engessa. As docentes marcam as suas posições frente à leitura caracterizando-a como ferramenta principal para a construção de conhecimento e atualização que reflete positivamente no aprendizado discente. Sendo assim, as representações de leitura estão imbricadas com a instituição educacional, cuja presença é recorrente ao se referirem às suas práticas leitoras, realizadas como parte do trabalho docente ou almejando o aprimoramento profissional.
ENTRE INTERESSE E NECESSIDADE: A LEITURA APÓS A APOSENTADORIA
A aposentadoria é um direito assegurado aos cidadãos brasileiros após completarem determinado tempo de trabalho e contribuição previdenciária. Para alguns, essa nova etapa pode ser vista apenas como o findar de uma vida profissional e que agora culmina na oportunidade de desfrutar momentos de tranquilidade e descanso. Já para outros, significa uma nova fase, caracterizada pela oportunidade de realizar projetos, atividades ou simplesmente fazer aquilo que tinham vontade, mas eram impedidos por motivos diversos.
Ao analisar as representações de professoras aposentadas, é interessante pensar com Guareschi (1995, p. 218), que “as RS [representações sociais] são uma constante construção: elas são realidades dinâmicas, e não estáticas. Vão sendo reelaboradas e modificadas dia a dia. Vão sendo ampliadas, enriquecidas com novos elementos e relações”.
No estudo, constatamos que, após a aposentadoria, as práticas leitoras das professoras participantes ganharam novas configurações e as representações sociais da maioria caminham para outros rumos.
A relação com a leitura na atual conjuntura em que as docentes se encontram são permeadas por um consenso, não sendo mais equivalentes àquelas de outrora - o que não significa, exclusivamente, uma expansão ou diminuição dessa prática. São outros modos, tipos e formas de ler, mas, consensualmente, desprendidas de um cunho obrigatório, já que podem dedicar suas leituras àquilo que mais lhes interessam ou que atendam a uma necessidade que não seja mais aquela exigida pela educação formal. As professoras podem, até mesmo, abdicar dessa prática em benefício de outras atividades, como é o caso de PA47 e PA50, quando apontam as mudanças em suas práticas de leitura após terem se aposentado:
Houve muitas mudanças, pois devido ter encerrado as atividades, o interesse pela leitura diminuiu, por não ter compromisso profissional e também os afazeres domésticos tomam todo o meu tempo (PA47, 65 anos, formação em Magistério, aposentada há 15 anos).
[A leitura] Reduziu um pouco, porque, por exemplo, se eu não dou aula mais, eu não preciso mais ler para preparar aula. Eu preciso ler se eu estiver interessada naquele material, um livro que sai, alguém comenta e que eu quero ler. Então, realmente tem que ser alguma coisa que chame a minha atenção (PA50, 75 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 06 anos).
Por antes terem uma obrigação de ler como parte do trabalho, as leituras de seus interesses, quando as tinha, muitas vezes, eram deixadas de lado, de modo que agora podem ser feitas de forma tranquila e descompromissada. Finalidades religiosas e de cunho político são alguns tipos citados pelas docentes que agora deslocam suas leituras para fatos cotidianos e informações, visando à própria atualização e não ao dever do ofício em levar conhecimentos para outras pessoas, no caso, os alunos.
Houve mudanças significativas [nas práticas de leitura]. Passei a ler livros referentes a conteúdos que eu aprendi a combater sem de fato conhecê-los, tais como: Ocultismo, Cabala, Maçonaria, Teosofia, Esoterismo, Numerologia, etc. (PA35, 67 anos, graduado em Pedagogia e Filosofia, aposentado há 05 anos).
Os objetivos principais das minhas leituras hoje são diferentes. São mais leituras para fins da prática cotidiana, também religiosos, distração e políticos. Gosto de acompanhar o “movimento” político nacional (PA52, 70 anos, graduada em Letras, aposentada há 10 anos).
Nessas mudanças, há a referência a leituras que nem sempre são contempladas pela escola, de modo que PA35 e PA52 permitem-se ler livros de conteúdos mais transgressores, muitas vezes não legitimados ou autorizados - como Ocultismo, Maçonaria, Cabala -, que se diferenciam daqueles que eram primordiais para lecionar. PA35, antes da aposentadoria, lia conteúdos de natureza mais crítica, já que eram fundamentais para a atuação nos movimentos sociais e sindicais dos quais fazia parte, mas, agora direciona suas leituras para novos assuntos. PA52 agora lê mais despretensiosamente, mesmo quando são voltadas para uma perspectiva mais crítica, que envolve questões políticas, a docente lê sem imposição, já que é uma prática que tem como função acompanhar fatos cotidianos e poder se posicionar, se assim o desejar.
