Resumo
Este texto problematiza a incorporação das ciências policiais no Brasil. Defenderemos que estas surgem como estratégia para a monopolização policial – especialmente policial militar – do pensamento sobre lei e ordem, e como concorrência ao desenvolvimento de um campo organizacional sobre crime, polícia e justiça no Brasil a partir das ciências humanas e sociais nos últimos quarenta anos. Esse projeto reforça, junto aos policiais militares em formação, a disposição ideológica de enfrentamento do conhecimento crítico que retroalimenta, nas polícias militares, a grande autonomia operacional, o forte insulamento institucional e a baixa transparência em relação a protocolos e mecanismos internos de supervisão. Contra tentativas de radicalização ideológica, será preciso reforçar que, em uma comunidade científica, resultados de pesquisas podem ser problematizados em suas limitações com contra-argumentos baseados em evidências. É necessário que o campo da segurança pública continue sendo construído de forma democrática e aberta, em diálogo com diferentes grupos da sociedade civil. A sociedade e seus cidadãos não são objetos passivos das polícias. Eles são a origem da legitimidade dos modelos de policiamento, que não se resumem apenas a aspectos técnicos e operacionais. Eles são fruto de opções políticas e estão sujeitos ao escrutínio público.
Palavras-chave:
Ciências policiais; Ciências sociais; Polícias Militares; Segurança pública; guerra cultural
Abstract
This paper aims to analyse the incorporation and legitimation of Police Science in Brazil. It will be argued that Police Science emerges as a strategy for the monopolization of knowledge about the work of the police - especially the military police - in the maintenance of law and order and as competition for the development of a organizational field of studies on crime, police and justice in Brazil from the human and social sciences in the last forty years. This project reinforces among military police officers in training, the ideological disposition to confront critical knowledge, which feeds back into the military police the great operational autonomy, the strong institutional isolation and the low accountability. Against attempts at ideological radicalization, it will be necessary to reinforce that, in a scientific community, research results can be problematized in their limitations through evidence-based counter-arguments. The field of public security must continue to be built democratically and openly, in dialogue with different groups in civil society. Society and its citizens are not passive objects of the police. They are the origin of the legitimacy of policing models, which are not limited only to technical and operational aspects. They are the fruit of political choices and are subject to public scrutiny.
Keywords:
Police Science; Social Science; Military Police; Public Security; Cultural Wars
Introdução
Segurança pública é um conceito perpassado por disputas típicas de um campo empírico e organizacional que estrutura instituições e relações sociais em torno da forma como o Estado administra ordem e conflitos sociais (Costa e Lima, 2014COSTA, Arthur T. & LIMA, Renato Sérgio de. (2014), “Segurança pública”. In: LIMA, Renato Sérgio de, RATTON, José L. & AZEVEDO, Rodrigo G. (orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. 1ª edição, São Paulo, Contexto.). Não à toa, seus sentidos, alcance e acepções são palco de batalhas narrativas e/ou reconfigurações contínuas ante os movimentos mais amplos da relação Estado e sociedade e das representações sociais que as informam. Em meio a esse processo, são travadas fortes disputas de saberes em torno da legitimidade da nomeação do que pode ou não fazer parte de suas fronteiras, e de quem tem ou não a legitimidade do saber científico acerca dos principais temas associados ao campo. Estas disputas vão mostrar
uma complexa batalha epistemológica entre diferentes teorias do conhecimento e que, mais do que apenas delimitar as fronteiras do campo […] revelam uma disputa ontológica, na qual diferentes abordagens e leituras tentam delimitar qual é o objeto legítimo de estudos – violência, direitos humanos e segurança pública [polícias, punição], ou as causas estruturais da violência e da desigualdade. Há, ainda, uma disputa discursiva acerca de quais são as regras que regulamentam os discursos que podem receber o status de científico. E, por fim, há uma disputa em torno do reconhecimento de quem são os sujeitos que podem proferir esses discursos científicos e qual o estatuto daqueles sobre quem se fala. (Lima e Azevedo, 2015LIMA, Renato Sérgio de & AZEVEDO, Rodrigo Ghiringuelli de. (2015), “O campo minado e translúcido da segurança pública no Brasil”. Sistema Penal & Violência, 7, 2: 121-125. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/22676/13923, acesso em 09/08/202123/12/2020.
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Se concentrarmos nosso olhar nas disputas acadêmicas, é possível localizar sua origem histórica na forma como se desenvolveu o campo dos estudos sobre crime, polícia e justiça no Brasil desde os anos 1970. Tendo nas preocupações criminológicas de juristas ligados ao direito e ao processo penal seu ponto de partida, ele ganhou corpo e centralidade política e institucional por intermédio de uma rica vertente de estudos empíricos sobre os temas tradicionais da criminologia,1
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Sobre a emergência e a evolução da criminologia no Brasil, ver Alvarez (2002); Lopes (2009); Pradal (2013); e Vasconcelos (2014).
mas conduzidos agora por pesquisadores da sociologia, da antropologia, da ciência política e da economia, entre outras disciplinas (Lima e Azevedo, 2015LIMA, Renato Sérgio de & AZEVEDO, Rodrigo Ghiringuelli de. (2015), “O campo minado e translúcido da segurança pública no Brasil”. Sistema Penal & Violência, 7, 2: 121-125. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/22676/13923, acesso em 09/08/202123/12/2020.
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; Vasconcelos, 2014VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2014), Esboço de uma sociologia política das ciências sociais contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da segurança pública e o debate criminológico no Brasil. Tese de doutoramento. Faculdade de Filososofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.; 2017VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2017), “As ciências sociais brasileiras e a formação do -campo da segurança pública”. Revista Brasileira de Sociologia, 5: 33-58.).
Elementos como a diversidade, a multiplicidade e a complexidade que permeiam as relações sociais do país (Soares, 2006SOARES, Luiz Eduardo. (2006), “Segurança pública: presente e futuro”. Estudos Avançados, 20, 56: 91-106. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142006000100008&script=sci_arttext&tlng=pt, acesso em 09/08/2021.
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) e as desigualdades sociais e suas repercussões nas culturas juvenis (Zaluar, 1985ZALUAR, Alba. (1985), A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 1ª ed., São Paulo, Brasiliense.) e na estruturação de mercados ilícitos (Misse, 2006MISSE, Michel (2006), Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro, Lumen Juris.) acabam sendo foco dos estudos na área de segurança pública, permitindo sua pesquisa a partir de diferentes métodos e objetos.2
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Prova dessa pluralidade é a descentralização da pauta de revistas que abordam a segurança pública, abrangendo de contabilidade e turismo a direito e engenharias (Pacífico e Lancelotti, 2020).
Assim, foram desenvolvidos um conjunto de estudos que analisam os desafios, para as políticas públicas de segurança, diante do crescimento da criminalidade violenta e do fortalecimento de coletivos criminais organizados, e que consideram suas relações com falhas no fluxo da justiça criminal e das políticas penitenciárias, com a segregação urbana e com códigos culturais e táticas locais de negociação da lei e da ordem.3
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Para uma apreensão geral dos autores e temas, convém a leitura da coletânea Crime, justiça e segurança pública (Lima, Ratton e Azevedo, 2014) e do número especial do Boletim de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB (Ratton, 2017).
A segurança pública passou, então, a ser estudada não apenas por suas condicionalidades jurídicas, importantes, e em sua ligação com os direitos humanos (Adorno, 1996ADORNO, Sérgio. (1996), A gestão urbana do medo e da onsegurança: violência, crime e justiça penal na sociedade brasileira contemporânea. Tese de livre docência, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.), mas também a partir de sua realidade e possibilidades (Soares, 2006SOARES, Luiz Eduardo. (2006), “Segurança pública: presente e futuro”. Estudos Avançados, 20, 56: 91-106. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142006000100008&script=sci_arttext&tlng=pt, acesso em 09/08/2021.
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, 2007SOARES, Luiz Eduardo. (2007), “A política nacional de segurança pública: histórico, dilemas e perspectivas”. Estudos Avançados, 21, 61: 77-97. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142007000300006&script=sci_abstract&tlng=pt, acesso em 09/08/2021.
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), de seu fracasso (Zaluar, 2007ZALUAR, Alba. (2007). “Democratização inacabada: fracasso da segurança pública”. Estudos Avançados, 21, 61: 31-49. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142007000300003&script=sci_arttext, acesso em 09/08/2021.
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), a partir de suas relações com polícias e comunidades (Caldeira, 2011CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. (2011). Cidades de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. 3ª edição, São Paulo, Editora 34.; Zaluar, 1985ZALUAR, Alba. (1985), A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 1ª ed., São Paulo, Brasiliense.).
Por ter sua história fundada, em larga medida, na violência e na dominação de grupos hegemônicos sobre grupos subalternizados, o Brasil constrói a pauta da segurança pública dentro de uma lógica reacionista, e não preditiva; assim, a punição de um grupo específico de pessoas é percebida como solução pela parcela dominante da sociedade (Lima, 2019LIMA, Renato Sérgio de. (2019), “Segurança pública como simulacro de democracia no Brasil”. Estudos Avançados, 33, 96: 53–68. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ea/v33n96/0103-4014-ea-33-96-53.pdf, acesso em 09/08/2021.
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; Lima e Azevedo, 2015LIMA, Renato Sérgio de & AZEVEDO, Rodrigo Ghiringuelli de. (2015), “O campo minado e translúcido da segurança pública no Brasil”. Sistema Penal & Violência, 7, 2: 121-125. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/22676/13923, acesso em 09/08/202123/12/2020.
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). Atualmente, portanto, os estudos na área de segurança pública no Brasil se justificam por motivos relacionados à democratização e à modernização do Estado, assim como ao cenário político e social e à dinâmica criminal que se desenvolve a partir do final dos anos 1980 (Blanco, 2000BLANCO, Antonio Carlos Carballo. (2000), “Sistemas e funções de segurança pública. Fórum de debates criminalidade, violência e segurança pública no Brasil: uma discussão sobre as bases de dados e questões metodológicas”. In: CERQUEIRA, D.; LEMGRUBER, J. & MUSUMECI, L. (orgs.), 1o Encontro: Conceituação de sistema de justiça criminal...: as bases de dados policiais, Rio de Janeiro, Ipea.; Lima, 2019LIMA, Renato Sérgio de. (2019), “Segurança pública como simulacro de democracia no Brasil”. Estudos Avançados, 33, 96: 53–68. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ea/v33n96/0103-4014-ea-33-96-53.pdf, acesso em 09/08/2021.
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; Lima et al., 2016LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira & MINGARDI, Guaracy. (2016), “Estado, polícias e segurança pública no Brasil”. Revista Direito GV, 12, 1: 49–85. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/rdgv/v12n1/1808-2432-rdgv-12-1-0049.pdf, acesso em 09/08/2021.
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) e chega à eleição de Jair Bolsonaro, em, 2018, com sua plataforma pautada na retórica da violência.
