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Tudo como está para ver como fica

Paulo Sandroni

Economista e professor da PUC-SP

O que é possível fazer em cem dias? Muito, ou quase nada, tratando-se de política econômica no Brasil, em 1985. Ninguém duvida que o Planalto está repleto de bombas de efeito retardado. A Previdência Social, BNH e os seus rombos financeiros são petardos visíveis. E os outros? Desativá-los demandará mais de cem dias, especialmente se quem procura utiliza as lentes opacas da conciliação. Talvez o dr. Tancredo já tenha negociado a neutralização deles com a perigosa trinca de gafanhotos que dirige a nossa economia. O que dará em troca, logo saberemos.

Sendo otimista, creio que o próximo governo passará mais de um ano para encontrar e controlar as principais alavancas da máquina econômica. Se incorporar à sua equipe mais gente vinculada à Velha República do que recomendaria a sinceridade de quem anuncia a chegada da Nova, talvez este prazo se reduza.

No entanto, mesmo supondo que a turbulência na mudança de comando seja tolerável, é pouco provável que ocorram mudanças significativas na política econômica. A razão é simples; na moldura de um país capitalista e dominado pelo imperialismo, a atual orientação vem obtendo êxitos inegáveis. Ou melhor, mudanças favoráveis na situação econômica internacional e sofridos ajustes internos aceleraram, nos últimos dois anos, a adaptação de nossa economia à terrível sangria que significa pagar a dívida externa.

Quais são elas? No plano externo destaco, em primeiro lugar, a recuperação dos Estados Unidos, da Europa Ocidental e do Japão. Sem isso a expansão de nossas exportações seria frustrada. Em segundo, os preços dessas exportações — em queda desde 1977 — esboçaram uma leve recuperação a partir do último trimestre de 1983. Resultado: os lucros dos exportadores aumentaram (embora os incentivos fiscais ao crédito e ao comércio externo também tenham contribuído para isso) e a obtenção de um superávit recorde na balança comercial tornou-se menos traumática.

No plano interno, os efeitos arrochantes da cascata de decretos-leis — do 2.012 ao 2.065 — somados à intensificação da inflação baratearam ainda mais a mão-de-obra para os empresários. É sintomático que o dr. Tancredo, ao mesmo tempo que promete a elevação do salário real, silencia a respeito da mudança da política salarial.

A partir de 1983, a agricultura se beneficiou da explosão dos preços internos e da melhora dos preços externos de certos produtos como a soja e a laranja. Entusiasmados, os fazendeiros aumentaram suas compras de produtos industriais — máquinas, fertilizantes etc. — o que contribuiu para a recuperação deste último setor.

Os flancos do setor industrial também foram reforçados porque durante o governo Figueiredo vários projetos siderúrgicos, petroquímicos e especialmente energéticos amadureceram, permitindo o aumento da produção (caso do petróleo) e da produtividade. Uma siderurgia zero quilômetro, com tecnologia avançada, operada por trabalhadores com salários arrochados e dispondo de minérios relativamente baratos, pode vender aço em qualquer parte do mundo a preços competitivos. Não é de estranhar que tenhamos exportado quase dois bilhões de dólares em produtos siderúrgicos no ano passado.

Além disso, a própria crise, encarecendo as importações, entregou ao setor industrial novas faixas do mercado interno. O processo de substituição de importações se acelerou, e os dois setores produtivos mais importantes — a agricultura e a indústria — se ajustaram à política econômica de "austeridade" do governo federal. Sintomas desse ajustamento: a redução dos subsídios à agricultura não se traduziu numa queda da produção agrícola; a gritaria geral (à exceção dos banqueiros) contra a taxa de juros cedeu lugar — sem que esta baixasse — a uma discreta euforia que "aposta no futuro do Brasil". Tudo indica que nos encontramos no limiar (embora apenas no limiar) da retomada generalizada dos investimentos.

