Resumos
É possível entender que o aumento de pessoas idosas no mundo requer uma perspectiva transcultural da adultez e da velhice. Assim, este estudo exploratório procurou compreender a dinâmica cultural de uma comunidade indígena, destacando o papel da pessoa mais velha. Para tal foram realizadas entrevistas abertas com roteiro semi-estrurado com seis interlocutores do Conselho de Anciãos do povo Guarani-Mbyá, de uma tradicional aldeia de São Paulo que se dispuseram a participar; e outras informações e impressões foram registradas ao longo da pesquisa num diário de campo. A análise do conteúdo sugeriu que "ser Guarani-Mbyá" é um modo de viver e estar, orientado para a preservação da tradição através da educação e religião; o papel dos mais velhos como guardiões e transmissores das tradições. Os resultados contribuem para olhar o envelhecimento sob outras perspectivas culturais.
indígenas Guarani-Mbyá; identidade; idosos
El aumento de las personas mayores en el mundo requiere de una perspectiva transcultural de la edad adulta y la vejez. Por lo tanto, este estudio exploratorio trató de comprender la dinámica cultural de una comunidad indígena, destacando el papel de la persona de edad. Para ello se realizaron entrevistas abiertas con seis miembros del Consejo de Ancianos del pueblo Guaraní-Mbyá, un pueblo tradicional de São Paulo, Brasil, que estaban dispuestos a participar; otras informaciones, observaciones e impresiones fueron grabadas durante la investigación en un diario de campo. Los resultados sugieren que "ser guaraní mbyá" es una forma de vivir y de ser, orientada a la preservación de la tradición a través de la educación y la religión; el papel de los ancianos como guardianes y transmisores de tradiciones. Estos resultados pueden contribuir a la comprensión del envejecimiento en otras perspectivas culturales.
Guaraní Mbyá-indígena; identidad; viejoz
The world increase of older persons requires a transcultural perspective on adulthood and ageing. This exploratory study aims to better understand the cultural dynamics on the indigenous community Guarani Mbya, living in the Krukutu village, highlighting the role of the older persons. The sample comprises six members of the elders' council (Conselho de anciãos). Data collection was carried out through an open interview and a board diary. Data were submitted to content analysis. Main findings suggest that being Guarani is a way of being oriented to the traditions preservation through education and religion; older persons are the main guardians and transmit those traditions. Results contribute to a cultural perspective on old age and aging.
indigenous Guarani-Mbyá; identity; older persons
Introdução
O aumento de pessoas idosas no mundo, incluindo diversas culturas, requer o
reconhecimento do contexto transcultural da idade adulta e da velhice; de modo que
estudar um modo de ser e de viver de pessoas mais velhas em grupos étnicos permite, como
destacou Sobrevila (2008)Sobrevila, C. (2008). The Role of Indigenous Peoples in Biodiversity
Conservation The Natural but Often Forgotten Partners. Washington, DC: The World Bank
Inc. Acesso em 16 março, 2012, em
http://siteresources.worldbank.org/INTBIODIVERSITY/Resources/RoleofIndigenousPeoplesinBiodiversityConservation.pdf
http://siteresources.worldbank.org/INTBI...
, contemplar a dimensão
cultural nas teorias do envelhecimento. No que diz respeito aos povos indígenas, o
aumento da população exige investigações, pois como já destacou Carneiro da Cunha (1994)Cunha, M. C. (1994). O futuro da questão indígena. Estudos Avançados,
8(20), 121-136. desde os anos oitenta a previsão do
desaparecimento dos povos indígenas deu lugar a uma retomada demográfica, pois, mais
pessoas assumiram sua identidade étnica; também aprimoraram-se nos instrumentos
censitários. A autora relatou:
um fator de crescimento populacional, embora de menor impacto demográfico, é que muitos grupos, em áreas de colonização antiga, após terem ocultado sua condição discriminada de indígenas durante décadas, reivindicam novamente sua identidade étnica. (p. 123)
Os dados demográficos de 2000 e 2010 indicaram que a expectativa de vida, no Brasil,
aumentou em todos os grupos raciais e étnicos e houve crescimento de 1,1% entre
indígenas, havendo um salto populacional do ano 2000 de 167.932.053 pessoas para
189.931.228 em 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE, 2012Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2012). Os
indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor
ou raça. Rio de Janeiro. Acesso em 01 de novembro, 2014, em
http://indigenas.ibge.gov.br/.
http://indigenas.ibge.gov.br/...