Acompanhando esse processo, é possível discernir a organização concorrente de institutos e associações que buscam fundamentar uma proposta de ciência policial, de maneira a reivindicar o monopólio policial do ensino, da pesquisa e da discussão sobre segurança pública. Assim, enquanto a universidade pelejava, em grande parte ensimesmada e reforçando suas fricções internas e disciplinares,4 4 Estas disputas envolvem a própria definição do campo, a partir da qual se instituem e se impõem as visões hegemônicas a respeito dos objetos e métodos prioritários que conformarão o debate científico e público (Bourdieu, 1979; 1983). A própria proliferação de diferentes estudos de “sociologia da sociologia”, em parte concorrentes, advindos da criminologia crítica (Lopes, 2009; Pradal, 2013), e de atores não hegemônicos (Carvalho, 1999; Vasconcelos, 2014; Marques, 2017), hegemônicos (Lima e Ratton, 2011a; Lima, 2011b) ou com pretensão à hegemonia (Campos e Alvarez, 2017) no campo das ciências sociais permitem perceber como a narrativa sobre campo é central para o posicionamento dos atores nas novas conjunturas. um novo fenômeno político foi tomando forma: a tentativa de deslegitimação do saber científico produzido extra corporis às instituições policiais, e a primazia do pertencimento profissional como pressuposto de autoridade para enunciar o conhecimento científico sobre segurança pública e polícias no Brasil.
Segmentos ligados às polícias, em destaque militares, importam para o país e ressignificam a ideia de ciência policial como um contraponto político e instrumental aos estudos empíricos que marcam a área da segurança pública desde os anos 1980. Passam, assim, a disputar o framing do campo, o enquadramento não só político, mas de natureza epistemológica. Há um esforço de deslocamento do eixo gravitacional e de estruturação do campo organizacional e, com isso, velhos e novos antagonismos ressurgem e passam a dar o tom do diálogo. A chave deste deslocamento deixa de ser o diálogo e a cooperação e passa a ser o contraponto e a rotulação ideológica, em um processo de embate e reacomodação de forças. E é esse percurso que pretendemos demonstrar no presente artigo.
Nosso objetivo é mostrar como a discussão em torno das ciências policiais no Brasil é eivada de variáveis outras, que fogem de um debate epistemológico do saber sobre segurança pública; este é mobilizado apenas como recurso tático de ocupação de espaços institucionais, e passa longe de ser uma reflexão sobre os sentidos do conflito social brasileiro. Estamos diante de um efeito perverso, nos termos de Raymond Boudon (1977)BOUDON, Raymond. (1977), “Educational Institutions and Perverse Effects: After 1968”. In: BOUDON, Raymond. The Unintended Consequences of Social Action, Londres, Palgrave Mamillam., da interação entre universidades e polícias: agora, ela faz com que setores alinhados ao projeto de poder de Jair Bolsonaro queiram retirar a legitimidade da narrativa que informa o campo organizacional da segurança pública, construída predominantemente pelos estudos empíricos citados aqui, por intermédio da guerra cultural5 5 A expressão “guerra cultural” é utilizada neste artigo como um conceito “nativo” que expressa o sentido de uma contra-hegemonia desenvolvida pela direita radical nos Estados Unidos e na França. Ela passou a ser utilizada pelos defensores de uma teoria da conspiração que acusa intelectuais de promoverem o "marxismo cultural" como forma de subverter a sociedade ocidental através da erosão dos valores cristãos e do conservadorismo tradicionalista. Sobre o assunto, cf. Prado (2021); Mussi e Bianchi (2020). e da apropriação ideológica do saber científico.
O presente artigo está dividido nesta introdução e em outras quatro partes: na primeira, apresentamos como os estudos empíricos nas ciências sociais brasileiras desde os anos 1970 serviram de base para a construção de um “campo da segurança pública” democrático e aberto a parcerias entre profissionais da área, pesquisadores e movimentos sociais; na segunda, dissertamos sobre os fundamentos epistemológicos e a articulação institucional e política do processo de constituição das ciências policiais no Brasil; na terceira, analisamos uma associação específica, o Instituto Brasileiro de Segurança Pública e, com base em sua revista, sua produção como representativa de um grupo de policiais militares que tem reivindicado crescente protagonismo no debate sobre segurança pública, usando para isso uma tática de guerra cultural que elege como alvo a produção acadêmica das ciências sociais; na última parte, como conclusão, fazemos considerações acerca dos impactos potenciais do projeto político do segmento policial militar analisado, na perspectiva dos desafios postos para a institucionalidade democrática do Brasil atual.
O campo da segurança pública e as ciências policiais no Brasil: fundamentos epistemológicos, articulação institucional e política
A formação de uma ciência não se baseia em um simples “acúmulo de conhecimento sistemático” (Goode e Hatt, 1952GOODE, William J. & HATT, Paul. (1952), Methods in social science, vol. 1. 1ª edição, Nova York, McGray-Hill.). As lutas acadêmicas giram em torno de poder e protagonismo, e têm impactos e implicações em agendas de pesquisas; no reconhecimento dos sujeitos do conhecimento; na criação de cursos de graduação e pós-graduação; em linhas de financiamento; nas métricas de avaliação; e, no limite, nos termos do debate público, sobretudo sobre as raízes e causas da violência e criminalidade. O saber acadêmico foi se conformando ao tempo social e aos constrangimentos/oportunidades derivadas dessa contínua reconfiguração do social e de seus conflitos.
Em termos institucionais, o fortalecimento da vertente de estudos empíricos sobre crime, justiça e segurança pública no Brasil pode, portanto, ser creditado aos diversos espaços de debate criados e à consolidação de importantes redes de pesquisa, que vieram a formar o “campo da segurança pública”, criado por convergências e coalizões de diferentes redes, entre sociedade civil organizada, universidades, profissionais da segurança pública, operadores do direito e políticos profissionais (Vasconcelos, 2014VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2014), Esboço de uma sociologia política das ciências sociais contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da segurança pública e o debate criminológico no Brasil. Tese de doutoramento. Faculdade de Filososofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.; 2017VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2017), “As ciências sociais brasileiras e a formação do -campo da segurança pública”. Revista Brasileira de Sociologia, 5: 33-58.). A formação deste campo se deu a partir de diferentes contextos regionais. A partir da articulação em associações nacionais de pesquisa, e junto aos primeiros governos estaduais eleitos ainda durante a ditadura civil-militar, em 1982, desenvolveram-se agendas de pesquisa articuladas à cena política (Vasconcelos, 2014VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2014), Esboço de uma sociologia política das ciências sociais contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da segurança pública e o debate criminológico no Brasil. Tese de doutoramento. Faculdade de Filososofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.; 2017VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2017), “As ciências sociais brasileiras e a formação do -campo da segurança pública”. Revista Brasileira de Sociologia, 5: 33-58.). A articulação entre pesquisadores se realizou a partir das mudanças na sociedade civil, com a criação de organizações não governamentais, e da abertura de espaços de participação no campo burocrático (Zaluar, 1999ZALUAR, Alba. (1999), “Violência e crime”. In: MICELI, Sergio (org.), O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), vol. 1: Antropologia. São Paulo, Sumaré/Anpocs.).
Este processo se concretizou em três dimensões: a) a nacionalização da área de pesquisa, através da permeabilidade das associações de pesquisadores (ABA, SBS, ABCP e Anpocs) às agendas político-intelectuais da reforma da segurança pública; b) a consolidação de redes de pesquisa, com o Programa Nacional de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex), que favorece o trânsito de pesquisadores de outras áreas temáticas, como conflitos rurais, para o estudo da segurança pública; c) a conjugação de interesses de pesquisadores com a agenda da Fundação Ford, que se volta com mais ênfase à segurança pública, tendo como marcos a criação, em 2006, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), voltado à circulação da produção acadêmica, à qualificação de dados e à organização de reuniões nacionais entre pesquisadores e atores da justiça criminal e da segurança pública; o simpósio Experiências inovadoras e políticas de segurança pública, em 1998, e o 1° Concurso de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública, em 2004, parcerias entre a Anpocs e a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp).
Estas articulações se dirigiram à formulação de um “novo paradigma da segurança pública”, sintetizado para muitos na noção de “segurança cidadã”. A 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), em 2009, foi tida como uma janela de oportunidade para promover e mensurar a adesão a este novo paradigma (Lima, 2011bLIMA, Renato Sérgio de. (2011b), Entre palavras e números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo, Alameda.). A partir da Conseg, redes de pesquisadores e policiais foram fortalecidas, no sentido de favorecer a democratização da segurança pública por meio da incorporação de agendas por grupos profissionais dentro das polícias, cuja adesão estaria atrelada a expectativas de ganho de prestígio social e melhores condições de trabalho (Lima, 2011bLIMA, Renato Sérgio de. (2011b), Entre palavras e números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo, Alameda.). Estas mobilizações resultaram em convergências em torno de pautas para um conjunto de reformas do modelo de segurança pública. Tais reformas desafiam interesses de superiores hierárquicos, defensores de um modelo de atuação militarizado e de fundamentos epistemológicos inspirados em uma “criminologia positivista”.
Com base nestes princípios projetou-se uma estrutura de governança, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP),6 6 Uma versão simplificada do SUSP foi aprovada em 2018 pelo Congresso Nacional. cujas diretrizes principais seriam a rearticulação entre as esferas federativas, a reorganização dos sistemas de gestão de informações criminais e a articulação de políticas sociais e de repressão, todos associados a cursos de especialização em segurança pública consolidados na Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp). A montagem de arquitetura institucional envolveu uma rede de sessenta atores, em especial cientistas sociais e advogados, advindos de organizações de interface entre sociedade civil e centros de pesquisa universitários.7 7 Sem pretensão de exaurir o tema, pode-se citar, entre os principais centros de pesquisa envolvidos, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP); o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG); o Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC); o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas de Segurança (NEPS/UFPE); o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU-UFRJ); o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (UFF); o Laboratório de Análises da Violência (LAV-UERJ); e o Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM). Entre as ONGs mais importantes, figuram a Fundação João Pinheiro (MG), o Instituto Sou da Paz, a Viva Rio e o Instituto Fernand Braudel. Essas iniciativas se organizam em redes, formando Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), ligados ao Ministério de Ciência e Tecnologia, ou Redes de Observatórios de Segurança Pública.
A 1ª Conseg, os cursos da Renaesp, os novos bacharelados em segurança pública e as ligações entre a rede de centros de pesquisa dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologias e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública configurariam, assim, o atual campo da segurança pública no período democrático. Fundado em torno da agenda de direitos humanos formulada nas décadas de 1970 e 1980, ele se articula em prol da construção de políticas de segurança pública de longo prazo8 8 Uma das principais fontes para a compreensão desse processo é o livro As ciências sociais e os pioneiros no estudo do crime, da violência e dos direitos humanos no Brasil (Lima e Ratton, 2011a). (Vasconcelos, 2014VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2014), Esboço de uma sociologia política das ciências sociais contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da segurança pública e o debate criminológico no Brasil. Tese de doutoramento. Faculdade de Filososofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.; 2017VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2017), “As ciências sociais brasileiras e a formação do -campo da segurança pública”. Revista Brasileira de Sociologia, 5: 33-58.).
