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Sobre a Mentalidade Africana: A Antropologia Colonial na África Portuguesa (1950-1960) e a Antropologia do Negro no Brasil

On the African Mentality: Colonial Anthropology in Portuguese Africa (1950-1960) and the Anthropology of the Blacks in Brazil

Resumos

Resumo

Nesse artigo proponho uma abordagem sobre a antropologia colonial portuguesa que leve em conta o debate sobre a mentalidade africana, como um capítulo do debate mais amplo sobre a “mentalidade primitiva”, central nas primeiras décadas do século XX para a antropologia social, inclusive para a antropologia do negro no Brasil. A pretensão, definida, a partir da leitura de fragmentos da produção antropológica da fase final do colonialismo português é interrogar essa determinação recíproca na fábrica ideológica colonial e no tecido da teoria antropológica para a ideia de uma mentalidade africana. Dito de outra forma, interroga-se como a prática antropológica no contexto colonial dos anos 1950 e 1960 articula-se com a teoria antropológica sobre a diferença cultural africana, entendida como possível de ser descrita como “primitiva”. Discuto, nesse sentido, material encontrado em fontes coloniais dos anos 50 e 60 do século XX, para discutir a própria ideia de “mentalidade africana” e o modo como está presente na teoria antropológica, nas políticas coloniais na África, e também na formação do interesse antropológico sobre o negro no Brasil .

Palavras-Chave:
África Portuguesa; Antropologia Colonial; “Mentalidade Primitiva”; Teoria Antropológica


Abstract

In this article I propose an approach to Portuguese colonial anthropology that takes into account the debate on the African mentality, as a chapter in the broader debate on the “primitive mentality”, central in the first decades of the twentieth century for social anthropology, including for the Anthropology of the Negro in Brazil. The intention, defined, from the reading of fragments of anthropological production of the final phase of Portuguese colonialism, is to question this reciprocal determination in the colonial ideological fabric and in the fabric of anthropological theory for the idea of an African mentality. In other words, it asks how the anthropological practice in the colonial context of the 1950s and 1960s articulates with the anthropological theory about the African cultural difference, understood as possible to be described as “primitive”. In this sense, I discuss material found in colonial sources from the 50s and 60s of the twentieth century, to discuss the very idea of “African mentality” and the way it is present in anthropological theory, in colonial policies in Africa, and also in the formation of the Anthropological interest in black people in Brazil.

Keywords:
Portuguese Africa; Colonial Anthropology; “Primitive Mentality”; Anthropological Theory


Introdução

O problema da mentalidade, ou da “mentalidade primitiva”, mais propriamente falando, é central na história das ideias antropológicas (Cardoso de Oliveira, 2002CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2002), Razão e Afetividade. O Pensamento de Lucien Levy-Brühl. Brasília. Editora UnB/Paralelo 15. ). Assim como o problema da invenção do primitivo - ou do “paradigma primitivista” (Viegas e Pina-Cabral, 2014VIEGAS, Susana de M e PINA-CABRAL, João. (2014), Na encruzilhada portuguesa: a antropologia contemporânea e a sua história. Etnográfica 18 (2): 311-332; Kuper, 1988KUPER, Adam. (1988), The Invention Primitive Society. London and New York. Routledge.) - como uma categoria teórica e colonial, passa pela consideração de sua mentalidade. Africanos e europeus pensam do mesmo modo? Ou há algo de decididamente peculiar, que possamos atribuir alternativamente à “raça”, ou à cultura, ou ao “espírito” ou ao que quer que seja, que sirva tão bem na vida política, quanto em suas racionalizações ou contestações acadêmicas, e que distinga europeus e africanos, “primitivos” e “civilizados”. Brancos de negros.

O problema tem certamente uma natureza histórico-política. Entretanto, tem sido abordado como uma questão de natureza eminentemente científica, desde a antropologia física e a Escola do Porto portuguesa, atravessando o debate sobre o pré-logicismo primitivo e a ontologia bantu, incluindo-se ainda o lusotropicalismo tardio e antropologia colonial, na fase ultramarina, sob a influência de cientistas eminentes como Jorge Dias (Pereira, 1989PEREIRA, Rui. (1989), A questão colonial na Etnologia ultramarina. Antropologia Portuguesa. 7, 61-78; 1998PEREIRA, Rui M. (1998), Introdução a Reedição de 1988. DIAS, Jorge. Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT. Pp. V-LII).

Aqui proponho uma abordagem sobre a antropologia colonial portuguesa, que leve em conta o debate sobre a mentalidade africana, como um capítulo do debate mais amplo sobre a “mentalidade primitiva”, central nas primeiras décadas do século XX para a antropologia social. E central também para a racionalização da ação colonial portuguesa em África. Nesse sentido, a questão principal a ser perseguida aqui se refere a esse trânsito da ideia de “mentalidade primitiva”. Tal discussão está presente na teoria antropológica clássica, no pensamento e nas políticas coloniais portuguesas, como expresso nas fontes que discutiremos a frente, e também no debate antropológico brasileiro sobre o negro, em seus momentos formadores. Contextos e momentos distintos, justamente atravessados pela mesma categoria, que assim manifesta sua persistência e penetração, como um elo de ligação entre estes. O que haveria de comum em contextos tão distintos que justificasse o uso da mesma categoria?

O debate sobre mentalidades deve ser considerado em relação ao problema de uma filosofia africana ou uma metafísica bantu, ou dogon, como em Tempels ([1945]1959)TEMPELS, Placide. ([1945]1959), Bantu Philosophy. Full text, digitalised by Lies Strijker and presented by the Centre Aequatoria. Présence Africaine. ou Griaule (1965)GRIAULE, Marcel. (1965), Conversations with Ogotemmeli: an introduction to Dogon religious ideas with an introduction by Germaine Dieterlen. London: Oxford University Press for the International African Institute., por exemplo1 1 A referência à “metafísica” aparece em diversos dos autores citados, de modos diferentes. Usualmente significando a tradição idealista, platônica, da filosofia ocidental, mas também sistemas de pensamento abstrato ou especulativo, mais ou menos formalizados. . Na medida em que o que estava em jogo era a comensurabilidade entre formas de inteligência e imaginação europeias e africanas vis-à-vis. Estaria o líder anticolonial senegalês Leopold Sedar Senghor certo? E a emoção seria africana como a razão helênica (Senghor, [1939] 2021SENGHOR. Leopold Sedar. ([1939] 2021), O contributo do homem negro. Buala. Disponível em https://www.buala.org/pt/mukanda/o-contributo-do-homem-negro, consultado em 25 de maio de 2023.
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)? Pensariam os povos de pele negra - na África e no Brasil- por meio de “participações”, através da indiscernibilidade de categorias racionais, de modo eminentemente concreto e “afetivo” (Cardoso de Oliveira, 2002CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2002), Razão e Afetividade. O Pensamento de Lucien Levy-Brühl. Brasília. Editora UnB/Paralelo 15. )?

A pretensão seria aqui, a partir da leitura de fragmentos da produção antropológica da fase final do colonialismo português, notadamente daquela publicada nos Boletins coloniais, interrogar essa determinação recíproca, na fábrica ideológica colonial e no tecido da teoria antropológica, para a construção da ideia de uma mentalidade africana. Como no título dos artigos de Eduardo dos Santos publicados no Boletim Geral de Ultramar em 1969, no qual asperamente se criticam os “nacionalismos exaltados” do Reverendo Placide Tempels e de Marcel Griaule, vistos como ideólogos panafricanistas perigosos, justamente porque admitiam que pudesse haver algo como uma “metafísica africana”, ameaça à “unidade de pensamento” humano. Do mesmo modo como esse autor se expressa, por exemplo, em “Sobre a Religião dos Quiocos” (1962), povos angolanos também conhecidos como Chokwe. Ora, sobre o quioco poder-se-ia dizer, segundo Santos, que “não é este nem filosofo nem teólogo, nem a explicação das coisas mais simples o preocupa” (Santos, 1962, pSANTOS, Eduardo dos. (1962), Sobre A Religião Dos Quiocos. Junta De Investigações do Ultramar. Estudos, Ensaios e Documentos. No. 96. Lisboa..39). Ou seja não pode haver nada como uma “metafísica” africana.

Dessa forma, abaixo farei uma discussão do material encontrado em fontes coloniais dos anos 50 e 60 do século XX, para: primeiro, caracterizar a antropologia colonial portuguesa, notadamente em sua fase final, que substituiu, eufemisticamente, a própria terminologia “colonial”, em benefício de outra, “ultramarina”, adequada ao Weltanschauung europeu do pós-guerra; e, em seguida, discutir a própria ideia de “mentalidade africana” em sua estranha ambivalência.

Antropologia Colonial Portuguesa

Em artigo publicado no “Boletim Geral do Ultramar” em 1957 - mesmo ano da visita do antropólogo norte-americano Marvin Harris a Moçambique - o antropólogo português Jorge Dias, ao tempo em que nega correlações estreitas entre “raça” e cultura, enfatiza o caráter português, como fundamento de uma colonização que se reveste de ares missionários (Dias, 1957DIAS, Jorge. (1957), A Expansão Ultramarina Portuguesa a Luz da Moderna Antropologia (Antonio Jorge Dias) Boletim Geral do Ultramar. . Agência Geral do Ultramar, Portugal, Vol. XXXIII - 382, 1957, 314 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N382&p=55, consultado em 25 de maio de 2023.
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). Após enfatizar o relativismo cultural contra o racismo, realmente existente nas colônias como o próprio reconheceu, Dias enaltece o caráter português “humano e bondoso”, além de ser o português um “sonhador ativo”, dada a sua natureza que se afirmaria “amando e não negando”. O que teria permitido a realização da tarefa da colonização sem excessos de violência e como extensão da “verdadeira força do cristianismo”. O que fez recair sobre os portugueses uma missão efetivamente civilizadora, supostamente desdobrada na brandura “patriarcal” com que os portugueses se valeram, mesmo no emprego da escravidão, para a invenção de outras nações; e no “instinto” português de misturar-se (sexualmente) com as nativas. Tudo isso com o objetivo camoniano de “dilatar a pátria, dilatar a fé”. Nas palavras do próprio Dias:

A chamada expansão ultramarina portuguesa tem, portanto, um significado de alta transcendência para a história da humanidade. A ação dos portugueses não se pode confundir com os movimentos colonizadores das nações capitalistas, que instituíram um tipo de relações humanas com base na diferenciação racial, em que contrastam raça superior dominadora com raça inferior dominada (Dias, 1957, pDIAS, Jorge. (1957), A Expansão Ultramarina Portuguesa a Luz da Moderna Antropologia (Antonio Jorge Dias) Boletim Geral do Ultramar. . Agência Geral do Ultramar, Portugal, Vol. XXXIII - 382, 1957, 314 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N382&p=55, consultado em 25 de maio de 2023.
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. 67).

