Resumos
O artigo descreve a história da pereirina, um alcaloide extraído das cascas da Geissospermum vellosii Allemão, uma espécie de planta brasileira da família Apocynaceae, conhecida popularmente como Pau-pereira. A classificação botânica desta espécie e o emprego da pereirina na medicina popular foram as razões que acirraram a disputa entre os farmacêuticos brasileiros e estrangeiros pela glória de sua descoberta no Brasil do século XIX. Neste estudo constatou-se que a glória desta descoberta é do farmacêutico brasileiro Ezequiel Corrêa dos Santos e desta maneira, a pereirina é o primeiro alcaloide isolado no Brasil. As cascas do Pau-pereira foram, durante dois séculos, um importante remédio no combate a diversas doenças, devido às propriedades terapêuticas dos alcaloides presentes nas cascas da espécie e atualmente pesquisas estão sendo realizadas para comprovação científica de sua eficácia no combate a doenças virais como Aids, herpes e hepatite C.
Pau-pereira; Geissospermum vellosii; alcaloide; Apocynaceae; Ezequiel Corrêa dos Santos
This article describes the history of pereirina, an alkaloid extracted from Geissospermum vellosii Allemão barks, a Brazilian plant of Apocynaceae's family, popularly known as "pau-pereira". The botanical classification of this species and the use of pereirina in popular medicine were reasons for controversies and irritated disputes for the glory of the discovery among Brazilians and foreigners pharmacists. For two centuries, the pau-pereira's barks were important remedy to combat various diseases, because the therapeutic properties of alkaloids present in the barks of the species. The currently researches are being carried out for scientific proof of its effectiveness in combating viral diseases such as AIDS, herpes and hepatitis C.
Pau-pereira; Geissospermum vellosii; alkaloid; Apocynaceae; Ezequiel Corrêa dos Santos
DIVULGAÇÃO
Pereirina: o primeiro alcaloide isolado no Brasil?
Was pereirina the first alkaloid isolated in Brazil?
Márcia R. Almeida*; Josélia A. Lima; Nadja P. dos Santos; Angelo C. Pinto
Departamento de Química Orgânica, Instituto de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Tecnologia, Bloco A, Cidade Universitária, 21941-909 Rio de Janeiro-RJ, Brasil
RESUMO
O artigo descreve a história da pereirina, um alcaloide extraído das cascas da Geissospermum vellosii Allemão, uma espécie de planta brasileira da família Apocynaceae, conhecida popularmente como Pau-pereira. A classificação botânica desta espécie e o emprego da pereirina na medicina popular foram as razões que acirraram a disputa entre os farmacêuticos brasileiros e estrangeiros pela glória de sua descoberta no Brasil do século XIX. Neste estudo constatou-se que a glória desta descoberta é do farmacêutico brasileiro Ezequiel Corrêa dos Santos e desta maneira, a pereirina é o primeiro alcaloide isolado no Brasil. As cascas do Pau-pereira foram, durante dois séculos, um importante remédio no combate a diversas doenças, devido às propriedades terapêuticas dos alcaloides presentes nas cascas da espécie e atualmente pesquisas estão sendo realizadas para comprovação científica de sua eficácia no combate a doenças virais como Aids, herpes e hepatite C.
Unitermos: Pau-pereira, Geissospermum vellosii, alcaloide, Apocynaceae, Ezequiel Corrêa dos Santos.
ABSTRACT
This article describes the history of pereirina, an alkaloid extracted from Geissospermum vellosii Allemão barks, a Brazilian plant of Apocynaceae's family, popularly known as "pau-pereira". The botanical classification of this species and the use of pereirina in popular medicine were reasons for controversies and irritated disputes for the glory of the discovery among Brazilians and foreigners pharmacists. For two centuries, the pau-pereira's barks were important remedy to combat various diseases, because the therapeutic properties of alkaloids present in the barks of the species. The currently researches are being carried out for scientific proof of its effectiveness in combating viral diseases such as AIDS, herpes and hepatitis C.
Keywords: Pau-pereira, Geissospermum vellosii, alkaloid, Apocynaceae, Ezequiel Corrêa dos Santos.
INTRODUÇÃO
"Desde o alvor da humanidade moderna
que o Homo sapiens se serviu,
sem dúvida, de forma consciente dos vegetais
para manter a vida e esconjurar a morte"
(Le Goff)
O Brasil, desde seu descobrimento, era visto como lugar paradisíaco. A natureza era motivo de fascínio e interrogação para colonizadores e viajantes que aqui chegaram a partir do século XVI. Diante do grandioso espetáculo vislumbrado, estes homens detiveram-se em descrever os habitantes da terra, os animais, os minerais e com especial destaque às plantas. As plantas despertaram o merecido cuidado, de diversas formas. Belas e coloridas eram usadas como alimento, veneno ou medicamento. Descrevê-las era a forma de as revelar. Dizer de suas utilidades, principalmente como remédio, era o critério adotado para inseri-las em uma ordem natural. Os cronistas inicialmente as mencionaram, depois descreveram-nas e os cientistas, mais tarde, classificaram-nas.
Homens sem escrita, os indígenas das terras do pau-brasil eram os portadores dos saberes sobre as plantas nativas. Os europeus encontraram aqui uma série de práticas que extrapolavam seu repertório cultural, porém muitos atentaram para os usos empíricos de espécies vegetais feitos pelos ameríndios, aprendendo com esses "seres estranhos e inferiores", como eles mesmos assinalavam (Marques, 1999). Relacionando a árvore à sua utilização, nomeavam o achado pela denominação usual, no caso a nomenclatura indígena, a única então existente, para representar a natureza do novo mundo. Não há, entretanto, registros padronizados nem descrições organizadas, mas uma preocupação em dar visibilidade ao espetáculo vislumbrado (Pinto et al., 2007).
