Resumos
Este artigo investiga a concepção de coronelismo presente na trama de Terras do sem fim, de Jorge Amado. Lançado em 1943, o romance marcou a literatura brasileira ao narrar a épica luta armada entre dois clãs de fazendeiros do cacau que, na Ilhéus do início do século XX, disputavam a posse das matas virgens do Sequeiro Grande. Parte da crítica especializada, ao tentar compreender como o romancista concebia a relação dos coronéis com o Estado, viu neles a expressão de um poderio privado exacerbado, contra o qual a lei não poderia se impor: sobrevivência do patriarcalismo e das lutas de famílias, cujas origens históricas remontam à Colônia. Olhando mais de perto, porém, não se trata disso, ou não apenas disso. Jorge Amado percebeu que o Estado, nesse período histórico do coronelismo, estava relativamente mais fortalecido, motivo pelo qual os clãs rivais passavam a lutar pelo poder político e pelo domínio das instituições, como a polícia e a justiça, que os favoreceriam nas disputas contra oligarquias adversárias. Conclui-se que Amado, em certo sentido, antecipou a construção do conceito de coronelismo, que só viria a ser delimitado abstratamente um pouco mais tarde, em 1948, com a publicação de Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal.
Palavras-chave:
Jorge Amado; Coronelismo; Patriarcalismo; Lutas de famílias; Terras do sem fim; História do direito
This article investigates the concept of coronelism present in The violent land plot, by Jorge Amado. Released in 1943, the novel marked Brazilian literature by narrating the epic armed struggle between two clans of cocoa farmers who, in Ilhéus in the early 20th century, vied for possession of the virgin Sequeiro Grande forests. Part of specialized criticism, in attempting to understand how the novelist conceived the coronels' relationship with the State, saw in them the expression of an exacerbated private power, against which the law could not impose itself: the survival of patriarchalism and family struggles, whose historical origins date back to colonial Brazil. Looking more closely, however, this is not about this, or at least, not only, this. Jorge Amado realized that the State, in this historical coronelism period, was relatively more strengthened, the reason why the rival clans began fighting for political power and for institution domination, such as the police and the justice, that would favor them in disputes against opposing oligarchies. It is concluded that Amado, in a certain sense, anticipated the construction of the coronelism concept, which would only be abstracted sometime later, in 1948, with the Coronelismo: the municipality and representative government in Brazil publication, by Victor Nunes Leal.
Keywords:
Jorge Amado; Coronelism; Patriarchalism; Struggles between families; The violent land; History of law
Cet article analyse la conception de coronélisme présente dans la trame de l’ouvrage Les terres du bout du monde, de Jorge Amado. Paru en 1943, le roman a marqué la littérature brésilienne en racontant la lutte armée épique entre deux clans de producteurs de cacao qui se disputaient les forêts vierges du Sequeiro Grande (Ilhéus) au début du XXe siècle. En essayant de comprendre comment le romancier envisageait la relation entre les coronels et l’État, une partie de la critique spécialisée a vu en eux un pouvoir privé exacerbé contre lequel la loi de l’État n’arrivait pas à s’imposer: la survie du patriarcat et des luttes familiales, dont les origines historiques renvoient à la Colonie. Pourtant, un regard plus attentif montre que ce n’est pas si simple. Jorge Amado a réussi à montrer que l’État était relativement plus fort pendant cette période historique du coronélisme ; c’est pourquoi les clans rivaux se battaient pour le pouvoir politique, pour la maîtrise d’institutions telles que la police et la justice, qui les favoriseraient en cas de différends avec les oligarchies opposées. Finalement, Amado a d’une certaine manière anticipé la construction du concept de coronélisme, un concept seulement délimité de manière abstraite en 1948, avec la publication de Coronelismo, enxada e voto de Victor Nunes Leal.
Mots-clés:
Jorge Amado; Coronélisme; patriarcat; Luttes familiales; Les terres du bout du monde; Histoire du droit
Introdução: os sertões brasileiros entre patriarcas e coronéis
A publicação, em 1948, de Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, foi decisiva para a delimitação historiográfica da descontinuidade entre o patriarcalismo da época colonial e o coronelismo, que o Brasil viu se desenvolver a partir do Império e alcançar expressão mais completa na República. Se o patriarcalismo seria marcado pela manifestação de uma quase onipotência do poder privado dos senhores de terra, em contraponto a uma certa rarefação e impotência das instituições estatais, o coronelismo se situaria em um panorama superior de consolidação do aparato estatal. Mais robustas e alcançando melhor os sertões, as instituições, em vez de desprezadas ou afrontadas pelos senhores de terras, como ocorria frequentemente no período patriarcal, passaram a atiçar a sua cobiça. De tão mais estabelecidas que passavam a ser, elas tornaram-se “pedra de toque” nas disputas entre as facções oligárquicas rivais: quem as controlasse teria a chave do poder local. Tratava-se, dali em diante, de dominá-las, de revestir o poder privado com o público.1 1 “Significando o isolamento, ausência ou rarefação do poder público, apresenta-se o ‘coronelismo’ desde logo, como certa forma de incursão do poder privado no domínio político. Daí a tentação de o considerarmos puro legado ou sobrevivência do período colonial, quando eram frequentes as manifestações de hipertrofia do poder privado, a disputar atribuições próprias do poder instituído. Seria, porém, errôneo identificar o patriarcalismo colonial com o ‘coronelismo’, que alcançou sua expressão mais aguda na Primeira República. [...]. Não se pode reduzir o ‘coronelismo’ à simples afirmação anormal do poder privado. [...]. O ‘coronelismo’ pressupõe, ao contrário, a decadência do poder privado e funciona como processo de conservação do seu conteúdo residual. Chegamos, assim, ao ponto que parece nuclear para conceituação de ‘coronelismo’: esse sistema político é dominado por uma relação de compromisso entre poder privado decadente e o poder público fortalecido. O simples fato do compromisso presume certo grau de fraqueza de ambos os lados, também, portanto, do poder público” (Leal, [1948] 2012, p. 231).
Não que, antes da publicação do livro de Leal, o termo coronelismo já não estivesse em uso.2 2 Havia variações regionais do termo coronelismo: “A partir do Império, o mandonismo local é denominado indistintamente de coronelismo (maior parte do Brasil), caudilhismo (Rio Grande do Sul), chefismo (vale do São Francisco) etc.” (Carone, 1971b, p. 85). Alguns juristas – a quem, diante da relativa ausência da especialização em ciência social no Brasil da época, cabia parte da tarefa – empregavam o termo com frequência em suas exposições sobre o Brasil rural, como se percebe nos escritos do criminalista Roberto Lyra (Lyra, 1936LYRA, Roberto. (1936), “Direito penal: parte geral”, in R. Lyra & N. Hungria (org.), Compendio de direito penal. Volume 1, Rio de Janeiro, Livraria Jacyntho. , p. 574). Mas a questão conceitual não está no uso do signo, mas na sua significação. O jurista mineiro Magalhães Drummond, ao se referir à figura do coronel, quatro anos antes da publicação de Coronelismo, enxada e voto, falava na verdade do patriarca todo-poderoso da Colônia, que menosprezava o Estado débil nos interiores, mandando em tudo e em todos: “Porque há, mesmo em Minas, lugares, felizmente hoje raros, nos quais ainda troveja e domina, onipotente e estentórico, o ronco do coronelão” (Drummond, 1944DRUMMOND, José de Magalhães. (1944), Comentários ao código penal (Decreto lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940). Volume IX, Rio de Janeiro, Revista Forense., p. 190). Essa confusão entre patriarcalismo e coronelismo era frequente, e não se restringia a Magalhães Drummond e Roberto Lyra. O conceito de coronelismo ainda não havia sido precisado pelos sujeitos de seu tempo. A rigor, ainda hoje “boa parte da literatura brasileira, mesmo a que se inspira em Leal, identifica coronelismo e mandonismo [patriarcal]” (Carvalho, 1997CARVALHO, José Murilo de. (1997), “Mandonismo, coronelismo, clientelismo. Uma discussão conceitual”, Dados – Revista de Ciências Sociais, 40, 2, pp. 229-250., p. 232).3 3 No desenvolvimento do conceito de coronelismo, se estabeleceu uma suposta divergência entre Victor Nunes Leal e Eul-Soo Pang. O próprio Leal (1980, pp. 12-13) fez questão de distinguir o “coronelismo de cada um”, afirmando que o coronel de Pang seria um senhor absoluto (ou seja, que Pang não distinguia patriarcalismo e coronelismo). Não posso entrar nessa polêmica aqui, mas enxergo em Pang a dimensão institucional do coronelismo (Pang, 1979, pp. 24-29), o que sugere que o seu coronel não seria um proprietário onipotente, como Leal afirma.
Mas não creio que Victor Nunes Leal tenha sido voz única nessa distinção conceitual. Tenho por hipótese que é possível identificar a utilização difusa, por vezes intuitiva, do conceito de coronelismo em textos de alguns intelectuais mais perspicazes da época, ainda que somente Victor Nunes Leal, poucos anos mais tarde, tenha dado fim definitivo à questão ao desembaraçar em termos abstratos os dois fenômenos. Neste artigo, objetivo explorar essa hipótese analisando o romance Terras do sem fim,4 4 Vista às vezes como um pouco heterodoxa, a escolha da fonte literária de Jorge Amado tem se revelado frutífera para debater variadas questões históricas, habilitando o romancista como espécie de intérprete do Brasil (ver Goldstein, 2003; Palamartchuck, 1998; Rossi, 2009). escrito em 1941 por Jorge Amado e publicado em 1943. Ao que tudo indica, Amado foi um desses indivíduos de espírito aguçado que, antes de Leal, distinguia bem o coronelismo do mandonismo patriarcal. Não se trata aqui de refazer histórias de pioneiros individuais, mas justamente o contrário: mostrar como o desenvolvimento do conceito de coronelismo amadurecia em seu contexto histórico, sendo parte fruto do intelecto individual, parte percebido e construído coletivamente a partir das condições dadas pela realidade social.
A relação entre o poder privado dos senhores proprietários de terra e a ordem jurídico-estatal no Brasil República remete a uma análise histórica de longa duração, com ponto de partida no período colonial. Empreitada realizada com vistas aos lucros provenientes de produtos tropicais comercializáveis na Europa, a colonização brasileira ultrapassou o modelo conforme os portugueses organizavam sua expansão marítimo-comercial. Para além das feitorias africanas e dos postos comerciais indianos, houve ocupação efetiva do território americano uma vez esgotado o pau-brasil da costa atlântica. Interessada no percentual dos lucros que a implantação da monocultura do açúcar – e, posteriormente, de outros produtos – no território brasileiro poderia lhe auferir em tributos, mas sem capital nem pessoal suficiente para realizar o empreendimento, a Coroa lusitana transferiu a tarefa a particulares portugueses (Hespanha, 2006bHESPANHA, António Manuel. (2006b), “Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro”. Quaderni Fiorentini, 35, pp. 59-81., 2012HESPANHA, António Manuel. (2012), “Modalidades e limites do imperialismo jurídico na colonização portuguesa”. Quaderni Fiorentini, 41, pp. 101-135.).
Mata adentro, em um território de dimensões continentais e em estado de alerta bélico, tendo em vista os conflitos iminentes com povos nativos, se fez a colonização. Proprietários de terra aqui se instalaram, armados até os dentes, em latifúndios com dezenas ou centenas de escravos e outros tantos moradores livres agregados, normalmente sitiantes ou artesãos (Antonil, [1711] 2007ANTONIL, André João. ([1711] 2007), Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo, Edusp. , p. 79-80). Nas condições de vida do Novo Mundo, todo esse contingente populacional subordinava-se à vontade, por vezes caprichosa, do senhor, o pater famílias, um mandão local. O poder da realeza se fazia presente nos funcionários portugueses, sobretudo ouvidores e juízes de fora (Hespanha, 2006HESPANHA, António Manuel. (2006), O direito dos letrados no império português. Florianópolis, Fundação Boiteaux.), necessários para administrar a colonização e vigiar os dízimos valiosíssimos. Como se estabelecia a relação entre os proprietários patriarcas e a ordem político-jurídica? Era uma terra sem lei nem rei? Ou havia um poderoso regime fiscal e administrativo imposto juridicamente pela Coroa? Como essa relação se configurou com o passar do tempo, após a independência do Império e, o que nos interessa especificamente, depois da proclamação da República? Essa é uma maneira de formular a pergunta que gerou interpretações díspares na historiografia social e jurídica.