O referido Boletim Geral do Ultramar foi criado em 1924 como o “Boletim da Agência Geral das Colónias”, com a seguinte declaração de princípios:

O “Boletim da Agência Geral das Colónias”, órgão oficial da acção [sic] colonial portuguesa, propõe-se fazer a propaganda do nosso património colonial, contribuindo por todos os meios para o seu engrandecimento, defesa, estudo das suas riquezas e demonstração das aptidões e capacidade colonizadora dos portugueses” (Boletim Geral das Colônias, [1925]BOLETIM GERAL DAS COLÓNIAS. (1925), Agência Geral das Colónias, Portugal, Vol. I - 2. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGC-N002&p=230, consultado em 25 de maio de 2023.
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2021, p. 230).

Em 1935, passou a chamar-se “Boletim Geral das Colónias”. Em 1951, no bojo das mudanças que alteraram a designação do Ministério das Colônias para Ministério do Ultramar, o Boletim muda novamente o seu nome para “Boletim Geral do Ultramar”, título que se manterá até 1969, quando a revolução anticolonial na Africa Portuguesa torna sem sentido a publicação (Souza, 2019SOUZA, Sandra. (2019), The Portuguese Colonial Press and The Estado Novo Diadorim. Rio de Janeiro, vol. 21, Especial, p. 57-71.).2 2 O “Boletim Geral do Ultramar”, consultado para o período entre 1950 e 1969, assim como “Moçambique: Documentário trimestral” (1950 a 1961); e os “Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique” (Volume X) disponíveis virtualmente em “Memórias da Africa do Oriente” <http://memoria-africa.ua.pt/Library/BGC.aspx>, foram as principais fontes consultadas nesse artigo.

A Agência Geral das Colônias fora criada no mesmo ano de 1924 com o objetivo específico de promover a propaganda colonial portuguesa. E para manifestar o estatuto da dominação imperial baseada na “espiritualidade” (Garcia, 2016GARCIA, Jose Luis Lima. (2016), A Agência Geral das Colónias/Ultramar e a propaganda no Estado Novo. Imprensa da Universidade de Coimbra. Disponível em http://hdl.handle.net/10316.2/39009, consultado em 25 de maio de 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1064-1_15
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). Em 1934, a agência foi reorganizada, no sentido de reordenamento da máquina do Estado e em direção a maior centralização, coerente com o Acto Colonial de 1930 e convergente com a nova constituição autoritária do Estado Novo de 1933 (Thomaz, 2002THOMAZ, Omar Ribeiro. (2002), Ecos do Atlântico Sul. Rio de Janeiro. Editora UFRj/FAPESP. ; Cabaço, 2009CABAÇO, José Luís. (2009), Moçambique, Identidade, Colonialismo e Libertação. São Paulo. Editora UNESP.). A agência tinha um objetivo amplo de propaganda, realizando publicações e homenagens a líderes coloniais, tais como Marques de Sá Bandeira, o “rei conquistador Afonso Henriques, fundador da nacionalidade”, entre outros. Em 1935, o Agente-Geral Julio Cayolla foi responsável, por exemplo, por organizar as comemorações do 40º. aniversario da prisão de Gungunhana, último líder africano a resistir militarmente aos portugueses (Cabaço, 2009CABAÇO, José Luís. (2009), Moçambique, Identidade, Colonialismo e Libertação. São Paulo. Editora UNESP.). Além disso, a agência esteve a cabo de organizar congressos, feiras e exposições (Garcia, 2016GARCIA, Jose Luis Lima. (2016), A Agência Geral das Colónias/Ultramar e a propaganda no Estado Novo. Imprensa da Universidade de Coimbra. Disponível em http://hdl.handle.net/10316.2/39009, consultado em 25 de maio de 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1064-1_15
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; Thomaz, 2002THOMAZ, Omar Ribeiro. (2002), Ecos do Atlântico Sul. Rio de Janeiro. Editora UFRj/FAPESP. ).

Após a guerra, o nacionalismo africano e em outras partes do mundo colonial acirrou-se, inclusive, com a participação de intelectuais e líderes políticos africanos e caribenhos residentes na Europa, como Frantz Fanon e Leopold Senghor, por exemplo. Os anos cinquenta, foram marcados pela emergência desse terceiro mundo colonial, de líderes e massas de pele escura, magnetizando a atenção mundial, notadamente após a Conferência de Bandung, na Indonésia recém descolonizada. Nas palavras do escritor afro-norte-americano Richard Wright, que cobriu a conferência como jornalista: “O desprezado, o insultado, o ferido, o despossuído - em suma, o oprimido [underdog] da raça humana estava se encontrando. Aqui estavam a consciência de classe, raça e religião em escala global” (Wright, 2008, pWRIGHT, Richard. (2008), The Color Curtain. In Black Power. New York. Harperpernnial Modern Classics. P. 429-630.. 438).3 3 Esta e todas as demais traduções foram realizadas pelo autor.

Ora, nesse ambiente, logo definido pela guerra fria e pelas disputas ideológicas entre o comunismo e o “mundo livre”, Salazar, assim como outros personagens que discutiremos, insiste no perigo das “ideologias autonomistas”. E justamente contra essa ameaça ideológica, a Agência-Geral se mobilizou, mais uma vez em consonância com as mudanças na política colonial geral, reagindo aos novos ventos do pós-guerra, no sentido de encenar nova relação com os territórios africanos e com os sujeitos coloniais. Do mesmo modo, com a mudança da Lei Orgânica do Ultramar, que alterou o estatuto dos indígenas e, na verdade, o Código do Indigenato, supostamente favorecendo a integração dos assimilados (Cabaço, 2009CABAÇO, José Luís. (2009), Moçambique, Identidade, Colonialismo e Libertação. São Paulo. Editora UNESP.; Macagno, 2001MACAGNO, Lorenzo. (2001), O Discurso Colonial e a Fabricação de Usos e Costumes: Antonio Enes e “Geração de 95”. In: ______; FRY, Peter (Org.). Moçambique Ensaios. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, pp. 61-90.; Zamparoni, 2007ZAMPARONI, Valdemir. (2007), De Escravo a Cozinheiro. Colonialismo e Racismo em Moçambique. Salvador. EDUFBA.). Como veremos, é a partir desse momento que a obra de Gilberto Freyre passa a chamar a atenção de autoridades do Estado Português (Macagno, 2002MACAGNO, Lorenzo (2002), Lusotropicalismo e nostalgia etnográfica: Jorge Dias entre Portugal e Moçambique. Afro-Ásia, 28, pp. 97-124).

O número 320 do Boletim, de 1952, reporta a visita de Freyre a Portugal e as Províncias do Ultramar. Em artigo intitulado “Jornadas do Sociólogo Brasileiro Gilberto Freyre as Províncias Portuguesas do Ultramar”, detalha-se como, a convite do ministro responsável pelos negócios do ultramar, Sr. Comandante Sarmento Rodrigues, o sociólogo pernambucano realizou essa viagem de “homenagem e serviço”, na esteira do enorme êxito de Casa Grande e Senzala. Livro que nas palavras do articulista, retrata o Brasil, obra prima da “índole e do estilo lusíada”, como “síntese, perenidade, cristalização irradiante”. Freyre percorre o ultramar afro-asiático supostamente imbuído de espírito verdadeiramente científico, independente e crítico. O que não impede visitas de cortesia aos chefes de Estado e personalidades, trocas de presentes, abraços e amabilidades. (Boletim Geral do Ultramar, 1952BOLETIM GERAL DO ULTRAMAR. (1952), Jornadas do Sociólogo Brasileiro Gilberto Freyre as Províncias Portuguesas do Ultramar. Agência Geral do Ultramar, Portugal, vol. XXVII - 320, p. 3-11. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N320&p=4, consultado em 25 de maio de 2023.
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).

Ora, o referido Jorge Dias escreve nesse contexto colonial. Considerado o nome mais marcante da antropologia portuguesa do século XX (Pereira, 1998PEREIRA, Rui M. (1998), Introdução a Reedição de 1988. DIAS, Jorge. Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT. Pp. V-LII), Dias, teve papel destacado na consolidação da antropologia social em Portugal, não deslocando, mas sucedendo a antropologia da Escola do Porto, predominante até o final dos anos 1940, o que não por acaso também coincide com o fim da segunda guerra. Dias nasceu em 1907 e morreu em 1973. Como Rui Pereira insistiu, o desenvolvimento da carreira de Dias e a consolidação da antropologia social Portugal, se deram em estreito matrimônio com a evolução da situação colonial. “O apelo colonial deve ser entendido - pelo menos do ponto de vista científico - como uma crise de crescimento inerente ao próprio desenvolvimento da antropologia portuguesa” (Pereira 1998, pPEREIRA, Rui M. (1998), Introdução a Reedição de 1988. DIAS, Jorge. Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT. Pp. V-LII. VI) ou de outra forma “a crescente autonomia acadêmica da disciplina antropológica pode ser referenciada a uma sua crescente intervenção no campo colonial” (p. VII).