Aquelas que diminuíram a intensidade da leitura, pautam-se na justificativa de que, como não existe mais a obrigação, utilizam o tempo para realizar outras tarefas, seja atendendo ao lazer e ao entretenimento, seja visando atividades cotidianas. Por não existir mais o compromisso profissional, agora podem ler quando quiserem e se quiserem. Nessa perspectiva, PA47 e PA22 apontam mudanças e afirmam que dedicam o tempo às atividades domésticas e àquelas que envolvem outros tipos de trabalho:
Houve muitas mudanças, pois devido ter encerrado as atividades, o interesse pela leitura diminuiu, por não ter compromisso profissional e também os afazeres domésticos tomam todo o meu tempo (PA47, 65 anos, formação em Magistério, aposentada há 15 anos).
Me tornei mais dedicada a outros interesses por artes, trabalhos manuais, religiosos, etc. (PA22, 71 anos, graduada em Letras, aposentada há 30 anos).
A leitura perde o seu protagonismo e cede lugar para outras atividades e afazeres domésticos. Agora, como não atuam na profissão, as docentes podem se dedicar a outras práticas, para as quais até tinham interesse durante a fase anterior à aposentadoria, mas não dispunham de tempo. O findar dessas atividades inerentes à atuação professoral possibilitou maior tempo livre, que pode ser dedicado à leitura, ocasionando uma expansão desta prática, caso o ato de ler seja um desejo da professora:
Tenho mais tempo e mais oportunidade de diversificar o tipo de leitura (PA11, 70 anos, formada em Magistério, aposentada há 31 anos).
Dedico mais tempo à leitura, por ter mais tempo, tornando uma leitura prazerosa (PA46, 72 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 05 anos).
Agora tenho mais tempo para dedicar à leitura (PA48, 67 anos, graduada em Ciências Sociais, aposentada há 12 anos).
Presente na fala das professoras, a internet é um fator que viabilizou mudanças nas relações com a leitura. A tecnologia possibilitou uma variedade de mídias e suportes que facilitaram o acesso aos textos e mudaram as formas de ler, conforme os estudos de Chartier (1999a). Abdicando da necessidade de suportes físicos, a leitura nas telas de computadores e celulares passou a ser mais constante e mais fragmentada, deslizando para os mais distintos objetivos: ler notícias, receitas, curiosidades, mensagens instantâneas, textos mais curtos e de acesso mais rápido. As redes sociais digitais também passaram a ser uma distração que substituiu a leitura de livros, revistas e outros suportes físicos.
Agora leio menos, pois passo muito tempo nas redes sociais (PA55, 62 anos, graduada em Geografia, aposentada há 1 ano).
Sim [houve mudanças], lendo “muito” pouco, principalmente depois do uso da internet, envolvo com mensagens, áudios, vídeos etc. E com isso deixando a prática da leitura um pouco esquecida (PA08, 73 anos, graduada em Matemática, aposentada há 05 anos).
Passei a ler as notícias de jornais eletrônicos no celular. Porém tenho a pretensão de voltar a ler romances no formato de livros físicos (PA43, 69 anos, graduada em Contabilidade, aposentada há 5 anos).
É nítida a substituição da leitura do livro por atividades na internet, que se caracterizam como práticas fragmentadas, que circulam e mudam com certa celeridade. Não há referências a leituras de literatura no computador, por exemplo. PA43 fala da intenção de voltar a ler o livro físico. A manifestação deste suposto desejo por leitura pode não encontrar eco na realidade, mas servir ao propósito de legitimar o seu lugar social, corresponder a uma imagem consensual de que professor é leitor, que gosta de ler e se envolve com livros e leitura. De outro lado, esse interesse pode decorrer das características do suporte material que o eletrônico não conseguiu alcançar: o prazer em folhear um livro, sentir seu cheiro, surpreender-se com um acontecimento após virar a página, corroborando as falas de outras docentes que, ao instigadas a falar sobre a relação de suas leituras mediadas pelas tecnologias digitais, afirmam:
Gosto da tecnologia, leio notícias no celular e computador. Mas, gosto muito do livro físico. O contato com o papel, riscar, anotar, algo que me chama a atenção é muito gratificante para mim. Gosto do cheiro do papel (PA16 graduada em Psicologia, aposentada há 03 anos).
Eu prefiro pegar o jornal, o livro e os textos e folheá-los, palpá-los. Gosto e prefiro as coisas concretas e palpáveis (PA51, 65 anos, graduada em Letras, aposentada há 04 anos).
Soares (2002) pontua que ler um texto no formato digital traz mudanças que se referem não apenas ao suporte, mas também alterações de natureza cognitiva, já que “a tela como espaço de escrita e de leitura traz não apenas novas formas de acesso à informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever” (SOARES, 2002, p. 152).
Mesmo com as mudanças no mundo social, há professoras que afirmaram que suas práticas se mantiveram como as mesmas de antes da aposentadoria. Estas declaram serem leitoras de literatura desde a infância, referem-se à leitura fruitiva e apresentam uma constância dessa prática. Em contrapartida, três professoras não apresentaram uma relação tão intensa com a leitura tanto atualmente quanto em outras fases, uma delas até fala sobre falta do hábito de ler: “Gostaria de ser uma leitora, mas sou preguiçosa e nunca tive o hábito de ler” (PA10, 76 anos, formação em Magistério, aposentada há 18 anos).