Quando essa questão se colocou de forma contundente, com as famosas interpretações brasileiras de meados do século XX (Botelho & Schwarcz, 2009BOTELHO, André & SCHWARCZ, Lilia Moritz. (2009), “Esse enigma chamado Brasil: Apresentação”, in A. Botelho & L.M. Schwarcz (org.), Um enigma chamado Brasil, São Paulo, Companhia das Letras.; Ricupero, 2011RICUPERO, Bernardo. (2011), Sete lições sobre as interpretações do Brasil. 2ª edição, São Paulo, Alameda.; Pericás & Secco, 2014PERICÁS, Luiz Bernardo & SECCO, Lincoln. (2014), “Apresentação”, in L.B. Pericás & L. Secco (org.), Intérpretes do Brasil, São Paulo, Boitempo.), das quais Leal foi um dos expoentes, duas tendências historiográficas opostas se delimitaram. A visão patrimonialista de Raymundo Faoro inaugurou uma das teses em querela, ao defender enfaticamente que a ordem política possuiria grande prestígio nas terras brasileiras:
A ordem pública portuguesa, imobilizada nos alvarás, regimentos e ordenações, prestigiada pelos batalhões, atravessa o oceano, incorrupta, carapaça imposta ao corpo sem que as medidas deste a reclamem. O Estado sobrepôs-se, estranho, alheio, distante da sociedade, amputando todos os membros que ressentissem ao domínio. (FaoroFAORO, Raymundo. ([1958] 2001), Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª edição, São Paulo, Globo. , [1958] 2011, p. 192)
Historiadores de diversos matizes colocavam-se contra a interpretação de Faoro; enxergavam, sobretudo fora dos centros administrativos, uma rarefação das instituições estatais em paralelo a uma hipertrofia do poder privado. Sérgio Buarque de Holanda dizia que “nos domínios locais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica” (Holanda, [1936] 2006HOLANDA, Sérgio Buarque de. ([1936] 2006), “Raízes do Brasil”, in R.B de Araújo & L.M. Schwarcz (org), Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras. , p. 78). Caio Prado Jr. enfatizava as condições da dominação do senhor que “à sua sombra, larga e acolhedora, dispensadora única dos meios de subsistência e de produção, virão todos se abrigar” (Prado Júnior, [1942] 1961PRADO JÚNIOR, Caio. ([1942] 1961), Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 6ª edição, São Paulo, Brasiliense., p. 286). Nestor Duarte focava os embates entre a “ordem privada” e a “pública”: “[...] tão poderosa é essa ordem privada que o Estado há de resignar-se a viver dela e a apoiá-la por isso mesmo, até depois da transformação política da Colônia em Império brasileiro” (Duarte, [1939] 1966DUARTE, Nestor. ([1939] 1966), A ordem privada e a organização política nacional. 2ª edição, São Paulo, Editora Nacional., p. 70-71). Gilberto Freyre falava de um regime jurídico de responsabilidade frouxa, ou mesmo de irresponsabilidade, dos engenhos de açúcar (Freyre, 1936FREYRE, Gilberto. (1936), Sobrados e mucambos: decadencia do patriarchalismo rural no Brasil. São Paulo, Editora Nacional., p. 38), que seriam, metaforicamente, “[...] lugares santos donde outrora ninguem se approximava sinão na ponta dos pés e para pedir alguma coisa – pedir asylo, pedir voto, pedir moça em casamento, pedir esmola para festa da igreja, pedir comida, pedir um côco d’agua para beber” (Freyre, 1936FREYRE, Gilberto. (1936), Sobrados e mucambos: decadencia do patriarchalismo rural no Brasil. São Paulo, Editora Nacional., p. 49).5 5 Explorar as nuances dessas duas visões historiográficas extrapolaria o objetivo deste artigo. Mas é importante apontar certo anacronismo de Faoro, já observado por Ivan Vellasco, ao projetar conceitos de sua época na análise histórica (Vellasco, 2009, p. 79). Isso fica explícito em fontes de época até do Império (ver Saint-Hilaire, [1823] 1937, p. 302; Matuto, 1829, p. 147; “Interior”, 1846, p. 208). Mas, seguindo a advertência de prudência de Arno e Maria José Wehling, não se pode generalizar, mas considerar recortes espaço-temporais específicos (Wehling, 2004 , pp. 49-50). Em centros administrativos, como a cidade da Bahia, ou regiões economicamente importantes, como as mineradoras, a ordem estatal portuguesa se fazia bem presente e substancialmente mais centralizadora e potente.
Embora compartilhasse das premissas dessa segunda visão historiográfica, que chamamos, grosso modo, de “interpretação patriarcal”, Victor Nunes Leal tinha uma preocupação específica: voltava-se para a conformação da relação entre o poder senhorial e o estatal em época de fortalecimento deste último. Nesse novo ambiente, os senhores mandões, cada vez mais, precisariam dominar a máquina estatal para manter seu poderio. Em vez de desprezá-la ou enfrentá-la, os coronéis agora lançavam seus pseudópodes para fagocitá-la, incorporando a justiça, a polícia, os cargos do executivo etc. ao seu domínio privado. Isso é o que explica as disputas oligárquicas em torno das eleições, os votos de cabresto, os bicos de pena e os tiroteios entre partidos rivais que passaram a fazer parte da crônica política brasileira do Império e da Primeira República. Que razão haveria para tantas lutas pelo controle da máquina pública se ela permanecesse com aquela mesma inoperância de outrora? Não haveria sentido em se dispersar tanta energia se não fosse a perspectiva de se auferir uma boa recompensa. Victor Nunes Leal foi fundamental ao perceber a descontinuidade histórica entre o patriarcalismo e o coronelismo. Mas, se verá como, em 1943, o romance de Jorge Amado contribuiu para a distinção entre esses dois fenômenos.
Um romance patriarcal? A lei do gatilho
O enredo de Terras do sem fim tem como eixo a disputa armada pela conquista das terras do Sequeiro Grande, protagonizada por dois clãs adversários de fazendeiros de cacau: aquele liderado pelo coronel Horácio e o dos coronéis Badarós.6 6 Além de Terras do sem fim, Jorge Amado ambientou outros romances na zona cacaueira. Esse conjunto, às vezes chamado de Ciclo do Cacau, inclui também Cacau, de 1933; São Jorge de Ilhéus, de 1944; Gabriela, cravo e canela, de 1958; e Tocaia grande, de 1984. Tocaias, cercos a cidades, assassinatos, incêndios de fazendas e cartórios, exércitos privados de jagunços e muito mais permeiam a história “daquela terra adubada com sangue” (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 305). A crítica especializada contemporânea de Terras do sem fim, preocupada em entender como Jorge Amado compreendia a configuração da relação entre o poder privado dos fazendeiros do cacau e o poder estatal, enxergou, nos atos valentes dos coronéis, um poderio de grande monta, ao qual a lei estatal não conseguia se sobrepor. Essa é a percepção, por exemplo, de Aluísio Medeiros, em artigo publicado originalmente em 1944:
A lei, a não ser para provocar longas e infindáveis contendas dos advogados adversários e efervescer ainda mais, a luta político-partidária, não existe naquelas terras de São Jorge de Ilhéus, pois o “caxixe” quase tudo pode resolver, e quando êle não resolve, então impera a lei do mais valente, do mais perverso, do que tem melhores capangas, e o gatilho põe termo às brigas, e tudo por causa do cacau. (Medeiros, [1944] 1961MEDEIROS, Aluísio. ([1944] 1961), “‘Terras do sem fim’, o romance do cacau”, in J. de B. Martins (org.), Jorge Amado: 30 anos de literatura, São Paulo, Martins. , p. 212)
O gatilho, a “lei do gatilho”, era o que tudo resolvia, segundo Medeiros, nesse interior da Bahia retratado em Terras do sem fim.7 7 A metáfora da “lei do gatilho” diz muito sobre os interiores brasileiros, sendo difundida nos quatro cantos do país. Roquette-Pinto ouviu uma variação dessa alegoria no Mato Grosso, quando viajava para Rondônia em 1912. Vaqueiros lhe diziam: “Aliás, é por processo semelhante [ao de abater gado a tiro], que se resolvem as questões, nas regiões fronteiriças: - A lei aqui é o artigo 44, paragrapho 32. O artigo 44 é o calibre da clavina Winchester; paragrapho 32 - corresponde ao cano das pistolas de repetição” (Roquette-Pinto, 1919, p. 67). Preferindo a expressão “lei do mais forte”, Lia Corrêa Dutra escrevia na revista Leitura, no ano de publicação da obra de Amado, que os personagens do romance encarnavam “[...] toda uma humanidade brutal que só conhecia a lei do mais forte, que ama e cultiva a violência, que faz da coragem a única virtude, raça resistente e rude dos desbravadores de sertões” (Dutra, 1943DUTRA, Lia Corrêa. (1943), “Terras do sem fim”. Leitura, 11, pp. 13-16., p. 13). Ou seja, para Medeiros e Dutra,8 8 Guilherme Figueiredo escreveu no Diário de Notícias (RJ), no mesmo sentido: “[...] o romance da terra é também o da justiça, no que ela tem de ausente [...]” (Figueiredo, 1943, p. 1). o coronelismo de Jorge Amado corresponderia àquela noção vulgar do coronelão absoluto diante de uma ordem estatal impotente: sobrevivência do patriarcalismo colonial. Mas a crítica da época talvez não tenha entendido a sutileza da ideia de coronelismo de Amado. Não era o gatilho que resolvia tudo em Terras do sem fim. Ou não só ele. É preciso verificar mais de perto estas questões: o que foi a luta entre os Badarós e Horácio? Uma manifestação tardia do poder privado dos potentados rurais, como sugeriram Aluísio Medeiros e Lia Corrêa Dutra? Ou há algo mais? O que é o coronelismo de Terras do sem fim?
A narrativa de Terras do sem fim tem como contexto a marcha para o oeste que os fazendeiros de cacau realizaram na região de Ilhéus, na Bahia.9 9 É interessante notar como a história ambiental da região foi incorporada ao romance: os naturalistas Spix e Martius, nas viagens que realizaram entre 1817 e 1820, encontraram somente na comarca de Ilhéus as “florestas não profanadas” que procuravam, e que já eram raras no Recôncavo Baiano (Spix & Martius, [1823] 1938, pp. 163-164). É sobre o processo posterior de devastação das matas de Ilhéus que se constrói a narrativa de Terras do sem fim. O início do ciclo do cacau no sudeste baiano fez-se em substituição aos antigos engenhos de cana-de-açúcar e às plantações de café que dominavam anteriormente a paisagem local. Mas as transformações socioeconômicas não pararam por aí. O crescimento da procura internacional do produto da nova lavoura, matéria-prima empregada na indústria de alimentos e na de cosméticos, exigia mais terras. Os proprietários cresciam o olho para as matas virgens:
Quando os homens iniciaram no Rio do Braço a plantação da nova lavoura, ninguém pensava que ela ia terminar com os engenhos de açúcar, os alambiques de cachaça e as roças de café que existiam em redor de Rio do Braço, de Banco da Vitória, de Águia Branca, os três povoados da beira do rio Cachoeira que ia dar no porto de Ilhéus. Mas o cacau não só liquidou os alambiques, os pequenos engenhos e as roças do café, como andou mata adentro. E no seu caminho nasceram as casas do povoado de Tabocas e mais longe ainda as casas do povoado de Ferradas, quando os homens de Horácio haviam conquistado a mata da margem esquerda do rio. (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 135)
No tempo do romance, nota-se do trecho acima, o coronel Horácio e seus aliados já haviam derrubado as matas preexistentes aos povoados de Tabocas e Ferradas, na época pertencentes a Ilhéus e atualmente emancipados em conjunto com o nome de Itabuna (IBGE, 2017bIBGE. (2017b), Bahia, Itabuna, Histórico. Brasília. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/itabuna/historico. Acesso em: 14 mar. 2020.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/it...
). A oeste, restavam as terras do Sequeiro Grande, que “[...] como uma virgem era linda, radiosa e moça, apesar das árvores centenárias. Misteriosa como a carne de mulher ainda não possuída. E agora era desejada também” (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 305). Uma vez conquistada, a região do Sequeiro Grande – que na realidade se chama Sequeiro do Espinho – daria lugar a novas fazendas de cacau, e ali se gestariam os povoados de Pirangi e Guaraci (p. 231), hoje promovidos a municípios sob os topônimos respectivos de Itajuípe (IBGE, 2017cIBGE. (2017c), Bahia, Itajuípe, Histórico. Brasília. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/itajuipe/historico. Acesso em: 14 mar. 2020.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/it...