O ano de 1956 foi decisivo. Apenas poucos meses após a conferência de Bandung, foi montada uma equipe cientifica da mais alta qualificação, sob a orientação de Adriano Moreira, e com vistas a promover a “ocupação cientifica” das colônias. Iniciativa definida sob o viés do compromisso ideológico de convencer o mundo ocidental, traumatizado pelo racismo, da benignidade do regime colonial português. Ainda em 1956 foram estabelecidas três missões, a “Missão De Estudos Das Minorias Étnicas Do Ultramar Português”, a “Missão para o Estudo da Atracção das Grande Cidades e do Bem-Estar Rural no Ultramar Português” e uma muito significativa “Missão De Estudos De Movimentos Associativos Em Africa”.4 4 Diversas outras missões, inclusive organizadas por Mendes Correa precederam a estas (Macagno, 2015; Pereira, 2001) Para dirigir a missão de estudos de minorias, foi designado Jorge Dias, então vinculado ao Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, para onde havia sido indicado por Mendes Correa, figura proeminente na vida pública do Estado Novo. Formado em filologia em Coimbra, Dias acumulava passagens prestigiosas por universidade europeias, Munique, Berlim, Madrid. Em 1944, doutora-se em Filosofia na universidade de Munique com a tese que, depois, foi publicada em português como “Vilarinho da Furna. Uma Aldeia Comunitária”. Ainda em 1956, no âmbito das campanhas de ocupação cientifica viaja, pela primeira vez, à Africa. Dias é autor, dentre outras obras, do célebre “Os Macondes de Moçambique” publicado em cinco volumes em co-autoria com outros membros de sua equipe, inclusive sua mulher Margot Dias,5 5 Margot Dias é, aliás, autora de trabalho muito interessante sobre Arte Maconde (Dias, 1973) e que também inclui aspectos de antropologia física, sendo ele próprio autor exclusivo apenas do primeiro volume “Aspectos Históricos e Econômicos”, aparecendo para os demais como co-autor ou “diretor do Plano da obra” (Pereira, 1989PEREIRA, Rui. (1989), A questão colonial na Etnologia ultramarina. Antropologia Portuguesa. 7, 61-78; 1998PEREIRA, Rui M. (1998), Introdução a Reedição de 1988. DIAS, Jorge. Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT. Pp. V-LII; 2019PEREIRA, Rui M. (2019), Uma visão colonial do racismo, Cadernos de Estudos Africanos [Online], 9/10/2006, posto online no dia 27 maio 2014,2019. Disponível em http://journals.openedition.org/cea/1228, consultado em 25 de maio de 2023. DOI: 10.4000/cea.1228.
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; Dias, 1998DIAS, Jorge. (1998), Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT.; Guerreiro, 1966GUERREIRO, Manuel Viegas. (1966), Os Macondes de Moçambique - IV - Sabedoria Língua, Literatura e Jogos. Lisboa. Junta de Investigações do Ultramar, Centro de Estudos de Antropologia Cultural.; Matos, 2016MATOS, Patricia Ferraz de. (2016), “Anthropology in Portugal: the case of the Portuguese Society of Anthropology and Ethnology (SPAE), 1918”. In DARNELL, R. & GLEACH, F., Local knowledge: Global Stage, Histories of Anthropology Annual 10. Lincoln & London: University of Nebraska Press. P. 53-97).

Em 1957, Dias publicou no “Boletim Geral das Colônias”(número 382) o artigo já citado “A Expansão Ultramarina Portuguesa a Luz da Moderna Antropologia”. Invocando Aristóteles, os bárbaros e os índios “caríbides” (sic) Dias critica o “vulgo” por acreditar que “raça” e cultura sejam o mesmo e que, por consequência, haja culturas e “raças” inferiores e superiores. Chama a isso etnocentrismo. Comum a todos os povos, mas abrandado nos portugueses. O que se prova pelos grandes êxitos que os portugueses tiveram na relação com sujeitos coloniais, construindo sociedades novas e originais como o Brasil. Tal aptidão dever-se-ia a verdadeira força do cristianismo que reveste a empresa colonial portuguesa, e mesmo àquilo que ele chama de terceira fase da humanidade, de um cunho missionário, acrescido da proverbial inclinação portuguesa à miscigenação (Dias, 1957DIAS, Jorge. (1957), A Expansão Ultramarina Portuguesa a Luz da Moderna Antropologia (Antonio Jorge Dias) Boletim Geral do Ultramar. . Agência Geral do Ultramar, Portugal, Vol. XXXIII - 382, 1957, 314 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N382&p=55, consultado em 25 de maio de 2023.
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).

Conforme já muito bem discutido por Lorenzo Macagno e Rui Pereira, Dias é protagonista de episódios cruciais para a antropologia colonial em Moçambique (Macagno, 2002MACAGNO, Lorenzo (2002), Lusotropicalismo e nostalgia etnográfica: Jorge Dias entre Portugal e Moçambique. Afro-Ásia, 28, pp. 97-124; Pereira, 1989PEREIRA, Rui. (1989), A questão colonial na Etnologia ultramarina. Antropologia Portuguesa. 7, 61-78; 1998PEREIRA, Rui M. (1998), Introdução a Reedição de 1988. DIAS, Jorge. Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT. Pp. V-LII). Primeiro, como Pereira aponta, Dias em sua primeira viagem a Moçambique visitou os Maconde, povo matrilinear, que vivia sem centralização política no planalto do mesmo nome ao norte do território. Dias se ocupou de produzir um relatório confidencial - preocupado com a proverbial insubordinação e a resistência ao colonialismo dos Maconde - sobre novas pretendidas políticas coloniais, como o plantio comercial de algodão. Irônica e tristemente como sabemos, foi o massacre de Mueda, ocorrida no território maconde em 1960 um dos fatores que desencadearam a luta armada em Moçambique (Mondlane,[1969] 1995MONDLANE, Eduardo. ([1969] 1995), Lutar por Moçambique. Maputo. Nosso Chão.).

As preocupações de Dias com as ideias nacionalistas e “panafricanistas” circulando entre os maconde, assim como seu desconforto com o descarado racismo praticados pelos portugueses na colônia, e que o próprio Dias negava em outros escritos, o preocupava profundamente. Como citado por Rui Pereira “O branco habituou-se a considerar-se, de tal maneira, um ser superior, que não dá por nada estas coisas, nem mostra a mínima cortesia ao falar com pretos instruídos ou assimilados, nem muito menos pensa em estender-lhe a mão” (Pereira, 2019, pPEREIRA, Rui M. (2019), Uma visão colonial do racismo, Cadernos de Estudos Africanos [Online], 9/10/2006, posto online no dia 27 maio 2014,2019. Disponível em http://journals.openedition.org/cea/1228, consultado em 25 de maio de 2023. DOI: 10.4000/cea.1228.
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. 09). Como outros autores que publicavam no Boletim Geral da Colônia, ainda sob paradigmas físicos, Dias se preocupava também com a robustez dos Maconde, com sua uniformidade morfológica e aptidão para o trabalho. Em “Os Macondes Vol I” há um capítulo justamente intitulado “Elementos antropobiológicos”. Onde se discute na verdade, de modo mais ou menos explícito a aptidão maconde para o trabalho (Dias, 1998DIAS, Jorge. (1998), Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT.). Em outro volume da série “Sabedoria, Língua, Literatura e Jogos” (vol. IV), Manuel Viegas Guerreiro, discorre longamente sobre práticas de higiene, buscando uma relativização, que muitas vezes soa como prospecção sobre a capacidade produtiva dos sujeitos (Guerreiro, 1966GUERREIRO, Manuel Viegas. (1966), Os Macondes de Moçambique - IV - Sabedoria Língua, Literatura e Jogos. Lisboa. Junta de Investigações do Ultramar, Centro de Estudos de Antropologia Cultural.).6 6 Ou como ainda aparece em “Antropologia e Ação Médico-Sanitária”, artigo de Alexandre Sarmento, publicado em 1956 no Boletim Geral do Ultramar (Sarmento, 1956). Onde o médico qualifica as comunidades dos “nativos” como “aglomerados humanos que ainda não atingiram o pleno desenvolvimento” (p. 159), o que se conseguiria pela grandiosa obra da colonização portuguesa, por suposto.

Nesse mesmo espírito, Dias se envolve em uma espécie de explícita propaganda antropológica e/ou ideológica (Macagno, 2015MACAGNO, Lorenzo. (2015), Antropólogos na “África portuguesa”: história de uma missão secreta. África (São Paulo, 1978, Online), São Paulo, n. 35, p. 87-118. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2526-303X.v0i35p87-118 . Consultado em 25 de maio de 2023.
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; Pereira, 2019PEREIRA, Rui M. (2019), Uma visão colonial do racismo, Cadernos de Estudos Africanos [Online], 9/10/2006, posto online no dia 27 maio 2014,2019. Disponível em http://journals.openedition.org/cea/1228, consultado em 25 de maio de 2023. DOI: 10.4000/cea.1228.
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). As investigações realizadas entre os Maconde, que resultaram na série de livros por ele coordenada, além de outros trabalhos, inclusive o relatório secreto citado por Macagno, se inscrevem em um projeto mais amplo que chega a influenciar a natureza da antropologia desenvolvida em Portugal, ao tempo em que a conecta com os desenvolvimentos mais amplos da disciplina. É como lembra Pereira, citando Levi-Strauss: “Se o colonialismo não tivesse existido, o desenvolvimento da antropologia teria sido pelo menos retardado” (Pereira, 1989, p. 63).

No período anterior a 1951, a antropologia física dominava a cena, com a Escola do Porto de Mendes Correia. Nessa fase, as missões antropobiológicas dirigidas ao Ultramar se sucederam, em 1936, 1937, 1945, 1946, 1948 e 1955, dirigidas por Santos Junior, sob a influência do mesmo Mendes Correa. No período, entretanto, imediatamente anterior ao estalar da guerra de libertação nacional, e já sob a nova direção de Adriano Moreira no Centro de Estudos e Políticas Sociais - que como vimos elegeu Dias como o diretor das missões no campo, graças a sua solida formação no campo da antropologia social - inicia-se a “ocupação a cientifica das colônias”. Ao mesmo tempo, verifica-se uma transição entre antropologia física e social, e entre as preocupações antropométricas e as mais claramente políticas (Pereira, 2001PEREIRA, Rui M. (2001), A Missão etognósica de Moçambique. A codificação dos «usos e costumes indígenas» no direito colonial português. Notas de Investigação », Cadernos de Estudos Africanos [Online], 1, posto online no dia 22 agosto 2014. Disponivel em http:// journals.openedition.org/cea/1628, consultado em 25 de maio de 2023. DOI: 10.4000/cea.1628.
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; 2021PEREIRA, Rui M (2021), “Raça”, Sangue e Robustez. Os paradigmas da Antropologia Física colonial portuguesa». Cadernos de Estudos Africanos [Online], 7/8 | 2005, posto online no dia 03 junho 2014. Disponivel em http://journals.openedition.org/cea/1363, consultado em 25 de maio de 2023. DOI: https://doi.org/10.4000/cea.1363.
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).