O processo de apropriação e certificação do conhecimento dos países dominados era baseado nas experiências da população local, do interesse pelas plantas e de suas atividades farmacológicas, principalmente pela possibilidade de fabricação de remédios valiosos e inéditos, demonstrando poder intelectual e soberania. A classificação botânica se converte em uma prática indispensável e após a localização da planta segundo a ordenação de Lineu, a mesma era renomeada e levada ao laboratório para ser reduzida a seus componentes químicos, para fabricação de remédios a partir de seus princípios ativos (Olarte, 2000).
Este artigo trata da recuperação da história da pereirina, um alcaloide extraído das cascas do Pau-pereira (Geissospermum vellosii Allemão), na farmácia de Ezequiel Corrêa dos Santos (1801-1864), em 1838, considerado por diversos autores (Pinto et al., 2002; Carrara & Meirelles, 1996; Santos Filho, 1991; Araújo, 1979; Guimarães, 1887) como o primeiro alcaloide isolado no Brasil.
OS ALCALOIDES
"A medicina se fundamenta na natureza,
a natureza é a medicina,
e somente naquela devem os homens buscá-la.
A natureza é o mestre do médico,
já que ela é mais antiga do que ele
e existe dentro e fora do homem."
(Paracelso)
A certificação de novos remédios requeria uma transição da botânica à química, do campo para o laboratório. Farmácia e Medicina nunca foram totalmente independentes do trabalho dos botânicos, mas as análises químicas conferiam critérios mais seguros para legitimar os remédios vegetais. Algumas plantas que pertenciam à gêneros e espécies diferentes podiam servir aos mesmos propósitos e podiam ser vistas como possuidoras dos mesmos ou similares "princípios ativos".
Os extratos de plantas contendo alcaloides são utilizados como medicamentos, venenos e poções mágicas desde os primórdios da civilização. Desta maneira é difícil estabelecer a origem correta da descoberta destas substâncias. Registros indicam que o ópio era utilizado pelos Sumérios há 4000 anos a.C. devido as suas propriedades soporíficas e analgésicas (Hostettman et al., 2003).
O isolamento das primeiras substâncias puras do reino vegetal começa a acontecer no século XIX. Este século caracteriza-se pelos trabalhos de extração, principalmente de ácidos orgânicos e de bases orgânicas, as quais mais tarde receberam a denominação de alcaloides. São desta época o isolamento da morfina (1804), quinina e estriquinina (1820).
Considerado o pai da química de alcaloides, o farmacêutico alemão Friedrich Wilhelm Setürner (1783-1841) isolou a morfina, anteriormente isolada por Armand Séquin (1767-1835), e a experimentou em seu próprio cão, demonstrando a propriedade narcótica deste alcaloide.
As culturas americanas, especialmente a Inca, Asteca, Maya, Olmeca e Tolteca consignaram à civilização moderna a quina, a ipecacuanha, a coca e muitas outras drogas de valor terapêutico, cujos princípios ativos são alcaloides (Pinto, 1995).
A quinina, um alcaloide quinolínico extraído das cascas da quina, utilizado no tratamento da febre amarela, foi isolado em Paris em 11 de setembro de 1820 pelos químicos franceses Pierre Joseph Pelletier (1788-1842) e Joseph Bienaimé Caventou (1795-1877). A quinina foi utilizada na forma de sulfato para o tratamento das "febres perniciosas" após os estudos de François Mangendie (1787-1855) e Auguste-François Chomel (1788-1858). Os bons resultados constatados pelos médicos militares na Guerra da Espanha (1823) e na expedição à ilha de Moréia (1828) aumentaram o interesse por este alcaloide. Sua eficácia no tratamento da malária foi demonstrado, ainda, no século XIX pelo médico François Maillot, a partir de 1834. Os estudos de Maillot fizeram com que ainda no século XIX a quina (Cinchona officinalis L. Rubiaceae) passasse a ser cultivada na Índia e em Java por ingleses e holandeses respectivamente, de tal forma que a Espanha perderia o controle sobre a comercialização das cascas de quina.
Muitas são as lendas sobre a descoberta e o emprego medicinal das cascas da árvore da quina. Uma delas conta que os indígenas começaram a utilizá-la ao observarem animais doentes que ficaram curados após beberem água de uma lagoa, onde haviam caído cascas da árvore da quina. Já outra lenda, de origem espanhola, apenas troca o personagem, ao invés de um animal foi um soldado espanhol que sofrendo de malária no meio da selva, bebeu a água amarronzada de uma pequena lagoa, notando algum tempo depois que sua febre havia desaparecido. Concluiu que a água ingerida era responsável pela cura, e espalhou a notícia, tornando conhecida, assim, a poderosa atividade anti-malarial da quinina (Arango, 1949).
A incerteza sobre a descoberta de diversas plantas com atividades medicinais permanece presente após análise de relatos distintos, pois as invasões e conquistas promovidas por diferentes povos no início do século XVI na luta por soberania e poder, permitiam aos povos vencedores a apropriação dos conhecimentos científicos e culturais do território dominado, fortalecendo a imagem do país dominador frente aos outros países do mundo. Desta maneira a descoberta de diversas plantas e suas aplicações medicinais da região dominada eram atribuídas aos povos soberanos, possuidores de riquezas e poder. E à medida que esses conhecimentos eram apropriados, iam sendo modificados pelos povos, distanciando-se cada vez mais de sua verdadeira origem, ou do povo merecedor de sua descoberta.
Apesar dos espanhóis terem, em 1530, conquistado o Peru, nenhuma menção sobre a utilização das cascas da quina é encontrada antes do século XVII (Hostettman et al., 2003). Outro ponto importante para a nossa análise e que vale a pena ser mencionado é que o número de variedades conhecidas hoje do gênero Cinchona é extenso e a classificação e legitimação de seus usos medicinais desde sua descoberta tiveram influência direta de fatores e interesses botânicos, comerciais, medicinais e políticos, o que explicaria historicamente a complexidade taxonômica do gênero.