) e Coaraci (IBGE, 2017aIBGE. (2017a), Bahia, Coaraci, Histórico. Brasília. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/coaraci/historico. Acesso em: 14 mar. 2020.
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).
No romance, a propriedade de Firmo, pequeno plantador de cacau, ficava entre os limites das fazendas dos Badarós e as matas do Sequeiro Grande; o lavrador era, assim, um entrave ao clã familiar que as cobiçava. Os Badarós compreendiam que precisavam ser pioneiros no desbravamento. Assim garantiriam a ampliação da extensão de suas plantações de cacau, aquela cultura que tanto enriquecia, “[...] que dava frutos cor de ouro que valiam mais que o próprio ouro” (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 13). Como o pequeno cultivador se recusava a vender a propriedade, Sinhô Badaró, irmão mais velho e chefe da família, ordenou ao negro Damião, seu jagunço, que montasse tocaia para pegar Firmo quando ele passasse a cavalo a caminho de sua propriedade. Depois se arrumariam com a viúva. Juca Badaró, irmão mais novo, argumentava: “Se a gente não manda fazer o serviço, Horácio manda na certa. E quem tiver a roça de Firmo tem a chave das matas do Sequeiro Grande” (p. 57).
Os Badarós já haviam saído em desvantagem nos barulhos anteriores pelas terras de Tabocas (p. 66, p. 101, p. 135) e não podiam perder para o rival novamente. Damião, “sua profissão era matar [...]. O coronel manda, ele mata” (p. 62). Mas não dessa vez: uma crise de consciência lhe fez errar o tiro. Endoideceu. Errante, passou a vagar pelas florestas. O plano dos Badarós se frustrou e ainda se descobriu que Firmo era “gente” do coronel Horário. Esse foi o estopim da luta entre o clã dos Badarós e o de Horário. Fora um barulho memorável, um marco cronológico para as gerações futuras, que dali em diante diriam: “Isso aconteceu antes dos barulhos do Sequeiro Grande... – Foi dois anos depois de acabada a luta do Sequeiro Grande” (p. 230).
À primeira vista, a luta épica pela conquista das terras do Sequeiro Grande aparece como uma manifestação da hipertrofia do poder privado dos potentados proprietários de terras, típica da história do patriarcalismo brasileiro. O Estado parece rarefeito e impotente: “Por cima da justiça, do juiz e do promotor, do júri de cidadãos, estava a lei do gatilho, última instância da justiça em Ilhéus”, narrou Jorge Amado (p. 201). “Os Badarós eram uma potência diante da qual a lei e a religião se inclinavam” (p. 84). Também seria Horácio: o coronel possuía fazendas em Ilhéus, Ferradas, Tabocas, e, posteriormente, em Pirangi e Coaraci. Ele próprio, com outros poucos, desbravou e se apossou de parte significativa dessas regiões, imensidão de terras que hoje correspondem a municípios quase inteiros. Centros de atividades urbanas e comerciais surgiam dentro de suas propriedades: “O povoado de Ferradas era feudo de Horácio. Estava encravado entre as fazendas dele” (p. 135). Em virtude do poderio adquirido em razão dos latifúndios de cacau, o mandão Horácio não se intimidaria em confrontar a ordem estatal. Em Tabocas “havia um subdelegado, era a maior autoridade. Isso de nome, porque, na verdade, a maior autoridade era Horácio” (p. 143). E em Ferradas, aparentemente, acontecia o mesmo:
Mas Ferradas começou a ser mesmo muito falada quando da nomeação dos subdelegados. O prefeito de Ilhéus, a instâncias de Juca Badaró, nomeara um subdelegado de polícia para Ferradas. Era uma maneira de ferir Horácio, de se meter nas terras dele. Disseram que aquilo já era um povoado e não importava que estivesse em terras de Horácio. Era necessário que a justiça se implantasse ali e se pusesse cobro aos assassinatos e roubos que se sucediam. O delegado chegou por uma tarde. Vinha com três soldados de polícia, anêmicos e tristes. Chegaram montados e pela noite voltaram a pé e nus, após terem tomado uma surra tremenda. [...]. O prefeito, sempre atiçado por Juca, nomeou outro delegado. Este era conhecido como valente, era Vicente Garangau, que fora muito tempo jagunço dos Badarós. Chegou com dez soldados, conversando muito, que ia fazer e acontecer. Logo no dia seguinte prendeu um trabalhador de Horácio que armara uma baderna numa casa de raparigas. Horácio mandou um recado para ele soltar o homem. Ele mandou dizer que Horácio viesse soltar. Horácio veio mesmo, soltou o homem, Vicente Garangau foi morto a caminho dos Macacos quando procurava se esconder na fazenda de Maneca Dantas. Arrancaram-lhe a pele do peito, as orelhas e os ovos e mandaram tudo de presente ao prefeito de Ilhéus. Desde esse tempo não havia subdelegado em Ferradas por mais que Juca Badaró procurasse um homem que quisesse o cargo. (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 136-137)
Essa hipertrofia do poder privado teve, desde a Colônia, a centralidade no patriarca, o pater familias, por vezes despótico e sádico com os moradores de suas terras10 10 Casa-Grande & Senzala (Freyre, [1933] 2003, p. 442; p. 453 e ss.; p. 511 e ss.) documenta casos históricos de sadismo, como “senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engelho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas” (Freyre, [1933] 2003 , p. 46). Em São Jorge de Ilhéus, Jorge Amado expôs os castigos corporais sofridos por trabalhadores que fugiam das fazendas devendo saldo no armazém: “Que jeito ele tinha senão mandar surrar Ranulfo quando o prendera? Não era por gosto que o fazia. [...] Tinha que manter o respeito. Era uma lei que não estava escrita mas existia de há muitos anos, todos a conheciam. E aquele que a rompia devia ser castigado para exemplo de todos” (Amado, [1944] 1999, p. 174). Sobre o abuso sexual das mulheres moradoras das fazendas, dizia: “Das mãos dos coronéis, dos filhos dos coronéis, dos capatazes. Esses eram os primeiros [a terem relações com as moças das fazendas], era um direito, fazia parte da lei que regulava a vida nos cacauais” (Amado, 1999, p. 341). Mas, para uma representação mais completa dos mandos e desmandos dos senhores em suas propriedades, a melhor fonte, em Amado, é o romance Cacau (Amado, [1933] 2000). e até mesmo com a própria família.11 11 Tristão de Alencar Araripe dá notícia de Pedro Vieira, senhor de engenho Canavieira, de Ilhéus, que, no ano de 1820, assassinou um de seus filhos, em um crime passional, por causa do suposto envolvimento deste com sua amante (Araripe, 1893). Loreto Couto relata caso de outro senhor de engenho facínora, cuja ira se voltou contra uma filha, que teria levado um amante para casa, as irmãs desta e sua própria esposa, por acobertarem o caso. Todas foram mortas (Couto, [1757] 1904, pp. 475-476). “Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para a sua tirania. Não são raros os casos como o de um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a à morte em conselho familiar e manda executar a sentença” (Holanda, [1936] 2006, p. 80). Mas essa figura se desenvolveu dentro de relações mais amplas constituídas pelos clãs familiares. Diferentemente das organizações sociais contemporâneas, nas quais os indivíduos se atomizaram perante a sociedade (Velho, 2013VELHO, Gilberto. (2013), “Memória, identidade e projeto”, in G. Velho, H. Vianna, K. Kuschnir & C. Castro (orgs.), Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana, Rio de Janeiro, Zahar.), no patriarcalismo brasileiro cada sujeito concebia-se enquanto pertencente a certo clã, fosse ele membro da família em sentido estrito, fosse agregado livre ou mesmo escravo.12 12 “A família ‘nuclear’, composta apenas de pai, mãe e filhos, só muito tardiamente aparece na sociedade brasileira, que conheceu durante tanto tempo a família do tipo patriarcal, na qual o pater familias reúne, sob sua autoridade e sob seu teto, tios e tias, sobrinhos, irmãs e irmãos solteiros, vagos primos, bastardos, afilhados, sem contar os ‘agregados’. Estes últimos são livres ou alforriados, brancos pobres, mestiços ou negros, que vivem na dependência tutelar da família e são considerados como parcelas dessa comunidade familiar. Também os escravos fazem parte da família” (Mattoso, 2003, p. 124). Ver também Linda Lewin (Lewin, 1993, pp. 115-119) e Lilia Moritz Schwarcz (Schwarcz, 2019, p. 45). Quando um forasteiro chegava a uma determinada região, ele se identificava como “gente” do senhor fazendeiro fulano ou sicrano (Queiroz, 1976QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. (1976), “O coronelismo numa interpretação sociológica”, in M.I.P. Queiroz (org.), O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios, São Paulo, Alfa-Omega., p. 164), ou enquanto um Barros ou um Rego. A relevância dos sobrenomes, aliás, é sugestiva: os Cavalcantis e os Wanderleys têm sua história familiar incrustada em Pernambuco, assim como os Camargos em São Paulo e os Feitosas no Ceará. No romance, não é por outro motivo – que não o de levar para frente o nome da família (e a própria família!) – que Juca pedira, no seu leito de morte, à sobrinha Don’ana, que estava pra se casar com o capitão João Magalhães: “Quero um menino, hein, não se esqueçam! Um Badaró!” (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 276).13 13 As palavras de André Heráclio do Rêgo sobre a família patriarcal brasileira são precisas nesse sentido: “E é assim que é inegável a importância da família na formação da sociedade brasileira. A posição de cada indivíduo nessa sociedade era determinada e garantida por seu grupo familiar: [...]. A partir dela eram percebidas as relações humanas e as formas fundamentais de vida” (Rêgo, 2008, p. 46).
A organização clânica fundamentava-se em relações de solidariedade entre seus membros, que orquestravam em conjunto defesas e ataques a inimigos externos. Consequência foram as tão famosas lutas de famílias que marcaram a história patriarcal.14 14 São algumas as lutas de famílias colecionadas por Frederico Pernambucano de Mello: “Montes e Feitosas, Mourões e Moquecas, Geraldos e Leites, Sampaios e Augustos, Arruadas e Paulinos, Cardosos e Lucenas ou Chicotes, no Ceará; Brilhantes e Limões, Viriatos e Morais, o Rio Grande do Norte; Dantas e Feitosas, Lacerdas e Gomes, Cavalcanti Aires e Nóbregas, Genipapos e Leites, na Paraíba; Pires e Camargos, em São Paulo; Honoratos e Barros, em Alagoas; Barbeiros e Gaias, Farias e Maurícios, Pereiras e Carvalhos, em Pernambuco” (Mello, 2011, p. 366). Oliveira Vianna percebeu que essas “famílias eram extremamente solidárias. Todas se sentiam unidas, não só nas lutas privadas, de famílias, como contra as autoridades públicas” ((Vianna, [1949] 1999VIANNA, Francisco José de Oliveira. ([1949] 1999), Instituições política brasileiras. Brasília, Conselho Editorial do Senado Federal. , p. 228). As mais variadas razões podiam ativar as solidariedades clânicas, embora disputas por terras talvez tenham sido a mais frequente. É o caso da trama de Terras do sem fim. Mas também se registraram na história, como estopim de rixas familiares, questões passionais, como raptos de mulheres da família – esposas, filhas, irmãs, sobrinhas etc. –, o domínio da Câmara Municipal, ou mesmo desentendimentos fúteis e outras banalidades.