Dias realizou múltiplas viagens a Moçambique, a União Sul-Africana e a então Tanganyka, sendo a primeira destas em 1956. Na Tanganika onde havia outra população conhecida como Maconde, mais exposta ao contato colonial,7 7 Os Macondes de Tanganyka foram descritos por Weulle em 1908. Tanto Jorge Dias como Viegas Guerreiro discutem longamente sobre a formação dessas duas populações e culturas (Weule, 2000; Dias, 1998; Guerreiro, 1966) Dias entra em contato com as ideias da TANU (Tanganyka African National Union) e de Julius Nyerere, hoje nome de avenida em Maputo, a antiga Lourenço Marques dos tempos de Dias. Ora, o nacionalismo na Tanganyka alertou Dias e as autoridades coloniais para os perigos do isolamento e da rebeldia maconde, que Jorge então buscará decifrar no primeiro volume dos “Macondes de Moçambique”. É nesse sentido que fatores da própria estrutura social maconde entram na órbita das preocupações coloniais:

Certamente que, apesar da rebeldia maconde, não lhes seria possível lutar com êxito contra tropas regulares, bem equipadas e disciplinadas. O seu regime matrilinear e matrilocal impede-os de uma organização militar eficiente (...)Porém, e por um lado eram fáceis de vencer, também era muito difícil pacifica-los, pois não havia nenhum grande chefe responsável com quem se pudesse estabelecer um tratado de paz (Dias, 1998, pDIAS, Jorge. (1998), Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT.. 93).

Em 1959, na universidade de Witwatersrand na União Sul Africana, Dias entra em contato com o antropólogo norte-americano Charles Wagley, que, atravessando o território sul-africano, visitava Moçambique e Angola a convite das autoridades portuguesas, com vistas justamente a comparação entre o apartheid e a colonização dos portugueses. Tal qual Freyre já havia feito em 1952, como vimos. Wagley fora convidado em uma tentativa de desfazer o impacto negativo criado pela visita de outro antropólogo norte-americano, Marvin Harris, que, ao contrário de celebrar o “mundo que o português criou”,8 8 Referência ao livro de Gilberto Freyre “O mundo que o português criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas (Freyre, 1940), criticou asperamente o racismo colonial (Harris, 1958HARRIS, Marvin. (1958), Portugal's African “Wards”: A First-Hand Report on Labor and Education in Moçambique. Africa Today, Vol. 5, No. 6 (Nov. - Dec., 1958), pp. 3-36 Published by: Indiana University Press Stable URL: http://www.jstor.org/stable/4183986. Consultado em 25 de maio de 2023.
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). Entre 1951 e 1952 Wagley havia trabalhado, no Brasil, em particular na Bahia, coordenando com Thales de Azevedo projeto sobre relações raciais no marco do convênio Governo do Estado da Bahia-Universidade de Columbia, germe da posterior participação de Azevedo no Projeto da UNESCO sobre convivência racial no Brasil (Maio, 1999MAIO, Marcos Chor. (1999), O Projeto Unesco e a Agenda Das Ciências Sociais No Brasil Dos Anos 40 e50. RBCS Vol. 14 no 41 outubro/99). Marvin Harris que havia concluído, em 1956, suas pesquisas também na Bahia, chega a Moçambique no mesmo ano com uma bolsa da Fundação Ford e, em 1958, publica o artigo “Portugal´s African Wards”, um dos primeiros documentos a denunciar o racismo colonial português (Harris, 1958HARRIS, Marvin. (1958), Portugal's African “Wards”: A First-Hand Report on Labor and Education in Moçambique. Africa Today, Vol. 5, No. 6 (Nov. - Dec., 1958), pp. 3-36 Published by: Indiana University Press Stable URL: http://www.jstor.org/stable/4183986. Consultado em 25 de maio de 2023.
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). Como lembra Macagno, Harris, teve, desde o início, da luta de libertação nacional, iniciada em 1964, contato com líderes da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), inclusive com Eduardo Mondlane, formado ele próprio em antropologia pela universidade de Northwestern nos Estados Unidos (Sansone, 2013SANSONE, Livio, (2013), “Eduardo Mondlane and the social sciences”. Vibrant - Virtual Brazilian Anthropopology, 10 (2): 73-111). Foi para rebater Harris, e confirmar Freyre, que Dias convidou, malogradamente, Wagley para defender o indefensável.

Sobre a Mentalidade Africana

Ora, é no contexto da eclosão da guerra revolucionária anticolonial, e no mesmo Boletim Geral das Colônias (agora do Ultramar), que Eduardo dos Santos, publica em 1969, dois artigos, “Sobre a Mentalidade Africana - A teoria das Forças” e “Sobre a Mentalidade Africana - as teorias do animismo e da participação (Santos, 1969aSANTOS, Eduardo dos. (1969a). Sobre a Mentalidade Africana - A teoria das Forças. Boletim Geral do Ultramar. Agência Geral do Ultramar, Portugal, Vol. XLV - 527, 153 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N527&p=50, consultado em 25 de maio de 2023.
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; 1969bSANTOS, Eduardo dos. (1969b). A Mentalidade Africana - as teorias do animismo e da participação. Boletim Geral do Ultramar. Agência Geral do Ultramar, Vol. XLV - 526, 160 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N526&p=23, consultado em 25 de maio de 2023.
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). Santos, sobre quem disponho até o momento de poucas informações biográficas, que certamente seriam relevantes, é referido por Adrian C. Edwards (1964)EDWARDS, Adrian. (1964) Sobre a Religião dos Quiocos. Review of Eduardo dos Santos, Lisbon: Junta de Investigações do Ultramar. (Estudos,Ensaios e Documentos, 96) 1962. Pp. 160 . Africa, Volume 34, Issue 1, January 1964, pp. 69. Disponível em https://www.cambridge.org/core/journals/africa/article/abs/sobre-a-religiao-dos-quiocos-by-eduardo-dos-santos-lisbon-junta-de-investigacoes-do-ultramar-estudos-ensaios-e-documentos-96-1962-pp-160-ill-35-escudos/F98F623D8D6CADC91DBF36B0C7EE2B7C, consultado em 25 de maio de 2023.
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em resenha de “Sobre a Religião dos Quiocos” (1962) como “chefe de posto” na região da Lunda em Angola. Em 1962 Santos publica “Sobre a Religião dos Quiocos” (também conhecidos com chokwe) na série “Estudos, ensaios e documentos da Junta de Investigações do Ultramar”, além de publicar outros artigos nesse período, encontrados no Boletim Geral de Ultramar e em outras publicações coloniais como o Boletim do Instituto de Angola . Em “Figuras Antropomórficas Dos Cestos de Adivinhação Dos Quiocos” (Areia, 1973AREIA, Manuel Laranjeira Rodrigues De. (1973), Figuras antropomórficas dos cestos de adivinhação dos Quiocos. Contribuições para o Estudo da Antropologia Portuguesa, Vol, XI, Fascículo 1º. Coimbra.) M. L. Rodrigues de Areia refere-se a Santos como um “administrativo” (p. 9). Edwards em sua resenha, é bastante crítico a obra do autor: “Infelizmente, grande parte de sua obra está repleta de citações de teóricos da era de 1910, e a religião e as práticas dos chokwe não são suficientemente colocadas no contexto da vida social” (Edwards, 1964EDWARDS, Adrian. (1964) Sobre a Religião dos Quiocos. Review of Eduardo dos Santos, Lisbon: Junta de Investigações do Ultramar. (Estudos,Ensaios e Documentos, 96) 1962. Pp. 160 . Africa, Volume 34, Issue 1, January 1964, pp. 69. Disponível em https://www.cambridge.org/core/journals/africa/article/abs/sobre-a-religiao-dos-quiocos-by-eduardo-dos-santos-lisbon-junta-de-investigacoes-do-ultramar-estudos-ensaios-e-documentos-96-1962-pp-160-ill-35-escudos/F98F623D8D6CADC91DBF36B0C7EE2B7C, consultado em 25 de maio de 2023.
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). No livro resenhado, Santos se expressa do mesmo modo como nos artigos, mobilizando uma bibliografia antropológica “da era de 1910” para condenar politicamente as pretensões do que chama de “panafricanismo radical”, como veremos abaixo.

Santos não é certamente um representante proeminente da antropologia portuguesa, diferentemente de Dias (apesar de ambos publicarem no mesmo Boletim Geral do Ultramar), não tendo ocupado, segundo os dados levantados, nenhuma posição acadêmica relevante, apesar de, por outo lado, ter assumido uma posição própria na máquina colonial portuguesa na Africa. Sendo um daqueles “men on the spot” a que se refere Clifford, citando Frazer: “o missionário, o administrador, o comerciante e o viajante” (Clifford, 2008, pCLIFFORD, James. (2008), A Experiência Etnográfica, Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro. EDUFRJ..23). Ora, além da antropologia evolucionista em que se baseia, Santos cita extensamente Arthur Ramos, psiquiatra e etnólogo brasileiro, o que parece demonstrar o trânsito da ideia de “mentalidade primitiva” que atravessou o Atlântico, mas que também se renovou e reapareceu em distintos contextos e contextos históricos. Na verdade, o próprio trânsito parece demonstrar como se produzem e sustentam categorias tais quais estas, e em que contextos.

Santos refere-se com grande ênfase a teoria de Levy-Bruhl, para criticar o missionário franciscano Placide Tempels, que viveu ente os Baluba do Congo Belga por dez anos e publicou, em 1945, o influente e contestado “Bantu Philoshophy” (Tempels, [1945]1959)TEMPELS, Placide. ([1945]1959), Bantu Philosophy. Full text, digitalised by Lies Strijker and presented by the Centre Aequatoria. Présence Africaine.. Assim como crítica a Marcel Griaule, autor de “Conversations with Ogomtommeli” e outros livros sobre a “filosofia dogon” igualmente influentes (Tempels, [1945]1959TEMPELS, Placide. ([1945]1959), Bantu Philosophy. Full text, digitalised by Lies Strijker and presented by the Centre Aequatoria. Présence Africaine.; Griaule, 1965GRIAULE, Marcel. (1965), Conversations with Ogotemmeli: an introduction to Dogon religious ideas with an introduction by Germaine Dieterlen. London: Oxford University Press for the International African Institute.). Juntamente com Evans-Pritchard e seu “Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande” (Evans-Pritchard, 2005), estes livros e autores, definem um quadro onde as questões tanto da positividade de uma filosofia africana, transcrita por europeus, pode emergir, quanto onde uma interrogação sobre a própria capacidade, ou presumida singularidade “mental” dos africanos, possa ser compreendida (Mudimbe, 1988MUDIMBE, V. Y. (1988), The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy and the Order of Knowledge. Bloomington. Indiana University Press.). As conexões entre a ideia de uma “mentalidade africana”, a teoria antropológica e os interesses coloniais ficam claros nos artigos de Santos, como veremos.