Em relação a um trajeto mais explícito de pesquisadores como atores políticos, sublinhamos o caso de Paulo Sérgio Pinheiro, no campo dos direitos humanos, e o de Luiz Eduardo Soares, no campo da segurança pública. Assim, uma das novidades, sobretudo a partir dos anos 2000, foi a reivindicação mais frequente, por parte de uma nova geração de cientistas sociais, por expertise na gerência de cargos de execução em governos (Lima, 2009LIMA, Renato Sérgio de (2009). “Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000)”. Relatório de pesquisa Fapesp/Fórum Brasileiro de Segurança Pública.), o que iria de encontro à concepção mais consensual, na universidade, sobre os limites entre os papeis do intelectual e do gestor público. Estas tendências já se anunciariam entre outros membros da geração anterior,9 9 Julita Lemgruber, na interseção entre a gestão pública e as redes internacionais de ativismo sobre a questão carcerária; Alba Zaluar, assessora especial de Segurança Participativa da Prefeitura do Rio de Janeiro (2001-2002); Roberto Kant de Lima, consultor de planos de segurança pública municipais no Rio de Janeiro; César Barreira, diretor da Academia de Polícia do Ceará (2011-2012); e José Vicente Tavares dos Santos, Luis Flávio Sapori, secretário-adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais (2003-2007), e Claudio Beato Filho, formuladores dos programas de governo em segurança pública, para as eleições presidenciais, do PT (2010) e do PSDB (2014). mas seria necessário ainda acrescentar pesquisadores de segunda e terceira geração, que iniciam uma relação de maior proximidade com o universo burocrático e político, a exemplo de Paulo Mesquita Neto, no Fórum Metropolitano de Segurança Pública em São Paulo; Cláudio Beato Filho e Luiz Flávio Sapori, junto à UFMG e à Fundação João Pinheiro, em Minas Gerais; Renato Sérgio de Lima, no Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Arthur Trindade e José Luiz Ratton na UFPE e no programa Pacto pela Vida, em Pernambuco; Jacqueline Muniz, Barbara Soares e Ana Paula Miranda, que aturam junto à ONG Viva Rio; a Luiz Eduardo Soares, na subscretaria de Segurança Pública durante o governo Anthony Garotinho (PDT), no Rio de Janeiro, em 1999, entre outros(as) (Vasconcelos, 2014VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2014), Esboço de uma sociologia política das ciências sociais contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da segurança pública e o debate criminológico no Brasil. Tese de doutoramento. Faculdade de Filososofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.; 2017VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2017), “As ciências sociais brasileiras e a formação do -campo da segurança pública”. Revista Brasileira de Sociologia, 5: 33-58.).
Esta tendência tem como matriz inicial os estudos de Antônio Luiz Paixão e Edmundo Campos Coelho, trabalhados agora no sentido de um escalonamento de possibilidades de reforma policial segundo níveis de dificuldade política e de impacto de transformação (Mesquita Neto, 2011; Sapori, 2007SAPORI, Luis Flávio. (2007), Segurança pública no Brasil: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro, FGV.; Lima, 2009LIMA, Renato Sérgio de (2009). “Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000)”. Relatório de pesquisa Fapesp/Fórum Brasileiro de Segurança Pública.; Beato Filho, 2012). A omissão ou incompetência de governos democráticos, a prioridade do combate ao poder das Forças Armadas após a transição política, ou ainda a ausência de um paradigma alternativo que instrumentalizasse os decision makers teriam favorecido uma “relativa disjunção” entre o conhecimento científico produzido nas faculdades de ciências sociais e a exigência de um know-how para executar os planos governamentais. Isso ajudaria a explicar a prevalência de policiais, juízes, advogados, promotores e militares das Forças Armadas no seio das elites decisórias nesse campo de atuação.
O cenário dos anos 2000, ao contrário, seria visto como oportunidade para uma reforma das organizações da segurança pública como meio de superar as instabilidades dos tempos da política, favorecendo a formação de quadros de decision makers, de modo semelhante ao que ocorreu na saúde pública, campo em que a passagem entre academia e gestão é rotineira, ou na economia, quando se tem em vista a criação de expertise necessária à gestão política (Ramos, 2007RAMOS, Silvia (2007), “Respostas brasileiras à violência no campo da segurança pública - os movimentos sociais e as organizações não-governamentais”. Tese de doutoramento em Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.). A atuação de centros e núcleos de pesquisa, portanto, ampliou as possibilidades de reflexão, mas também de interação entre universidade, instituições policiais e poder público (Lima e Azevedo, 2015LIMA, Renato Sérgio de & AZEVEDO, Rodrigo Ghiringuelli de. (2015), “O campo minado e translúcido da segurança pública no Brasil”. Sistema Penal & Violência, 7, 2: 121-125. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/22676/13923, acesso em 09/08/202123/12/2020.
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; Vasconcelos, 2014VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2014), Esboço de uma sociologia política das ciências sociais contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da segurança pública e o debate criminológico no Brasil. Tese de doutoramento. Faculdade de Filososofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo., 2017VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2017), “As ciências sociais brasileiras e a formação do -campo da segurança pública”. Revista Brasileira de Sociologia, 5: 33-58.).
Ao mesmo tempo, foram muitos os exemplos de policiais-pesquisadores que desenvolveram estudos críticos e reformistas, aplicados à busca de eficácia e de eficiência na segurança pública, como Jorge da Silva (Silva, 1990SILVA, Jorge da. Controle da criminalidade e segurança pública. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1990.), Guaracy Mingardi (1992MINGARDI, Guaracy (1992), Tiras, gansos e trutas. São Paulo, Scritta.; 1998MINGARDI, Guaracy (1998), O Estado e o crime organizado. São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.) e José Vicente da Silva Filho (Silva Filho, 2002), que atuaram com protagonismo em iniciativas de produção de conhecimento e de intervenção, incentivando a universidade e as polícias a romper resistências mútuas. Nesse sentido, merece destaque especial o papel do coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira10 10 Com formação em psicologia e filosofia, Cerqueira foi comandante da PM do Rio de Janeiro nos dois mandatos do governador Leonel Brizola (1983-87; 1991-1995) e vice-presidente do Instituto Carioca de Criminologia (Leal et al., 2010). na reflexão sobre temas como mensuração criminal (Cerqueira, 1985CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. (1985), Para uma metodologia do estudo da criminalidade e da violência. Rio de Janeiro, Secretaria da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.), democracia e reforma da a segurança pública (Cerqueira, 1994CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. (1994), “A polícia em uma sociedade democrática”. Polícia, violência e direitos humanos, v. 20. Rio de Janeiro, Freitas Bastos.; 1998bCERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. (1998b), “Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 22: 139-181.; 2001a), militarização da segurança pública (Cerqueira, 1996CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. (1996), “Remilitarização da segurança pública: a operação Rio”. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, 1, 1: 141-169.), policiamento comunitário (Cerqueira,1998aCERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. (1998a), Do patrulhamento ao policiamento comunitário. Rio de Janeiro, Freitas Bastos.), direitos humanos (Cerqueira e Dornelles, 1998cCERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth & DORNELLES, João Ricardo W. (1998c), A polícia e os direitos humanos. Rio de Janeiro, Freitas Bastos.), corrupção policial (Cerqueira, 1997CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. (1997), “A criminalidade da polícia”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 19: 243-252.), gênero (Cerqueira, Barbosa e Angelo, 2001bCERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth; BARBOSA, Sérgio Antunes & ANGELO, Ubiratan de Oliveira. (2001b), Polícia e gênero, Rio de Janeiro, Freitas Bastos.) e questão racial (Cerqueira,’2010’). Em diálogo com a produção acadêmica nacional e internacional das ciências sociais, do direito e da história, sua produção foi pioneira como ponto de conexão entre redes de policiais, cientistas sociais e criminólogos críticos.
Mas, neste movimento, ao trazer os operadores da segurança da pública, em especial policiais, para o primeiro plano de análise, esta nova vertente os converteu em sujeitos de fala com os quais se pode discutir, mas não sem antes potencializar as fricções de uma tensa relação entre conhecimento científico e suas implicações práticas. Ainda mais quando permeada por variáveis de cunho ideológico e culturas organizacionais profundamente opacas e repelentes à crítica externa e ao contraditório. Desse modo, as principais coalizões que sustentaram essa construção aberta e democrática do campo da segurança pública, no decorrer dos governos FHC e Lula (Souza, 2015SOUZA, Robson S. R. (2015), Quem comanda a segurança pública no Brasil: atores, crenças e coalizões que dominam a política nacional de segurança pública. Belo Horizonte, Letramento.), começam a enfrentar maior concorrência a partir da crise do governo Dilma Roussef.
Ao mesmo tempo em que se mantém articulado às universidades e aos movimentos sociais, o FBSP passa a ter uma política de impacto midiático mais amplo, de forma a servir de contraponto ao momento. Locus estratégico de interlocução entre centros de pesquisa universitários e Senasp, na agenda das pesquisas aplicadas em segurança pública e em iniciativas de reformulação do ensino policial, o FBSP articulou-se também com governos estaduais na construção de planos de governo, como o Ceará Pacífico; também investiu em forte estratégia de ocupação de espaços de comunicação e divulgação na imprensa, como o Monitor da Violência do Portal G1. É em grande parte como reação a este protagonismo que se organizaram reações relacionadas às ciências policiais, considerando-se a busca pelo controle da formação dos profissionais da segurança pública e do conhecimento autorizado sobre o assunto.
Assim, desenvolve-se a concorrência entre três propostas principais em torno da existência ou não das ciências policiais e a da hegemonia e autoridade da ciência e do ensino sobre segurança pública. A primeira, centrada na Polícia Federal, promove um modelo de profissional qualificado cientificamente e não militarista, representado na Revista Brasileira de Ciências Policiais. A segunda, liderada pelas academias de Polícia Militar, sob orientação da associação entre Segurança Pública e Defesa Nacional, expresso no Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), e o Fórum Brasileiro de Ciências Policiais. E a terceira, em torno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, associado à reforma democratizante das polícias e vinculado aos centros universitários de pesquisa e aos movimentos críticos e propositivos da sociedade civil.