Sob condições de rarefação e impotência do Estado, importa observar que as disputas privadas se realizavam, comumente, à margem da tutela das instituições jurídico-estatais, ou mesmo contra elas. Foi o que concluiu, por exemplo, Luiz de Aguiar Costa Pinto sobre a famosa luta entre os clãs dos Montes e Feitosas no sertão do Ceará do século XVIII, quando, após muitos assassinatos e a despeito de decisões dos “tribunais” ,15 15 O termo “tribunais” é usado em sentido genérico para qualquer órgão revestido com funções jurisdicionais. Além disso, não existia na época a separação de poderes como a conhecemos hoje, sendo normal um órgão acumular funções administrativas e judiciais. a guerra privada permanecia, inclusive, com direito a tocaias e atentados contra a vida de um juiz-de-fora e do ouvidor da comarca, que pretendiam jurisdicionar o conflito (Costa Pinto, 1949COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. (1949), Lutas de famílias no Brasil. São Paulo, Editora Nacional., p. 161-163). Incapaz de impor sua força, a ordem estatal portuguesa se colocou, neste caso – como em muitos outros da história colonial – como conciliadora da disputa, rogando pela paz. Em certa medida, reproduzia-se, no Brasil, a primeira expressão do direito penal moderno europeu originada nos séculos XII e XIII, na qual a mediação estatal predominava em face à jurisdição (Alessi, 2011ALESSI, Giorgia. (2011), “O direito penal moderno entre retribuição e reconciliação”, tradução de Ricardo Sontag, in A. Dal Ri Júnior & R. Sontag (org.), História do direito penal entre Medievo e Modernidade, Belo Horizonte, Del Rey.; Zorzi, 2011ZORZI, Andrea. (2011), “Negociação penal, legitimação jurídica e poderes urbanos na Itália comunal”, tradução de Arno Dal Ri Júnior, in A. Dal Ri Júnior & R. Sontag (org.), História do direito penal entre Medievo e Modernidade, Belo Horizonte, Del Rey.).16 16 O próprio Victor Nunes Leal já fizera essa comparação entre o direito penal brasileiro e o europeu ao tratar das lutas de famílias no Brasil (Leal, [1948] 2012, p. 83). O historiador do direito Mário Sbriccoli salientou, ao lado das “proibições”, as “dissuasões” do direito penal embrionário: “Os poderes públicos a [vingança privada] combaterão com dissuasões e proibições, orientando os cidadãos a modos de satisfação diferentes daquele simplificado e arriscado, que se resolve no fazer ao outro aquilo que ele fez a ti” (Sbriccoli, 2011, p. 460).
Os clãs familiares englobavam, portanto, além do pater familias e seus descendentes e ascendentes diretos (família nuclear), os parentes colaterais (irmãos, tios, sobrinhos), os parentes afins (genros, cunhados), os compadres e os afilhados, e as gentes da casa (criados, moleques, artífices) etc. ((Vianna, [1949] 1999VIANNA, Francisco José de Oliveira. ([1949] 1999), Instituições política brasileiras. Brasília, Conselho Editorial do Senado Federal. , p. 228). A reprodução da organização sócio-familiar clânica é notória em Terras do sem fim, como bem percebeu o crítico literário José Maurício Gomes de Almeida ao afirmar que, no romance, na “órbita dos dois chefes supremos [...], gravitam os demais personagens, sejam eles os membros da família e os coronéis aliados, ou os pequenos lavradores, advogados, jagunços e até simples alugados das roças de cacau” (Almeida, 1999ALMEIDA, José Maurício Gomes de. (1999), A tradição regionalista no romance brasileiro (1857-1945). Rio de Janeiro, Topbooks., p. 267).17 17 Para uma história das relações de parentesco em Ilhéus da virada para o século XX, ver André Luis Rosa Ribeiro (Ribeiro, 2001).
Falecido o velho Marcelino Badaró e sua esposa, Filomena, foi o filho mais velho, Sinhô Badaró, quem assumiu a liderança da família, exercendo a chefia sobre o irmão Juca e os demais. “Tu é meu irmão mais velho e é tu quem resolve das coisas da família. Tu é que pai deixou tomando conta de tudo: das roças, das meninas, de mim mesmo. Tu é que tá fazendo a riqueza dos Badarós” (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 57). Raimunda, mulata que era filha ilegítima de Marcelino e afilhada de Sinhô (p. 84, p. 258), atuou de forma contundente na querela familiar, ao lado de Antônio Vítor, seu futuro marido. De boa pontaria no rifle, Antônio Vítor salvou a vida de Juca por ocasião de dois barulhos (p. 66, p. 231). Mas também agregados, pequenos proprietários e coronéis eram leais aos Badarós: é o caso do coronel Teodoro das Baraúnas e do fazendeiro Padre Paiva, “que levava sob a batina um revólver e não se perturbava se acontecia um barulho perto dele” (p. 199). Pelo lado do clã de Horácio, o principal coligado era o compadre coronel Maneca Dantas. A ele soma-se um número considerável de pequenos proprietários agregados. É interessante observar a rede de solidariedade do seu clã posta em ação logo após o atentado malogrado contra Firmo. Este dera notícias ao chefe, Horácio, que, na presença de Maneca Dantas, mandou reunir todos os seus a fim de se articularem para a luta que viria:
- Tu, Firmo, vai voltar agorinha mesmo. Mando dois homens pra lhe garantir... Tu fala com os outros todos: Braz, José da Ribeira, com a viúva Merenda, com Coló, com todo mundo. Diga que venha tudo almoçar aqui amanhã. Tá o doutor, a gente bota tudo no preto e no branco. Fico com a mata até a beira do rio, o mais, o que tá do outro lado, é pra dividir. E também as terras que se somar... Tá certo? (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 104)
À primeira vista, portanto, a configuração da relação entre o poder privado e o Estado, no romance Terras do sem fim, se resume a isto: hipertrofia do poder dos senhores de terras, clãs familiares, redes de lealdade, luta de famílias, poder estatal rarefeito e impotente:
[...] uma ordem de Sinhô Badaró é indiscutível. Se ele manda matar há que matar. Da mesma maneira que quando ele manda selar a sua mula preta pra uma viagem há que selar a mula preta rapidamente. E demais, não há o perigo da cadeia porque cabra de Sinhô Badaró nunca foi preso. Sinhô sabe garantir os seus homens, trabalhar pra ele é um prazer (Amado, 2006, p. 62)
A dimensão institucional da luta
Olhando mais de perto as representações de Terras do sem fim, observam-se mediações importantes na relação de poder entre os fazendeiros e a ordem estatal. A hipertrofia do poder privado e a fragilidade da ordem pública talvez sejam manifestações de uma realidade bem mais complexa. Um caminho para o desenvolvimento dessa hipótese é dado pelo trecho a seguir, em que Jorge Amado narrou rivalidades político-eleitorais entre as gentes do Horácio e dos Badarós, antes mesmo da guerra pelo Sequeiro Grande:
Em Tabocas quem era amigo e eleitor de Horácio mantinha sempre uma atitude de hostilidade em relação aos amigos e eleitores dos Badarós. Nas eleições havia barulhos, tiros e mortes. Horácio ganhava sempre e sempre perdia porque as urnas eram fraudadas em Ilhéus. Votavam vivos e mortos, muitos votavam sob a ameaça dos cabras. Nesses dias Tabocas se enchia de jagunços que guardavam as casas dos chefes políticos. (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 143)
Com a Constituição de 1891, a Primeira República,18 18 As notícias sobre as grandes disputas eleitorais armadas e fraudulentas remontam ao Império. João Francisco Lisboa registrou, no Jornal de Timon: Partidos e Eleições no Maranhão de 1852, impressionante relato sobre as eleições maranhenses na década anterior ao escrito (Lisboa, [1852] 1864 , vol. 1, pp. 310-311). Júlio Bello, senhor de engenho no início do século XX, contou histórias acerca de eleições turbulentas da época imperial no interior da Paraíba, que ouvira de um ascendente que viveu o período (Bello, 1938, pp. 155-156). marco cronológico de Terras do sem fim, permitiu o voto a todo homem alfabetizado. Nos pleitos eleitorais, os fazendeiros comportavam-se a seu modo costumeiro: ostentando a força privada do parabellum e do porrete. Encenavam espetáculos que envolviam furtos de urnas dos colégios eleitorais, tiroteios em praça pública e até assassinatos de candidatos adversários.19 19 Graciliano Ramos (citado por Moraes, 1992, p. 53), quando ainda era comerciante em Palmeira dos Índios (AL), elegeu-se prefeito. Contou mais tarde sobre como os coronéis Cavalcantis o colocaram na política: “Assassinaram o meu antecessor. Escolheram-me por acaso. Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando.” Por vezes, se sofisticavam: valiam-se do “voto de cabresto” e das fraudes da “degola”, do “bico de pena”, da “cédula de ferro”, entre outros recursos de manipulação das eleições que Rodolpho Telarolli identificou (Telarolli, 1982TELAROLLI, Rodolpho. (1982), Eleições e fraudes eleitorais na República Velha. São Paulo, Brasiliense., p. 77).20 20 Além do uso da força, Vilaça e Albuquerque deram atenção ao que chamaram de voto-mercadoria: a compra, pelos coronéis, de votos da população letrada (Vilaça & Albuquerque, 1988, p. 37). Amado reproduziu essas disputas eleitorais no trecho citado. Mas por que empenhar tantos recursos para ganhar as eleições se o Estado era, ao que parecia, tão pouco potente, e se a lei do gatilho valia mais que a Justiça em Ilhéus? É preciso dar um passo atrás e demarcar um ponto de descontinuidade histórica entre o patriarcalismo colonial e o coronelismo.
Desde o Império, o Brasil viu o projeto do “absolutismo jurídico”21 21 Termo empregado pelo historiador do direito Paolo Grossi (Grossi, 2010, p. 85). Mas também são usuais, na historiografia jurídica, “Império das Leis” ou “Estado de Direito”. ser implantado. O direito produzido pelo Estado, assegurado por suas instituições, passou, paulatinamente, a se fazer presente nos rincões mais longínquos. A legislação estatal, aplicada por seus juízes, deveria prevalecer, em tese, sobre o mando patriarcal. E as instituições armadas desenvolviam-se o suficiente para garantir a execução da ordem. O que explica, então, a impetuosidade dos fazendeiros nos feitos eleitorais? A resposta estava na oportunidade do clã vencedor de controlar as instituições judiciais, policiais, administrativas e fiscais, sendo que se dava especial importância ao juiz presidente do tribunal do júri e ao delegado de polícia, que se tornariam a “justiça” e a “força” dos coronéis investidos na máquina estatal. Determinava-se, assim, qual das facções de coronéis estaria por cima na política, e qual minguaria ao sabor do esquecimento e da repressão que a oligarquia vitoriosa imporia à perdedora, com o auxílio do próprio poder estatal adquirido por via eleitoral. O velho senhor de engenho José Paulino, personagem de José Lins do Rego, outro sagaz intérprete do coronelismo da Primeira República, dizia: “Quando a gente está por cima [na política], muito bem. Caiu, lá vem a polícia cercando a propriedade” (Rego, [1932] 2012REGO, José Lins do. ([1932] 2012), Menino de engenho. 103ª edição, Rio de Janeiro, José Olympio. , p. 82). Enfim, foi pela incursão do poder privado dentro do poder público que se configurou o coronelismo, e não pela mera sobrevivência do poder privado hipertrofiado da Colônia (Leal, [1948] 2012; Carvalho, 1997CARVALHO, José Murilo de. (1997), “Mandonismo, coronelismo, clientelismo. Uma discussão conceitual”, Dados – Revista de Ciências Sociais, 40, 2, pp. 229-250.).
Amado entendeu a especificidade de seu tempo histórico. Os Badarós só iniciaram a luta porque “estavam por cima na política”. A prefeitura de Ilhéus e o governo da Bahia pertenciam ao partido do qual os Badarós eram correligionários. Ao saber do atentando contra Firmo, Maneca Dantas disse: “Eles tão por cima na política, por isso se atrevem...” (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 103). Os Badarós dispunham dos juízes de primeira instância de Ilhéus e das forças policiais, posto que, pela Constituição do Estado da Bahia de 1891BAHIA, Estado da. (1891), Constituição do Estado da Bahia: promulgada em 2 de julho de 1891. Bahia, Tourinho., art. 59, era atribuição do Governador “prover os cargos civis, os de policia e os da milicia, nomeando e demittindo com as restricções e pela fórma determinada nas leis” e “remover o juizes de primeira instancia, nos casos e na fórma definidos na lei”. Os Badarós, portanto, possuíam o beneplácito do poder público22 22 Expressão de Janotti: “O coronelismo não foi apenas uma extensão do poder privado, mas o reconhecimento da força de alguns mandatários pelo beneplácito do poder público” (Janotti, 1986, pp. 41-42). para agir como melhor lhes conviesse para conquistar o Sequeiro Grande. O diário de notícias oposicionista da capital baiana, alarmado com as atrocidades dos Badarós, falava em “crimes dos governistas em Ilhéus” (p. 267).