No entanto, o bisturi mais destacado dessa operação de ajuste tem sido a inflação: a redução das importações, o aumento das exportações, o achatamento do consumo interno resultam diretamente do brutal aumento de preços desses produtos. Mas, se a fase de ajuste está prestes a se completar, seria válido esperar uma queda no ritmo inflacionário. Creio que isto é correto. Mas a inflação não deverá baixar significativamente, pois, além do anterior, tem dois alimentadores poderosos: a dívida interna e a externa, ambas em franca expansão e articuladas entre si.

Pelo menos da boca para fora, o dr. Tancredo parece interessado no combate à inflação. E qualquer luta séria contra esse dragão passa pela solução desses dois probleminhas.

Quanto à dívida externa, não há dúvida de que as condições de sua negociação melhoraram. O Brasil obteve um superávit recorde na balança comercial em 1984 — restaurando minimamente as reservas — e as taxas de juros baixaram a nível internacional. Nos últimos entendimentos feitos, ainda no governo Figueiredo, sua equipe procurou tirar o máximo proveito dessa melhora, no sentido de negociar em termos mais favoráveis com os nossos grandes credores e com o FMI.

Pastore — aquele que também tem cara de espião búlgaro — com suas repetidas viagens a Nova Iorque conseguiu reduzir bastante as margens de manobra dos futuros negociadores. E, ao que parece, o dr. Tancredo deu a sua bênção a essas gestões. Tudo indica, portanto, que o pagamento da dívida continuará sendo feito nos moldes tradicionais: gerando fortes pressões inflacionárias (talvez um pouco menos impetuosas) e espalhando a fome e a miséria em nosso vasto território. Aliás, isso é o que significa pagar "dinheiro com dinheiro".

Em relação à dívida interna, as margens de manobra talvez sejam até mais estreitas. Para quebrar a inflação que brota dessa fonte existem várias soluções técnicas. A emissão de títulos resgatáveis (ORTN, LTN etc), cuja venda proporciona ao governo dinheiro vivo (mas tem o defeito de inchar a dívida interna), poderia ser substituída por sua irmã de vida fácil: as emissões não resgatáveis, isto é, as emissões de papel-moeda. Isto, porém, elevaria a inflação a níveis cósmicos, colocando o mercado financeiro em polvorosa. O governo dançaria.

Outra solução seria a chamada "desindexação dos ativos financeiros", ou melhor, a redução da correção monetária dos títulos emitidos pelo governo e vendidos especialmente aos bancos e grandes empresas. É pouco provável que o dr. Tancredo se arrisque por este caminho, pois, além de pouco eficaz (a fuga de capitais se intensificaria), significaria capar a rentabilidade desses "pilares do mercado financeiro". Basta ver os ex-pepistas que cercam o presidente para perceber que a coisa não é bem por aí.

Restaria a alternativa de gastar menos e arrecadar mais. Quanto aos gastos, a margem é estreita. Os investimentos públicos já foram bastante reduzidos, os salários estão arrochados, e as despesas supérfluas (sem menosprezar o seu montante) têm mais a ver com o Código Penal do que com a política econômica. A alternativa seria aumentar a arrecadação. Mas uma ressalva se impõe: não vale prosseguir e até intensificar a escalada de preços dos produtos e serviços fornecidos pelo Estado e suas empresas (reajustados acima da inflação), pois os reflexos sobre o dragão que se quer liquidar seriam imediatos.

O aumento destes rendimentos teria que ocorrer através de uma reforma tributária que onerasse mais aqueles em condições de pagar mais. Como o objetivo é aumentar a receita líquida, tal reforma não necessariamente aliviaria a carga atual daqueles que podem pagar menos. O leão saltaria de preferência sobre os lucros e a propriedade. É claro que as resistências de praxe não se fariam esperar. Mas, apesar da força dos amigos do rei, essa parece ser a linha de menor resistência para que as coisas não piorem a médio prazo. Como a rentabilidade das empresas se recupera rapidamente, talvez não seja tão espinhoso trilhar esse caminho.

Em síntese, creio que as margens de manobra são muito estreitas para mudanças substantivas na atual política econômica. Minha impressão é que o governo Tancredo prefere colher magros frutos, porém garantidos, do que arriscar — pelo menos imediatamente — nova semeadura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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