Sintomática deste aspecto concorrencial, a institucionalização das ciências policiais surge, a partir dos seus principais proponentes, como consequência e como reação aos estudos das ciências sociais. Como consequência, grande parte dos defensores da autonomização do campo de saber centrado na segurança pública, rumo à institucionalização de uma ciência policial possuem, além do vínculo com a Polícia Militar, inserção ou formação nesse campo, que se estruturou incentivando a problematização da formação policial vigente no país e o engajamento de policiais como pesquisadores e intelectuais. Como reação organizada, é uma forma de reapropriação do monopólio sobre o conhecimento sobre segurança pública, da prática policial e da formação de seus profissionais a partir da aliança com policiais-pesquisadores. Esta reação é em grande parte radicalizada ideologicamente, e ancorada em repertório argumentativo e tático similar aos das novas coalizões de poder do governo Bolsonaro. Embora não envolva todos os atores ligados às ciências policiais, esta radicalização ideológica neoconservadora dos atores da segurança pública tem potencial para servir de insumo a uma ciência (corporativa) de Estado.
Um dos elementos estruturantes da reivindicação mobilizada por atores da área de segurança pública que visam institucionalizar as ciências policiais no Brasil envolve a construção de um projeto acadêmico do que seria uma ciência complexa, com métodos próprios, e que trouxesse os operadores para o primeiro plano do debate. Estes atores formariam uma comunidade acadêmica que teria se estruturado para “finalmente” suprir lacunas de eficácia e eficiência derivadas pelo menos de três fatores interrelacionados:
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1
Falta de um conhecimento científico apropriado e rigoroso sobre ser e fazer polícia, e de uma efetiva conexão deste conhecimento com a solução dos problemas da segurança pública e defesa nacional.
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Predominância de teses, estudos e pesquisas contaminadas por ideologias de “esquerda” e opiniões de pesquisadores associados a projetos políticos de transformação radical da sociedade.
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Ausência de policiais como atores centrais para o trabalho de fundamentação teórica, metodológica e pedagógica na formação de quadros e comunicação com a sociedade.
Nesse sentido, um importante trunfo foi conquistado em 2019: o reconhecimento, pela Câmara de Educação Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE), através do Parecer nº 147/2017 de 04 de abril de 2017 (Brasil, 2017BRASIL. (2017), Inserção da defesa no rol das ciências estudadas no Brasil. Conselho Nacional de Educação, Ministério da Educação. Disponível em http://portal.mec.gov.br/docman/maio-2017-pdf/65331-pces147-17-pdf/file, acesso em 09/08/2021.
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), das ciências policiais como área de saber. Conforme o parecer, “a inserção das Ciências Policiais no rol das ciências, embora seja uma medida normativa”, permitiria “ampliar o grau de interdisciplinaridade”, “ampliar os resultados práticos em relação à segurança pública” e mobilizar a intelectualidade em temas vitais à “segurança nacional”. Além disso, ofereceria a oportunidade, “com perspectiva de aprovação pela Capes”, da organização de “programas formais de estudos que poderão ser ofertados pelas IES que se interessarem”. Ou seja, correlata a esta aprovação estaria, ainda, “o início da etapa” de superação “da distinção entre os sistemas de ensino civil e militar”, através da equivalência de estudos.11
11
O parecer lavrado, por sua vez, alinha-se a iniciativas anteriores: a aprovação das ciências militares, em 2002; a previsão do Plano Nacional de Pós-Graduação (2011-2020) para investimento na formação de “especialistas civis” no interior da Estratégia Nacional de Defesa (a vinculação entre ciências policiais e defesa é tão próxima que, por vezes, são termos intercambiáveis para a definição da área de estudo aprovada); a aprovação da Lei Estadual Complementar 1.036, de 11 de janeiro de 2008, que institui o Sistema de Ensino da Polícia Militar do Estado de São Paulo; e o reconhecimento do diploma de bacharel, mestre e doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública conferidos pela Academia da Polícia Militar do Barro Branco.
Atualmente há seis instituições de ensino superior credenciadas pelo MEC e que ministram cursos de especialização nesta temática, no Distrito Federal, em Goiás, em Mato Grosso do Sul e em São Paulo (Gomes, 2018GOMES, Rodrigo Carneiro (2018), “A realidade das ciências policiais aplicadas no âmbito da Polícia Federal”. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-06/realidade-ciencias-policiais-aplicadasno-ambito-pf, acesso em 09/08/2021.
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).
Esta mobilização ocorre sob a escusa de uma suposta defasagem da realidade brasileira em relação a países como Espanha, Estados Unidos, Japão, Inglaterra, Chile, Angola, México, Portugal e Peru, que já teriam uma comunidade acadêmica estruturada nesta área, com seus instrumentos de associação, expressão e coordenação, e com expertise reconhecida na formação de quadros para a pesquisa e para a administração pública em diferentes modalidades de policiamento (Pereira, 2010PEREIRA, Eliomar da Silva. (2010), “Editorial – O estudo da polícia”. Revista Brasileira de Ciências Policiais, 10, 1: 9.). Nota-se, entretanto, ao se considerar a produção da Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública e da Revista Brasileira de Ciências Policiais, uma diferença entre escritos que derivam de experiências internacionais tidas como referência para as ciências policiais e textos dos que, no Brasil, percebem-se como seus proponentes intelectuais, institucionais e políticos.
A primeira revista apressa-se em afirmar a existência de uma ciência policial no Brasil, que nem sempre delimita uma separação entre militarismo e profissão policial e, em alguns casos, afirma concepções ideológicas no mesmo momento em que defende uma suposta neutralidade valorativa ou isenção ideológica. A segunda, ao contrário, revela uma precaução quanto a afirmar a existência de uma ciência policial já amadurecida e autônoma, ressalta a colaboração existente entre pesquisadores-policiais e pesquisadores universitários e destaca a associação de profissionalização policial, separação entre exército e polícia e afirmação da democracia e dos direitos humanos.
Isto demonstra que não seria prudente “jogar o bebê fora com a água do banho”, entendendo como negativo todo e qualquer esforço de reflexão em torno das ciências policiais, ou se assumirá o risco de não dialogar com um conjunto de iniciativas de reflexão de policiais-pesquisadores cuja formação recebeu contribuições justamente da abertura de relações entre segurança pública, universidades e movimentos sociais.
Embora a produção da Revista Brasileira de Ciências Policiais não seja o núcleo do presente artigo, há que se pontuar algumas ressalvas, tendo em vista o risco de uma convergência das duas iniciativas para um sentido comum, pautado pelo corporativismo e pela guerra cultural. Embora reivindique a legitimidade científica para a construção de um conhecimento a partir dos próprios policiais, a revista ainda apresenta certa flexibilidade em relação à convivência e ao diálogo entre polícia e comunidade acadêmica em geral. As ciências policiais não deveriam ser confundidas com todo e qualquer conhecimento policial, e não são apresentadas como algo já estabelecido, mas como projeto a construir. Fundamentando-se em Egon Bittner (2003)BITTNER, Egon. (2003), Aspectos do trabalho policial. Série Polícia e Sociedade, 8ª edição, São Paulo, Edusp., pretende-se, através do fomento a programas de pesquisa e de instrução, modificar a concepção de policiamento, “do policiamento do modelo do homem de armas para o modelo do profissional treinado, cujo treinamento apresenta algum relacionamento com o conhecimento científico”. Para tanto, realiza-se uma distinção, reconhecida como incomum na “doutrina policial”, entre uma “policiologia”, que “concerne ao estudo sobre a polícia, esta como objeto de estudo”, e a “ciência policial”, “que decorre do estudo pela polícia, esta como sujeito do estudo” (Pereira, 2010PEREIRA, Eliomar da Silva. (2010), “Editorial – O estudo da polícia”. Revista Brasileira de Ciências Policiais, 10, 1: 9., pp. 10-11).
Um marco importante nesse sentido foi a realização, em julho de 2010, do 1º Seminário Internacional sobre Ciências Policiais e Políticas Criminais, reunindo pesquisadores brasileiros e de outros países, como Portugal, Espanha e Colômbia, em torno de temas como atividade policial como ciência, o aporte de outras ciências às ciências policiais, o papel da polícia no Estado democrático de direito, desafios e perspectivas da investigação criminal no Brasil, a crise na legitimidade do sistema penal e atuação da polícia e política criminal no Estado de direito do século 21. O segundo número da revista reúne, principalmente, contribuições ao seminário. É de interesse analisar algumas destas reflexões, de cunho mais epistemológico e programático.
“Actividade policial como ciência”, de Germano Marques da Silva (2010)SILVA, Germano Marques da. (2010), “Actividade policial como ciência”. Revista Brasileira de Ciências Policiais, 1, 2: 73-77. Disponível em https://periodicos.pf.gov.br/index.php/RBCP/article/view/44, acesso em 09/08/2021.
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,12
12
Professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPI), antiga Escola Superior de Polícia de Portugal.
por exemplo, é a transcrição de palestra que integrou as atividades da oficina homônima. Importa ressaltar a surpresa inicial do palestrante diante do tema da oficina. Preparado para abordar a relação entre polícia e direitos fundamentais, ao deparar-se com o tema, afirmou ter muitas dúvidas sobre a atividade policial ser, já, uma ciência:
É que entendo que é cedo ainda para se falar em autonomia das ciências policiais. O oficial de polícia tem de ser quase enciclopédico, tem de ser culto, tantas e tão diversas são as solicitações a que tem de acudir. Tem de estudar Direito, Sociologia, Psicologia, Matemática e Física; tem de dominar línguas, técnicas policiais de prevenção e repressão, tem de conhecer as ciências auxiliares da investigação criminal e tanto mais. Não será certamente a multiplicidade de matérias que constitui o objeto específico de uma nova ciência. Creio é que as várias ciências que compõem o leque de formação necessária aos Oficiais de Polícia têm de ser tratadas na perspectiva da sua aplicação prática. (Silva, 2010SILVA, Germano Marques da. (2010), “Actividade policial como ciência”. Revista Brasileira de Ciências Policiais, 1, 2: 73-77. Disponível em https://periodicos.pf.gov.br/index.php/RBCP/article/view/44, acesso em 09/08/2021.
https://periodicos.pf.gov.br/index.php/R... , p. 76)
As conclusões precavidas e não muito otimistas do autor se coadunam com a longa e complexa história de desenvolvimento das ciências policiais em países europeus, como Portugal, Alemanha, França e Espanha, e da América Latina, como México, Colômbia, Argentina e Peru. O texto “Avances de la Ciencia de Policía en América Latina”, de Jairo de Enrique Suárez Alvarez (2010)ALVAREZ, Jairo Enrique Suárez (2010), “Avances de la ciencia de policía en América Latina:. Revista Brasileira de Ciências Policiais, 1, 1: 21-80.,13 13 Pesquisador do Centro de Pensamiento Policial, na Colômbia. é esclarecedor nesse sentido. Ele aborda de maneira bastante pormenorizada a história da ciência policial: como ela surgiu na Europa e foi adaptada na América Latina até converter-se em uma “nova ciência da polícia”. O seu diagnóstico é que há um desconhecimento desta nova ciência na América Latina. Reaparece aqui, novamente, a distinção entre os “estudos sobre polícia” e “trabalhos explícitos sobre ciência da polícia”, como a demarcar um ponto de viragem visto como necessário entre as perspectivas externa e interna à polícia e o conhecimento sobre o desempenho desse ofício. Contudo, na reconstituição das obras, o autor não inclui apenas pesquisadores-policiais, embora este seja um recorte preferencial na demarcação das origens das diferentes ciências policiais.