); entretanto ainda é bastante desigual quando
comparado aos vários grupos raciais e étnicos. Acresce-se que em alguns grupos
indígenas, como os Kadiwéu, por exemplo, vinham-se observando uma melhor qualidade de
vida (Vinha, 2005Vinha. M. (2005). Inter-relações Kadiwéu: corpo, tecnologia e educação
[trabalho completo]. In IX Simpósio Internacional Processo Civilizador (pp.1-10).
Ponta Grossa, PR: UEL. Acesso em 05 de jun, 2014, em
http://www.uel.br/grupo-estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/anais9/artigos.html
http://www.uel.br/grupo-estudo/processos...
), todavia, recentemente são
observadas algumas pequenas mudanças (Grubits,
2014Grubits, S. (2014). Mulheres Indígenas brasileiras educação e políticas
públicas. Psicologia & Sociedade, 26(1), 116-121. ) advindas desse contato interétnico.
Mesmo ante a um crescimento o conhecimento dos povos indígenas ainda é escasso (Fabbri & Ribeiro, 2007Fabbri, E. & Ribeiro, H. (2007). Programa renda mínima na aldeia indígena Morro da Saudade em São Paulo, entre 2003 e 2004: análise de uma experiência. Saúde e Sociedade, 16(2), 61-75.); e no que tange à literatura psicológica, essa tem incidido, sobretudo, no alcoolismo, suicídio em alguns grupos (Erthal, 2001Erthal, R. (2001). O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos Saúde Pública, 17(2), 299-311.; Grubits, Freire, H., & Noriega, 2011Grubits, S., Freire, H., & Noriega, J. (2011). Suicídios de jovens Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(3), 504-517.; Silva & Grubits, 2006Silva, M. P. C. & Grubits, S. (2006). Reflexões éticas em pesquisas com populações indígenas. Psicologia: Ciência e Profissão, 26(1), 46-57.; Pereira, 1995Pereira, M. A. C. (1995). Uma rebelião cultural silenciosa: investigação sobre os suicídios entre os Guarani. Brasília, DF: FUNAI.) e estudos sobre crianças e adolescentes (Arias, 2008Arias, G, S. (2008). Psicodinâmica familiar a partir da perceção de crianças indígenas Guarani Mbyá de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia da Saúde, Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo.; Bonfim, 2011Bonfim, T. H. (2011). Saúde mental e sofrimento psíquico de indígenas Guarani-Mbyá de São Paulo: um relato de experiência. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.) havendo, pois, necessidade de se estudar estes grupos étnicos e compreender mais a sua identidade pessoal e grupal.
Indígenas Guarani- Mbya
O Brasil apresenta um contingente de indígenas de cerca de 0,4% da população (IBGE, 2012Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2012). Os
indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor
ou raça. Rio de Janeiro. Acesso em 01 de novembro, 2014, em
http://indigenas.ibge.gov.br/.
http://indigenas.ibge.gov.br/...
). Os Guarani, considerado "a nação
Guarani" (Fundação Nacional do Índio -FUNAI,
2006Fundação Nacional do Índio - FUNAI. (2006). A origem dos povos
americanos. Parte II. Acesso em 05 outubro, 2010, em
http://funai-itz.blogspot.com.br/2006/10/origem-dos-povos-americanos.html
http://funai-itz.blogspot.com.br/2006/10...