Para este último, Levy-Bruhl teria avançado ao rever a sua teoria sobre pré-logismo primitivo. Do modo como havia sido formulado, ou como Santos o havia lido, o pré-logismo abrangeria toda as manifestações da vida mental africana. Não haveria outra teoria capaz de fazer isso. Tempels, Griaule e outros, chamados de “nacionalistas exaltados”, forçaram indevidamente ao olvido a teoria das participações no pós-segunda guerra. Em Levy-Bruhl, a teoria das participações, que, de certa forma, está formulada, primeiramente, em “O Ramo de Ouro” de James Frazer publicado, originalmente, em 1890, é retomada, sendo, na verdade, uma transformação do velho problema da causalidade, classicamente presente na metafisica e epistemologia ocidentais. Tema tratado por Frazer, e por outros, nos termos de uma magia simpática, por “contágio” (metonímia) ou “similaridade” (metáfora) (Cardoso de Oliveira; 2002CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2002), Razão e Afetividade. O Pensamento de Lucien Levy-Brühl. Brasília. Editora UnB/Paralelo 15. ; Frazer, 1982FRAZER, James George. (1982), O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro. Zahar.). Em Levy-Bruhl, os “hábitos mentais” dos primitivos diferiam fundamentalmente dos modos europeus de pensar, uma vez que estes primeiros exprimiriam uma “aversão decidida” pelo raciocínio (Lévy-Bruhl, 2008, pLÉVY-BRUHL, Lucien. (2008), A “mentalidade primitiva”. São Paulo: Paulus.. 10). Bem entendido aqui, o raciocínio ou pensamento abstrato, chamado “discursivo” ou analítico. O primitivo pensaria, segundo este, “afetivamente”, por meio das famigeradas participações. “A natureza no meio da qual ele vive se lhe apresenta sob um aspecto totalmente diferente. Todos os objetos e todos os seres nela estão implicados em uma rede de participações e exclusões místicas: são elas que fazem sua contextura e sua ordem” (Lévy-Bruhl, 2008, pLÉVY-BRUHL, Lucien. (2008), A “mentalidade primitiva”. São Paulo: Paulus.. 23).

O que define a “mentalidade primitiva” como um modo “primitivo” de pensar, no qual a representação se confunde à afetividade, numa expressão etnológica que traduziria a antinomia entre razão e sentimento, ou a indiferença da “mentalidade primitiva” em relação às incompatibilidades e contradições (Cardoso de Oliveira, 2002CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2002), Razão e Afetividade. O Pensamento de Lucien Levy-Brühl. Brasília. Editora UnB/Paralelo 15. ). Ora, como diz Frazer “por mais grosseira e falsa que essa filosofia nos possa parecer, seria injusto negar-lhe o mérito da coerência lógica” (Frazer, 1982, pFRAZER, James George. (1982), O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro. Zahar.. 97). Na medida em que coerência lógica implique em autonomia epistemológica irredutível, o pensamento primitivo parece perigoso para a antropologia colonial, materializando de forma inaceitável “uma mediação notável entre o rigor de um exercício filosófico e as fantasias de uma insurreição política” (Mudimbe, 1988, pMUDIMBE, V. Y. (1988), The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy and the Order of Knowledge. Bloomington. Indiana University Press.. 43). Em “A mentalidade primitiva” Lévy-Bruhl insiste na aversão decidida pelo raciocínio que separaria como um “dualismo de mentalidades diferentes” o africano do europeu. Para ele, identifica-se aqui a mesma “aversão” por “operações discursivas” e hábitos mentais, e a mesma ausência de bom senso e de arte de raciocinar, que se refere justamente a característica excessivamente concreta do pensamento africano, oposta à tradição metafísica, platônica, do pensamento racional, conceitual e nesse sentido, universal (Lévy-Bruhl, 2008LÉVY-BRUHL, Lucien. (2008), A “mentalidade primitiva”. São Paulo: Paulus.). Ora, entre os primitivos, e dentre estes com estardalhaço, para os africanos, as operações mentais não se destacam dos objetos materiais que as provocam, não objetivam ou melhor, não são capazes de abstração: “o conjunto de hábitos mentais que exclui o pensamento abstrato e o raciocínio propriamente dito parece de fato se encontrar em um grande número de sociedades inferiores e constituir um traço característico e essencial da mentalidade dos primitivos” (Lévy-Bruhl, 2008, pLÉVY-BRUHL, Lucien. (2008), A “mentalidade primitiva”. São Paulo: Paulus.. 18). Sob essa episteme “primitiva”, o objeto apreendido não é uma representação, mas está infundido de misticismo e de afetividade, de tal modo que as propriedades místicas dos objetos e seres são parte integrante da representação e não se lhes opõe como na teoria do conhecimento ocidental (Cardoso de Oliveira, 2002CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2002), Razão e Afetividade. O Pensamento de Lucien Levy-Brühl. Brasília. Editora UnB/Paralelo 15. ).

A episteme do século XVI europeu, aliás, descrita por Foucault em “As Palavras e as Coisas”, parece curiosamente análoga ao pensamento primitivo (Foucault, 1967FOUCAULT, Michel. (1967), As Palavras e as Coisas. Rio de Janeiro. Martins Fontes.). O mundo excessivamente simbólico do primitivo onde tudo estaria conectado pelas leis da participação, onde toda realidade guarda um sentido oculto, “místico”, afetivo, sustentado por conexões de base metafórica ou metonímica, onde a distinção entre o “natural e o sobrenatural” não existe (Frazer, 1982, pFRAZER, James George. (1982), O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro. Zahar.. 33). Ou, como novamente está em Lévy-Bruhl: “O primitivo não distingue entre este mundo e o outro, entre o real sensível e o além. Ele vive de fato com os espíritos invisíveis e com as forças impalpáveis. Essas realidades são para ele as mais reais” (Lévy-Bruhl, 2008, pLÉVY-BRUHL, Lucien. (2008), A “mentalidade primitiva”. São Paulo: Paulus..20). Ora, não é este também o mundo descrito por Foucault, coberto de signos que nos cabe decifrar, um mundo fractal de muitos microcosmos onde a linguagem - a palavra - é o sinal, não-arbitrário, pré-saussureano das coisas que assumem a forma mágica de um jogo, o do signo e do similar? Fazendo do tecido da realidade um grande texto onde se cruzam a natureza e o verbo, e onde a linguagem é parte do mundo, não sua representação, como uma coisa da natureza, participando, assim, da mesma realidade e agindo sobre ela? (Foucault, 1967, pFOUCAULT, Michel. (1967), As Palavras e as Coisas. Rio de Janeiro. Martins Fontes.. 44).

Para Santos, na verdade, Tempels, Griaule e outros negavam a contribuição fundamental de Lévy-Bruhl, que enxergaria, na verdade, continuidade entre o pensamento moderno e o primitivo. Santos identifica, as vezes de modo confuso, uma continuidade nas teorias sobre a mentalidade, que vai de Durkheim a Lévi-Strauss e que reconhece a Universalidade do espírito humano, reencontrada no “dualismo de mentalidades diferentes”. O mesmo pré-logismo de Levy-Bruhl, que Santos, como Roberto Cardoso de Oliveira, enfatiza não se tratar de “antilogismo” ou “alogismo”. O que se passa é que em sua revisão do pré-logismo, Lévy-Bruhl estende-se para uma teoria geral que transbordava da Africa e que reconhece o primitivo em todos nós. Santos insiste então em uma unidade indiferenciada, “polissintética”, uma mentalidade mística presente em toda a humanidade (Cardoso de Oliveira, 2002, pCARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2002), Razão e Afetividade. O Pensamento de Lucien Levy-Brühl. Brasília. Editora UnB/Paralelo 15. . 103). Dessa forma, a “mentalidade primitiva” é um atributo humano, não irrevogável, mas apenas contingencialmente africano. Sendo um aspecto da mentalidade humana geral, no que se apoia Santos nas ideias de Arthur Ramos, visto que para esse último a “mentalidade primitiva” foi um conceito válido para explicar a permanência de “africanismos”, como “sobrevivências” na sociedade brasileira (Ramos, [1934]2007RAMOS, Arthur. ([1934]2007), O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 10, n. 4, p. 729-744, dez. 2007; Oliveira, 2021OLIVEIRA, Amurabi. (2021), “Afro-Brazilian Studies from Psychoanalysis to Cultural Anthropology: An Intellectual Portrait of Arthur Ramos”, in BEROSE International Encyclopaedia of the Histories of Anthropology, Paris. https://www.berose.fr/article2327.html?lang=fr . Consultado 24 de outubro de 2021
https://www.berose.fr/article2327.html?l...
; Ozanam, 2022OZANAM, Israel. (2022), A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022). Ora, é exatamente a presença dessa categoria, “primitivista”, que conecta a antropologia colonial portuguesa e a antropologia do negro no Brasil em seu momento formador. E é para essa conexão que quero chamar a atenção do leitor.

Para Santos, decididamente, a teoria de Lévy-Bruhl seria melhor que o “radicalismo” de Tempels e Griaule, que pressuporiam uma descontinuidade epistemológica, para não dizer ontológica, entre os bantu, os dogons e os ocidentais. A teoria do pré-logismo, inversamente, teria para Santos caráter universal e reconheceria a unidade fundamental dos seres humanos, abrindo espaço para comunicação, quase diria, conversão, intercultural. Santos atribui ao espírito da época o sucesso de teorias nacionalistas radicais como as de Tempels, um franciscano belga, e de Griaule, o intrépido líder da controversa expedição Dacar-Dijubti (Leiris, 2007LEIRIS, Michel. (2007), A África Fantasma. São Paulo. Cosac & Naif.; Peixoto, 2007PEIXOTO, Fernanda Areas. (2007), “A Viagem como Vocação - Antropologia e Literatura na Obra de Michel Leiris”, in LEIRIS, Michel. (2007). A África Fantasma. São Paulo. Cosac & Naif. ; Brumana, 2011BRUMANA, Fernando Giobellina. (2011), O Sonho Dogon. Nas Origens da Etnologia Francesa. São Paulo. EDUSP.).