Para Alvarez (2010)ALVAREZ, Jairo Enrique Suárez (2010), “Avances de la ciencia de policía en América Latina:. Revista Brasileira de Ciências Policiais, 1, 1: 21-80., sinal da incontornável imbricação entre policiais e não policiais na construção de conhecimento e em iniciativas de reforma da segurança pública é a indicação de compilações e ensaios sobre polícia, democracia e segurança cidadã, a exemplo de “Justicia en la calle: ensayos sobre la policía en América Latina” (Waldmann, 1996WALDMANN, P. (1996), Justicia en la calle: Ensayos sobre la policía en América Latina. Medellín, Biblioteca Jurídica Diké.), que ressalta a necessidade de reforma das instituições policiais, de maneira similar ao contexto brasileiro de construção de uma área de estudos sobre crime, polícia e justiça, ao longo dos últimos quarenta anos, em diálogo com pesquisadores-policiais, mas cujo centro não foram as academias de polícia e seus programas de ensino, mas organizações de pesquisa universitárias das ciências humanas e sociais, e também da área crítica do direito.
Mas a ênfase principal, como expressa Manuel Monteiro Guedes Valente14 14 Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, Portugal. (Valente, 2012VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. (2012), “A ciência policial na sociedade tardo-moderna como fundamento do Estado de direito democrático”. Revista Brasileira de Ciências Policiais, 2, 2: 47-63.) em “A ciência policial na sociedade tardo-moderna como fundamento do Estado de direito democrático”, é a organização de instâncias próprias às polícias para a criação, o ensino e a divulgação de conhecimento sobre a atividade policial. A este respeito o autor cita o curso de mestrado em ciências policiais português e “a procura incessante, europeia e lusófona, de um curso de doutoramento em ciências policiais”. O projeto estaria em curso no Brasil, e os primeiros passos seriam a fundação da Revista Brasileira de Ciências Policiais, o suporte da Fundação Polícia Federal de Apoio ao Ensino e à Pesquisa, que subsidia a revista, e a criação de cursos de pós-graduação, a exemplo de uma especialização em ciências policiais e investigação criminal.
Embora não tenha sido publicada pela revista, afina-se a esta perspectiva a contribuição de Jacintho Del Vecchio Junior (Junior, s/d),15 15 Capitão da Polícia Militar, bacharel em filosofia, mestre e doutor em filosofia da ciência pela Universidade de São Paulo, é professor da APMBB, do CAES e membro colaborador da Associação Filosófica Scientiae Studia. “Ciências policiais, autonomia científica e legitimidade acadêmica” (s/d). Uma das primeiras elaborações sobre o projeto da área no Brasil, o artigo suscita algumas problematizações. O autor busca responder ao questionamento sobre a viabilidade desta “setorização do saber” a partir de uma decisão legal: “Faz sentido ‘criar uma ciência por decreto’?”. Não havendo como concordar com uma resposta positiva – o que seria ver no projeto apenas uma intencionalidade política e corporativa, como ciência à serviço de interesses –, procuram-se fundamentos considerando dois pilares da construção de qualquer ciência: o reconhecimento da comunidade acadêmica e a autonomia como saber disciplinar sui generis.
Em relação ao reconhecimento acadêmico, o autor defende que o desconhecimento ou não aceitação da ciência policial hoje pela comunidade acadêmica mais ampla não seria uma questão essencial, já que poderia ser resolvida no longo prazo, pela própria legitimação dos proponentes da ciência. As ciências surgem por processos internos, mas também em resposta a demandas materiais da sociedade. Sendo assim, o reconhecimento acadêmico das ciências policiais se faria processualmente, desde que estivesse fundamentado em uma forma epistemológica e organizacional adequada à natureza do seu saber.
Influenciado pela sociologia da ciência de Shinn e Ragouet (2008)SHINN, Terry & RAGOUET, Pascal. (2008), Controvérsias sobre a ciência – Por uma sociologia transversalista da atividade científica. São Paulo, Editora 34., o autor discrimina dois regimes principais de produção e de difusão científicas: o disciplinar, mais convencional, característico de um campo teórico e de pesquisa original sobre verdades generalizáveis, tendo como consumidores preferenciais estudantes e os próprios pares, em universidades; e o utilitário, mais próximo da ideia de tecnociência, a exemplo das engenharias, em que o conhecimento está endereçado a certa demanda, a uma finalidade prática e concreta. Isto facilitaria a resolução do problema mais complexo da autonomia deste saber como disciplina. Estando mais atreladas ao regime utilitário de produção e difusão científica, as ciências policiais poderiam se legitimar sem maiores contestações epistemológicas. As academias de ensino policial deixariam de ser meras instituições de transmissão e passariam à produção original de conhecimento.
A construção do argumento, embora tenha certo grau de coerência, ainda apresenta sérias fragilidades. Não é de fato convincente, tanto do ponto de vista epistemológico quanto institucional e profissional, tornar equivalentes o ensino técnico-científico e ético do trabalho policial preventivo, repressivo e investigativo, fundado em um regime utilitário de produção da ciência, e uma ciência policial que tem como objetos a própria organização policial e fenômenos sociais ligados ao crime, à violência, ao conflito e à moralidade, cada um deles sujeito a uma complexa gama de abordagens disciplinares – da sociologia, da psicologia, do direito, da história –, com seus diferentes métodos, reunidos em uma mesma formação profissional. Ademais, até o momento não há garantias contra o risco, como o próprio autor ressalta, de uma “ciência tendenciosa, ou pior, serva de interesses que lhe são externos”.
Após toda a discussão apresentada até o momento a respeito do Instituto Brasileiro de Segurança Pública, é patente que o projeto das ciências policiais está interligado a demandas estranhas ao universo da verdade científica. No centro do projeto está o monopólio policial sobre a verdade e a crítica de si mesma, que se tornam o objetivo principal. Uma estratégia de legitimação intelectual, por parte de um grupo de atores interessado na promoção de uma concepção policial da ciência, uma “criminologia de Estado”, que faz tabula rasa do campo de estudos sobre crime, polícia e justiça no país, cujo centro de produção não foram as academias de polícia e seus programas de ensino, mas organizações de pesquisa universitárias das ciências humanas e sociais e da área crítica do direito.
Vemos, portanto, que a questão é menos ontológica e mais política, de espaços mesmos à disposição de representantes de um segmento profissional que tem grande impacto na organização da arquitetura institucional da segurança pública brasileira e no cotidiano da população do país. Entretanto, considerando os propósitos e o espaço aqui disponível, concentramos nossa análise nos textos programáticos e teóricos contidos na Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública, que hoje pode ser considerado o principal think tank não governamental desse segmento, e que julgamos ser o caso mais emblemático da guerra cultural que se trava a partir da construção de uma área de saber por oposição aos estudos empíricos sobre crime, violência e polícia no Brasil – e cujos impactos políticos-institucionais na democracia brasileira são reais e imediatos.
Este aspecto é perceptível quando se aborda a estratégia de polêmica do IBSP, reproduzida também por seu portal, em conjunto com artigos de opinião e análise que tomam como alvo principal estudos realizados pelos protagonistas do FBSP, de maneira a deslegitimar sua qualidade teórico-metodológica e denunciar seus pressupostos políticos.16 16 Ver “‘Bandido bom é bandido morto?...’”, Silva Júnior, 2018a.
O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e sua guerra cultural
O Instituto Brasileiro de Segurança Pública, criado em 2017 e um importante player no jogo de afirmação das ciências policiais, é transparente em demonstrar o caráter de concorrência com iniciativas já estabelecidas no campo da segurança pública. Em sua revista, o artigo “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública: suas origens, perspectivas, missão e aspirações”, de Azor Lopes da Silva Júnior (2018b),17 17 Fundador e presidente do IBSP na gestão 2017-2019, coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, professor universitário de direito, advogado, doutor em sociologia pela UNESP, mestre em direito pela Universidade de Franca (2002-2004), doutor (2008), mestre (2005) e graduado (1982-1984) em ciências policiais de segurança e ordem pública pelo sistema de ensino Militar. serve-nos para compreender seu processo de institucionalização, suas pretensões e sua estratégia discursiva de legitimação. O autor parte de uma premissa: as pesquisas na área de segurança pública “carecem de uma abordagem científica”.
Citando Bicalho; Kastrup e Reishoffer (2012, p.62), defende que proliferam “especialistas” sem a expertise necessária, que observam o problema apenas pela “fresta aberta pela particular área de conhecimento científico, sem que ousem abrir a janela por completo” e sem contestar “verdades absolutas”. A atuação destes “especialistas” em criminalidade, “noção produzida e fortalecida dentro da ordem científica positivista”, deveria ser reavaliada e transformada. Para isso, seria “imprescindível que uma ordem social para os coletivos interessados seja construída com os próprios interessados”. Ou seja: uma discussão “que seja conduzida por profissionais que atuam nas agências de segurança pública”. Para agravar a situação, os profissionais desse setor “pouco produziriam de pensamento científico segundo os padrões e premissas estabelecidos pela academia e pelos órgãos públicos de fomento e regulação da pesquisa no Brasil”. Ocasionalmente, alguns policiais “se lançam nas comunidades acadêmicas como pesquisadores”; mas eles seriam “por vezes, cooptados por correntes ideologicamente inclinadas a um olhar crítico baseado em dogmas” (Silva Jr., 2018b, p.10).
Como iniciativa para solucionar o problema, descreve-se a formação de uma “microcomunidade acadêmica”, composta por 1) atores que ocupam ou já ocuparam cargos de chefia e de autoridade nas corporações das polícias militares; e 2) e, desses primeiros, uma seleção de egressos de programas de doutoramento certificados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O autor justifica esta escolha pela premissa de que a polícia militar ocupa lugar central no complexo modelo de segurança pública brasileiro. Dentro das agências policiais estaduais, aqueles que ocupam cargos de chefia e direção são os atores “legitimados à avaliação dos cenários e adoção de políticas públicas na área de segurança, pelo que são encarregados da interlocução institucional com os demais atores governamentais e da sociedade civil”.