) é uma das mais representativas etnias indígenas das Américas, abrangendo
territórios da Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e o centro-meridional do Brasil e
são grupos que migraram do oeste em direção ao litoral em anos relativamente recentes,
ocupando hoje diversos estados do Sul e Sudeste do Brasil. São chamados
"povos", pois a sua população é dividida em subgrupos étnicos:
Nhandéva, Mbyá e Kaiowá. Cada um tem
especificidades linguísticas, culturais e cosmológicas (Litaiff & Darella, 2000Litaiff, A. & Darella, M. (2000). Os índios Guarani Mbyá e o Parque
Estadual da Serra do Tabuleiro [trabalho completo]. In Anais eletrônicos (CD- Rom) da
XXII Reunião Brasileira de Antropologia . Fórum de Pesquisa 3: "Conflitos
Sócio-ambientais e Unidades de Conservação" (pp. 1-69). Brasília, DF:
ABA; Melatti,
2007Melatti, C. (2007). Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP. ) assim como outras etnias, essa tem princípios de direitos coletivos,
organizações sociais complexas e tradicionais (Luciano,
2006Luciano, G. J. S. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Mec - Ministéro Educação e
Cultura, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) &
Unesco - Organização das Nações Unidas . Acesso em 12 de abril de 2013; em
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/00...
; Melatti, 2007Melatti, C. (2007). Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP. ).
Com relação à pessoa idosa, entre os Guarani- Mbyá os mais velhos relatam o passado da
etnia, revelam e criam vínculo entre os jovens e a sua história; e perto dos 40 anos
(Freire, 1992Freire, J. (1992). Tradição oral e memória indígena: a canoa do tempo
[trabalho completo] In 4º Colóquio UERJ - América: Descoberta ou Invenção (pp.
138-164). Rio de Janeiro: Imago.; Dos Santos & Torres-Morales, 2007Dos Santos, S. & Torres-Morales, O. E. (2007). Idosos indígenas e
comunicação: olhares e aproximações [trabalho completo]. In ComSaúde,X Conferência
Brasileira de Comunicação e Saúde (pp. 2-17). São Paulo: Universidade Metodista São
Paulo. Acesso em 01 setembro, 2012, em,
http://encipecom.metodista.br/mediawiki/images/5/5c/Idosos_Indigenas.pdf
http://encipecom.metodista.br/mediawiki/...
) um Guarani-Mbyá pode ser considerado
ancião (desde que responsável e maduro), pois já terá acumulado suficiente conhecimento
para aconselhar e orientar outros membros da comunidade. Esses aspectos são distintos da
cultura ocidental, mas, entre os Guarani- Mbyá, como relata Luciano (2006)Luciano, G. J. S. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Mec - Ministéro Educação e
Cultura, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) &
Unesco - Organização das Nações Unidas . Acesso em 12 de abril de 2013; em
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/00...
, há uma associação entre maturidade e ser velho, pois
a pessoa mais velha assume um estatuto mais importante (pessoa mais sábia e respeitada
da comunidade) e com um lugar resguardado para manter e guardar as tradições; transmitem
o idioma, costumes, valores e tradição religiosa. Silva,
A. e Silva, P. (2008)Silva, A. C. A. P. & Silva, P. I. C. (2008). Para além de um
estatuto: direitos e obrigações de velhos indígenas [trabalho completo]. In Anais do
XVI Congresso Nacional do CONPEDI: pensar globalmente, agir localmente (pp.
3432-3444). Belo Horizonte: Fundação Boiteux. reforçam o caráter de depositários da memória,
tradições, considerando que a sua tarefa é de "ensinar"; por isso, afirma Luciano (2006)Luciano, G. J. S. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Mec - Ministéro Educação e
Cultura, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) &
Unesco - Organização das Nações Unidas . Acesso em 12 de abril de 2013; em
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/00...
, sua função de construtor do
conhecimento é bastante presente.