Como Fernanda Peixoto salienta, os Dogons, em especial, fascinam a imaginação ocidental desde Frobenius. Com a obra de Marcel Griaule, e de colaboradores como Michel Leiris e Germaine Dieterlen, o esplendor estranho dos mitos dogons e seus deuses interestelares - Amma, bissexuado, e os aquáticos Nummos gêmeos - ganha ampla repercussão na antropologia social (Peixoto, 2007PEIXOTO, Fernanda Areas. (2007), “A Viagem como Vocação - Antropologia e Literatura na Obra de Michel Leiris”, in LEIRIS, Michel. (2007). A África Fantasma. São Paulo. Cosac & Naif. ; Griaule, 1965GRIAULE, Marcel. (1965), Conversations with Ogotemmeli: an introduction to Dogon religious ideas with an introduction by Germaine Dieterlen. London: Oxford University Press for the International African Institute.). A originalidade do estilo de Griaule já foi destacada por James Clifford que apontou como sua obra, seu estilo etnográfico singular, assim como sua personalidade dominante, imprimiram no texto tensões derivadas do “encontro colonial” Como aliás, “Africa Fantasma” de Michel Leiris deixa bem evidente (Leiris, 2007LEIRIS, Michel. (2007), A África Fantasma. São Paulo. Cosac & Naif.; Clifford 2008CLIFFORD, James. (2008), A Experiência Etnográfica, Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro. EDUFRJ.). A incrível complexidade metafísica dos Dogons, além de seus propalados e contestados conhecimentos astronômicos, parece ainda mais filosófica em função da grande abstração e da presença de numerais em diversos aspectos da cultura e da cosmologia. Assim como pela utilização complexa e sofisticada de símbolos, “que representam a si mesmos” (Wagner, 2017WAGNER, Roy. (2017), Símbolos que representam a si mesmos. São Paulo. Editora UNESP.), repartindo o universo-celeiro dogon em 8 níveis, que correspondem a posições sociais, partes do corpo, regras de parentesco e princípios rituais, como uma profusa tabela de correspondências explicita ao final do livro.

Em uma das áreas montanhosas mais notáveis da África vive uma população de camponeses-guerreiros que foram nos últimos povos a perder sua independência e submeter-se ao domínio francês” (Griaule, 1965, pGRIAULE, Marcel. (1965), Conversations with Ogotemmeli: an introduction to Dogon religious ideas with an introduction by Germaine Dieterlen. London: Oxford University Press for the International African Institute..1). Assim prefacia Griaule sua obra. Marcada textualmente por trinta e três encontros, trinta e três dias, com o sábio-caçador Ogotemmeli. Que lhe explica em detalhes complexos e fantásticos a cosmologia e a ontologia dogon, que nas palavras de Griaule configuram uma verdadeira “filosofia especulativa” (p.161), o que certamente contraria Levy-Bruhl e por extensão a Santos. Operando sobre a origem do mundo e sua estrutura, Griaule, ou Ogotommeli, vê um princípio de classificação universal: “Agora tudo estava claro e a geometria divina definida.” (Griaule, 1965, pGRIAULE, Marcel. (1965), Conversations with Ogotemmeli: an introduction to Dogon religious ideas with an introduction by Germaine Dieterlen. London: Oxford University Press for the International African Institute.. 35). Além de uma geometria celeste, transcrita como códigos presentes em toda a vida social, Griaule vê em operação “forças”, o mesmo princípio ontológico tão zelosamente defendido por Tempels, como prova do raciocínio especulativo baluba, bantu e por extensão, africano.

Mas, o que diz exatamente Tempels, em sua filosofia “mais intuititiva que refletida”, neste livro de grande influência, que perturbou tanto a Santos, justamente pela reinvindicação de uma ontologia bantu, materializada em uma filosofia implícita no modo de vida bantu, no caso baluba. E deixemos em suspensão se é possível considerar uma epistemologia e ontologias implícitas em formas culturais, como uma “verdadeira” filosofia sistemática. Ou, de outro modo, é necessário nos questionarmos se a filosofia bantu, é de fato bantu, ou uma interpretação, ademais localizada e ideológica, de Tempels (Mudimbe, 1988MUDIMBE, V. Y. (1988), The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy and the Order of Knowledge. Bloomington. Indiana University Press.). Para Tempels a resposta é clara: “suas idéias sobre a natureza do universo são conhecimentos essencialmente metafísicos, o que os constitui como uma ontologia” (Tempels, ([1945]1959)TEMPELS, Placide. ([1945]1959), Bantu Philosophy. Full text, digitalised by Lies Strijker and presented by the Centre Aequatoria. Présence Africaine., p. 17) Seja como for, a ideia de força vital, análoga a outros princípios semelhantes espelhados pela África bantu e mesmo entre os yorubanos, não bantu, é a noção fundamental. “O ser é força, a força é ser” diz Tempels, de tal modo que não se trata meramente de que o ser seja animado pela “força” ou a exerça, mas que sua própria natureza é ser atuação, movimento.

A força, insiste ainda Tempels, é um laço resultante dea comunhão, participação de uma mesma realidade, de um mesmo princípio, é vida e é palavra, tal como nas próprias fundações da ontologia bantu (Tempels, [1945]1959, p. 27). A teoria de Tempels aponta para a sutileza da noção do ser, de uma ontologia na qual “não é real o que atua, o que atua é que é real”, diz Santos (1969a, pSANTOS, Eduardo dos. (1969a). Sobre a Mentalidade Africana - A teoria das Forças. Boletim Geral do Ultramar. Agência Geral do Ultramar, Portugal, Vol. XLV - 527, 153 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N527&p=50, consultado em 25 de maio de 2023.
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. 56).

O ponto, entretanto, para Santos é o entusiasmo como que a teoria de Tempels foi recebida pelos africanos, justamente nesse contexto de declínio do colonialismo, emergência do nacionalismo africano e eclosão da luta armada em Angola e Moçambique. Sendo assim, a teoria de Tempels seria vista como radical, legitimando a independência e nacionalismos exacerbados.

Ponderadas a teoria de Lévy-Bruhl de um lado, e as teorias das forças, de outro, nos efeitos mais imediatos, há uma diferença entre umas e outras: a primeira, retocada que foi depois, admite a evolução, a passagem do pensamento arcaico para o pensamento moderno, as teorias das forças são radicais, opõem-se a uma unidade do pensamento, nunca mais alcançável, numa autêntica manifestação de etnocentrismo pan-africano (Santos, 1969a, pSANTOS, Eduardo dos. (1969a). Sobre a Mentalidade Africana - A teoria das Forças. Boletim Geral do Ultramar. Agência Geral do Ultramar, Portugal, Vol. XLV - 527, 153 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N527&p=50, consultado em 25 de maio de 2023.
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.57).

A questão é que a teoria de Tempels, assim como a de Griaule e outros deixa em aberto a questão de saber se efetivamente o negro pensa, ou não, de modo diferente do branco. Ou seja, a reivindicação de uma ontologia, de uma forma de pensamento, uma episteme não-ocidental, ameaçava um princípio de universalidade, ele mesmo pressuposto para a colonização missionária e cordial dos portugueses. Se Tempels estiver certo voltaríamos, segundo Santos, as piores consequências do pré-logismo. “Pretender que a noção banta de força substitui a nossa noção de ser é um contra-senso, é pretender que o Banto tem uma inteligência essencialmente diferente da nossa, que possa pensar numa força real que não é ser” (Santos, 1969a, pSANTOS, Eduardo dos. (1969a). Sobre a Mentalidade Africana - A teoria das Forças. Boletim Geral do Ultramar. Agência Geral do Ultramar, Portugal, Vol. XLV - 527, 153 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N527&p=50, consultado em 25 de maio de 2023.
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. 57).

Em “Sobre a Mentalidade Africana - as teorias do animismo e da participação” (Santos, 1969b), segundo ensaio de Santos que estamos discutindo, o autor insiste e aprofunda seus argumentos, tendo sempre em mente, como Dias, as consequências políticas da teoria antropológica para o contexto colonial português. Definindo, assim, “mentalidade” como o conteúdo de nossa vida mental, disposições intelectuais, hábitos do espírito e crenças fundamentais. E mais que isso, “relações lógicas”, definidas, bem entendido, segundo princípios sociocêntricos, típicos da sociologia durkheimiana. Tautologicamente, Santos considera que o homem nasce em sociedade, e nesse sentido é socializado por meio categorias de entendimento que lhe advém socialmente, de modo objetivo. Aponta Santos, assim, para a conhecida indissociabilidade do complexo individuo/sociedade como matriz para formas de pensamento. Como nas “Formas Elementares da Vida Religiosa”:

Há muito se sabe que os primeiros sistemas de representações que o homem produziu do mundo e de si próprio são de origem religiosa. Não há religião que não seja uma cosmologia ao mesmo tempo que uma especulação sobre o divino. Se a filosofia e as ciências nasceram da religião, é que a própria religião começou a fazer as vezes de ciências e de filosofia (Durkheim, 2003, pDURKHEIM, Émile. (2003), As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo. Martins Fontes. XVI).

Um aspecto particular do pensamento primitivo, e enfaticamente da mentalidade africana, muitas vezes invocado, é o animismo e a noção correlata de fetichismo. Durkheim critica nesse aspecto a Tylor, o notório antropólogo evolucionista, que baseia toda a sua fabulação sobre o animismo e o despertar das crenças religiosas, no sonho e no “duplo” que se descola do sujeito para atravessar experiências transcendentais, de forma ilusória. Ora, “esse duplo é a alma” (Durkheim, 2003, pDURKHEIM, Émile. (2003), As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo. Martins Fontes.. 36). Há nesse caso todas as pressuposições, hoje obviamente inaceitáveis, e na verdade já inaceitáveis para Tempels, Griaule e outros, de que o primitivo seria como uma criança “que não sabe distinguir o animado do inanimado” (Durkheim, 2003, pDURKHEIM, Émile. (2003), As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo. Martins Fontes.. 39). Na verdade, o mesmo Durkheim desqualifica a teoria evolucionista sobre a religião. “É inadmissível, com efeito que sistemas de ideias como as religiões, que ocuparam na história, um lugar tão considerável, nos quais povos de todas as épocas vieram buscar a energia necessária para viver, sejam apenas tecidos de ilusões” (Durkheim, 2003, pDURKHEIM, Émile. (2003), As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo. Martins Fontes.. 59).