Horácio tentara um caxixe, termo correlato ao atual grilagem de terra,23 23 O termo pode ser utilizado também para outros tipos de fraudes cartorárias. para obter o título do terreno do Sequeiro Grande: “O maior caxixe que já vi falar... Dr. Virgílio molhou as mãos de Venâncio e registrou no cartório dele um título de propriedade das matas de Sequeiro Grande em nome do Coronel Horário e mais cinco ou seis” (p. 169). Caxixe muito bem feito pelo bacharel do partido oposicionista: “Tá tudo legal, Seu Azevedo. Tudo legalzinho, sem faltar uma vírgula. O moço é um advogado bomba. Arranjou tudo direitinho. A medição já havia [...]” (p. 169), comentavam. Os Badarós dariam uma volta épica em Horácio:
Era o Coronel Teodoro das Baraúnas, à frente de doze homens armados. Entraram [em Tabocas] dando uns tiros para o ar.[...]. Teodoro atravessou a rua dando tiros. Ao final, fazendo esquina com o beco, ficava o cartório de Venâncio. [...]. – Mete fogo.... – ordenou Teodoro. (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 174)
Nenhuma investigação se abriu nesse momento contra Teodoro das Baraúnas pelo crime. Os Badarós tinham a polícia a seu favor. Horácio ajuizou processo cível pela propriedade de Sequeiro Grande, mas o juiz também não era seu:
O processo que Horácio fazia correr no foro de Ilhéus continuava sem solução. “Correr no foro” era a mais inadequada das expressões jurídicas quando se tratava de um processo de gente da oposição contra gente do governo, como era o caso atual. O juiz estava ali para defender os interesses dos Badarós. E, se não o fizesse bem, o menos que podia lhe acontecer era o governador do Estado transferi-lo para uma cidadezinha qualquer do sertão [...]. O processo marchava, segundo Horácio, “a passos de cágado” e ele confiava muito mais em tomar as terras à força que pela lei. (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 235)
Os Badarós, aliás, perderam a luta não por serem mais fracos ou contarem com menos capangas, mas porque a política virou. O governo federal interveio no Estado da Bahia,24 24 Esse fato é importante para demarcar cronologicamente Terras do sem fim, posto que, após o governo Campos Sales, com a política dos governadores, episódios de intervenção federal foram mais raros (Carone, 1971, pp. 176-177), embora a luta real entre Basílio de Oliveira e Badaró, que inspirou Jorge Amado, tenha ocorrido em 1919. fazendo a oposição estadual assumir. Horácio agora estaria por cima na política, com novo juiz, novo promotor, novo delegado, todos para lhe servir. Às expensas do Estado, uniformizaram jagunços de Horácio como soldados de polícia para que estivessem “dentro da legalidade” e, sob pretexto jurídico de capturar o incendiário Teodoro das Baraúnas, contra quem enfim se abriu processo criminal, cercaram a fazenda Sant’ana, dos Badarós. Após quatro dias de tiroteio, Sinhô, contra sua vontade, fugiu ferido. Incendiaram a casa-grande:
[...] o governo federal decretara a intervenção no Estado da Bahia. As tropas do exército haviam ocupado a cidade, o governador renunciara, o chefe da oposição, que chegou do Rio num vaso de guerra, tomara posse como interventor. Horácio agora era governo, Sinhô Badaró estava na oposição. O telegrama do novo interventor demitia o prefeito de Ilhéus, nomeava Dr. Jessé para o posto. No primeiro navio vindo da Bahia, chegaram o novo juiz e o novo promotor e, com eles, a nomeação de Braz para delegado do município. [...] A mudança da situação política roubara seus [de Sinhô Badaró] melhores trunfos. [...]. [Braz] prometera ao interventor que tudo seria feito legalmente. Daí os jagunços que assaltaram a fazenda dos Badarós, e cercaram a casa-grande, aparecerem nos jornais que noticiaram o fato transformados em “soldados da polícia que procuravam capturar ao incendiário Teodoro das Baraúnas, que, segundo constava, estava acoitado na Fazenda Sant’Ana. (Amado, [1943] 2006AMADO, Jorge. ([1943] 2006), Terras do sem fim. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 280)
Há, em Terras do sem fim, portanto, uma dimensão jurídico-institucional que é importantíssima para o desfecho da trama. Aliás, ela se mostrou decisiva na disputa entre os clãs rivais: quem detinha o domínio do Estado sempre estava à frente do adversário. Mas esse elemento institucional tem ficado obscurecido nas interpretações de Terras do sem fim. O corriqueiro é colocar a coisa apenas na conta da esfera privada dos senhores, de seus mandonismos patriarcais, da lei do gatilho, ou, se preferirmos, da lei do mais forte: teria ganhado a disputa pelo Sequeiro Grande aquele que dispunha de mais terras, de mais dinheiro e de mais jagunços. Essa foi a forma como o romance foi recebido em sua época, como observamos nos textos de Aluísio Medeiros (Medeiros, [1944] 1961, p. 212) e Lia Corrêa Dutra (Dutra, 1943DUTRA, Lia Corrêa. (1943), “Terras do sem fim”. Leitura, 11, pp. 13-16., p. 13). Vai nesse sentido a interpretação do romance que prevalece até hoje, me parece. Em revisão bibliográfica não exaustiva, encontrei só um trabalho em que as especificidades jurídico-institucionais vêm à tona com clareza: A saga do cacau na ficção de Jorge Amado, bela obra de Antonio Pereira Sousa (Sousa, 2001). Sua abordagem, porém, optou por explorar teses gerais sobre o coronelismo, pouco mostrando a forma como o Estado e o poder privado dos proprietários se mobilizaram internamente na obra de Jorge Amado.25 25 “Um novo projeto, um novo artifício: o domínio do poder político. [...] Eles passaram a se interessar por outros fins e outras metas, envolveram-se em relações sociais para além dos limites de sua propriedade rural, tais como a representação, a liderança, o monopólio do controle da força. Era o gosto pela política animado pela sustentação da riqueza. Nesse momento, os coronéis criaram laços específicos dentro de um sistema político, o Estado [...]” (Sousa, 2001, p. 99).
Penso que um dos possíveis motivos para o esquecimento do elemento institucional na obra de Jorge Amado seja o fato de os intérpretes vincularem sua visão de mundo à tese feudal defendida pelo Partido Comunista do Brasil (PCB).26 26 Em 1960, o PCB mudaria o nome para Partido Comunista Brasileiro. Eduardo Assis Duarte (Duarte, 1996DUARTE, Eduardo de Assis. (1996), Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro, Record., p. 137) recorda que o partido em que Jorge Amado militou até 1955 interpretava o Brasil, mesmo durante a República, como um país de economia feudal ou semifeudal. A princípio, isso implicaria, em termos políticos, uma sociedade com Estado bastante fraco.27 27 Alberto Passos Guimarães foi um dos principais intelectuais orgânicos a desenvolver a tese feudal (Guimarães, 1963, p. 33). O próprio Jorge Amado, mesmo depois de deixar o Partido (Raillard, 1990RAILLARD, Alice. (1990), Conversando com Jorge Amado. Tradução de Annie Dymetman. Rio de Janeiro, Record., p. 145), utilizava os termos “feudalismo” e “senhor feudal” ao se referir a certas zonas rurais brasileiras. Amado era adepto da tese feudal, e isso não está posto em questão. Mas sua leitura específica da zona brasileira do cacau do início do XX, como temos visto, sugeria uma presença relativamente forte do aparato estatal, e isso precisa estar claro em qualquer tentativa de explorar o que o romancista concebia como feudalismo brasileiro. Não é possível transplantar pré-noções do feudalismo europeu para o romance de Amado sem que isso signifique lhe amputar certas dimensões importantes.
“Vivi a meninice entre tiroteios”
A atividade estética de Jorge Amado é reconhecida pela intenção clara de consubstanciar elementos da realidade social nos romances (Cândido, [1945] 2011CÂNDIDO, Antônio. ([1945] 2011), “Poesia, documento e história”, in A. Cândido (org.), Brigada ligeira, 4ª edição, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul. ; Seghers, [1949] 1961SEGHERS, Anna. ([1949] 1961), “Um Balzac brasileiro fala da floresta virgem”, in J. de B. Martins (org.), Jorge Amado: 30 anos de literatura, São Paulo, Martins Fontes. ). “Com o povo aprendi tudo que sei, dêle me alimentei” (Amado, [1961] 1972bAMADO, Jorge. ([1970] 1972b), “Carta a uma leitora sôbre romance e personagens”, in J. de B. Martins (org.), Jorge Amado, povo e terra: 40 anos de literatura, São Paulo, Martins., p. 8). O escritor repetia essa frase sempre que podia, com o objetivo de revelar onde buscava inspiração: no homem e na sua relação com os outros homens e com a terra. Amado, contudo, não entendia esse processo criativo como “científico”: não acreditava que seu estilo de prover a literatura com elementos sociais lhe permitiria escrever romances sobre qualquer sociedade que, porventura, pesquisasse. A “observação fria” não serviria ao romance, que demandaria algo de outra natureza:
Pode o escritor sem dúvida realizar: reportagem, crônica, até ensaio de interpretação. Jamais porém romance ou poesia, vida, sangue, carne, coração latindo. Só o conhecimento vivido, [...] aquêle que não é aprendido em livros nem na fria observação, [...] possibilita a criação [estética]. (Amado, [1970] 1972aAMADO, Jorge. ([1961] 1972a), “Discurso de posse na Academia Brasileira”, in J. de B. Martins (org.), Jorge Amado, povo e terra: 40 anos de literatura, São Paulo, Martins., pp. 23-24)
Para fazer romance, seria preciso ter experiência de vida acerca daquilo que se pretende narrar. Com essa relevância dada à dimensão da vivência, não se poderia esperar que Amado firmasse atenção narrativa senão naquelas sociedades que conheceu mais intimamente.28 28 Que seriam sobretudo, mas não só, a cacaueira, de sua primeira infância, e a de Salvador, então cidade da Bahia, que conheceu na adolescência, quando estudante dos colégios Antônio Vieira e Ipiranga (Santos, 1993, pp. 36-42). Navegando pelas memórias em busca de ideias para os enredos de seus romances, Jorge Amado chegou aos coronéis, aos jagunços, às tocaias, que o impressionaram tanto na infância vivida como menino grapiúna. As lutas pela posse das matas do Sequeiro Grande em Terras do sem fim não são fruto apenas do engenho do romancista. Inspirado na história real da luta pelo Sequeiro do Espinho,29 29 Para uma história dessa luta, ocorrida em 1919, ver Gustavo Falcón (Falcón, 1995, p. 87 e ss.). Maria Luiza Heine (Heine, 2004) comparou exaustivamente a correlação entre fatos históricos da luta e a ficção de Amado. para a ficção, Amado trouxe ambiente, personagens e até alguns fatos que vivenciara quando criança, ao morar primeiro na fazenda Auricídia e, depois, na Itaporanga, propriedades de seus pais – que ficavam, respectivamente, em Ferradas e Pirangi. Em depoimento a Alice Raillard, Amado contou, ressaltando o elemento da vivência, o envolvimento de seus pais na luta pela terra:
[...] participei de sua vida [do mundo rural do cacau] – não assisti, participei – meu pai, assim como minha mãe, estavam muito envolvidos nas grandes lutas pela posse da terra. Senti-me comprometido com tudo aquilo. Tenho raízes terrenas. (Raillard, 1990RAILLARD, Alice. (1990), Conversando com Jorge Amado. Tradução de Annie Dymetman. Rio de Janeiro, Record., p. 181)
E, em carta a uma leitora, disse: “vivi, Senhora, a meninice entre tiroteios, na era da conquista da terra para o plantio da árvore dos frutos de ouro” (Amado, [1970] 1972bAMADO, Jorge. ([1970] 1972b), “Carta a uma leitora sôbre romance e personagens”, in J. de B. Martins (org.), Jorge Amado, povo e terra: 40 anos de literatura, São Paulo, Martins., p. 28).