Os indígenas Guarani-Mbyá constituem a maioria da população indígena no estado de São
Paulo (Ladeira, 1992Ladeira, M. I. (1992). O caminhar sob a luz - o território Mbya à beira
do oceano. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Antropologia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo., 2004Ladeira, M. I. (2004). Editorial: Terras indígenas e unidades de
conservação na Mata Atlântica - áreas protegidas? Marandú, 1(2) 1-14, Brasília, DF:
CTI - Centro de Trabalho Indigena. Acesso em 17 de junho, 2012 em
http://bd.trabalhoindigenista.org.br/sites/default/files/editorial.pdf
http://bd.trabalhoindigenista.org.br/sit...
); são distribuídos em várias aldeias:
TekoáPyaú e TekoáYtú (situadas no Pico do Parajá) e
Tenondé Porã e Krukutu (zona sul da capital
Paulista, à beira da mata atlântica) (Bonfim,
2011Bonfim, T. H. (2011). Saúde mental e sofrimento psíquico de indígenas
Guarani-Mbyá de São Paulo: um relato de experiência. Tese de Doutorado, Programa de
Pós-graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, São Paulo.), além das aldeias situadas na região litorânea. Esse grupo Guarani-Mbyá
fala o idioma guarani (poucos falam português com fluência, sendo que
as crianças em idade pré-escolar, mulheres e pessoas mais velhas são, em geral,
monolingues.
A investigação sobre grupos étnicos representa um interessante aporte para os estudos sobre envelhecimento, permitindo incorporar uma perspectiva transcultural e desafiar as visões dominantes do mundo ocidental. O envelhecimento é um fenômeno natural e universal, mas a representação da velhice é culturalmente determinada.
Assim, entendemos ser relevante explorar o papel da pessoa mais velha numa perspetiva transcultural, e nessa, a dinâmica cultural da comunidade em que estão inseridos. Deste modo, o presente estudo teve por objetivo:
- compreender a dinâmica cultural da comunidade indígena Guarni Mbyá residente na aldeia Krukutu, destacando o papel da pessoa mais velha.
Método
O presente trata-se de um estudo qualitativo, exploratório e descritivo, envolvendo relatos, observaçãoes e a própria experiência tida junto às pessoas de uma comunidade indígena de São Paulo. Faz-se importante destacar que as investigações exploratórias (Gil, 1999Gil, A. C. (1999). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas.) proporciam uma visão geral de um fato, do tipo aproximativo; além disso, ao mesmo tempo em que explora, esse caminho científico também descreve, por isso torna-se descritivo. Acrescemos também a observação e o contato como coadjuvantes a essa exploração; por isso esse estudo vem proporcionar a descrição que se completa com a experiência vivida; entretanto, a realidade não é tida como algo objetivo e (Gil, 1999Gil, A. C. (1999). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas.) passível de ser explicado, e sim interpretada, comunicada e compreendida. E, dada a complexidade e a multiderminação do fenômeno humano (Bleger, 1963/1984Bleger, J. (1984). Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original em espanhol, Eudeba, 1963)), exige-se um corte hipotético transversal da situação, reduzindo-se a amplidão e debruçando-se sobre um vértice; de modo que, acrescemos, não existe uma única realidade, mas aquela que pudemos observar e, por último, interpretar.
Ao tratar desse tipo de investigação científica que ao mesmo tempo é indagação e ação, lembramos Okazaki e Sue (1998)Okazaki, S & Sue, S. (1998). Methodological issues in assement research with ethnic minorities. In A. E. Kazdin (Ed.), Methodological issues & strategies in clinical research (pp. 263-281).Washington, DC: American Psychological Association. em que a investigação psicológica em populações consideradas minorias étnicas requer atenção no que diz respeito aos modelos teóricos adotados, aos instrumentos de avaliação e aos delineamentos de pesquisa utilizados. Assim, um cenário constituído de parcos estudos de adaptação, validação de instrumental psicológico e revisão teórica, leva à indicação des estudos qualitativos, pois esses possibilitam uma visão mais abrangente sobre o fenômeno e permitem uma aproximação compreensiva de regras, padrões comportamentais existentes; enfim numa compreesão de significados.
