Open-access O novo e o velho no projeto da esquerda dos anos 80

MESA-REDONDA

O novo e o velho no projeto da esquerda dos anos 80

Blagio de Giovanni, Giacomo Marramao, Mario Trontl, Aldo Tortorella

A mesa-redonda que estamos apresentando foi inicialmente publicada no semanário italiano Rinascita e depois na revista argentina La Ciudad Futura. Pelo interesse que apresenta no que se refere à introdução de temáticas novas e no reordenamento de outras tradicionais no campo da política, entendemos ser relevante sua apresentação ao público brasileiro. Os politólogos e políticos italianos retomam, inclusive a partir do binômio movimento-instituições, a tradicional questão do projeto, da concepção de mundo, cuja elaboração, como se sabe, ê objeto central de análises e estudos neste fim do século XX.

RINASCITA — Na segunda metade dos anos 70, desenvolveu-se na Itália e fora da Itália um debate que questiona muitas categorias tradicionais da cultura política da esquerda e do pensamento marxista. A crítica se realiza no sentido de que tais categorias já não são mais adequadas frente aos processos reais atuais (passagem a uma sociedade pós-industrial, diminuição do peso numérico e central da classe operária, crise na forma partido, problemas de governabilidade de uma sociedade complexa, etc...). Por um lado, esta discussão (que utiliza autores reconhecidos recentes e menos recentes) tem clareado problemas reais, que solicitam novos desenvolvimentos na cultura política das forças de esquerda; por outro lado, tem levado a metas decididamente conservadoras (a redução da política a mera governabilidade, ao jogo decisório, a intercâmbios corporativos). Poderíamos tentar um primeiro balanço desta discussão?

TRONTI — Me parece correto assumir os anos 70 como um decênio crítico para a teoria política. O marxismo, enquanto pensamento político por excelência, tem entrado num processo de crise. As razões são evidentes. Desde o final dos anos 60 têm se desenvolvido expectativas sociais crescentes, mas as respostas têm sido decepcionantes. O meu parecer é que a política dos anos 70, mais que sobre a linha do movimento social, tem sido forçada a refletir sobre a fase de estabilização. Por isso, o marxismo político dos anos 70, a nível internacional, tem resultado particularmente inadequado para dar voz à demanda de inovação que o final dos anos 60 havia projetado na imagem do poder. Neste sentido, podemos dizer que temos sido todos — em parte somos agora também — marxistas inadaptados.

Tudo isto, todavia, estabelece um problema mais de fundo, que se relaciona com o estado atual das categorias marxistas. A discussão que está imediatamente às nossas costas (penso em O Marxismo e o Estado), não nos tem oferecido marcos entusiasmantes de descobrimentos. Assim, depois da década de 70, não só por motivos internos à teoria, podemos constatar uma perda de centralidade da cultura política de esquerda na batalha das idéias.

DE GIOVANNI — Se ponho em consideração — para ter um ponto de referência — a discussão que se tem feito em torno dos problemas do marxismo a partir de 1975-1976, percebo que este horizonte é muito fechado, e o é desde as suas perspectivas . A partir da perspectiva marxista, a causa é uma interpretação hiperpolítica da tradição comunista, na qual tudo se estabelece unificadamente e para tudo se pretende uma resposta imediata e direta, inclusive para o contexto da situação social e política italiana. Ainda que as hipóteses formuladas desde as perspectivas da cultura liberal-democrática e socialista tenham terminado num ponto sem saída. Esta cultura gravita sobre dois planos: um puramente teórico, com a pretensão, para dizê-lo brevemente, de expulsar Marx do horizonte do pensamento moderno, reconduzindo-o a ser um segmento de arqueologia; em outro plano, diretamente político, se tenta colocar no centro a imagem, certamente respeitável, de uma democracia com pluralismo, que corresponde bem pouco às características da contemporânea, junto a um "resolucionismo" radical e de baixo calibre, que, sobretudo, se desenvolve na cultura de um certo segmento político emergente. Atualmente, pelo contrário, de muitos modos, Marx regressa, não como se pensava nos anos 70, mas de um modo novo. Igualmente, o discurso sobre o pluralismo e sobre as decisões tende a se reproduzir na forma que é também distinta daquela que a cultura liberal-democrática e socialista havia proposto na metade dos anos 70.