Nesse contexto em que a leitura não se configura como uma prática central para as professoras, indagamos: como profissionais que não gostam de ler podem ensinar leitura? Como estabelecer mediações de leitura sem que a sua formação tenha possibilitado a sua constituição como leitoras?
Em contraponto às professoras que mantiveram na aposentadoria práticas semelhantes ao tempo de atividade profissional, há aquelas que apontam variações nas práticas leitoras: 18,18% afirmam que suas leituras se direcionaram para outros campos, agora leem textos diferentes daqueles lidos em outras épocas; 10,91% associam ao uso da internet e redes sociais digitais as transformações do tipo e intensidade da leitura; 16,36% apontam uma redução nessas práticas, associando à preferência em realizar outras atividades e à falta de obrigatoriedade de ler, sendo esta uma das principais justificativas para 21,82% das docentes que agora direcionam suas leituras para o campo do prazer e entretenimento; e 14,55% agora leem conteúdo voltado para o âmbito religioso.
Diante dessas perspectivas, as docentes aposentadas mostram, por meio de seus discursos, que suas representações sociais de leitura ganharam novas configurações após a aposentadoria. Conforme as atividades que envolvem as práticas leitoras vão mudando - visando o prazer, o aprendizado, a profissão -, as representações e práticas de leitura das professoras também ganham novos contornos atendendo às suas necessidades, desejos e vontades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resultados de interação social, as representações sociais são construções particulares comuns a um coletivo, mas que não perdem as especificidades individuais de cada sujeito. Investigá-las significa tratar da consolidação do coletivo a partir da relação e da comunicação das pessoas que vivem e constituem o meio social. No que se refere ao objeto escolhido, as representações sociais e práticas de leitura de professoras aposentadas, a Teoria das Representações Sociais oportunizou aclarar os sistemas de significação que esse grupo produz e partilha. Também permitiu conhecer como foram constituídas as representações sociais de leitura e o papel que as práticas leitoras tiveram nas vidas de profissionais docentes, bem como as mudanças ocorridas. O mapeamento destas representações é importante para compreender como foi, e ainda é, a relação dessas pessoas com o ato de ler, principalmente agora que não existe mais o caráter profissional e obrigatório dessas práticas.
Neste artigo, no que se refere ao objeto escolhido - representações sociais de leitura de professoras aposentadas - interessou-nos conhecer as representações de leitura desses sujeitos, bem como as mudanças ocorridas, dada a importância social desta categoria profissional.
As representações sociais das professoras são constituídas por estabilidades e transformações, elementos conflitantes e consensos, marcadas pelos seus interesses, atividades cotidianas e pelo lugar em que se encontram. Na infância, as vivências de leitura transpõem as visões acerca do incentivo que recebiam (ou não) em casa e ao acesso que tinham a materiais de leitura na escola. Na fase adulta - à semelhança de outras profissões de quem está inserido na sociedade gráfica -, as práticas leitoras integram o ofício docente, são vistas como ferramentas imprescindíveis para atuação profissional, pois proporcionam a atualização dos conteúdos ministrados, visando uma melhor experiência para os alunos. Agora, aposentadas, a leitura se direciona para mudanças que se abstém de um caráter pragmático, tendo em vista que dispõem de uma liberdade desassociada do exercício docente.
As análises mostraram que as representações sociais de leitura construídas pelas participantes circulam, ora no contexto da escassez de livros e leituras, ora por meio de imagens e atitudes associadas ao incentivo e à prática na infância e adolescência, direcionadas à instituição familiar e à escolar. Em muitos dos discursos, as lembranças das professoras são marcadas pela exclusão e desigualdades sociais, mas, as representações se dirigem para uma imagem idealizada do ato de ler. Na fase adulta, as representações sociais também sinalizam para uma perspectiva idealizada e são ancoradas na necessidade e obrigação de ler, visando a excelência profissional e um desempenho adequado frente à sala de aula. Na aposentadoria, fase atual de vida das participantes da pesquisa, a leitura ancora-se na autonomia e na liberdade, já que a professora define a sua relação com o ato de ler a partir de seus interesses, que agora encontram-se desvinculados da obrigação.
As representações sociais de leitura das professoras se transmutam, adaptam-se de acordo com a fase e o contexto em que se encontram, levando em conta os interesses e necessidades, sejam eles de cunho escolar, profissional ou pessoal. Desse modo, a partir da interpretação de suas realidades cotidianas, as docentes conferem novas significações às suas representações sociais, reafirmando o caráter dinâmico que elas possuem. Contudo, ler permanece como um bem do qual não se pode desfazer. A professora pode não exercer a leitura e a substituir por algo que lhe configure mais interessante, mas, a leitura não perde o status e o lugar central nas representações sociais das professoras.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
16 Set 2021 -
Aceito
21 Mar 2022