Ao mesmo tempo, o autor busca aplicar a previsão contida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) referente à equivalência de estudos entre os sistemas de ensino militar e civil, para favorecer a inserção do currículo das academias de polícia militares e em seus programas de pós-graduação no interior dos critérios de regulação da CAPES, como instâncias com atribuições de ensino e pesquisa, autonomia universitária e, consequentemente, acesso a recursos. Nisso o autor não é original, e mimetiza o processo correlato ao da inclusão da defesa no rol das ciências estudadas no Brasil. E, na convergência de posições de saber/poder, é a partir dos temas de estudo destas chefias de policiais militares-pesquisadores que seria discutida a viabilidade de criação de uma área de concentração agregando três linhas de pesquisa: 1) Pensamento socionormativo de Segurança Pública; 2) Gestão, tecnologia e comunicação da informação em segurança pública”; e 3) Segurança pública do meio ambiente e da mobilidade (Brasil, 2019BRASIL. (2019), Consulta sobre inclusão das Ciências Policiais no rol das ciências estudadas no Brasil. Conselho Nacional de Educação, Ministério da Educação. Disponível em http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2019-pdf/132881-pces945-19/file, acesso em 09/08/2021.
http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro...
, p. 15).
O locus para a articulação destas linhas e a geração de “pesquisa de alta performance” seria, em sua visão, exatamente o Instituto Brasileiro de Segurança Pública. A partir dele, o sistema de ensino e pesquisa policial militar estaria apto a oferecer às universidades e à administração pública linhas de pesquisa, extensão e pós-graduação para a qualificação de pessoal do setor público. Segundo o autor:
O diferencial do Instituto Brasileiro de Segurança Pública é marcado pelo fato de adotar a etnografia e o empirismo científico, na condição de principais metodologias para sua produção científica, isso sem abandono do puro saber teórico, porém com o compromisso de isenção ideológica; e esse compromisso extrapola o plano utópico, na medida em que seus associados pesquisadores ao mesmo tempo e dialeticamente habitam, no plano nacional, as comunidades acadêmica e da segurança pública. (Silva Jr., 2018b, p. 17)
Diante de tais enunciados, a descrição do projeto enseja algumas problematizações iniciais. Percebe-se, logo de início, e sem que sejam apresentadas evidências, uma condenação aos “especialistas”, por não terem visão interdisciplinar e não pertencerem ao quadro profissional da segurança pública. Em desacordo com a fundamentação do conhecimento científico, assume-se um critério de agregação artificial e politicamente motivado para a autoconstrução e a legitimação de uma comunidade acadêmica: o argumento de autoridade. Caberia aos policiais, e sobretudo aos chefes policiais, por sua experiência e poder de mando, o ponto de vista epistemológico fundamental para decidir sobre o que é ciência e o que é ideologia e, assim, submeter e controlar o conjunto da comunidade acadêmica e científica, bem como policiais de baixa patente. É possível constatar esta pretensão na própria autodefesa do autor, quando ele afirma que a escolha de no máximo dezessete chefias policiais militares como cúpula do conhecimento das ciências policiais18 18 “A exploração inicial permitiu identificar e confirmar na Plataforma Lattes do CNPq, 17 (dezessete) pesquisadores ocupantes ou ex-ocupantes de cargos de chefia ou direção das polícias militares com titulação de doutor obtida em programas de pós-graduação ‘stricto sensu’ certificados pela Capes” (p. 13). não obedece a um critério “endógeno”. Ainda que não desconsidere a produção de conhecimento de outros subgrupos (outras carreiras policiais, por exemplo), esta é apropriada como “insumo”, ou seja, subordinada ao desenvolvimento de pesquisas e reflexões por parte deste “subgrupo”.
Em um esforço sério, que tenha como base uma sociologia da ciência auto-reflexiva, seria necessário questionar os próprios pressupostos e o próprio lugar no campo. Ao contrário, desconsidera-se o conjunto maior de pesquisadores e concorrentes, inclusive outros policiais e pesquisadores, relegados à posição de especialistas contaminados por ideologias. Em nome de uma suposta “isenção ideológica”, legitimam-se suas próprias referências valorativas e ideológicas, agora alçadas a uma visão científica e neutra do mundo, da atividade policial e dos comportamentos classificados como crime.
Além do preconceito explícito, próprio de um senso comum corporativista, contra a pesquisa externa feita por não policiais, estas referências ideológicas podem ser percebidas no próprio recorte que legitima a Polícia Militar em relação às demais organizações que compõem os sistemas de segurança pública e justiça criminal. Além disso, esta visão reafirma a exclusão dos praças (soldados, cabos e sargentos) como seres pensantes e capazes de produzir conhecimento sobre polícia e segurança pública.
Reforçando clivagens e rivalidades internas destes sistemas, o autor sublinha a limitação epistemológica para a produção de conhecimento científico por parte da Polícia Federal, da Polícia Civil e do Poder Judiciário, pelas funções setorizadas e/ou cartoriais que desempenhariam, ao contrário da Polícia Militar que, encarregada constitucionalmente da “preservação da ordem pública”, estaria em posição privilegiada para entender as causas da criminalidade. Este raciocínio revela mais sobre o sentido político e corporativo do pensamento do autor do que sobre a realidade objetiva dos problemas do funcionamento da segurança pública e da justiça criminal no Brasil, questão cuja complexidade exige justamente a pluralidade de perspectivas, internas e externas aos sistemas, para evitar a simplificação das soluções de especialistas que se afirmam a partir de posições de poder temporal.
O texto que melhor representa esta radicalização ideológica, com toda sua complexa, ambiciosa e confusa base epistemológica, é “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”, de Gilberto Protásio dos Reis.19 19 Presidente do conselho editorial da Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública, coronel da reserva da PMMG, doutor em ciências sociais pela PUC/MG e mestre em administração pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Nas palavras do autor, o propósito é submeter
sua visão sobre a isenção ideológica, o rigor científico e a liberdade intelectual adotados como valores pelo Instituto Brasileiro de Segurança Pública, a partir de seu olhar da segurança pública brasileira para fora da chave direita-esquerda, refutando o positivismo (naturalismo) e o idealismo sociológicos e apresentando a Metafísica aristotélico-tomista, como alternativa teórica à comunidade acadêmica. (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph... , p.24)
O autor vai na mesma linha de Azor Lopes ao asseverar o IBSP como locus do conhecimento objetivo frente a uma polarização ideológica entre direita e esquerda nos estudos sobre segurança pública, e acautelar o Instituto contra “as causas de insucesso nos esforços de parcela da comunidade científica que milita no campo das pesquisas em segurança pública”. E, ato contínuo, acrescenta um segundo objetivo: responder ao leitor qual o paradigma (ou programa de pesquisa) mais adequado à “observação de temas típicos da segurança pública”: uma teoria do conhecimento que produza capacidade para entender e reverter a crescente criminalidade no Brasil, e uma teoria da prevenção criminal, que oriente o planejamento e atuação das polícias militares
Uma primeira incorreção analítica do seu combate a “idolatrias” intelectuais nas ciências humanas e sociais é a pretensa desmontagem do conceito de fato social, que caracteriza os fundamentos do edifício teórico de Durkheim. Ecoando uma visão que é senso comum no mundo acadêmico, e sujeita a muitas ressalvas, o autor critica a supremacia da sociedade sobre o indivíduo no pensamento durkheimiano e, em decorrência, a busca de explicações para todas instituições e práticas na sociedade, sem dar espaço a explicações que partam da capacidade humana de “criar regras ou decidir se submeter a elas”, ou seja, do livre arbítrio e do mundo psíquico individual. Uma perspectiva redutora da complexidade da relação entre indivíduo e sociedade, o pressuposto do homem duplex, ao longo da trajetória de estudos de Durkheim, não é uma surpresa no debate acadêmico. Mas a conclusão decorrente desta visão é preocupante porque implica o retorno a uma visão simplista sobre o comportamento criminoso. O autor se opõe a atribuir a causa da conduta criminosa a alguma deficiência da realidade em que está inserido: “a culpa humana pela prática de delitos seria fruto de uma causa maior, onde realmente estaria o fator causador: a sociedade” (Reis, 2018 p. 27).
Sendo assim, ele propõe, com base na “metafísica aristotélico-tomista”, estudar a conduta criminosa “a partir das doenças do espírito, em vez de buscar as causas principais no ambiente externo, as quais isentam o homem do ônus de seu livre-arbítrio e o tratam como joguete de forças maiores que ele” (Reis, 2018, p. 34). O crime seria uma “doença ôntica”, um “desajuste do homem em relação à sua própria natureza”. Ao fim, reitera-se um senso comum entre policiais militares e conservadores acerca da compreensão sociológica como uma justificativa para a não responsabilização penal de indivíduos criminosos, sem oferecer maiores evidências do que seriam as ações embasadas no paradigma reivindicado, para além da retomada de uma abordagem clínica e punitiva já ultrapassada.
Uma segunda distorção, ainda mais grave, diz respeito à ideia de neutralidade axiológica na ciência, proposta por Max Weber, e vista pelo autor como “assepsia valorativa”. Em uma compreensão equivocada do princípio, que não retira a responsabilidade do cientista frente a seus valores e à repercussão das produções da ciência na sociedade, busca-se fundamentar a absurda tese de aproximação da perspectiva weberiana, ligada às relações entre a construção metodológica da ciência e a responsabilidade cívica e política dos intelectuais em relação aos experimentos médicos nazistas. Tamanha distorção de um princípio de precaução contra o domínio de valores morais e políticos sobre o fazer científico, criado por um autor sociólogo que foi, ao mesmo tempo, um ator político devotado à construção de um regime democrático na Alemanha, aparenta ser, mais do que um equívoco, um sintoma de um estilo mais preocupado com a polêmica ideológica e anti-intelectualista do que com a construção do rigor científico. Desta interpretação decorreria uma consequência para os estudos na segurança pública:
Pesquisador de segurança pública tem de ter a liberdade intelectual de afirmar que o comportamento criminoso seja uma coisa má, reprovável, em vez de ficar na postura asséptica e, nesse sentido, desumana, proposta por Max Weber. Posicionar-se contra a criminalidade e ter, todo o tempo, um juízo de valor explicitamente contra as escolhas dos criminosos não é abrir mão da isenção científica, é ser comprometido com a realidade. (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph... , p. 41)
Será possível evidenciar, mais à frente, que o autor pretende legitimar, de maneira tortuosa, seus valores morais pessoais, bem como o seu habitus profissional, no caso de policial militar, como critério fundamental, não questionável, do conhecimento científico.
A sua estratégia discursiva se aproxima daquele de ideólogos neoconservadores de ofício, como Olavo de Carvalho, e de suas teorias conspiratórias e negacionistas. Prova desta proximidade são as teses que o autor sustenta sobre a decadência do Ocidente ser motivada pela “guerra cultural” produzida por uma intelectualidade corrompida por ensinamentos revolucionários/socialistas. Ele lança mão, portanto, de uma distorção, atualmente corriqueira em círculos neoconservadores, do projeto intelectual e político gramsciano de renovação do comunismo no enfrentamento ao fascismo italiano, que passa a ser interpretado como um projeto totalitário de conquista do Ocidente através de uma “guerra cultural”, pela conquista dos meios de comunicação, das universidades e dos partidos políticos. Mas o autor busca ainda calibrar seu argumento para afirmar que propósitos escusos e conspiratórios não são assumidos por todos os grupos, mas sim apenas pelos “cientistas militantes” da sociologia, categoria “mais influenciada por ideias como justiça, igualdade ou caridade” e propagadora de “ideias e teorias sociológicas do socialismo” (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph...