Os procedimentos, o ambiente e a ética no estudo
Do ponto de vista ético, também é importante lembrar (Silva & Grubits, 2006Silva, M. P. C. & Grubits, S. (2006). Reflexões éticas em pesquisas
com populações indígenas. Psicologia: Ciência e Profissão, 26(1),
46-57.) que na investigação com grupos indígenas, a
discussão ética é essencial, pois têm sido descritos abusos, principalmente
associados ao desrespeito pela cultura, como aqueles que coletam dados e não voltam
para apresentar e discutir os resultados. Por isso é importante salientar que os
dados apresentados no presente estudo são parte de um trabalho mais amplo e resultado
de uma experiência de mais de cinco anos, em contatos semanais, vividos junto à
comunidade indígena Guarani-Mbyá da aldeia Krucutu de São Paulo. Toda experiência ao
longo desses anos - o contato com a comunidade, as solicitações junto às lideranças
indígenas, possibilitaram tanto a coleta quanto as devolutivas constantes dos
trabalhos de intervenção e investigação lá realizados. As autorizações junto ao CONEP
e as interações com os agentes de saúde, deram-se em duas aldeias Guarani-Mbyá de São
Paulo - "Tenonde Porã" e "Krucutu", porém, o conteúdo aqui relatado
restringe-se àquele alcançado junto às pessoas da aldeia "Krucutu" (nome que
significa canto ou som da coruja). A aldeia Krukutu tem aproximados
de 250 habitantes e 45 famílias, que têm vivido, fundamentalmente, de projetos de
assistência social dos poderes públicos municipal e estadual, assim como da venda de
artesanatos (Arias, 2008Arias, G, S. (2008). Psicodinâmica familiar a partir da perceção de
crianças indígenas Guarani Mbyá de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Programa de
Pós-graduação em Psicologia da Saúde, Universidade Metodista de São Paulo, São
Paulo.) e de algumas
apresentações culturais de canto e dança; somam-se ainda aquelas pessoas que se
deslocam às regiões centrais da metrópole para realizarem trabalhos avulsos. Embora
essa pequena aldeia tenha lá instalado um posto de saúde, uma escola estadual e um
centro de cultura construído pela prefeitura, e além de receber cestas de mantimentos
da prefeitura/estado, em relação às demais, a aldeia Krucutu é a que mais busca
conservar as tradições (da regularidade dos rituais, conservação da exclusividade da
lingua guarani falada pelas crianças até os 7 anos; conservação do tipo de moradia e
organização das habitações - ainda conforme o descrito por Egon Shaden em 1969Schaden, E. (1969). Aculturação indígena. São Paulo: Pioneira;
EdUSP.). Entre seus graves problemas, Ladeira (2000)Ladeira, M. I. (2000). Comunidades Guarani da Barragem e Krucutu e a
linha de transmissão de 750KV Itaberá - Tijuco Preto III. Relatório de Interferência.
Acesso em 20 junho, 2011 em
http://bd.trabalhoindigenista.org.br/sites/default/files/guarani_krukutu.pdf
http://bd.trabalhoindigenista.org.br/sit...
reconheceu as situações diversas
que afetam seu território, pois há um constante crescimento desordenado e ocupações
irregulares que inserem suas aldeias. Entretanto, conforme a Associação Guarani Nhe´Ê
Porã, (2010) mesmo com os diversos tipos de pressões e interferências externas que
vêm sofrendo, os Mbyá se reconhecem plenamente enquanto grupo diferenciado.