MARRAMAO — Eu também estou de acordo sobre a definição da década de 70 como caracterizada por um "superpoliticismo". Em primeiro lugar, todo o debate desta década tem estado hegemonizado por um par de conceitos que eu considero, hoje em dia, como absolutamente inúteis: o par "movimento-instituição". A razão pela qual considero este par de termos inútil apóia-se no fato de que esta atribui, a ambos os termos, uma conotação "antropomórfica", que recai no âmbito de uma cultura política extremamente ligada ao século XVIII. Esquematizando ao extremo, poderia dizer que a esquerda tem falado, de um lado, da "política dos movimentos" e, de outro, da "política das instituições", como se fossem questões evidentes, quase uma obviedade. Na realidade, desta maneira termina-se por dar respostas aparentes em lugar de sustentar, no plano metodológico, a distinção necessária entre três níveis específicos que estão usualmente cobertos pelo termo"política": a política como forma, a política como matéria (quer dizer, como um complexo de práticas de controle social e de "disciplina") e a política como fenômeno cultural.

O primeiro nível é o da política entendida como sistema político, forma estatal dotada de racionalidade específica e constituída por um específico tipo constitucional. A experiência da história política e institucional nos ensina que na realidade não se expressam tipos puros, mas sim formas mistas. Ao considerar o caso da democracia italiana, pode-se dizer que o fato destacado dos últimos dez anos tem sido o do fim das ilusões vinculadas à possibilidade de realizar progressivamente, e de modo linear, uma "democracia com identidade", uma democracia com um gradual e incessante, mas pleno, cumprimento da soberania popular, de tipo rousseauniano. O fator que tem diluído estas ilusões de socializar a política, expandindo a democracia, realizando a transparência dos procedimentos em todos os níveis, tem sido a emergência, no âmbito da forma política democrática, de condicionamentos apolíticos. Estes condicionamentos, vinculados à transação social dos interesses, têm patenteado o fenômeno chamado "intercâmbio político" que, também entre nós, se tem imposto como passagem obrigatória para enfrentar os problemas de governabilidade, de outra maneira insolúveis. Ademais, tem-se introduzido uma espécie de tácito paralelismo entre as diversas ordens de representação, que se colocam uma frente à outra e que tendem a duplicar o processo decisório: a representação parlamentar universal, por um lado, e a neocorporativa, por outro.

O segundo nível é o da política como complexo de práticas que, longe de seguirem uma lógica ou uma forma de racionalidade unitária, se somam e se justapõem, mantendo uma autonomia específica, excêntrica ou anormal, a respeito do marco previsto pela forma constitucional.

Finalmente, o terceiro nível é o da política, ou melhor, do poder como cultura — entendendo aqui por cultura o universo normativo dos valores, das idéias-guias (mestras) de uma certa comunidade; valores e idéias-mestras que formam os pré-requisitos do consenso, sem as quais qualquer forma política cairia ao nível de um mero recheamento exterior ou de um mero flatus-vocis. Eu creio que, para afirmar a importância decisiva deste terceiro nível, nós devemos ter a valentia de assimilar uma noção de cultura, não só pós-crociana, mas também pós-gramsciana, adequando nossas categorias à revolução que a antropologia científica tem introduzido nas ciências sociais nos dois últimos séculos.

TORTORELLA — A mim parece que a dificuldade da cultura de esquerda, da cultura das diversas forças de esquerda depende de um fato muito concreto: nosso século tem estado marcado profundamente por esta cultura e seus resultados; não existe nenhuma parte do mundo desenvolvido no qual não se tenham estabelecido várias formas de hegemonia nesta direção cultural de esquerda.

Falando globalmente, neste século se deve reconhecer uma vitoriosa afirmação das diversas imagens das idéias de esquerda: não só pela revolução soviética, na Rússia, mas, sobretudo, durante as crises do capitalismo, com o New Deal de Roosevelt e com o Estado de Bem-Estar social de marca social-democrata.