Com o sucedâneo da quina, a árvore do Pau-pereira, a história não foi diferente. Por apresentar gosto amargo, como as cascas da quina, as cascas do Pau-pereira eram utilizadas pelos indígenas no tratamento de febres.
Tal fato despertou interesse entre os médicos e farmacêuticos da época. Os primeiros intrigados com a cura de diversas doenças, principalmente da febre amarela, incentivaram o banho com água obtida a partir do cozimento das cascas do Pau-pereira e os farmacêuticos que atuavam no Brasil no século XIX iniciaram uma série de pesquisas, curiosos em descobrir seu princípio ativo, para isolá-lo e comercializá-lo em suas boticas.
O farmacêutico brasileiro, Ezequiel Corrêa dos Santos isolou o princípio ativo das cascas do Pau-pereira, em 1838, e o descreveu como sendo um alcaloide, denominando-o pereirina. A primazia da descoberta deste alcaloide, no entanto, foi discutida desde o início, ainda no âmbito do Brasil, pelos farmacêuticos franceses Jean Louis Alexandre Blanc (?-1869) e Jean Marie Souillé (1800-1879), que também estudaram a ação da pereirina, e no exterior por Charles Henri Pfaff (1773-1852) e Berend Goos (1815-1885), que atuou como farmacêutico em Hamburgo, e mais tarde ficou conhecido como pintor de animais e plantas.
O PAU-PEREIRA
A árvore do Pau-pereira foi inicialmente classificada por Frei José Mariano da Conceição Velloso (1741-1811), que analisando as características da planta classificou-a, no gênero Tabernaemontana, sendo necessário, contudo a criação de uma nova espécie, designada por Velloso como Tabernaemontana laevis Vell. (Apocynaceae) (Velloso, 1827).
Entretanto, o desenho da planta apresentava características que contradiziam a classificação dada por Velloso. Este foi o motivo pelo qual Alphonse de Candolle (1806-1893), no Tomo VIII de sua obra Prodomus Systematis Naturalis Regni Vegetabilis, concorda com a classificação dentro do gênero Tabernaemontana, dando a prioridade da classificação a Frei Velloso, mas atribuía a um erro do desenhista a representação da planta, já que as espécies pertencentes a este gênero não possuem folhas opostas (De Candolle, 1844).
Outras características, além das folhas opostas, como: folhas sem estípulas, fruto indeiscente e a disposição das sementes excluem o Pau-pereira do gênero Tabernaemontana (Santos, 1848).
O Pau-Pereira também foi classificado como uma Vallesia Ruiz & Pav. (Apocynaceae) (López & Pavón, 1799) da ordem ou classe das Pentandrias monogynias, pelos farmacêuticos e botânicos espanhóis Hipólito Ruiz López (1752-1816) e Jose Antonio Pavón Y Jimenez (1754-1840), responsáveis por quatro tomos da Flora Peruviana et Chilensis (1798-1802).
A disposição das folhas, a inflorescência e o número de divisões do cálice, o formato da corola, o número e inserção dos estames são características análogas ao Pau-pereira, contudo o fruto da Vallesia era uma drupa e o do Pau-pereira era carnoso, indeiscente, dividido por um falso septo e encerrava oito ou dez sementes em duas séries. Sendo o aspecto do fruto fundamental para a taxonomia vegetal, o Pau-pereira foi excluído do gênero Vallesia (Nina, 1883).
O major Carlos Augusto Taunay (1791-1867) e o botânico russo Ludwig Riedel (1790-1861), este último responsável pela parte botânica e agrônoma na obra o "Manual do Agricultor" (1839), sem análise prévia do fruto, consideraram, erroneamente, o Pau-pereira como uma Vallesia, seguindo os registros de Ruiz e Pávon. Entretanto, de acordo com Ferreirinha (1884), os botânicos espanhóis não penetraram em terras brasileiras, sendo seus campos de pesquisas o Peru e colônias espanholas, justificando assim a classificação equivocada (Ferreirinha, 1884).
A árvore do Pau-pereira foi ainda classificada como uma Picramnia Sw. (Simaroubaceae) (Martius, 1843) por Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), mas esta classificação durou pouco tempo, pois apesar de ambas apresentarem folhas alternas e ciliadas e as cascas amargas com propriedades febrífugas, a corola do Pau-Pereira é gamopelada, e pertence a família Apocynaceae, já as picramnias pertencem a família Simaroubaceae.
Diante de tantas classificações errôneas, Francisco Freire Allemão de Cysneiros (1797-1874), médico e botânico brasileiro, reuniu as características diferenciais da planta e observando que tais características eram distintas de todas apresentadas por gêneros existentes, criou em 1845, o gênero Geissospermum, levando em consideração a disposição genérica das sementes. Em homenagem ao primeiro botânico que a descreveu, Freire Allemão denominou a espécie de Geissospermum vellosii Allemão (Apocynaceae).
Após descrever as características da planta cita:
"(...) são caracteres que não se achão reunidos em gênero algum dos até aqui descritos. Por isso me animei a propor um gênero novo, cujo caracter principal deduzi do arranjamento das sementes. Quanto à espécie entendi ser de rigorosa justiça que ela fizesse lembrar o nome de Velloso, sendo ele o primeiro que tratou d'esta planta, reconhecendo-a por espécie nova. O nome específico de-laevis-dado por Velloso não o conservei, por não convir a planta" (Freire Allemão, 1845 apud Nina, 1883, op. cit.)
A classificação dada por Freire Allemão foi aceita pela maioria dos membros da comunidade científica da época, inclusive por Johannes Müller Argoviensis, botânico suíço (1828-1896), que em 1846, descreveu a Geissospermum vellosii, além de outras espécies da família Apocynaceae e as famílias Resedaceae e Euphorbiaceae na Flora Brasiliensis de von Martius (Martius, 1845).