O pai do escritor, João Amado de Faria, viera de Estância, Sergipe, para Ilhéus na ambição de fazer riqueza com o plantio do cacau. Encontrou nas terras grapiúnas Eulália Leal, também de família desbravadora, e que vinha do município de Amargosa, Bahia. Casaram-se em 1911. Jorge nasceu em 1912.30 30 Para mais detalhes biográficos sobre Jorge Amado, ver Paulo Tavares (Tavares, 1982), Itazil Benício dos Santos (Santos, 1993), Miércio Táti (Táti, 1961) e Joselia Aguiar (Aguiar, 2018). Rui Nascimento conta período da vida de Amado em que, após prisão política por perseguição do Estado Novo, o romancista saiu da capital brasileira para morar em Estância, Sergipe, cidade de seu pai e dos pais de sua então esposa, Matilde (Nascimento, 2007). Zélia Gattai, segunda esposa de Jorge Amado, utilizou sobretudo lembranças de Eulália Amado para compor Um chapéu para viagem (Gattai, 1986). Da estirpe dos coronéis do cacau, João Amado viveu os riscos das lutas. Jorge tinha apenas dez meses quando seu pai sofreu sua primeira tocaia. Embora não se recordasse dela, foi de tantas vezes ouvir a emboscada ser contada e recontada, com certo orgulho, por Eulália, que Jorge Amado formulou na mente uma nítida cena, que narrou depois no livro de memórias Menino grapiúna (Amado, [1982] 1987AMADO, Jorge. ([1982] 1987), O menino grapiúna. 10ª edição, Rio de Janeiro, Record.). Eulália, que talvez tenha inspirado Jorge a criar a personagem de Don’ana Badaró,31 31 É notável como a memória de Jorge Amado lhe oferecia substrato para a construção de personagens, fosse como representação de um indivíduo real ou amálgama de vários: “Sinhô Badaró, personagem de Terras do sem fim, tem o nome exato de outro conquistador de terras cuja majestade se impunha à imaginação do menino grapiúna” (Amado, 1992, pp. 553-554). Horácio, por sua vez, seria “soma e síntese de coronéis de minha infância: o citado Basílio, Henrique Alves, Pedro Catalão, Misael Tavares e João Amado de Faria, meu pai” (Amado, 1992, p. 553). mulher forte de clavinote na mão, não ficava atrás nos perigosos barulhos:
Dois de [...] meus tios [por parte de mãe] foram muito ativos na luta pela conquista da terra. Meu tio Fortunato ficou cego de um olho, e numa das mãos tinha apenas dois dedos – uma bala que levara-lhe parte da mão. Havia outro tio meu, casado com uma tia, irmã de minha mãe, que aparece em Terras. Manuel Inácio: no livro seu nome é Teodoro das Baraúnas, um aliado dos Badaró – é ele quem faz incendiar o cartório do tabelião [...]. A família de minha mãe esteve muito envolvida com tudo isto. Minha mãe também. Ela dormia com uma carabina sob o travesseiro. (Raillard, 1990RAILLARD, Alice. (1990), Conversando com Jorge Amado. Tradução de Annie Dymetman. Rio de Janeiro, Record., p. 189)
Tenho a impressão de que foi justamente a vivência como menino grapiúna que permitiu a Jorge Amado dar a relevância devida aos elementos jurídico-institucionais em sua interpretação das lutas entre coronéis do cacau no início do XX.32 32 A memória dos barulhos encontrou espaço na estética da geração literária que se formava nos anos 1930. Logo em 1928, quando estudante secundarista na Bahia, Amado leu A bagaceira, que inaugurou o romance regionalista. Ficou bastante impressionado (Amado, 1981, pp. 12-13): “Reconhecíamos no livro de José Américo tudo aquilo a que aspirávamos; ele nos falava da realidade brasileira, da realidade rural, como ninguém o fizera antes” (Raillard, 1990, p. 41). Já morando no Rio de Janeiro, para estudar na Faculdade Nacional de Direito, em 1932, conheceu José Américo de Almeida, Amando Fontes, Gilberto Freyre e Rachel de Queiroz (Táti, 1961, p. 40) e, em 1934, começou a trabalhar na editora e livraria José Olympio (Amado, 1981, p. 15). Como conta Joselia Aguiar (2018, p. 84), o escritor passou a dar palpites editoriais e a ter mais contato com autores de renome do regionalismo, como José Lins do Rego, que, a partir de Banguê, foi editado pela José Olympio, e o então editor da coleção Documentos Brasileiros, Gilberto Freyre, de quem se tornaria leitor, embora, inicialmente, não tenha sido tão influenciado pelo Manifesto regionalista (Goldstein, 2003, p. 109). No ambiente do Rio de Janeiro e da José Olympio, Amado encontrava, em outros nomes do regionalismo, as mesmas convicções estéticas que nutria. Para se ter ideia do impacto que aquele tipo de eleições barulhentas assumia na vida de Jorge, note-se como ele guardou na lembrança uma cena que presenciou quando criança, ao ver seu pai sair de casa, em companhia de jagunços e de fazendeiros aliados, para ir garantir as eleições na base do bico de pena. João Amado colocava a vida em risco para assegurar o domínio do aparato estatal. Isso foi muito significativo para que Jorge entendesse a valia de ter o Estado como aliado de luta.
Nas selas, os trabucos. Chefe dos cabras, Argemiro, um sergipano sarará, que servira meu pai nos tempos de Ferradas, novamente com ele na Tararanga, afamado e temido, o revólver no cinto. Acima de Argemiro, marcado pela varíola, caboclo de olhos vivos, fazendeiro e político, Brasiliano José dos Santos, o compadre Brás, a mais fascinante figura da minha infância. Compadre e amigo do coronel João Amado, jamais lhe faltou nas horas difíceis. Impossível encontrar-se na região do cacau valentia e desassombro iguais ao dele – assim constava e era verdade. Alguns anos depois eu o vi enfrentar sozinho um grupo de bandidos enviados pelos inimigos políticos para provocar alteração em Pirangi. [...]. Fora o braço direito de Basílio de Oliveira [Horácio na trama] nas grandes lutas pela posse da terra. A tropa armada partiu, certamente um pequeno grupo de homens, parecia-me um exército. Minha mãe, magra e resignada, viu o marido tomar mais uma vez o rumo de Itabuna para garantir, com amigos e cabras, a eleição de um sobrinho. Eleições a bico de pena, sob a vigilância dos jagunços. (Amado, [1982] 1987AMADO, Jorge. ([1982] 1987), O menino grapiúna. 10ª edição, Rio de Janeiro, Record., pp. 42-44)
Ele se recordava também de como o governo do Estado da Bahia, com um pretexto jurídico qualquer, empregava tropas da polícia para reprimir a jagunçagem da oposição. Não que os políticos da situação também não armassem seus próprios homens. Mas a perseguição estatal era seletiva:
Os soldados da Polícia Militar desembarcaram em Ilhéus sob o comando de um coronel cujas credenciais eram a violência e a crueldade com que “pacificara” o sertão. Vinham com ordens terminantes de acabar com o cangaço na zona do cacau. Em verdade, por detrás da subida decisão moralizadora do governo do Estado escondiam-se razões políticas. [...]. Entre os adversários mais visados encontrava-se José Nique, temido clavinote a serviço da oposição. (Amado, [1982] 1987AMADO, Jorge. ([1982] 1987), O menino grapiúna. 10ª edição, Rio de Janeiro, Record., pp. 93-94)
Na vivência da zona cacaueira, Jorge Amado conheceu as tocaias de jagunços, os incêndios a fazendas, os mandonismos dos senhores. Mas não só. O menino viu também as disputas pelas instituições estatais, as eleições fraudadas, os juízes e os policiais a serviço da situação. Incorporando, mais tarde, estes elementos ao romance, Jorge Amado fugiu de uma compreensão rudimentar do coronelismo: aquela que despreza a dimensão jurídico-estatal do fenômeno e supervaloriza a “lei do mais forte”. O coronelismo de Amado não é só o uso da força privada.
Considerações finais: o coronelismo de Terras do sem fim
Jorge Amado levou a sério a preocupação de narrar com base na realidade social ao tratar do emaranhado de relações entre os poderes privado e público que constituiu o coronelismo. Em 1943, o escritor alcançava grande sofisticação ao perceber elementos de descontinuidade histórica entre o patriarcalismo e o coronelismo, antecipando-se, em alguns anos, à obra de Victor Nunes Leal. Não há, em Terras do sem fim, uma exposição baseada no senso comum da época, para o qual as manifestações de força por parte dos coronéis, na Primeira República, seriam uma sobrevida do mandonismo patriarcal engendrado na Colônia, que se caracterizava pela quase onipotência do poderio privado e pela fraqueza e rarefação do Estado incapaz de se contrapor aos interesses imediatos dos senhores de terras. Pode parecer que Horácio e Badarós estavam acima da lei. Eles, em certo sentido, estavam, mas tão somente ao controlar a máquina pública.
Não se trata de uma “lei do gatilho” indiferente ou contra o Estado, mas de uma lei do gatilho que permite aos que governam, e não à oposição(!), quase tudo fazer. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Indício, portanto, do fortalecimento relativo do aparato institucional em face ao declínio do poder privado praticado de forma direta pelas oligarquias agrárias. No coronelismo republicano, o Estado, mediado pelas instituições e pelo direito legislado, se colocava de forma decididamente mais forte que na Colônia. E um novo elemento atravessava o modo de operar dos coronéis: a necessidade de controlar as instituições, o juiz, o delegado, o promotor, como forma a possibilitar seu domínio sobre as oligarquias rivais. Amado percebeu essa particularidade do coronelismo. Os Badarós iniciaram a luta contra o clã de Horácio quando possuíam o beneplácito do poder público. Eram signatários do partido que dominava a prefeitura de Ilhéus e o estado da Bahia. Quando se viram por baixo na política, com intervenção federal na Bahia, não resistiram à investida dos jagunços de Horácio uniformizados com fardas da polícia.
Terras do sem fim não alcançou uma delimitação rigorosa e abstrata do conceito de coronelismo, que só viria a ocorrer cinco anos mais tarde, com a publicação de Coronelismo, enxada e voto. Mas Jorge Amado fez tudo o que competia à especificidade do campo estético. Se enveredasse por uma linguagem mais teórica e descritiva da realidade social, sua épica narrativa perderia dramaticidade. A construção de seus personagens apaixonantes, a exemplo do capitão João Magalhães, Don’ana Badaró e Horácio, se deterioraria ao dar lugar a teses e exposições de relações sociais. A descrição social não pode adentrar a literatura sem que isso implique a perda do que há de mais importante na estética: a dramaticidade.33 33 Terras do sem fim marca uma profunda evolução na narrativa de Amado, que, antes, conferia mais centralidade à descrição social que ao desenvolvimento dramático (Bastide, 1972, p. 47). É possível que Lukács tenha tido alguma influência sobre Amado, que era seu confesso leitor (Amado, 1981, p. 14). Talvez antes de 1941, o romancista já tivesse tido contato com os textos de teoria literária do filósofo húngaro, sobretudo Narrar e descrever (Lukács, [1936] 1965), publicado em 1936, que faz duras críticas ao romance descritivo. Os dois viriam a se conhecer no final da década de 1940, quando Amado se exiliou na Europa, depois da cassação do PCB e da perda de seu mandato de deputado federal. Mas não há como negar que o coronelismo está ali, ainda que apresentado com outro tipo de linguagem que não a sociológica. Além disso, não importa se Jorge Amado não utilizou o termo coronelismo. Esse não é o ponto: o que é necessário é notar que aquela fórmula específica de relação de poder entre o Estado e os proprietários de terras que se chamou coronelismo está mobilizada em sua narrativa.
A análise realizada aqui pode levar o leitor a uma falsa interpretação do pensamento de Jorge Amado: de que seria possível uma reconciliação dos conflitos sociais a partir de uma institucionalização estatal maior e de mais eficiência das normas jurídicas. Tratar-se-ia, com um rigor de Creonte, de colocar em prática a lei, expurgando o coronelismo de dentro do Estado. Essa, aliás, parece ser a aposta de Victor Nunes Leal. Para Amado, porém, a aparente impessoalidade do direito, embora superasse a violência direta do uso da força, encobriria, na verdade, a dominação social da burguesia comercial e financeira brasileira. Em Ilhéus, exportadores de cacau estavam tomando as terras dos coronéis endividados, de quem eram credores. O expediente utilizado para isso era a aplicação categórica do direito, com a execução dos títulos de crédito. O direito não deixaria de ter relação com a violência na medida em que serviria à usurpação da propriedade pela nova classe. Para usar expressões de Amado, sob o rigor da lei, iniciava-se o “tempo dos exportadores”, dando fim ao “tempo dos coronéis”.34 34 O contraste entre o tempo dos coronéis e dos exportadores seria retomado em Gabriela, cravo e canela (Amado, [1958] 1995). Sobre essa tensão entre os dois tempos no romance, ver capítulo 5 de A invenção do coronel (Vasconcellos, 2018). Na década de 1940, ainda marxista partidário, Amado falava também de uma espécie de “tempo do povo” (Amado, [1999] 1944AMADO, Jorge. ([1944] 1999), São Jorge de Ilhéus. 52ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 315), uma sociedade comunista, que talvez possa ser lida como sem direito e sem Estado. Mas pormenorizar essa questão ultrapassaria os limites deste artigo, o que me obriga a deixar para tratá-la em outro momento.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos valiosíssimos auxílios, comentários e críticas de Ricardo Sontag, Ariadi Sandrini Rezende, Pedro Corgozinho, Pedro Fonseca e Maria Ester Martinho. Agradeço também às contribuições dos avaliadores e editores da Revista Brasileira de Ciências Sociais. Este trabalho foi desenvolvido a partir de pesquisas de mestrado e doutorado, ambas com financiamento da Capes.