Não estamos frente à dissolução, como alguns dizem, do pensamento que se inspira em Marx; pelo contrário, estamos frente a um fenômeno de renovação do veio crítico presente neste pensamento. Atualmente, nos colocamos numa cultura "pós-gramsciana", como disse Marramao, no sentido de que não existe pensador que não seja relativo a seu tempo. Porque, se nós lemos bem o esforço de crítica contido na leitura que Gramsci fez do marxismo (a respeito não só da linha stalinista, mas também da de Bukharin, Trotski, etc...), podemos ver que naquele esforço se trata, fundamentalmente, de uma releitura do significado da política. Que, apesar disto, inclusive literalmente, o texto de Gramsci, como o de Marx ou qualquer outro, podem ser reinseridos num embasamento dogmático: isto é uma outra coisa. Um exemplo isolado para esclarecer: a idéia de partido como "intelectual coletivo", de Gramsci, que pode ser lida e deformada como teorização de um partido ideologístico, ou pode ser, pelo contrário (e para mim corretamente), entendido como capacidade de individualização de um âmbito próprio ao partido e distinto da administração, e isto é um problema muito atual e avançado. Na realidade estamos assistindo, como disse De Giovanni, a um renascimento do interesse pelo pensamento de Marx, mas em termos completamente novos. As crises políticas da esquerda, que existem de diversas formas e magnitudes, mantêm sobre o assunto uma interpretação originariamente literal e ingênua, além de redutiva e dogmática, das complexas categorias deste pensamento, que caminham num sentido completamente oposto. Para dar também um exemplo: a dificuldade, e inclusive a derrota da esquerda na França, assim como a súbita derrota da social-democracia na Alemanha, constituem o resultado de velhas posições e não de uma tentativa de revisão crítica das categorias tradicionais; isso para dizer, de algum modo, que a idéia da socialização das funções não é o mesmo que o estatismo.

RINASCITA — Considerar os anos 70, na metade desta década de 80, implica uma notável troca de ótica. Parecem estar atualmente em jogo algumas hipóteses de leitura que apontam para uma dissolução ou para uma desqualificação do saber político e de suas formas: pensamos nas representações que mais têm privilegiado este campo temático. A mais visível, a mais espetacular, é aquela que tem posto o acento no poderoso assédio à cultura política da esquerda realizado pelo diferenciado campo de forças da modernização (os neoconservadores incluídos). Esta cultura exibe uma inadaptação, que inclui também a Marx, percebido e representado como um tema genealógico, mais que como um recurso atual. De que depende esta inadaptação? Se disse: da dificuldade ou incapacidade da cultura política da esquerda para ler os dinamismos sociais em termos de inovação. O quanto isto nasce de uma propensão neodeterminista, que tem marcado a ideologia da inovação nestes anos (dos "radicais" aos liberais-democráticos), está por aclarar-se. Completamente aberto está, pelo contrário, o problema relativo à abertura de espaços profundos de transformação do corpo desta sociedade e também das formas da política, desde que novas figuras sociais têm aparecido no cenário. Existe, ademais, outra representação deste desafio, que podemos, simplificando, enunciar do seguinte modo: nesta década não existe uma cultura, ou um complexo de culturas que, como aquelas de inspiração gramsciana, possuem um extraordinário potencial autocrítico que questione, radicalmente, a rede dos grandes modelos que salvaguardam a identidade histórica da esquerda. Estamos pensando na crítica radical dos modelos de edificação das sociedades do Leste, na crítica dos limites do Estado social ou naquela outra sobre o hiperpoliticismo. Tudo isto é algo que a cultura liberal-democrata, para introduzir um exemplo, não tem feito nunca.

A discussão está, na realidade, inserida na leitura das crises a um nível mais profundo que aquele que tocamos quando se falava de crises do Estado do Bem-Estar social, do movimento intenso e acelerado dos segmentos produtivos e da decomposição dos grandes organismos ético-políticos, que têm comandado o campo histórico nestas décadas. Se não partirmos daqui, será inevitável que aflorem noções e categorias prático-descritivas de reduzida competência cognoscitiva e crítica. Está muito bem que se discuta a centralidade do conflito e da forma partido como eixos da política das últimas duas décadas. Mas pode-se, de verdade, pensar que esta centralidade vinha subrogada pela centralidade do intercâmbio político?