Embora o botânico e médico francês Henri Ernest Baillon (1827-1895), da Faculdade de Paris, fosse favorável a denominação laeve, Almir Parga Nina em sua tese defendida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1883, argumentou que a homenagem a Velloso é extremamente vantajosa por divulgar, não só o botânico, mas o trabalho dos pesquisadores brasileiros em outros países (Nina, 1883). Em trabalhos posteriores, os pesquisadores franceses ainda utilizavam a denominação de Baillon (Raymond-Hamet, 1933; Puisieux et al., 1959; Aurosseau, 1961a, b; Janot, 1961). Entretanto, décadas depois, pesquisadores brasileiros, utilizam a última classificação botânica, dada à planta por Baillon, por considerarem-na a mais correta (Buffolo et al., 1962; Gouvêa, 1964; Ribeiro, 1986).
A discussão acerca do nome da espécie resultou nas diversas sinonímias científicas, Tabernaemontana laeve (Vell.) Miers ou Tabernaemontana laevis Vell., Geissospermum laeve (Vell.) Miers ou Geissospermum laevis e Geissospermum vellosii Allemão, pelas quais esta planta ficou conhecida.
Além disso, em cada região onde a planta era encontrada, era tradicionalmente reconhecida por um determinado nome popular: Pau-Forquilha, Pau-de-Pente, Camará-de-bilro, Camará-do-mato, Canudo amarguroso, Pinguaciba, Pereiroá, Pereiro, Ubá-açú, Tringuaaba e Chapéu-de-sol (Pio Corrêa, 1984).
Entre as sinonímias vulgares, a mais empregada é Pau-Pereira. Para Domingos José Freire Júnior (1843-1899), médico que se empenhou na pesquisa da febre amarela, este nome foi dado à planta pelos primeiros exploradores de nossa Terra, devido à semelhança desta com a árvore Pereira da Europa. Existem ainda suposições de que este nome é em homenagem ao indivíduo que a descobriu. Mas, para Freire Allemão a origem do nome é indígena, Pereirana, Pereiríba ou Pereiora. De acordo com von Martius estas denominações significam casca preciosa, já que estes povos conheciam bem o valor medicinal da planta (Freire Allemão, 1845 apud Nina, 1883 op. cit.).
A denominação de Pau-forquilha foi dada, devido à disposição dicotômica dos ramos, já Pau-de-pente é caracterizado pela perpendicularidade das folhas. Entretanto, uma denominação utilizada, porém imprópria é a de Camará, que significa planta de folhas ásperas. Nas diversas teses que tratam da ação da pereirina, defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ainda no século XIX, as denominações de Pau-de-colher, Chapéu-de-sol e Para-tudo são utilizadas para designar muitas plantas, entre as quais o Pau-pereira (Ferreirinha, 1884).
Ainda hoje, muitas espécies são classificadas popularmente como Pau-pereira, como a Aspidosperma parvifolium A. DC. (Apocynaceae), o que leva a confusões, já que as constituições químicas destas espécies são diferentes. Esta aspidosperma é utilizada pelo povo para a cura das mesmas enfermidades e por isso é reconhecida pelo mesmo nome (Jácome et al., 2003, 2004).
O Pau-pereira é comumente encontrado nos estados da Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro (Pio Corrêa, 1984). Neste último, pode ser observado na Floresta da Tijuca, no Jardim Botânico e também no campo do Gericinó que atualmente pertence ao exército. Mas, de acordo com Euzébio Martins Costa, médico, e posteriormente professor da Faculdade de Medicina de Recife, esta árvore era abundante no Maranhão onde era conhecido por Pau-pita (Ferreirinha, 1884).
Ao que consta, muitos estrangeiros iniciaram o cultivo da árvore do Pau-pereira em seus países, após a sua descrição feita por Freire Allemão, como o professor Baillon nas montanhas da França:
"Esta árvore cresce nas mattas virgens; sempre as tenho encontrado a mais de 1000 metros de altura nas montanhas da Tijuca, Estrella e de Gericinó. Floresce de agosto a setembro e tem fruto de janeiro a fevereiro" (Freire Allemão, 1845 apud Nina, 1883, op. cit.).
Esta árvore, considerada por Gustavo Peckolt (1861-1923) uma das dez plantas medicinais brasileiras mais importantes (Santos et al., 1998; Peckolt, 1942), era conhecida dos indígenas e utilizada contra impaludismo, inapetência, má digestão, tontura, prisão de ventre e como febrífugo. Além disso, sua madeira era utilizada para construção e fabricação de cabos de ferramentas agrícolas (Pio Corrêa, 1984). Devido a sua característica amarga o Pau-pereira se tornou o sucedâneo da quina. Para os povos indígenas o poder de cura das plantas estava associado a este paladar. Daí a origem da crendice popular de que quanto mais amargo é o remédio, mais rápida e eficiente é a cura. Este é um dos motivos pelo qual o Pau-pereira tornou-se conhecido e amplamente empregado, pelos médicos da época, em diversas moléstias, principalmente contra febres.
O conhecimento dos indígenas acerca desta planta foi transmitido aos sertanejos e atribuí-se ao viajante brasileiro Antônio Muniz de Sousa e Oliveira (1782-1857), o prestígio de divulgá-la. Este sertanejo, nascido no município de Tobias Barreto em Sergipe, era chamado de o "Homem Natureza". Antonio Muniz dedicou-se ao estudo das plantas e raízes para o preparo de remédios. Publicou, em 1834: "As viagens e observações de um brasileiro que desejando ser útil à sua pátria se dedicou a estudar os usos e costumes de seus patrícios e os três reinos da Natureza, em vários lugares e sertões do Brasil", dedicando uma parte de seu trabalho a flora dos estados da Bahia, Alagoas e Sergipe (Riedel & Taunay, 1839).