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“Significando o isolamento, ausência ou rarefação do poder público, apresenta-se o ‘coronelismo’ desde logo, como certa forma de incursão do poder privado no domínio político. Daí a tentação de o considerarmos puro legado ou sobrevivência do período colonial, quando eram frequentes as manifestações de hipertrofia do poder privado, a disputar atribuições próprias do poder instituído. Seria, porém, errôneo identificar o patriarcalismo colonial com o ‘coronelismo’, que alcançou sua expressão mais aguda na Primeira República. [...]. Não se pode reduzir o ‘coronelismo’ à simples afirmação anormal do poder privado. [...]. O ‘coronelismo’ pressupõe, ao contrário, a decadência do poder privado e funciona como processo de conservação do seu conteúdo residual. Chegamos, assim, ao ponto que parece nuclear para conceituação de ‘coronelismo’: esse sistema político é dominado por uma relação de compromisso entre poder privado decadente e o poder público fortalecido. O simples fato do compromisso presume certo grau de fraqueza de ambos os lados, também, portanto, do poder público” (Leal, [1948] 2012, p. 231LEAL, Victor Nunes. ([1948] 2012), Coronelismo, enxada e voto: O município e o regime representativo no Brasil. 7ª edição, São Paulo, Companhia das Letras.).
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Havia variações regionais do termo coronelismo: “A partir do Império, o mandonismo local é denominado indistintamente de coronelismo (maior parte do Brasil), caudilhismo (Rio Grande do Sul), chefismo (vale do São Francisco) etc.” (Carone, 1971bCARONE, Edgard. (1971b), “Coronelismo: definição histórica e bibliografia”, R. Adm. Emp., 11, 3, pp. 85-92., p. 85).
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No desenvolvimento do conceito de coronelismo, se estabeleceu uma suposta divergência entre Victor Nunes Leal e Eul-Soo Pang. O próprio Leal (1980LEAL, Victor Nunes. (1980), “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Dados – Revista de Ciências Sociais, 23, 1, pp. 11-14., pp. 12-13) fez questão de distinguir o “coronelismo de cada um”, afirmando que o coronel de Pang seria um senhor absoluto (ou seja, que Pang não distinguia patriarcalismo e coronelismo). Não posso entrar nessa polêmica aqui, mas enxergo em Pang a dimensão institucional do coronelismo (Pang, 1979PANG, Eul-Soo. (1979), Coronelismo e oligarquias: 1889 – 1934 – A Bahia na Primeira República brasileira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., pp. 24-29), o que sugere que o seu coronel não seria um proprietário onipotente, como Leal afirma.
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Vista às vezes como um pouco heterodoxa, a escolha da fonte literária de Jorge Amado tem se revelado frutífera para debater variadas questões históricas, habilitando o romancista como espécie de intérprete do Brasil (ver Goldstein, 2003GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. (2003), O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo, Senac São Paulo.; Palamartchuck, 1998PALAMARTCHUK, Ana Paula. (1998), “Jorge Amado: um escritor de putas e vagabundos?”, in S. Chalhoub & L.A. de M. Pereira (orgs.), A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.; Rossi, 2009ROSSI, Luiz Gustavo Freitas. (2009), As cores da revolução: a literatura de Jorge Amado nos anos 30. São Paulo, Annablume.).
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Explorar as nuances dessas duas visões historiográficas extrapolaria o objetivo deste artigo. Mas é importante apontar certo anacronismo de Faoro, já observado por Ivan Vellasco, ao projetar conceitos de sua época na análise histórica (Vellasco, 2009VELLASCO, Ivan de Andrade. (2009), “Clientelismo, ordem privada e Estado no Brasil oitocentista: notas para um debate”, in J.M. Carvalho & L.M.B.P. Neves (orgs.), Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 79). Isso fica explícito em fontes de época até do Império (ver Saint-HilaireSAINT-HILAIRE, Augusto de. ([1823] 1937), Viagem ás nascentes do rio S. Francisco e pela provincia de Goyas. Tradução de Clado Ribeiro de Lessa. Tomo I. São Paulo, Editora Nacional., [1823] 1937SPIX, Johann Baptist von & MARTIUS, Carlos Frederico Philippe von. ([1823] 1938), Através da Bahia: Excerptos da obra Reise in Brasilien. Tradução de Pirajá da Silva e Paulo Wolf. 3ª edição, São Paulo, Editora Nacional., p. 302; Matuto, 1829MATUTO. (1829), “Correspondência”. Diário de Pernambuco, 16 fev., p. 147; “Interior”, 1846“Interior”. (1846), O Progresso, Recife, julho., p. 208). Mas, seguindo a advertência de prudência de Arno e Maria José Wehling, não se pode generalizar, mas considerar recortes espaço-temporais específicos (Wehling, 2004WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José. (2004), Direito e justiça no Brasil Colonial: o tribunal da relação do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Renovar. , pp. 49-50). Em centros administrativos, como a cidade da Bahia, ou regiões economicamente importantes, como as mineradoras, a ordem estatal portuguesa se fazia bem presente e substancialmente mais centralizadora e potente.
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Além de Terras do sem fim, Jorge Amado ambientou outros romances na zona cacaueira. Esse conjunto, às vezes chamado de Ciclo do Cacau, inclui também Cacau, de 1933; São Jorge de Ilhéus, de 1944; Gabriela, cravo e canela, de 1958AMADO, Jorge. ([1958] 1995), Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record.; e Tocaia grande, de 1984.
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A metáfora da “lei do gatilho” diz muito sobre os interiores brasileiros, sendo difundida nos quatro cantos do país. Roquette-Pinto ouviu uma variação dessa alegoria no Mato Grosso, quando viajava para Rondônia em 1912. Vaqueiros lhe diziam: “Aliás, é por processo semelhante [ao de abater gado a tiro], que se resolvem as questões, nas regiões fronteiriças: - A lei aqui é o artigo 44, paragrapho 32. O artigo 44 é o calibre da clavina Winchester; paragrapho 32 - corresponde ao cano das pistolas de repetição” (Roquette-Pinto, 1919ROQUETTE-PINTO, Edgard. (1919), Rondonia. 2ª edição, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional., p. 67).
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Guilherme Figueiredo escreveu no Diário de Notícias (RJ), no mesmo sentido: “[...] o romance da terra é também o da justiça, no que ela tem de ausente [...]” (Figueiredo, 1943FIGUEIREDO, Guilherme. (1943), “O romance da terra”. Diário de Notícias, terceira secção, 7 nov., p. 1).
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É interessante notar como a história ambiental da região foi incorporada ao romance: os naturalistas Spix e Martius, nas viagens que realizaram entre 1817 e 1820, encontraram somente na comarca de Ilhéus as “florestas não profanadas” que procuravam, e que já eram raras no Recôncavo Baiano (Spix & Martius, [1823] 1938, pp. 163-164). É sobre o processo posterior de devastação das matas de Ilhéus que se constrói a narrativa de Terras do sem fim.
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Casa-Grande & Senzala (Freyre, [1933] 2003FREYRE, Gilberto. ([1933] 2003), Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ª edição, São Paulo, Global., p. 442; p. 453 e ss.; p. 511 e ss.) documenta casos históricos de sadismo, como “senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engelho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas” (Freyre, [1933] 2003FREYRE, Gilberto. ([1933] 2003), Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ª edição, São Paulo, Global. , p. 46). Em São Jorge de Ilhéus, Jorge Amado expôs os castigos corporais sofridos por trabalhadores que fugiam das fazendas devendo saldo no armazém: “Que jeito ele tinha senão mandar surrar Ranulfo quando o prendera? Não era por gosto que o fazia. [...] Tinha que manter o respeito. Era uma lei que não estava escrita mas existia de há muitos anos, todos a conheciam. E aquele que a rompia devia ser castigado para exemplo de todos” (Amado, [1944] 1999AMADO, Jorge. ([1944] 1999), São Jorge de Ilhéus. 52ª edição, Rio de Janeiro, Record., p. 174). Sobre o abuso sexual das mulheres moradoras das fazendas, dizia: “Das mãos dos coronéis, dos filhos dos coronéis, dos capatazes. Esses eram os primeiros [a terem relações com as moças das fazendas], era um direito, fazia parte da lei que regulava a vida nos cacauais” (Amado, 1999, p. 341). Mas, para uma representação mais completa dos mandos e desmandos dos senhores em suas propriedades, a melhor fonte, em Amado, é o romance Cacau (Amado, [1933] 2000)AMADO, Jorge. ([1933] 2000), Cacau. 52ª edição, Rio de Janeiro, Record..
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Tristão de Alencar Araripe dá notícia de Pedro Vieira, senhor de engenho Canavieira, de Ilhéus, que, no ano de 1820, assassinou um de seus filhos, em um crime passional, por causa do suposto envolvimento deste com sua amante (Araripe, 1893ARARIPE, Tristão de Alencar. (1893), “Pater-familias no Brazil nos tempos coloniaes”. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, 55, 2, pp. 15-23.). Loreto Couto relata caso de outro senhor de engenho facínora, cuja ira se voltou contra uma filha, que teria levado um amante para casa, as irmãs desta e sua própria esposa, por acobertarem o caso. Todas foram mortas (Couto, [1757] 1904COUTO, D. Domingos do Loreto. ([1757] 1904), Desaggravos do Brasil e Glorias de Pernambuco. Rio de Janeiro, Officina Typographica da Bibliotheca Nacional., pp. 475-476). “Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para a sua tirania. Não são raros os casos como o de um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a à morte em conselho familiar e manda executar a sentença” (Holanda, [1936] 2006, p. 80).
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“A família ‘nuclear’, composta apenas de pai, mãe e filhos, só muito tardiamente aparece na sociedade brasileira, que conheceu durante tanto tempo a família do tipo patriarcal, na qual o pater familias reúne, sob sua autoridade e sob seu teto, tios e tias, sobrinhos, irmãs e irmãos solteiros, vagos primos, bastardos, afilhados, sem contar os ‘agregados’. Estes últimos são livres ou alforriados, brancos pobres, mestiços ou negros, que vivem na dependência tutelar da família e são considerados como parcelas dessa comunidade familiar. Também os escravos fazem parte da família” (Mattoso, 2003MATTOSO, Kátia M. de Queirós. (2003), Ser escravo no Brasil. 3ª edição, São Paulo, Brasiliense., p. 124). Ver também Linda Lewin (Lewin, 1993LEWIN, Linda. (1993), Política e parentela na Paraíba. Tradução de André Villalobos. Rio de Janeiro, Record., pp. 115-119) e Lilia Moritz Schwarcz (Schwarcz, 2019SCHWARCZ, Lilia Moritz. (2019), Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, Companhia das Letras., p. 45).
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As palavras de André Heráclio do Rêgo sobre a família patriarcal brasileira são precisas nesse sentido: “E é assim que é inegável a importância da família na formação da sociedade brasileira. A posição de cada indivíduo nessa sociedade era determinada e garantida por seu grupo familiar: [...]. A partir dela eram percebidas as relações humanas e as formas fundamentais de vida” (Rêgo, 2008RÊGO, André Heráclio do. (2008), Família e coronelismo no Brasil: uma história de poder. São Paulo, A Girafa., p. 46).