Com relação ao fetichismo, a categoria é plenamente colonial, e sua colonialidade parece mais problemática quando observamos os deslizes que a categoria experimentou do contexto das feitorias portuguesas na costa da Africa, onde “feitiço”, originou “fetiche”, fetish, na língua inglesa. E como o termo depois se tornou um tipo de perversão sexual em Freud e um atributo da alienação do capitalismo em Marx (Matory, 2018MATORY, J. L. (2018), The Fetish Revisited. Marx, Freud, and the Gids Black People Make. Durham and London. Duke University Press.). J. Lorand Matory, discute todas essas distintas implicações e correlações em “The Fetish Revisted” ao mesmo tempo em que propõem uma completa reconsideração para o termo, baseada na agência africana, distribuída, justamente nos objetos sagrados: “Referir-se a um único item físico como fetiche é também referir-se à rede de outros itens, pessoas e relacionamentos que constituem seu campo de poder” (Matory, 2018, pMATORY, J. L. (2018), The Fetish Revisited. Marx, Freud, and the Gids Black People Make. Durham and London. Duke University Press.. 26).

Ora, seguindo o segundo Levy-Bruhl, que revisa suas teorias sobre pré-logismo em seus “carnets”, Santos enfatiza a semelhança entre as formas de vida psíquica do selvagem e do civilizado, vendo nas diferenças, modulações de estágio ou idiossincrasias. O animismo e/ou fetichismo é a filosofia primitiva geral, mas em um sentido particular também os civilizados participam dessa matéria. Como sugere Santos, se o homem civilizado se encontrasse em uma situação primitiva também construiria uma teoria animista (1969b). Não deixa por outro lado de haver uma sugestão algo perturbadora no fato de que o primeiro livro do médico-antropólogo, Nina Rodrigues, pai presumido da antropologia brasileira, e fundador da tradição dos estudos afro-brasileiros acadêmicos seja justamente “O Animismo fetichista dos Negros Baianos”, publicado originalmente na Revista Brazileira entre 1896 e 1897, em quatro capítulos diferentes (Rodrigues, 1935RODRIGUES, Nina. (1935), O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.). Somente no ano de 1935, os artigos seriam editados por Arthur Ramos sob a forma de um livro e publicado no Brasil. Anteriormente publicado em francês em 1906 como “L'animisme fetichiste des negres de Bahia” pela Reis & Comp. Editeurs, o trabalho foi objeto de uma resenha escrita por ninguém menos que Marcel Mauss, que se surpreende com as continuidades africanas na Bahia: “Na realidade, as crenças até nos nomes, são realmente idênticas entre os Yorubás e entre seus parentes brasileiros: a crença nos Orixás, nos deuses-espíritos: está intacta e as relações entre o espírito e o objeto onde ele reside são concebidos da mesma maneira”. (Mauss, [1900]2005MAUSS, Marcel. (2005) Resenha de NINA RODRIGUES - L’Animisme Fétichiste des nègres de Bahia. Tradução do francês: Maria de Fátima da Costa Gonçalves. Caderno Pós Ciências Sociais, v. 2: 4, pp. 124-125., 124).

Escrevendo muito depois de Nina e de Durkheim, Santos, entretanto, como o primitivo, supostamente preso em sua condição primitiva, parece ser o homem colonial, preso em sua condição de colonizador. Não é por outra razão que parece tão atraído pelo racionalismo de Durkheim para quem o animismo, forma de pré-ciência, como vimos, está implicado em uma transição continua e permite ao autor recusar a “teoria de um mundo radical e intolerante”, que parecia estar nascendo em Bandung, em Paris e em Mueda.

Para Santos, as representações coletivas primitivas, seriam enquadradas por leis psicológicas diferentes das europeias ou ocidentais, mas não ao ponto de constituírem ontologia. É a mentalidade do selvagem que transforma a realidade objetiva e não o mundo real que é dotado de propriedades animistas. O primitivo vê, assim o mundo como o civilizado, mas o percebe de maneira diversa notadamente porque sua percepção está longe de ser um fenômeno cognitivo puro, mas está eivada de componentes afetivos. E como já bem discutido, esse é o elemento central da ambivalência teórica em Levy-Bruhl. Que como já apontado, deve muito a Frazer, como a Durkheim, e está espelhado em Nina e em Roger Bastide também, como veremos. O objeto apreendido, nesse caso e sob essa epistemologia, não é uma representação pura como para o civilizado, tanto é apreendido por meios afetivos, como não seria exatamente uma representação, mas uma forma figurada colapsando o símbolo e o simbolizado, o signo e o seu conteúdo. A palavra e a coisa. O deus e o seu fetiche. É assim que, para Santos, as propriedades místicas dos objetos e seres são parte integrante da representação e não sua substituição, definindo-se como a já referida unidade indiferenciada “polissintética”. A “mentalidade primitiva” é, dessa forma, mística e pré-lógica, não exatamente não-lógica, e o sufixo, nesse caso faria toda a diferença. Sem abster-se da contradição, opera por meio das leis da participação (contágio/similaridade). De tal forma que os objetos podem ser, de maneira incompreensível para os europeus, ao mesmo tempo eles próprios e outra coisa que não eles. Se encontrando fora deles mesmos sem deixar de estar onde estão (Lévy-Bruhl, 2008LÉVY-BRUHL, Lucien. (2008), A “mentalidade primitiva”. São Paulo: Paulus.; Cardoso de Oliveira, 2002CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2002), Razão e Afetividade. O Pensamento de Lucien Levy-Brühl. Brasília. Editora UnB/Paralelo 15. ).

A “mentalidade primitiva”, por fim não é “conceitual”, mas impermeável a experiência, reconhece a existência simultânea de dois mundos, o ordinário e o místico. E repousa em um princípio dinâmico como, aliás, também insiste Temples, confrontando a metafisica ocidental “estática” com a ontologia bantu, ou a teoria das forças, “dinâmica”. O pré-logismo, estrito senso, seria um absurdo em seus pressupostos e consequências, além de desmentido pela prática colonial e pelas promessas de “assimilação” desencadeadas justamente como respostas às ideias radicais e autonomistas (Santos, 1969aSANTOS, Eduardo dos. (1969a). Sobre a Mentalidade Africana - A teoria das Forças. Boletim Geral do Ultramar. Agência Geral do Ultramar, Portugal, Vol. XLV - 527, 153 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N527&p=50, consultado em 25 de maio de 2023.
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;1969bSANTOS, Eduardo dos. (1969b). A Mentalidade Africana - as teorias do animismo e da participação. Boletim Geral do Ultramar. Agência Geral do Ultramar, Vol. XLV - 526, 160 pags. Disponível em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N526&p=23, consultado em 25 de maio de 2023.
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). Levy-Bruhl, entretanto, corrigiu o rumo de sua teoria, trocando, ainda segundo Santos, o pré-lógico pelas participações. E reconhecendo ademais, como ressaltado acima, que haveria uma mentalidade mística presente em toda a humanidade, mais forte entre os primitivos, entretanto nunca um apanágio exclusivo dos “pretos”. O que se tornaria evidente pelo fato de que as sociedades humanas evoluem. E nesse ponto Santos cita Arthur Ramos: A “mentalidade primitiva” como estrutura psicológica pode desligar-se do ambiente e sobreviver na sociedade civilizada” (Ramos, 1969b, p. 34). Como exatamente, e mais uma vez sustentado, no caso brasileiro.

A Mentalidade Africana no Brasil

Nas páginas iniciais de “O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos”, Nina Rodrigues, sob a linguagem pesada de suas preocupações médico-etnológicas, já antecipa o que pretende: desenvolver o argumento segundo o qual no Brasil, na Bahia, mais especialmente, a catequese é uma ilusão. Uma vez que o fraco desenvolvimento intelectual da “raça” negra a impede de compreender formas religiosas mais elevadas, como o monoteísmo, permanecendo prisioneira do fetichismo, do animismo e de suas manifestações histéricas.

A existência na Bahia de crenças fetichistas tão profundas, de práticas tão regularmente constituídas como as da Africa; não ocultas e disfarçadas, mas vivendo a plena luz do dia(...) esta existência, assim vivida e multiforme, é coisa que está no ânimo público e no pleno conhecimento de todos (Rodrigues, 1935, pRODRIGUES, Nina. (1935), O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.. 16).

Ainda que, obrigado a reconhecer e considerar fatores históricos e sociológicos como o tráfico negreiro e a escravidão, Nina, ele próprio prisioneiro das ilusões da “raça”, atribuía a fatores raciais a persistência dessas práticas, conectando-as a pretendida miséria moral e material em que viveriam os negros da Africa ocidental, para os quais “se inventou a palavra fetichismo” (Rodrigues, 1935, pRODRIGUES, Nina. (1935), O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.. 164). Assim, onde Matory vê a exuberante agência transatlântica yourubana (2018), Nina vê “o animismo mais primitivo”, onde a “vida do homem é coisa mais precária” (Rodrigues, 1935, pRODRIGUES, Nina. (1935), O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.. 164). E claro está que o fetichismo animista é pedra fundamental da “mentalidade africana”, como uma categoria da teoria antropológica, e como dispositivo político-discursivo da antropologia colonial. Na Bahia, como na Africa, se encontram os mesmos “complexos”, como a crença inabalável de que não existe morte ou desgraça naturais. Trata-se dos “infortúnios”, discutidos exemplarmente para os Azande por Evans-Evans-Pritchard (2005)EVANS-PRITCHARD, Edward. (2005), Bruxaria, Oraculo e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro. Zahar Editores. como uma forma zande, africana, de pensar, que tal como os princípios fundamentais da epistemologia ocidental teria suas bem fundamentadas razões:

Ao conversar com os Azande sobre bruxaria, o observando suas reações e situações de infortúnio, tornou-se obvio que eles não pretendiam explicar a existência dos fenômenos, ou mesmo a ação dos fenômenos, apenas por uma causação mística. O que eles explicavam através da noção de bruxaria eram as condições particulares, em uma cadeia causal, que ligavam um indivíduo a acontecimentos naturais de tal forma que ele sofresse dano (Evans-Pritchard, 2005pEVANS-PRITCHARD, Edward. (2005), Bruxaria, Oraculo e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro. Zahar Editores.. 69-60).