João Ferreirinha em sua tese apresentada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1884, menciona que foi Isaías de Oliveira Vargas, fazendeiro de Capivary, São Paulo, que levou para o médico e professor de Patologia Interna da Academia Imperial de Medicina, Joaquim José da Silva, em 1831, uma porção de cascas de Pau-pereira (Ferreirinha, 1884). Este foi o primeiro médico a prescrever o Pau-pereira no tratamento de diversos tipos de febre que assombravam, na época, o país.
Os primeiros registros do emprego do Pau-pereira no tratamento médico apareceram em teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e na Revista Médica Fluminense. Entre outras citações, aparece a prescrição de Joaquim José da Silva de banhos com águas obtidas a partir do cozimento das cascas do Pau-pereira à sua primeira paciente, uma escrava de sua irmã, de nome Laura, que sofria de febres intermitentes. É mencionado que a escrava Laura foi curada no segundo dia de tratamento. Esse resultado estimulou o Professor Joaquim José da Silva a continuar prescrevendo este tratamento para pacientes com febres de outras origens, erisipelas, diarréias crônicas, hemorragias passivas e astenia.
De acordo com as teses de Joaquim José da Silva, filho, em 1847, e de João Ferreirinha, em 1884, foi a partir das prescrições do Dr. Joaquim José da Silva, pai, que o Sr. Muniz, o Homem Natureza, distribuiu cascas de Pau-pereira para diversos médicos do Rio de Janeiro, que passaram a receitá-las para o tratamento de febres nos hospitais da Misericórdia, Recolhimento das Órfãs, São Francisco da Penitência e São Francisco de Paula (Silva, 1847; Ferreirinha, 1884).
A ampla divulgação da ação terapêutica das cascas do Pau-pereira, não tardou a repercutir na Europa, iniciando a "guerra" pelo monopólio da descoberta científica da pereirina, alcaloide isolado das cascas dessa árvore. Nicolas Jean Baptiste Gaston Guilbourt (1790-1867) leu, na Sociedade de Farmácia, em 1845, em Paris, uma nota sobre "as propriedades eminentemente febrífugas da planta", que foi pelos seus efeitos considerada uma espécie de quina. As amostras de Pau-pereira foram levadas para a França por Jean Baptist e Antoine Guillemin (1796-1842), este último era auxiliar do Museu Nacional de História Natural de Paris, e que viera ao Brasil numa missão do governo francês relativa ao plantio do chá (Guilbourt, 1845).
PEREIRINA: UMA GLÓRIA BRASILEIRA?
O farmacêutico brasileiro Ezequiel Corrêa dos Santos (1801-1864), pai, dedicou-se ao estudo químico das cascas do pau-pereira. Em 1838, isolou seu princípio ativo e o descreveu como sendo um alcaloide, denominando-o pereirina.
"A pereirina é um alcalóide porque goza de propriedades bazicas, e é azotada. Digo que ella goza de propriedades bazicas porque forma com os ácidos combinações estáveis; e que é azotada porque o producto de sua distillação é sensivelmente ammoniacal. Não há princípio immediato algum azotado, com propriedades bazicas que não seja alcalóide" (Santos, 1848).
Com a descoberta do princípio ativo, o uso da solução proveniente da decocção das cascas do Pau-pereira foi substituído. Com isso, era ingerido pelo enfermo, quantidades suficientes do princípio ativo para obter a cura, e este deixava de administrar o remédio (decocto) em grandes doses diárias para obter o mesmo efeito. O decocto era obtido a partir de 15 a 30 g de cascas do Pau-pereira para 500 g de água. Já os banhos empregavam 500 ou 1000 g de cascas. O produto proveniente da decocção era utilizado nos sertões ou em lugares em que não existisse o medicamento de outra forma, mas os banhos eram bastante utilizados na cura de febres e erisipelas e na terapêutica infantil, já que a administração do alcaloide e posteriormente de seus sais era difícil por apresentar gosto amargo (Nina, 1883). A partir de 1838, os banhos com água obtida do cozimento da cascas do Pau-pereira, eram prescritos juntamente com o xarope de pereirina, tornando o tratamento mais eficaz.
Em fevereiro de 1838, Dr. Luiz Francisco Ferreira já relatava os efeitos da prescrição da pereirina e em março do mesmo ano era a vez do cirurgião Peregrino José Freire descrever a composição inicialmente receitada e amplamente utilizada: 12 g de pereirina dissolvidas em ácido sulfúrico diluído e misturado ao xarope (Rev Med Fluminense, 1838, 1840).
Além de Ezequiel, alguns químicos e farmacêuticos se dedicaram ao estudo do princípio ativo das cascas do Pau-pereira, por isso a dúvida acerca da prioridade da descoberta do princípio ativo.
No âmbito europeu a guerra pela primazia do isolamento da pereirina foi travada por Charles Henri Pfaff e Berend Goos, além de Pietro Peretti (1781-1864) e Pierre Joseph Pelletier (1788-1842) que fizeram suas análises na Europa. Robert Christian Barthold Avé-Lallemant (1812-1884), prático de farmácia alemão, instalado no Rio de Janeiro, convencido de que essas cascas dada as suas virtudes curativas seriam de interesse para muitos pesquisadores, enviou, em 1837, doze libras de cascas de Pau-pereira para Charles Henri Pfaff, à época um dos melhores professores alemães de Química Analítica (Rev Med Fluminense, 1840). A análise das amostras foi feita por Berend Goos, em 1839, sob orientação de Pfaff, tendo sido publicada nos Annaes de Medicina de Schmidt Leipzig, no mesmo ano. Para Goos, a pereirina obtida por Ezequiel é o verdadeiro alcaloide, porém misturado com uma substância vegetal resinosa e amarga (Rev Med Fluminense, 1840).