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São algumas as lutas de famílias colecionadas por Frederico Pernambucano de Mello: “Montes e Feitosas, Mourões e Moquecas, Geraldos e Leites, Sampaios e Augustos, Arruadas e Paulinos, Cardosos e Lucenas ou Chicotes, no Ceará; Brilhantes e Limões, Viriatos e Morais, o Rio Grande do Norte; Dantas e Feitosas, Lacerdas e Gomes, Cavalcanti Aires e Nóbregas, Genipapos e Leites, na Paraíba; Pires e Camargos, em São Paulo; Honoratos e Barros, em Alagoas; Barbeiros e Gaias, Farias e Maurícios, Pereiras e Carvalhos, em Pernambuco” (Mello, 2011MELLO, Frederico Pernambucano de. (2011), Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª edição, São Paulo, A Girafa., p. 366).
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O termo “tribunais” é usado em sentido genérico para qualquer órgão revestido com funções jurisdicionais. Além disso, não existia na época a separação de poderes como a conhecemos hoje, sendo normal um órgão acumular funções administrativas e judiciais.
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O próprio Victor Nunes Leal já fizera essa comparação entre o direito penal brasileiro e o europeu ao tratar das lutas de famílias no Brasil (Leal, [1948] 2012, p. 83). O historiador do direito Mário Sbriccoli salientou, ao lado das “proibições”, as “dissuasões” do direito penal embrionário: “Os poderes públicos a [vingança privada] combaterão com dissuasões e proibições, orientando os cidadãos a modos de satisfação diferentes daquele simplificado e arriscado, que se resolve no fazer ao outro aquilo que ele fez a ti” (Sbriccoli, 2011SBRICCOLI, Mario. (2011), “Justiça Criminal”. Tradução de Ricardo Sontag, Discursos Sediciosos, 17/18, pp. 459-486., p. 460).
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Para uma história das relações de parentesco em Ilhéus da virada para o século XX, ver André Luis Rosa Ribeiro (Ribeiro, 2001RIBEIRO, André Luis Rosa. (2001), Família, poder e mito: o município de São Jorge de Ilhéus (1880-1912). Ilhéus, Editus.).
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As notícias sobre as grandes disputas eleitorais armadas e fraudulentas remontam ao Império. João Francisco Lisboa registrou, no Jornal de Timon: Partidos e Eleições no Maranhão de 1852, impressionante relato sobre as eleições maranhenses na década anterior ao escrito (Lisboa, [1852] 1864LISBOA, João Francisco. ([1852] 1864), “Jornal de Timon: partidos e eleições no Maranhão – 1852”, in L.C.P. Castro & A.H. Leal (orgs.), Obras de João Francisco Lisboa. Volume 1, São Luiz do Maranhão, B. de Mattos. , vol. 1, pp. 310-311). Júlio Bello, senhor de engenho no início do século XX, contou histórias acerca de eleições turbulentas da época imperial no interior da Paraíba, que ouvira de um ascendente que viveu o período (Bello, 1938BELLO, Julio. (1938), Memorias de um senhor de engenho. Rio de Janeiro, José Olympio., pp. 155-156).
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Graciliano Ramos (citado por Moraes, 1992MORAES, Dênis. (1992), O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro, José Olympio., p. 53), quando ainda era comerciante em Palmeira dos Índios (AL), elegeu-se prefeito. Contou mais tarde sobre como os coronéis Cavalcantis o colocaram na política: “Assassinaram o meu antecessor. Escolheram-me por acaso. Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando.”
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Além do uso da força, VilaçaVILAÇA, Marcos Vinicios & ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. (1988), Coronel, coronéis. 3ª edição, Niterói, Eduff. e Albuquerque deram atenção ao que chamaram de voto-mercadoria: a compra, pelos coronéis, de votos da população letrada (Vilaça & Albuquerque, 1988, p. 37).
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Termo empregado pelo historiador do direito Paolo Grossi (Grossi, 2010GROSSI, Paolo. (2010), A history of European Law. Tradução de Laurence Hooper. Chichester, Wiley-Blackwell., p. 85). Mas também são usuais, na historiografia jurídica, “Império das Leis” ou “Estado de Direito”.
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Expressão de Janotti: “O coronelismo não foi apenas uma extensão do poder privado, mas o reconhecimento da força de alguns mandatários pelo beneplácito do poder público” (Janotti, 1986JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. (1986), O coronelismo: uma política de compromissos. 5ª edição, São Paulo, Brasiliense., pp. 41-42).
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O termo pode ser utilizado também para outros tipos de fraudes cartorárias.
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Esse fato é importante para demarcar cronologicamente Terras do sem fim, posto que, após o governo Campos Sales, com a política dos governadores, episódios de intervenção federal foram mais raros (Carone, 1971CARONE, Edgard. (1971), A República Velha (evolução política). Volume 2, São Paulo, Difel., pp. 176-177), embora a luta real entre Basílio de Oliveira e Badaró, que inspirou Jorge Amado, tenha ocorrido em 1919.
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“Um novo projeto, um novo artifício: o domínio do poder político. [...] Eles passaram a se interessar por outros fins e outras metas, envolveram-se em relações sociais para além dos limites de sua propriedade rural, tais como a representação, a liderança, o monopólio do controle da força. Era o gosto pela política animado pela sustentação da riqueza. Nesse momento, os coronéis criaram laços específicos dentro de um sistema político, o Estado [...]” (Sousa, 2001SOUSA, Antonio Pereira. (2001), A saga do cacau na ficção de Jorge Amado. Ilhéus, Editus., p. 99).
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Em 1960, o PCB mudaria o nome para Partido Comunista Brasileiro.
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Alberto Passos Guimarães foi um dos principais intelectuais orgânicos a desenvolver a tese feudal (Guimarães, 1963GUIMARÃES, Alberto Passos. (1963), Quatro séculos de latifúndio. São Paulo, Obelisco., p. 33).
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Que seriam sobretudo, mas não só, a cacaueira, de sua primeira infância, e a de Salvador, então cidade da Bahia, que conheceu na adolescência, quando estudante dos colégios Antônio Vieira e Ipiranga (Santos, 1993SANTOS, Itazil Benício. (1993), Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro, Record., pp. 36-42).
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Para uma história dessa luta, ocorrida em 1919, ver Gustavo Falcón (Falcón, 1995FALCÓN, Gustavo. (1995), Os coronéis do cacau. Salvador, Ianamá., p. 87 e ss.). Maria Luiza Heine (Heine, 2004HEINE, Maria Luiza. (2004), Jorge Amado e os coronéis do cacau. Ilhéus, Editus.) comparou exaustivamente a correlação entre fatos históricos da luta e a ficção de Amado.
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Para mais detalhes biográficos sobre Jorge Amado, ver Paulo Tavares (Tavares, 1982TAVARES, Paulo (1982), O baiano Jorge Amado e sua obra. 4ª edição, Rio de Janeiro, Record.), Itazil Benício dos Santos (Santos, 1993SANTOS, Itazil Benício. (1993), Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro, Record.), Miércio Táti (Táti, 1961TÁTI, Miércio. (1961), Jorge Amado, vida e obra. Belo Horizonte, Itatiaia.) e Joselia Aguiar (Aguiar, 2018AGUIAR, Joselia. (2018), Jorge Amado: uma biografia. São Paulo, Todavia.). Rui Nascimento conta período da vida de Amado em que, após prisão política por perseguição do Estado Novo, o romancista saiu da capital brasileira para morar em Estância, Sergipe, cidade de seu pai e dos pais de sua então esposa, Matilde (Nascimento, 2007NASCIMENTO, Rui. (2007), Jorge Amado: uma cortina que se abre. Salvador, Fundação Casa Jorge Amado.). Zélia Gattai, segunda esposa de Jorge Amado, utilizou sobretudo lembranças de Eulália Amado para compor Um chapéu para viagem (Gattai, 1986GATTAI, Zélia (1986), Um chapéu para viagem. 7ª edição, Rio de Janeiro, Record.).
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É notável como a memória de Jorge Amado lhe oferecia substrato para a construção de personagens, fosse como representação de um indivíduo real ou amálgama de vários: “Sinhô Badaró, personagem de Terras do sem fim, tem o nome exato de outro conquistador de terras cuja majestade se impunha à imaginação do menino grapiúna” (Amado, 1992AMADO, Jorge. (1992), Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro, Record., pp. 553-554). Horácio, por sua vez, seria “soma e síntese de coronéis de minha infância: o citado Basílio, Henrique Alves, Pedro Catalão, Misael Tavares e João Amado de Faria, meu pai” (Amado, 1992AMADO, Jorge. (1992), Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro, Record., p. 553).
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A memória dos barulhos encontrou espaço na estética da geração literária que se formava nos anos 1930. Logo em 1928, quando estudante secundarista na Bahia, Amado leu A bagaceira, que inaugurou o romance regionalista. Ficou bastante impressionado (Amado, 1981AMADO, Jorge. (1981), “É preciso viver ardentemente”. Entrevista concedida a Antônio Roberto Espinosa, in A.C. Gomes (org.), Jorge Amado, São Paulo, Abril Educação., pp. 12-13): “Reconhecíamos no livro de José Américo tudo aquilo a que aspirávamos; ele nos falava da realidade brasileira, da realidade rural, como ninguém o fizera antes” (Raillard, 1990RAILLARD, Alice. (1990), Conversando com Jorge Amado. Tradução de Annie Dymetman. Rio de Janeiro, Record., p. 41). Já morando no Rio de Janeiro, para estudar na Faculdade Nacional de Direito, em 1932, conheceu José Américo de Almeida, Amando Fontes, Gilberto Freyre e Rachel de Queiroz (Táti, 1961TÁTI, Miércio. (1961), Jorge Amado, vida e obra. Belo Horizonte, Itatiaia., p. 40) e, em 1934, começou a trabalhar na editora e livraria José Olympio (Amado, 1981AMADO, Jorge. (1981), “É preciso viver ardentemente”. Entrevista concedida a Antônio Roberto Espinosa, in A.C. Gomes (org.), Jorge Amado, São Paulo, Abril Educação., p. 15). Como conta Joselia Aguiar (2018AGUIAR, Joselia. (2018), Jorge Amado: uma biografia. São Paulo, Todavia., p. 84), o escritor passou a dar palpites editoriais e a ter mais contato com autores de renome do regionalismo, como José Lins do Rego, que, a partir de Banguê, foi editado pela José Olympio, e o então editor da coleção Documentos Brasileiros, Gilberto Freyre, de quem se tornaria leitor, embora, inicialmente, não tenha sido tão influenciado pelo Manifesto regionalista (Goldstein, 2003GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. (2003), O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo, Senac São Paulo., p. 109). No ambiente do Rio de Janeiro e da José Olympio, Amado encontrava, em outros nomes do regionalismo, as mesmas convicções estéticas que nutria.
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Terras do sem fim marca uma profunda evolução na narrativa de Amado, que, antes, conferia mais centralidade à descrição social que ao desenvolvimento dramático (Bastide, 1972BASTIDE, Roger. (1972), “Sôbre o romancista Jorge Amado”, in J. de B. Martins (org.), Jorge Amado, povo e terra: 40 anos de literatura, São Paulo, Martins., p. 47). É possível que Lukács tenha tido alguma influência sobre Amado, que era seu confesso leitor (Amado, 1981AMADO, Jorge. (1981), “É preciso viver ardentemente”. Entrevista concedida a Antônio Roberto Espinosa, in A.C. Gomes (org.), Jorge Amado, São Paulo, Abril Educação., p. 14). Talvez antes de 1941, o romancista já tivesse tido contato com os textos de teoria literária do filósofo húngaro, sobretudo Narrar e descrever (Lukács, [1936] 1965LUKÁCS, Georg. ([1936] 1965), “Narrar ou descrever”, in Georg Lukács (org.), Ensaios sobre literatura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.), publicado em 1936, que faz duras críticas ao romance descritivo. Os dois viriam a se conhecer no final da década de 1940, quando Amado se exiliou na Europa, depois da cassação do PCB e da perda de seu mandato de deputado federal.
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O contraste entre o tempo dos coronéis e dos exportadores seria retomado em Gabriela, cravo e canela (Amado, [1958] 1995AMADO, Jorge. ([1958] 1995), Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. 77ª edição, Rio de Janeiro, Record.). Sobre essa tensão entre os dois tempos no romance, ver capítulo 5 de A invenção do coronel (Vasconcellos, 2018VASCONCELLOS, João Gualberto Moreira. (2018), A invenção do coronel: ensaio sobre as raízes do imaginário político brasileiro. 2ª edição, Vitória, Edufes.).
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DOI: 10.1590/3610507/2020
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Notas
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Ago 2020 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
10 Jul 2019 -
Aceito
09 Mar 2020