DE GIOVANNI — Marramao acentua fortemente a desestruturação do político e sublinha, como dado emergente sobre o qual está refletindo, o impacto do político com o não-político. Neste ponto queria propor, ademais, uma questão posterior: é possível pensar que o acento posto fortemente, nestes anos, sobre a decisão, entendida no sentido mais alto, como verdadeiro e próprio ato vital, sem pressupostos, representa um problema que só se pode resolver sob a condição de modificar o horizonte da democratização, precisamente com respeito à queda da autonomia da forma política frente às demandas imprevistas dos modos de vida. Trata-se, em definitivo, de um violento desencontro da política com a complexidade da existência social. Contudo, o caminho a percorrer é outro: como a velha política está desestruturada, resulta urgente a reconstituição de uma crítica da política (por isto a necessidade de retornar a pensar em Marx). Mais que o acento posto sobre a decisão, o problema é, então, como reconstituir os lugares críticos da política; e aqui se introduz, seguramente também, o problema da reordenação da consciência histórica.

Há uma segunda observação que queria fazer. Estamos todos de acordo em pôr o acento sobre a ampliação dos limites da política. Por assim dizer, a política se tem tornado mais representativa do mundo social e não mais fechada em seu próprio circuito. Mais representativa de que coisa exatamente? Aqui, me parece, surge o problema do conflito, da luta e da relação entre política e luta. Quais são os termos teóricos deste problema? O conflito ê, agora, capaz de inovação política, ou, pelo contrário, como atualmente se diz, a política e o conflito não podem ser já lugares de inovação? A luta, o enfrentamento das hegemonias (como se dizia antes e como creio que se deve dizer agora), está, atualmente, em situação de sustentar elementos de inovação, transformação ou, verdadeiramente, a política é uma categoria destinada a reduzir sua própria função num mundo que se complica enormemente e, portanto, reivindicá-la implica conservar sua própria lógica separada, que se manifesta nos aparatos burocratizados?

TRONTI — Os anos 70 nos apresentaram uma novidade em grande medida desconcertante, que tem agitado a cultura política como nunca se tinha visto antes. Este desafio para a cultura política, incluindo a cultura alternativa, tem sido muito forte.

A cultura comunista do Ocidente, por exemplo, tem estado referida, confrontada e mesclada com a cultura burguesa moderna, tanto a liberal-democrática, como a social-democrata, inclusive com uma certa cultura clássica de direita. Tem funcionado, desta maneira, um paradigma, que se poderia chamar de "intercâmbio ideológico". Não se pode saber se esta fase está se concluindo ou se já se concluiu efetivamente. Contudo, o certo é que o problema se situa na transição para uma nova fase: a da reidentificação e de retorno a uma identidade sem clausuras e novos sectarismos, com a apropriação consciente de formas abertas e maduras. Posso aqui desviar um pouco, mas me parece que, atualmente, há um excesso de conhecimentos neutros, uma superprodução de análises puras na cultura política estabelecida, que correspondem a um empobrecimento relativo dos projetos.

O debate atual situa-se entre diversas hipóteses de leitura da realidade e não, pelo contrário, entre propostas e programas alternativos. Este é um limite da questão. Creio, por conseguinte, que uma cultura política de esquerda deve repropor a instância "do que fazer", superando a mera confrontação entre modelos.

Neste ponto, é necessário passar para a reformulação de algumas das hipóteses sobre o futuro. É necessária uma iniciativa teórica da parte da esquerda e, em seu interior, da parte do marxismo crítico do Ocidente. O território global da cultura política, em particular daquela que tem sido classicamente moderada e conservadora, desta forma, está investido de iniciativa com que hoje se deve contar.

RINASCITA — Com efeito, tem-se a impressão que de novo algo pesa sobre nossas costas: o debate do qual temos partido não só tem estado fechado, mas também tem sido fortemente eurocêntrico e muito ligado à experiência histórica da esquerda européia, na fase das crises do Estado do Bem-Estar social. Mas, aqui, se estabelece uma questão que deve ser sublinhada: por um lado, é verdade que a autoconsciência de que uma nova fase se tem aberto vai fazendo caminho também a nível da cultura política; por outro lado, nas experiências políticas concretas, a esquerda se encontra, nestes anos, todavia impotente a respeito dos problemas que a velha fase dos anos 70 estabelecia. Não há nenhum caso que faça referência à experiência de Miterrand: de maneira precisa, Tortorella tem mostrado que a experiência francesa é a derrota de uma esquerda que se tem movido em base a um programa, desde muitos pontos de vista envelhecido e superado. Em outros termos, se trata das crises, hoje em dia geralmente reconhecidas, do estatismo e do dirigismo, de um certo modo de entender a programação e a planificação, e da perspectiva tradicional das relações entre o nível social e o nível estatal, o que impede uma madura capacidade de proposta e de projeto.