Apesar da pereirina ter sido descrita por Ezequiel e utilizada pelos médicos do Rio de Janeiro no combate as febres, em 1838, a descoberta deste princípio ativo, é atribuída ao farmacêutico hamburguês, Goos, pelos franceses François Dorvault e por Charles Adolphe Wurtz (Dorvault, 1886; Wurtz, 1873).
Pietro Peretti (1781-1864), professor de farmácia na Universidade La Sapienza de Roma, também é exaltado como descobridor da pereirina, mas seus estudos ocorreram apenas em 1839, sendo publicados em 1845, no Journal de Chimie Médicale de Pharmacie et de Toxicologie (Peretti, 1845).
Pelletier, o famoso químico francês, o primeiro a isolar a quinina, obteve os mesmos resultados de Ezequiel. Entretanto, Pelletier recebeu as cascas de pau-pereira apenas em 1840 (Pelletier, 1840).
A prioridade da descoberta da pereirina por Ezequiel foi inúmeras vezes contestada. No âmbito brasileiro, a maior contestação partiu de Jean Louis Alexandre Blanc, farmacêutico francês residente no Rio de Janeiro, que estudou e isolou o princípio ativo do Pau-pereira na mesma época que Ezequiel.
O trabalho de Blanc foi analisado pelo médico De-Simoni, cujo parecer foi publicado na Revista Médica Fluminense (1838). A pereirina obtida por Blanc apresentava características distintas da obtida por Ezequiel. Procurado pelo redator da revista, à época, para divulgar seus resultados acerca do isolamento do mesmo princípio ativo, Ezequiel negou-se a entregá-los e argumentou que um ano antes da descoberta de Blanc ele já tinha extraído a pereirina das cascas do Pau-pereira, e as tinha dado ao Dr. Luiz Francisco Ferreira para testá-la clinicamente (Rev Med Fluminense, 1838).
A publicação do artigo de Blanc despertou imensa revolta em Ezequiel, por demonstrar de acordo com o próprio, a "traição dos amigos" e de "sua incapacidade profissional":
"(...) desconceito lançado sobre meu crédito profissional com a mais feia ingratidão possível (...)" (Rev Med Fluminense, 1838).
Blanc reconheceu que a pereirina obtida por Ezequiel era uma substância mais clara do que a obtida por ele. Mas, isto talvez fosse devido ao aperfeiçoamento do método por ele empregado.
Muito provavelmente Ezequiel não revelou sua descoberta acerca da pereirina, devido a uma discussão com Blanc no ano anterior, sobre a composição e propriedades de uma pomada mercurial. Os efeitos desta pomada já eram conhecidos, mas uma longa discussão foi iniciada, pois Ezequiel tinha feito uma modificação em sua composição e a comercializava em sua botica. Blanc alegava ter realizado a mesma modificação na pomada mercurial, e a publicado na Revista Médica Fluminense.
O fato de Ezequiel ter fornecido ao Dr. Luiz Francisco Ferreira a pereirina para que este a testasse clinicamente, enquanto Blanc trabalhava ainda no processo de extração deste princípio, retoma a proposta de que foi Ezequiel quem, pela primeira vez, isolou a pereirina (Rev Med Fluminense, 1838).
Além da contestação da descoberta por outros pesquisadores, o nome proposto por Ezequiel para o princípio ativo do Pau-pereira foi contestado pelos Drs. Cypriano de Freitas e Bochefontaine, que propuseram geissospermina ou geissina, baseados na sinonímia científica dada por Freire Allemão (Bochefontaine & Freitas, 1877). Estes pesquisadores observaram em seus estudos que as folhas da árvore do Pau-pereira também apresentavam o mesmo princípio ativo, mas em menor quantidade. Para Antonio Gonçalves Ramos o princípio ativo do Pau-pereira deveria ser batizado com o nome do farmacêutico responsável por sua descoberta (Nina, 1883).
No entanto, pesquisadores brasileiros divulgavam a denominação pereirina com intuito de resgatar sua origem, os estudos acerca de nossa flora e os possíveis remédios que poderiam ser produzidos a partir das riquezas naturais do país (Nina, 1883).
A luta pelo monopólio da descoberta da pereirina é um bom exemplo para se revisitar as pesquisas sobre produtos naturais feitas no Brasil, no século XIX. A pereirina é, sem dúvida, o primeiro alcaloide isolado no Brasil. E de acordo com Domingos Freire:
"A reivindicação de nossos direitos sobre a pererina é não só um dever de patriotismo, mas ainda um protesto contra a usurpação de um direito incontestável - o da prioridade das descobertas" (Freire, 1880).
O COMÉRCIO DA PEREIRINA
Entre os pesquisadores interessados no isolamento da pereirina, Ezequiel Corrêa dos Santos, filho, é o que mais se destacou por ter feito a análise mais completa das cascas do Pau-pereira. Ezequiel, o filho, descreveu outras substâncias, além da pereirina, nas cascas do Pau-pereira.
"Como resultado final temos que a casca do Pau-pereira é composta de: amido, albumina, goma, resina, matéria corante, princípio extrativo amargo, princípio ativo ou pereirina e princípio lenhoso ou fibra vegetal" (Santos, 1848).
Outros pesquisadores brasileiros estudaram a pereirina, motivados pela sua importância econômica, já que médicos e farmacêuticos da época, demonstraram sua eficácia no combate a diversas doenças. Embora a procura pela pereirina fosse grande em muitas boticas do país, sua comercialização diminuiu após a observação de que não se tratava de uma substância quimicamente pura. De acordo com Ferreirinha (1884), a pereirina comercializada se apresentava como pó amarelo, seco, sem vestígios de cristalização, obtido a partir da precipitação de uma mistura do decocto sulfúrico do pau-pereira com carbonato de sódio ou amônia (Ferreirinha, 1884).