, p. 33).
Herbert Marcuse seria, então, o próximo intelectual a influenciar a sociologia no Brasil. Em particular, o autor seria responsável por um “discurso de defesa do uso da violência contra policiais militares no Brasil”; “a lógica marcuseana é a de que o bem sejam os marginais e o mal, os promotores da ordem pública”. Em uma longa, mas emblemática citação, nota-se que, no ápice da sua elocubração conspiratória, o autor revela sua confusão entre ideologia e epistemologia:
O objetivo geral marcuseano é, pois, oferecer supostas explicações capazes de constranger pais a não corrigirem seus filhos, professores a não reprovar seus alunos, policiais a não usarem força contra infratores da lei, e a sociedade em geral a não se manifestar contra nada que fuja às tradições comportamentais do Ocidente. O Primeiro Comando da Capital (PCC), que em meados de da década inicial do século XXI orquestrou ações contra o sistema prisional e a Polícia Militar de São Paulo (PMESP), e demais quadrilhas formadas por traficantes de drogas, armas e pessoas são fruto da utopia marcuseana. A técnica pensada por Herbert Marcuse para obtenção desses efeitos é a adulteração dos currículos universitários, de modo a convencer a juventude a repudiar, pela via intelectual, o cumprimento do dever por parte das organizações policiais, em desfavor de pessoas cuja conduta precise ser controlada para não por em perigo todo o restante do conjunto social, como é o caso dos presidiários [...]. Um artifício muito comum para isso é descontextualizar os dados estatísticos sobre o perfil dos que são mortos em trocas de tiros contra o policiamento, de modo a fazer pensar que a Polícia seria violenta e ofensora dos direitos humanos, quando na realidade os traços biográficos desse grupo deveriam ser analisados a partir das causas do seu envolvimento com a criminalidade. Isso acontece após os revolucionários convencerem a opinião pública de que os indivíduos que recebem sentenças condenatórias na Justiça, para cumprimento de penas em presídios, são vítimas da sociedade e que os profissionais encarregados da prisão e conservação dos detentos nesses estabelecimentos seriam perpetuadores de injustiças e violações de direitos dos sentenciados. O próprio conceito de direitos humanos é, nesse esforço de implantação da utopia marcuseana, desconectado da noção de Direito. (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph... , p. 36-37; grifo do autor)
Ou seja, em uma evidente contradição, o artigo que se propunha de “cunho epistemológico e contra ideologias” é permeado pelo ataque frontal ao “pensamento de esquerda” que prevaleceria no país, responsável por uma “revolução cultural silenciosa, contra a intelectualidade”. Com pretensa “isenção ideológica”, o autor afirma a necessidade de “olhar a segurança pública brasileira fora da chave direita-esquerda, ou conservadores-progressistas”, posto que esses dualismos “[...] amarram toda a realidade cultural na camisa de força dos sistemas ideológicos”. Mas, ao mesmo tempo, apoia-se justamente na chave direita-esquerda para condenar a vitimização das polícias militares por uma “sociologia da revolução”, promotora de “uma inversão de valores que faz as Polícias Militares parecerem erradas e os criminosos serem tidos como vítimas” (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph...
, p. 46).
Mas, afinal, como estas diatribes neoconservadoras conspiratórias, cujo populismo punitivo se baseia em distorções teóricas e preconceitos arraigados em certos quadros esclerosados e/ou radicalizados das policiais militares, revelam de modo concreto um diagnóstico sobre o campo da segurança pública, uma estratégia institucional de afirmação de um saber científico e uma proposta de remodelação das políticas de segurança e da atuação policial? O diagnóstico do autor consiste em “três obviedades”: a segurança pública brasileira da atualidade é comparável a uma nau à deriva; as comunidades de pensadores que vêm tentando explicar e controlar a criminalidade têm amargado insucessos, o que sugere um estado de esterilidade explicativa generalizado; e os profissionais que mais lidam com o tema não são predominantes entre os cientistas brasileiros.
Não é leviano conjecturar, a partir da observação participante, que frequentemente esses profissionais são malvistos no meio científico, no qual uma parcela de pesquisadores tenta assumir espaços de mando governamental; de outro lado, eles enfrentam a crítica e a incompreensão dos colegas de profissão, que veem na atividade de pesquisa pura algo pouco relevante, quando não inútil, para lidar com a criminalidade (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph...
, p. 29).
Frente à constatação de uma “desproporção entre investimentos e resultados na segurança pública”, o autor opera uma inversão de atribuições: para não tematizar as resistências dos próprios atores da segurança pública e da justiça criminal aos diagnósticos produzidos por estudos acadêmicos, atribui aos centros de pesquisa universitários a responsabilidade por não solucionar o problema da criminalidade. Além disso, elabora-se a falsa tese de um marxismo arraigado nas universidades, que afirma a redução da criminalidade como efeito da melhoria dos indicadores socioeconômicos, quando proliferam teses que contestam qualquer ligação determinante entre as duas questões. Embora sejam importantes, garantia de direitos, renda, emprego e desigualdade atuam diferencialmente junto a fatores históricos, culturais, organizacionais e políticos para explicar os determinantes dos diferentes tipos de violência e criminalidade.
A sensação de estar “secando gelo” na segurança pública é identificada como um problema epistemológico, herdeiro do “empirismo decadente da cultura contemporânea”, responsável por uma incapacidade crônica de “controlar o curso dos processos socioculturais”. Em decorrência, em termos práticos, a solução proposta seria “monitorar em que medida os entes federativos brasileiros estão cooperando, por meio da cultura, para a degradação cultural da população” (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph...
, p. 35).
Assim, longe das promessas iniciais do texto de discutir a fundo as teorias que embasam o policiamento, ao fim e ao cabo defendem-se não soluções organizacionais e técnicas de prevenção, investigação e repressão, mas um chamado à ideologia da “guerra cultural”, à “prevenção contra os fatores sociológicos que afetam o discernimento ético da população” e ao “desmonte dos equívocos advindos da mídia, das universidades e da classe política” (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph...
, p. 45). O “monitoramento da cultura” seria o centro da estratégia para a prevenção criminal e o controle das causas da criminalidade! (Reis, 2018REIS, Gilberto Protásio dos. (2018), “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública e o desafio da escolha do paradigma para alta performance na observação científica da criminalidade”. Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1, 1: 24-54. Disponível em http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.php/RIBSP/article/view/7, acesso em 09/08/2021.
http://ibsp.org.br/ibsp/revista/index.ph...
, p. 35).
Como solução, a “nau à deriva” da segurança pública precisaria de um novo comando: os dez policiais-pesquisadores reunidos no Instituto Brasileiro de Segurança Pública, cujos integrantes, constata o autor através de sua “observação participante”, compartilham da formação policial militar, um “antídoto natural” a ideologias radicais, já que o letramento que receberam os conduz à condição de “realistas moderados”, ao mesmo tempo em que conjugam a patente de oficial com títulos acadêmicos de doutoramento em programas aprovados pela CAPES. Essa condição supostamente os tornaria aptos a transitar entre os mundos interno e externo às corporações policiais. Ao final da leitura do texto de Gilberto Protásio constata-se que, por mais que ele pretenda uma imparcialidade inerente, não é difícil identificar nele a leitmotiv de uma instituição que pretende “não se tornar uma organização de esquerda ou de direita”, mas que reitera temas e preconceitos de visões de mundo conspiracionistas, neoconservadoras e anti-intelectualistas, em apoio à concepção moral de um mundo dividido entre “cidadãos de bem” e criminosos.
Conclusão
Como vimos ao longo desse artigo, a legitimação das ciências policiais no Brasil surge, em grande parte, como estratégia de monopolização policial – sobretudo militar – do pensamento ou do “lugar de fala” sobre lei e ordem; e, não menos, como estratégia de oposição à democratização da segurança pública e ao desenvolvimento de um campo de estudos sobre crime, polícia e justiça no Brasil a partir das ciências humanas e sociais nos últimos quarenta anos. Esse projeto de autonomização do saber, na forma de instrumento de guerra cultural, reforça a criação/reificação de uma cultura, diante dos policiais militares em formação, marcada pela disposição ideológica de enfrentamento ao conhecimento crítico, que retroalimenta, nas polícias militares, a grande autonomia operacional, o forte insulamento institucional e a baixa transparência em relação aos protocolos e mecanismos internos de supervisão (Lima, 2019LIMA, Renato Sérgio de. (2019), “Segurança pública como simulacro de democracia no Brasil”. Estudos Avançados, 33, 96: 53–68. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ea/v33n96/0103-4014-ea-33-96-53.pdf, acesso em 09/08/2021.
https://www.scielo.br/pdf/ea/v33n96/0103...
).
Nesse sentido, fazer a exegese dos textos que fundamentam as ciências policiais justifica-se pelo fato de cerca de 12% dos policiais militares que interagem nas redes sociais hoje poderem ser considerados radicalizados e adeptos de posições de ruptura democrática, defendendo, por exemplo, o fechamento do Congresso e a prisão de ministros do STF (FBSP, 2020FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). (2020), Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, ano 14. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-final.pdf, acesso em 09/08/2021.
https://forumseguranca.org.br/wp-content...
). O país tem mais de 500 mil policiais militares na ativa. A questão, portanto, não é apenas a convergência ideológica dos policiais com as pautas do governo de Jair Bolsonaro, mas a reflexão sobre os mecanismos de controle civil do braço armado do Estado, responsável por garantir e manter a ordem propugnada pela Constituição de 1988.
Em caminho inverso à busca de superação destes problemas, projeta-se como solução o insulamento corporativo e a inauguração artificial, por decreto, de uma comunidade acadêmica e de uma nova ciência policial, correlata à condenação de pesquisadores externos às polícias como atores políticos de uma estratégia conspiratória de domínio socialista.
A aproximação entre universidades e polícias no Brasil acarretou consequências imprevistas: a construção de um repertório organizado para a legitimação corporativista, no interior do campo da segurança pública, em reação à abertura democrática do setor. Tal fenômeno poderia soar como um reforço ao argumento da “policização da academia” (referência), se não estivesse voltado exatamente contra os protagonistas da aproximação entre polícia e universidade, considerados agora por seus oponentes como promotores da “esquerdização” da segurança pública. Tudo isso em nome de uma “isenção ideológica” que não se demonstra na prática, o que constata diante do uso de páginas da revista do Fórum Brasileiro de Ciências Policiais como veículo de afirmação de narrativas heroicas sobre organizações como a ROTA, em São Paulo.20 20 Ver https://cienciaspoliciaisbrasil.com.br/parabens-rota-pelos-50-anos/. Acesso em 09/08/2021. Confunde-se uma necessária luta por valorização profissional com narrativas falseadoras da realidade.