MARRAMAO — Queria tentar uma resposta à pergunta estabelecida por De Giovanni: como se pode enfrentar, atualmente, o tema do conflito? Por um lado, eu considero que a irrupção, dentro da forma política, de elementos não-políticos é um fato irreversível; por outro, os modelos convencionais de "intercâmbio político" enfrentam esta realidade em termos que enfatizam de maneira exclusiva a temática do consenso. Eu creio que a ênfase sobre o conflito não pode, no interior de uma realidade como esta e de um modelo assim construído, superar o plano dos desejos ou da mera declamação retórica, se não se está disposto a assumir radicalmente um fato (que é na realidade o ponto crucial que devemos enfrentar): vale dizer, a "democracia como técnica".

A democracia não é qualquer forma de governo, em sua própria definição está implícito seu caráter de complexas regras do jogo. A garantia, por conseguinte, de que o conflito seja mantido, valorizado (o que na democracia significa responsabilizado) e produtivo, reside exclusivamente em nossa disponibilidade para admitir, kelsenianamente, que a democracia é apenas uma técnica e não pode ser, evidentemente, o reino no qual prevalece um valor ou um complexo de valores acima de outros. Aqui eu gostaria de esclarecer que não considero que esta temática signifique um retorno à liberal-democracia. Kelsen, prefigurando num certo sentido tanto a teoria do "intercâmbio político" como a do "elitismo democrático", foi o primeiro a teorizar a democracia como técnica, como resposta adequada à exigência de uma fase na qual os partidos já haviam entrado, de fato, na estrutura estatal, e também para assegurar na concorrência o politeísmo dos valores que são indispensáveis para a valorização do próprio conflito.

Tortorella assinalou que em Gramsci e na tradição italiana já estava presente uma série de perspectivas críticas. Aqui, sublinharia uma objeção: Gramsci tem um conceito ainda weberiano-leninista de cultura, entendida como organização racional, disciplinada, do saber. Nós devemos ir mais além deste conceito de cultura, que constitui hoje uma perspectiva inadequada.

Há outra questão que queria propor para o debate. Na tradição marxista, quase sempre se tem afirmado que o processo de emancipação operária é diferente daquele da emancipação da burguesia. A burguesia tem-se organizado, historicamente, a partir de um complexo de fatores históricos, sociais e culturais muito diversificados; a classe operária tem experimentado, em troca, um processo tendencialmente homogêneo. Eu considero, entretanto, que este tipo de contraposições atualmente não podem se sustentar. Nesta perspectiva, a classe trabalhadora tem o risco de chegar a um conceito apologístico.

DE GIOVANNI — Também eu, como Tronti, queria recordar que temos sobre nossas costas uma década na qual se tem desenvolvido a mais ampla atividade de cultura política. O uso pela esquerda de autores da direita e, vice-versa, por exemplo, o uso de Gramsci na cultura de direita significa que se tem produzido uma ruptura de tradições, uma dilatação dos fins que tem sido, em verdade, saudável. Estamos de acordo, inclusive, no fato de que atualmente podemos começar a acentuar os elementos de distinção e que a reflexão política possa reconquistar o sentido das diferenças.

O mérito de alguns dos temas emergentes do debate italiano experimenta hoje em dia uma série de perplexidades.

A reproposição do contratualismo, por exemplo, introduzido pela cultura liberal- democrata e que tem tido ecos significativos também na pesquisa política da esquerda me parece uma operação débil e inadequada. Inclusive na revisão que nestes anos se tem realizado da obra de Rawls, me parece que se tem supervalorizado sua importância e, nessa mesma perspectiva, não se tem construído um suporte importante capaz de desenvolver-se.