Entre os estudiosos e químicos interessados no isolamento deste princípio ativo, encontra-se um aluno da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, Daniel Henninger, que, em 1875, desenvolveu uma metodologia para obtenção da pereirina a partir de seus sais: azotato, borato, acetato, oxalato, fosfato, cromato e tartarato. Para Henninger, a coloração escura da pereirina era devido aos seus produtos de oxidação. Ela pura seria um sólido branco. Como as cascas do Pau-pereira eram claras, atribuiu este fato a presença de um único alcaloide. A coloração escura do decocto era devido à presença de dois ou mais alcaloides, o que o levou a concluir por uma oxidação do alcaloide ativo (Henninger, 1875 apud Nina, 1883; Ferreirinha, 1884).
Em 1880, o médico Domingos Freire analisou a pereirina que era comercializada nas boticas do Rio de Janeiro, e identificou cinco substâncias: matéria amilacea, matéria corante, amarga, que retém o alcalóide, matéria de aparência cristalina, mal definida e insolúvel em água, matéria com composição de um hidrato de carbono e matéria cristalina incolor (Freire, 1880).
Domingos Freire relatou, também, a dificuldade em realizar a análise elementar da pereirina porque esta estava impregnada com diversas substâncias, daí a sua resistência à cristalização. Este foi o primeiro pesquisador a propor uma fórmula molecular para a pereirina (Freire, 1880, 1897), a partir da análise centesimal do sulfato de pereirina e da comparação do peso molecular do cloridrato com o cloreto de platina:
C7H21AzO10
Após as análises de Domingos Freire, o emprego da pereirina foi retomado pelos farmacêuticos e médicos da época, pois consideravam ter encontrado a metodologia para obter o princípio ativo puro, já que este era confirmado pela fórmula molecular definida pelos achados deste médico (Nina, 1883).
Em seus estudos, Domingos Freire e Feliciano Fernandes, este último preparador de Química Orgânica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, obtiveram diversos sais de pereirina: sulfito de pereirina (Feliciano Fernandes), cloridrato, sulfato e valerianato de pereirina (D. Freire). Estes sais foram objeto de estudo por parte de muitos pesquisadores para determinação da ação terapêutica da pereirina, sendo os mais utilizados os sais obtidos por Domingos Freire.
A ação fisiológica do Pau-pereira foi estudada por Cypriano de Freitas e Bochefontaine, em 1877, em Paris. Cypriano de Freitas e Bochefontaine observaram que a pereirina não apresentava ação local considerável a partir das injeções hipodérmicas com o extrato bruto, em animais, como era relatada para os sais de quinina. Além disso, registraram a pereirina como um agente paralisante, abolindo a princípio os movimentos voluntários e reflexos sem atuar sobre os nervos (Bochefonteine & Freitas, 1877). Relataram, também, uma diminuição dos batimentos cardíacos, que foi igualmente observada pelos Drs. Joaquim José da Silva e Gonçalves Ramos. Entretanto, João Batista de Lacerda (1846-1915), que estudou a ação fisiológica do sal cloridrato de pereirina no laboratório de Fisiologia Experimental do Museu Nacional do Rio de Janeiro em 1881, observou um aumento dos batimentos cardíacos, e atribuiu os efeitos obtidos por Bochefontaine & Freitas a utilização de pequenas doses do extrato bruto.
Almir Parga Nina em sua tese relata uma ação local mais evidente com a utilização do cloridrato de pereirina, na proporção de 2 g do sal para 20 g de água destilada. Entretanto, esta ação é moderada se comparada aos sais de quinina. Além disso, os sais de quinina em doses terapêuticas podem causar delírios e anemias cerebrais (Nina, 1883).
Uma das ações fisiológicas mais importantes da pereirina é sua ação sobre a temperatura, justificando seu emprego no tratamento das diversas febres, principalmente as palustres. João Batista de Lacerda descreveu em suas inúmeras experiências com cobaias a diminuição de temperatura a partir da injeção de cloridrato de pereirina. Este fato foi também observado por Nina, que, entretanto, alcançou melhores resultados com o valerianato de pereirina (Lacerda, 1881 apud Nina, 1883; Ferreirinha, 1884).
A ação terapêutica da pereirina estimulou pesquisadores de diversos países a se interessarem pela sua estrutura química e sobre outros efeitos deste alcaloide.
No Brasil a pereirina era conhecida pela fórmula molecular determinada por Domingos Freire e o emprego de seus sais estava em alta, entretanto alguns estudos desenvolvidos na Alemanha, em 1877, por Hesse, descrevem a pereirina como sendo um pó amorfo cinza claro com ponto de fusão 124 °C e fórmula molecular: C19H24N2O (Hesse, 1877). Além disso, este pesquisador isolou outro alcaloide das cascas do Pau-pereira, em 1880, e o denominou geissospermina, com fórmula molecular: C19H24N2O2 e ponto de fusão 160 °C (Hesse, 1880; Raymond-Hamet, 1937). Ele relatou ter isolado a pereirina da solução mãe da geissospermina, mas o produto encontrado era heterogêneo, desta maneira não poderia ser um alcalóide puro (Rapoport et al., 1958).
Após a análise de Hesse, as pesquisas foram intensificadas para descoberta da fórmula estrutural destes alcaloides encontrados e também de outros possíveis alcaloides presentes nas cascas do Pau-pereira, pois até então os pesquisadores acreditavam que a pereirina seria um único alcaloide, como relatou inicialmente seu descobridor Ezequiel Corrêa dos Santos. Foi desta maneira que Freund e Fauvet isolaram, em 1893, a velosina, um alcaloide que apresentava características distintas daquele isolado por Hesse, com fórmula molecular C23H28N2O4 e ponto de fusão 189 °C (Freund & Fauvet, 1894). Este alcaloide era produzido pela fábrica de Trommsdorff d'Erfurt, com o nome de geissospermina (Raymond-Hamet et al., 1967, 1937), devido ao reconhecimento apenas da pereirina e da geissospermina na época.