Todo esse contexto revela que o campo da segurança pública entrou em um momento de disputa mais acirrada, que coloca em risco a produção de conhecimento sobre o tema no país. Contra tentativas de radicalização ideológica, será preciso reforçar que, em uma comunidade científica, resultados de pesquisas podem ser problematizados em suas limitações através de contra-argumentos baseados em evidências, e que ainda há um considerável gap entre conhecimento produzido sobre segurança pública e sua conexão com reformas organizacionais e políticas públicas. Faz-se necessário, mais do que nunca, que o campo da segurança pública continue sendo construído de forma democrática e aberta, em diálogo com grupos externos, da sociedade civil, uma vez que estes também são atores com saberes a respeito da segurança pública e não apenas objetos de intervenção de um policiamento que pretende se respaldar agora com sua própria ciência. Dentro desse contexto, as próprias polícias podem, a partir de uma análise crítica de seu próprio saber, das posições, postos e hierarquias que têm dentro dos aparelhos jurídicos-políticos do Estado, e de maneira horizontal, reformular sua condição profissional, seu saber específico, produzir saberes acerca de seus próprios problemas (Bicalho, Kastrup e Reishoffer, 2012BICALHO, Pedro Paulo Gastalho de; KASTRUP, Virginia & REISHOFFER, Jefferson Cruz. (2012), “Psicologia e segurança pública: invenção de outras máquinas de guerra”. Psicologia Social, 24, 1: 56-65., p. 62).
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Sobre a emergência e a evolução da criminologia no Brasil, ver Alvarez (2002)ALVAREZ, Marcos César. (2002), “A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 45, 4: 677-704.; Lopes (2009)LOPES, Edson (2009). Política e segurança pública: uma vontade de sujeição. Rio de Janeiro, Contraponto.; Pradal (2013)PRADAL, Fernanda (2013), Política e segurança pública no Brasil: uma problematização da perspectiva especialista liberal. Mestrado em direito. PUC-RJ, Rio de Janeiro.; e Vasconcelos (2014)VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2014), Esboço de uma sociologia política das ciências sociais contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da segurança pública e o debate criminológico no Brasil. Tese de doutoramento. Faculdade de Filososofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo..
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Prova dessa pluralidade é a descentralização da pauta de revistas que abordam a segurança pública, abrangendo de contabilidade e turismo a direito e engenharias (Pacífico e Lancelotti, 2020PACÍFICO, Marsiel & LANCELOTTI, Cindia. (2020), “O papel das pesquisas científicas para a segurança pública: análise de dados por amostragem do quadriênio 2013-2016 a partir da Plataforma Sucupira”. Revista Brasileira de Estudos de Segurança Pública, 13, 2: 1-15. Disponível em https://revista.ssp.go.gov.br/index.php/rebesp/article/view/483, acesso em 09/08/2021.
https://revista.ssp.go.gov.br/index.php/... ). -
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Para uma apreensão geral dos autores e temas, convém a leitura da coletânea Crime, justiça e segurança pública (Lima, Ratton e Azevedo, 2014LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz & AZEVEDO, Rodrigo Ghiringuelli de (orgs). (2014), Crime, polícia e justiça no Brasil. 1ª edição, São Paulo, Contexto.) e do número especial do Boletim de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB (Ratton, 2017)RATTON, José Luiz (2017), “Crime, polícia e sistema de justiça no Brasil contemporâneo: uma cartografia (incompleta) dos consensos e dissensos da produção recente das Ciências Sociais”. BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, 84” 5-12..
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Estas disputas envolvem a própria definição do campo, a partir da qual se instituem e se impõem as visões hegemônicas a respeito dos objetos e métodos prioritários que conformarão o debate científico e público (Bourdieu, 1979; 1983BOURDIEU, Pierre. (1979), “La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progrès de la raison”. Sociologie et Societés, 7, 1: 91-118.). A própria proliferação de diferentes estudos de “sociologia da sociologia”, em parte concorrentes, advindos da criminologia crítica (Lopes, 2009LOPES, Edson (2009). Política e segurança pública: uma vontade de sujeição. Rio de Janeiro, Contraponto.; Pradal, 2013PRADAL, Fernanda (2013), Política e segurança pública no Brasil: uma problematização da perspectiva especialista liberal. Mestrado em direito. PUC-RJ, Rio de Janeiro.), e de atores não hegemônicos (Carvalho, 1999CARVALHO, Glauber Silva de. (1999), “Abordagens teóricas da violência criminal: respostas das ciências sociais a um momento político”. Dissertação de mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.; Vasconcelos, 2014VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. (2014), Esboço de uma sociologia política das ciências sociais contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da segurança pública e o debate criminológico no Brasil. Tese de doutoramento. Faculdade de Filososofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.; Marques, 2017MARQUES, Adalton (2017), Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo. Tese de doutoramento. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFSCAR, São Carlos.), hegemônicos (Lima e Ratton, 2011aLIMA, Renato Sérgio de & RATTON, José Luiz (orgs.). (2011a), As ciências sociais e os pioneiros no estudo do crime, da violência e dos direitos humanos no Brasil. São Paulo, Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Urbania/ANPOCS.; Lima, 2011bLIMA, Renato Sérgio de. (2011b), Entre palavras e números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo, Alameda.) ou com pretensão à hegemonia (Campos e Alvarez, 2017CAMPOS, Marcelo da Silveira & ALVAREZ, Marcos César (2017), “Políticas públicas de segurança, violência e punição no Brasil. (2000-2016)”. In: MICELI, Sérgio & MARTINS, Carlos Benedito. Sociologia brasileira hoje. Cotia, Ateliê Editorial.) no campo das ciências sociais permitem perceber como a narrativa sobre campo é central para o posicionamento dos atores nas novas conjunturas.
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A expressão “guerra cultural” é utilizada neste artigo como um conceito “nativo” que expressa o sentido de uma contra-hegemonia desenvolvida pela direita radical nos Estados Unidos e na França. Ela passou a ser utilizada pelos defensores de uma teoria da conspiração que acusa intelectuais de promoverem o "marxismo cultural" como forma de subverter a sociedade ocidental através da erosão dos valores cristãos e do conservadorismo tradicionalista. Sobre o assunto, cf. Prado (2021); Mussi e Bianchi (2020).
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Uma versão simplificada do SUSP foi aprovada em 2018 pelo Congresso Nacional.
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Sem pretensão de exaurir o tema, pode-se citar, entre os principais centros de pesquisa envolvidos, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP); o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG); o Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC); o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas de Segurança (NEPS/UFPE); o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU-UFRJ); o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (UFF); o Laboratório de Análises da Violência (LAV-UERJ); e o Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM). Entre as ONGs mais importantes, figuram a Fundação João Pinheiro (MG), o Instituto Sou da Paz, a Viva Rio e o Instituto Fernand Braudel. Essas iniciativas se organizam em redes, formando Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), ligados ao Ministério de Ciência e Tecnologia, ou Redes de Observatórios de Segurança Pública.
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8
Uma das principais fontes para a compreensão desse processo é o livro As ciências sociais e os pioneiros no estudo do crime, da violência e dos direitos humanos no Brasil (Lima e Ratton, 2011aLIMA, Renato Sérgio de & RATTON, José Luiz (orgs.). (2011a), As ciências sociais e os pioneiros no estudo do crime, da violência e dos direitos humanos no Brasil. São Paulo, Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Urbania/ANPOCS.).
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9
Julita Lemgruber, na interseção entre a gestão pública e as redes internacionais de ativismo sobre a questão carcerária; Alba Zaluar, assessora especial de Segurança Participativa da Prefeitura do Rio de Janeiro (2001-2002); Roberto Kant de Lima, consultor de planos de segurança pública municipais no Rio de Janeiro; César Barreira, diretor da Academia de Polícia do Ceará (2011-2012); e José Vicente Tavares dos Santos, Luis Flávio Sapori, secretário-adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais (2003-2007), e Claudio Beato Filho, formuladores dos programas de governo em segurança pública, para as eleições presidenciais, do PT (2010) e do PSDB (2014).
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10
Com formação em psicologia e filosofia, Cerqueira foi comandante da PM do Rio de Janeiro nos dois mandatos do governador Leonel Brizola (1983-87; 1991-1995) e vice-presidente do Instituto Carioca de Criminologia (Leal et al., 2010LEAL, Ana Beatriz; Íbis PEREIRA & Oswaldo MUNTEAL FILHO (orgs.). (2010), Sonho de uma polícia cidadã: Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Rio de Janeiro, NIBRAHC.).
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11
O parecer lavrado, por sua vez, alinha-se a iniciativas anteriores: a aprovação das ciências militares, em 2002; a previsão do Plano Nacional de Pós-Graduação (2011-2020) para investimento na formação de “especialistas civis” no interior da Estratégia Nacional de Defesa (a vinculação entre ciências policiais e defesa é tão próxima que, por vezes, são termos intercambiáveis para a definição da área de estudo aprovada); a aprovação da Lei Estadual Complementar 1.036, de 11 de janeiro de 2008, que institui o Sistema de Ensino da Polícia Militar do Estado de São Paulo; e o reconhecimento do diploma de bacharel, mestre e doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública conferidos pela Academia da Polícia Militar do Barro Branco.
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12
Professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPI), antiga Escola Superior de Polícia de Portugal.
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13
Pesquisador do Centro de Pensamiento Policial, na Colômbia.
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14
Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, Portugal.
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15
Capitão da Polícia Militar, bacharel em filosofia, mestre e doutor em filosofia da ciência pela Universidade de São Paulo, é professor da APMBB, do CAES e membro colaborador da Associação Filosófica Scientiae Studia.
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16
Ver “‘Bandido bom é bandido morto?...’”, Silva Júnior, 2018a.
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17
Fundador e presidente do IBSP na gestão 2017-2019, coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, professor universitário de direito, advogado, doutor em sociologia pela UNESP, mestre em direito pela Universidade de Franca (2002-2004), doutor (2008), mestre (2005) e graduado (1982-1984) em ciências policiais de segurança e ordem pública pelo sistema de ensino Militar.
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18
“A exploração inicial permitiu identificar e confirmar na Plataforma Lattes do CNPq, 17 (dezessete) pesquisadores ocupantes ou ex-ocupantes de cargos de chefia ou direção das polícias militares com titulação de doutor obtida em programas de pós-graduação ‘stricto sensu’ certificados pela Capes” (p. 13).
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19
Presidente do conselho editorial da Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública, coronel da reserva da PMMG, doutor em ciências sociais pela PUC/MG e mestre em administração pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro.
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20
Ver https://cienciaspoliciaisbrasil.com.br/parabens-rota-pelos-50-anos/. Acesso em 09/08/2021.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Abr 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
21 Fev 2021 -
Aceito
14 Jul 2021