Me pergunto também se a redução da democracia à técnica ou a regra, de que fala Marramao, não tem risco de trabalhar com uma categoria que contém em si mesma fortes elementos de neutralização, quer dizer, elementos que, em definitivo, se situam na mesma direção por onde vão as outras tentativas de construir categorias neutralizantes como o contrato, que constituem uma ideologia da igualdade e da racionalidade dos sujeitos. Conservo a idéia de que uma imagem puramente técnica da democracia tem a ver com determinações reais pouco profundas. Se pensamos na multiplicação, sobretudo dos poderes ocultos, na contínua modificação da relação entre política e poder, na multiplicação dos poderes visíveis e invisíveis, naquilo que tem sido chamado de microfísica do poder, fica a impressão de que um reducionismo técnico da democracia não dá conta desta densidade problemática. Estamos assistindo a uma modificação sem precedentes da vida das democracias. Por isto, não podemos continuar conservando firmemente uma perspectiva respeitável mas insuficiente.

TRONTI — Considerar realisticamente uma mudança de fase é algo sempre muito exigente. Se é verdade que se tem tentado eliminar Marx do debate contemporâneo, a operação de fazê-lo reentrar deve possuir, hoje, uma diferença específica com respeito ao passado: não deve dar a impressão de que se recupera uma tradição. É mais conveniente dizer que se trata de retomar uma herança. Neste sentido, como tem feito a teoria política clássica, o marxismo tem de ir além da prefiguração de uma solução estatal, para passar a configurar uma construção complexa que seja, coincidentemente, constitucional e social.

Consideremos aquela relação, que hoje vive uma existência trágica, entre o indivíduo e a sociedade. No passado significou uma forma de mediação no conflito das classes, hoje deve provavelmente ser uma mediação diferente, uma forma diversa de conflito. Estou convencido de que uma relação tradicional, no sentido de assinalar uma linha reta entre ética e política, não seja possível, se é que alguma vez o foi. Primeiro , tem-se que resolver um problema que chamaria de "ética social". Como recuperar, e aqui está a herança marxista, aquela figura do indivíduo social que é o produto da emergência histórica do movimento social. Lênin vai mais além de Kant quando diz: "A moralidade fora da sociedade não existe". É por isto que qualquer recuperação do indivíduo abstrato está em atraso com respeito à sua solução. Mais ainda, só relançando a sociedade do indivíduo é que podemos pensar numa revolução na forma da política.

TORTORELLA — Também estou de acordo com Tronti: se deve saber transitar da interpretação da realidade à proposição de um novo programa, de possíveis alternativas nas políticas e na concepção mesma da política. É certo, estamos sabendo das dificuldades, que têm sido grandes nos últimos anos. Em certo sentido, a tragédia dos modelos de tipo soviético tem dependido de uma série de idéias-força que têm sua origem na esquerda: estas acreditaram na opinião de que valores tais como a igualdade ou a justiça não eram mais que vácuos, indesejáveis e danosos. Provavelmente esta fase está superada, mas agora parece que o assunto estabelece sua racionalidade: isto é evidente pela completa e dramática concretude real da democracia. É possível, atualmente, constatar a partir de sólidos estudos sociológicos, por exemplo, que a democracia tem necessidade de um pleno direito à informação e a uma elevada educação. Estamos muito distantes disto não só na Itália mas em todas as partes. Em certos aspectos, estamos mais longe hoje do que antes (se pensarmos, por exemplo, no poder homologante dos meios de comunicação de massas). O fato de estarmos saindo da fase em que a esquerda (com o Estado do Bem-Estar social, por um lado, e com a planificação soviética, pelo outro) acreditava ter-se realizado, gerou descontentamento e confusão, mas finalmente promoveu-se uma indagação mais radical e séria, um raciocínio autocrítico mais fundado, um redescobrimento totalmente novo da importância das exigências e valores implícitos no patrimônio antigo. Relativamente a Gramsci, não tento dizer que devamos subscrever inteiramente a sua idéia de cultura; queria dizer que Gramsci, relativamente ao seu tempo, vivendo criticamente as categorias do marxismo, traçou um caminho que não está certamente concluído.