Como Max Gluckman sugere, as observações de Evans-Pritchard deveriam ser válidas para a compreensão dos “problemas africanos” de um modo em geral, problemas iluminados por razões sociológicas, que explicariam por que um londrino pensa diferente de um zande, e por que a “mentalidade do africano” difere daquela do europeu (Gluckman, 1991GLUCKMAN, Max. (1991), La Lógica de la Ciência y de la brujería africanas. In: GLUCKMAN, Max et al. Ciência y de la brujería. Tradução Carlos Manzano. 3. ed. Barcelona: Editorial Anagrama. p. 7-30.). Como Gluckman, Evans-Pritchard, Tempels e outros perceberam, trata-se nesse caso de uma teoria das causas, quiçá inscrita em uma verdadeira ontologia. Entre os Maconde, convém ressaltar, aliás, se encontraria a mesma “mentalidade”:

Aceitam a doença natural no caso, por exemplo, de constipação ou de indigestão e disenteria provocadas por ingestão excessiva de alimentos ou má qualidade destes (...)Se o mal porém, não tem causas assim evidentes, sobrevém imediatamente o elemento sobrenatural: ou foram os espíritos dos mortos que o provocaram, ou Deus (Nnungu); ou um feiticeiro (mwavi) (Guerreiro, 1966, pGUERREIRO, Manuel Viegas. (1966), Os Macondes de Moçambique - IV - Sabedoria Língua, Literatura e Jogos. Lisboa. Junta de Investigações do Ultramar, Centro de Estudos de Antropologia Cultural..19).

E também, é claro, se aplicariam a “problemas africanos” mesmo se estes se encontrassem na Bahia: “o negro baiano está ainda nesse estado de evolução mental em que não se admite que, fora das mortes violentas, haja moléstias e mortes naturais” (Rodrigues, 1935, pRODRIGUES, Nina. (1935), O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira..196).

Apontado como mantendo diálogo estreito com a tradição dos estudos afro-brasileiros liderada por Nina, o sociólogo e etnólogo francês Roger Bastide chega ao Brasil em 1938, em 1958 publica em francês “Le Candomble de Bahia (rite nagô)” a partir de trabalho de campo realizado na Bahia (Peixoto, 2001PEIXOTO, Fernanda Areas (2001), “Apresentação - a utopia africana de Roger Bastide” in BASTIDE, Roger. (2001), in O Candomblé da Bahia - Rito Nagô. São Paulo. Companhia das Letras; Peixoto, 2022PEIXOTO, F. A., (2022), “Roger Bastide - entre tempos, espaços, tradições”. Horizontes Antropológicos 28 (62). P. 115-143.; Peixoto, 2000PEIXOTO, Fernanda Areas. (2000), Diálogos Brasileiros. Uma Análise da Obra de Roger Bastide. São Paulo. EDUSP.). Professor na Universidade de São Paulo entre 1938 e 1954, abordou diversos temas da realidade brasileira, e incorporou a produção acadêmica nacional em seus estudos, notadamente, teria encontrado na “linhagem africanista de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro” um guia para suas reflexões sobre a sociedade brasileira e sobre a presença africana na Bahia (Peixoto, 2001, pPEIXOTO, Fernanda Areas (2001), “Apresentação - a utopia africana de Roger Bastide” in BASTIDE, Roger. (2001), in O Candomblé da Bahia - Rito Nagô. São Paulo. Companhia das Letras. 8). Como Peixoto enfatiza, Bastide vê nessa aproximação da civilização africana uma forma de suportar as “duras leis da modernidade” e projetar novas utopias. Como Artaud nas montanhas vermelhas dos Tarahumaras, e Leiris entre os etíopes, Bastide vai à Bahia, buscando alternativas, uma cura, para os males da civilização (Artaud, 2020ARTAUD, Antonin. (2020), Os Tarahumaras. Belo Horizonte. Moinhos.; Leiris, 2007LEIRIS, Michel. (2007), A África Fantasma. São Paulo. Cosac & Naif.). No livro sobre o candomblé da Bahia onde cita Tempels e Griaule, Bastide vai em busca de uma metafisica africana e de uma epistemologia Yoruba. Citando também Lucien Levy-Bruhl, Bastide discute as participações na cultura nagô-bahiana. Se pergunta, entretanto, como Tempels e Mudimbe: “a questão a se colocar é saber se esses esquemas intelectuais primitivos constituiriam ou não verdadeiras classificações, sistematizações logicas dignas do nome” (Bastide, 2001, pBASTIDE, Roger. (2001). O Candomblé da Bahia - Rito Nagô. São Paulo. Companhia das Letras.. 259).

A razão negra como Mbembe a define apresenta “dois textos”, o primeiro “exterior” que chama a consciência ocidental do negro, que o define como uma “exterioridade selvagem”; e um segundo, “interno”, que responde à questão “quem sou eu?” e que Mbembe chama de consciência negra do negro (Mbembe, 2014MBEMBE, Achille. (2014), Crítica da Razão Negra. Lisboa. Antígona.). Tentador situar Tempels, Griaule, Bastide de um lado dessa orquestração que busca reconhecer a humanidade do negro e principalmente o valor diferencial de sua cultura ou mentalidade, que pode ser descrita de modos ontológicos ou epistemológicos, como uma diferença aparentemente irredutível. E daí o escândalo de Eduardo Santos e da antropologia colonial portuguesa, que entendia que ao reconhecer a singularidade do pensamento africano seria levada a conclusão logica de conceder autonomia e responsabilidade moral ao sujeito africano. E de outro lado colocaríamos Dias e Rodrigues, comprometidos, em momentos e contextos diferentes, com a manutenção, ainda que a partir de linguagens acadêmicas distintas, de uma diferença não apenas onto-epistemológica entre negros e brancos, mas fundamentalmente uma diferença política9 9 Como, aliás, enfatiza Ozanam para o caso de Nina Rodrigues (Ozanam, 2022). Justamente tornada possível pelo contexto colonial. Na Africa Portuguesa e o que parece perturbador, também na Bahia. Entre Bastide e Nina e entre Tempels e Eduardo dos Santos a ideia de uma mentalidade africana aparece, apesar das óbvias diferenças, como um elo de ligação. A epistemologia espontânea, implícita na organização social africana (entre os dogon, os baluba, os zande ou na Bahia) e a filosofia idealista ocidental presente na antropologia, parecem encontrar na antropologia africanista, como linguagem colonial, na ideia “polissintética” de mentalidade africana, uma tensa, densa e ainda aberta fronteira.

  • 1
    A referência à “metafísica” aparece em diversos dos autores citados, de modos diferentes. Usualmente significando a tradição idealista, platônica, da filosofia ocidental, mas também sistemas de pensamento abstrato ou especulativo, mais ou menos formalizados.
  • 2
    O “Boletim Geral do Ultramar”, consultado para o período entre 1950 e 1969, assim como “Moçambique: Documentário trimestral” (1950 a 1961); e os “Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique” (Volume X) disponíveis virtualmente em “Memórias da Africa do Oriente” <http://memoria-africa.ua.pt/Library/BGC.aspx>, foram as principais fontes consultadas nesse artigo.
  • 3
    Esta e todas as demais traduções foram realizadas pelo autor.
  • 4
    Diversas outras missões, inclusive organizadas por Mendes Correa precederam a estas (Macagno, 2015MACAGNO, Lorenzo. (2015), Antropólogos na “África portuguesa”: história de uma missão secreta. África (São Paulo, 1978, Online), São Paulo, n. 35, p. 87-118. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2526-303X.v0i35p87-118 . Consultado em 25 de maio de 2023.
    http://dx.doi.org/10.11606/issn.2526-303...
    ; Pereira, 2001PEREIRA, Rui M. (2001), A Missão etognósica de Moçambique. A codificação dos «usos e costumes indígenas» no direito colonial português. Notas de Investigação », Cadernos de Estudos Africanos [Online], 1, posto online no dia 22 agosto 2014. Disponivel em http:// journals.openedition.org/cea/1628, consultado em 25 de maio de 2023. DOI: 10.4000/cea.1628.
    https://doi.org/10.4000/cea.1628...
    )
  • 5
    Margot Dias é, aliás, autora de trabalho muito interessante sobre Arte Maconde (Dias, 1973DIAS, Margot. (1973), O Fenómeno da Escultura Maconde chamada “moderna”. Estudos de Antropologia Cultural. No. 9, Junta de Investigações do Ultramar. Lisboa.)
  • 6
    Ou como ainda aparece em “Antropologia e Ação Médico-Sanitária”, artigo de Alexandre Sarmento, publicado em 1956 no Boletim Geral do Ultramar (Sarmento, 1956SARMENTO, Alexandre. Antropologia e Ação Médico-Sanitária. (1956). Boletim Geral do Ultramar . XXXII - 367 PORTUGAL. Agência Geral do Ultramar, Vol. XXXII - 367, 309 pags. Disponivel em http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGU-N367&p=159, consultado em 25 de maio de 2023.
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    ). Onde o médico qualifica as comunidades dos “nativos” como “aglomerados humanos que ainda não atingiram o pleno desenvolvimento” (p. 159), o que se conseguiria pela grandiosa obra da colonização portuguesa, por suposto.
  • 7
    Os Macondes de Tanganyka foram descritos por Weulle em 1908. Tanto Jorge Dias como Viegas Guerreiro discutem longamente sobre a formação dessas duas populações e culturas (Weule, 2000WEULE, Karl. (2000), Resultados Científicos da Minha Vagem de Pesquisas Etnográficas no Sudeste da Africa Oriental. Maputo. Departamento de Museus.; Dias, 1998DIAS, Jorge. (1998), Os Macondes de Moçambique - I - Aspectos Históricos e Econômicos. Lisboa. CNCDP/IICT.; Guerreiro, 1966GUERREIRO, Manuel Viegas. (1966), Os Macondes de Moçambique - IV - Sabedoria Língua, Literatura e Jogos. Lisboa. Junta de Investigações do Ultramar, Centro de Estudos de Antropologia Cultural.)
  • 8
    Referência ao livro de Gilberto Freyre “O mundo que o português criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas (Freyre, 1940FREYRE, Gilberto. (1940), O mundo que o português criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas. Rio de Janeiro: J. Olympio.),
  • 9
    Como, aliás, enfatiza Ozanam para o caso de Nina Rodrigues (Ozanam, 2022OZANAM, Israel. (2022), A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022).

BIBLIOGRAFIA

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2021
  • Aceito
    16 Nov 2022
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