A possibilidade de isolar substâncias naturais e o surgimento de novas técnicas que permitiam a identificação destas substâncias, como a espectrometria de infravermelho e a ressonância magnética nuclear de hidrogênio, estimulou os pesquisadores do século XX a darem continuidade às pesquisas com as cascas do Pau-pereira. Em 1931, uma metodologia para extração da geissospermina foi desenvolvida por Alfred Bertho e Schuckmann. Estes autores propuseram que a geissospermina era um alcaloide diidratado com fórmula molecular C40H48N4O3 .2H2O com ponto de fusão de 210-212 °C (Bertho & Schuckman, 1931 apud Raymond-Hamet, 1937). Entretanto, Alfred Bertho em colaboração, agora, com Friedrich Moog, em 1934, obtiveram 0,2-0,25% de geissospermina, pereirina e uma base fraca com ponto de fusão 182-184 °C que eles acreditaram ser a velosina, descrita em 1893. A partir de suas análises, Bertho e Moog alteram a fórmula molecular proposta em 1931, adicionando dois átomos de hidrogênio à estrutura da geissospermina C40H50N4O3 (Bertho & Moog, 1934).
Após duas décadas, Wiesner, Rideout e Manson isolaram a geissospermina anidra e obtiveram seu ponto de fusão (217-219 °C) (Wiesner et al., 1953 apud Rapoport et al., 1958), e mantiveram a fórmula molecular proposta, em 1931, para este alcaloide (Puisieux et al., 1959). Em 1958, Henry Rapoport e colaboradores obtiveram cristais da geissospermina a partir do fracionamento do extrato bruto das cascas do Pau-pereira em diferentes pHs com rendimento 0,3-0,4%, mantendo a fórmula molecular proposta por Bertho e Schuckman: C40H48N4O3 (Rapoport et al., 1958). Estes pesquisadores isolaram outros alcaloides (Hughes & Rapoport, 1958; Rapoport et al., 1960; Rapoport & Moore, 1962; Moore & Rapoport, 1973) do mesmo extrato: Flavopereirina (1958), geissosquizina, apogeissosquizina e geissosquizolina (1960), velosimina, velosiminol e geissolosimina (1962) e a geissovelina (1973) (Figura 3).
A dúvida acerca da fórmula molecular da geissospermina foi sanada após a análise de Maurice-Marie Janot em 1961, que reuniu os resultados dos trabalhos de Rapoport e colaboradores e os do grupo de pesquisadores da Faculdade de Farmácia de Paris (Janot, 1961). O pesquisador parisiense iniciou o estudo de determinação da estereoquímica relativa da geissospermina e seu ponto de fusão 213-214 °C. Posteriormente, estudos com base em difração de raios X e RMN 13C confirmaram a estereoquímica da geissospermina (Chiaroni et al., 1976; Goutarel et al., 1978).
A geissospermina é descrita por diversos autores como o alcaloide majoritário produzido pelas cascas do Pau-pereira (Marion, 1952; Janot et al., 1958, 1960; Rapoport et al., 1958, 1960). Por este motivo, muitos acreditam que este alcaloide possa ser a pereirina. Este fato também ocorre, devido à contestação do nome dado ao princípio ativo por Ezequiel por parte dos Drs. Cypriano de Freitas e Bochefontaine, que divulgavam a denominação geissospermina, devido ao nome da espécie 43. Entretanto pela metodologia empregada na obtenção da pereirina, este alcaloide bis-indólico sofre clivagem ácida gerando os alcaloides geissosquizina e a geissosquizolina. Outros autores atribuem à fórmula molecular da pereirina à geissosquizolina (Bolland, 1911; Bertho & Koll, 1961; Bertho et al., 1958; Hesse, 1964; Windholz et al., 1976), devido a semelhança com a fórmula molecular proposta por Hesse para a pereirina e ao fato da geissosquizolina ser produzida pela planta e durante a extração ácida das cascas do Pau-pereira, através da clivagem ácida dos alcaloides bis-indólicos geissospermina e geissolosimina, como foi demonstrado por Rapoport e colaboradores (Rapoport et al., 1958, 1960, 1962; Hughes & Rapoport, 1958; Moore & Rapoport, 1973) e comprovado com a repetição da marcha empregada por Pereira (Pereira, 1933) para obtenção da pereirina. Desta maneira, a geissosquizolina é gerada em maior proporção que os demais alcaloides constituintes de G. vellosii, motivo pelo qual muitos pesquisadores acreditavam ser a pereirina um único alcaloide.
CONCLUSÃO
Ao que tudo indica, o que Ezequiel Corrêa dos Santos considerava um único alcaloide, o qual denominou pereirina, pode, na verdade, ser uma mistura complexa de alcaloides.
Entretanto, a celeuma criada em torno da primazia do isolamento da pereirina das cascas do Pau-pereira é mais um caso, entre muitos, que acontece na ciência. É muito mais comum do que, em princípio, se imagina, de cientistas estarem, ao mesmo tempo, trabalhando sobre o mesmo assunto, em lugares diferentes.
No caso do isolamento da pereirina, que se pensava tratar de um único alcaloide, o mais importante do que quem tenha pela primeira vez realizado o seu suposto isolamento, é o fato de em meados do século XIX, se constatar que nas boticas do Rio de Janeiro se fazia química de produtos naturais de boa qualidade.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao CNPq e a FAPERJ.
Este artigo é dedicado ao professor Nuno Álvares Pereira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por sua grande contribuição a farmacologia brasileira.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Maio 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009