Para passar, agora, a uma fase propositiva, é importante enfrentar a realidade tendo como referência intenções e valores precisos. Certamente, as análises da realidade não são uma operação puramente neutra. Os mesmos mundos vitais de que se tem falado não existem de maneira espontânea nem estática, estranhos à intencionalidade que os gera, e ao ponto de vista de quem os interpreta. Se isto é assim, então é importante voltar a atenção aos pressupostos do valor e da ação política. Desde o momento em que se disse, com duvidosa expressão, que estamos todos no terreno do"mercado da política", aonde está a diferença entre as diversas forças? Esta é uma discriminação que não assume a própria atualidade: para dizê-lo vulgarmente, para alguns é bom que as coisas continuem como estão; mas para outros, pelo contrário, não; outros possuem outras intenções e outros valores de referência. E se a esquerda não percebe estas diversas intencionalidades e não considera a política (que tem que ter o mais rigoroso fundamento técnico) a partir de seus próprios valores, então está perdida. Hoje em dia se diz que Reagan é um fenômeno basicamente de idéias, mais que político, e com isto se diz uma coisa muito certa. É necessário reagir, sabendo atuar com os saberes e com as técnicas, mas impulsionando um mundo de valores praticáveis e acreditáveis.

MARRAMAO — Há um equívoco que retorna continuadamente cada vez que se usa a expressão democracia como técnica. Esta expressão não indica, absolutamente, que a democracia seja asséptica, nem muito menos pretende supervalorizar o fato de que haja um concreto porvir da democracia. O problema real é que a aceitação e a defesa da democracia como técnica é hoje o resultado de um processo de larga maturação política da esquerda italiana. Mais ainda: creio que, no plano cultural, isto configura um objetivo que os comunistas devem assumir, basicamente para suprimir toda ambigüidade em relação ao fato de que o destino da democracia está vinculado ou subordinado à hegemonia de qualquer valor.

Também estou de acordo com Tronti sobre a. necessidade de reconstruir o futuro, mas creio que para este trabalho se sobrepõem as dificuldades. A primeira é a desmotivação difusa na confrontação dos grandes projetos históricos de transformação. Em segundo lugar, o que se sobrepõe à reconstrução do futuro é um fato enorme, gigantesco, que hoje representa, no meu entender, o maior fator de neutralização real do conflito: isto é, a guerra. Seria fatal, creio eu, ver na questão nuclear só o aspecto positivo, quase "providencial", da emergência de novos sujeitos ou movimentos. A questão nuclear induz também a um risco latente de desmotivação da diversidade, ao reduzir sensivelmente o leque de chances de vida e de experiência. Não supervalorizamos, portanto, a possibilidade de uma proliferação de ideologias conservadoras de novo tipo, que tendem, mais que a negar, a considerar como inconsistente e supérflua a dimensão política: estas ideologias tendem a ganhar força não tanto fora, mas no interior mesmo deste movimento, o que desafia a esperança do futuro.

RINASCITA — Não se trata, para finalizar, de fazer um balanço. Na discussão que tivemos e que continuaremos, se pode reconhecer um dinamismo profundo. Na metade dos anos 80 ainda é lícito falar de uma mudança: a esquerda tenta sair de uma posição de estancamente Definitivamente, a esquerda existe. E existe ainda um problema: o da construção de sua identidade. Não tanto, como alguns propõem, dentro do paradigma do intercâmbio político, mas dentro de um relançamento de uma grande tarefa: aquela que tenta hoje a modernização e a expansão da democracia.

No auge das crises do Estado do Bem-Estar social e frente ao bloco das sociedades do Leste, a democracia não se apresenta como aquele sistema político instável, de que nos meados dos anos 60 falaram os expoentes da Comissão Trilateral, mas como forma política da modernização. Este é um ponto adquirido pelo largo e árduo trânsito da revolução no Ocidente.

Isto é assim porque ocorre que a esquerda reconquista, atualmente, como dimensão constitutiva de sua própria identidade, a dimensão de projeto. Na Europa, hoje, um movimento imponente, inclusive nos lugares e nos países que pareciam laboratórios políticos de experimentos neoconservadores, tendem a reorganizar-se numa frente avançada de progresso e de transformação, articulando extraordinárias energias intelectuais. Daqui, hoje, também pode ser que surja, com suas demandas e suas hipóteses de resposta, uma nova e mais rica cultura política de esquerda.

Trad. Luis Eduardo P. Barreto Filho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1987
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