Nessa investigação contamos com a utilização dos espaços da Unidade Básica de Saúde, do Centro de Educação e Cultura Indígena - CECI e da Escola Estadual para a realização de trabalhos, que se deram por uma solicitação dos próprios líderes comunitários (Cacique, Pajé [Xamoi] e demais membros do Conselho) ao Grupo de psicólogos do APOIAR - do Instituto de Psicologia da USP, a fim de auxiliar nos conflitos relacionados ao alcoolismo, às desavenças e problemas relacionados à saúde/doença mental. Esses anos de experiência resultaram em trabalhos de observação, investigação e intervenção [oficinas terapêuticas com adolescentes e crianças (Bonfim & Tardivo 2008Bonfim, T. E. & Tardivo, L. S. L. P. C. (2008). Reflexões acerca de uma experiência de intervenção psicológica em comunidades indígenas Guarani-Mbyá da cidade de São Paulo. In L. S. L. P. C. Tardivo & C. A. Gil (Orgs.), Apoiar: Novas propostas em psicologia clínica (pp. 457-471). São Paulo: Sarvier. ; Bonfim, Tardivo, Vizzotto, & Arias, 2006Bonfim, T. E., Tardivo, L. S. L. P. C, Vizzotto, M. M., & Arias, G. S. (2006). Dibujos-Cuentos de una adolescente indígena Guarani-Mbyá Brasileña: aspetos de la dinamica interna y los impasses delante de la aculturacion. In Asociacion Argentina de Estudio e Investigacion en Psicodiagnostico - Adeip. Libro de Ponencias - Crises, Mutaciones, Rupturas y posibilidades (pp. 56-64). X Congreso Nacional de Psicodiagnóstico, Buenos Aires: Adeip.), bem como estudos e interveções clínicas (Bonfim, 2011Bonfim, T. H. (2011). Saúde mental e sofrimento psíquico de indígenas Guarani-Mbyá de São Paulo: um relato de experiência. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.) com pessoas enfermas daquela comunidade.
Todos estudos foram autorizados pelos líderes e sustentados em autorizações dadas
pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Conselho Nacional de Saúde,
tendo os projetos sido submentidos ao Comitê de Ética em Pesquisa assentado na
Prefeitura do Município de São Paulo e respaldados na resolução 304 que dispõe as
normas para a realização de pesquisas com seres humanos - área de povos indígenas.
Destacamos que a Resolução 304/2000 (2000)Resolução n. 304, de 09 de agosto de 2000. (2000). Normas para pesquisas
envolvendo seres humanos - área de povos indígenas. Brasilia, DF: Conselho Nacional
de Saúde - CNS. Acesso em 12 fevereiro, 2013, em:
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_00.htm
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
afirma o respeito devido aos direitos dos povos indígenas no que se refere ao
desenvolvimento teórico e prático de pesquisa em seres humanos que envolvam a vida,
os territórios, as culturas e os recursos naturais dos povos indígenas do Brasil.
Reconhece ainda o direito de participação dos indígenas nas decisões que os
afetem.
Os participantes e as entrevistas
Pretendíamos entrevistar as pessoas idosas (60 anos ou mais - idade cronológica da
velhice no Brasil); todavia, as poucas pessoas idosas (4 pessoas) falavam pouco da
língua portuguesa e demosntravam sempre muito receio em falar; de modo que nos
apoiamos nos estudos da OEA (2000)Organização dos Estados Americanos - OEA. (2004). Comissão Internacional
dos Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos. Relatório sobre a
situação dos direitos humanos no Brasil. Capítulo VI. Acesso em 09 de dezembro, 2012,
em: https://www.cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/Cap%206.htm
https://www.cidh.oas.org/countryrep/braz...
de que a
expectativa de vida dos indígenas brasileiros era de 45,6 anos e nos recentes dados
divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2012). Os
indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor
ou raça. Rio de Janeiro. Acesso em 01 de novembro, 2014, em
http://indigenas.ibge.gov.br/.
http://indigenas.ibge.gov.br/...
) que embora a população indígena tenha
crescido mais de 200% em relação ao senso de 2000, em seis grandes reservas no estado
do Rio de Janeiro (também Guarani-Mbyá) não havia um índio com mais de 50 anos. E
também nos apoiamos nas colocações de Dos Santos e
Torres-Morales, (2007)Dos Santos, S. & Torres-Morales, O. E. (2007). Idosos indígenas e
comunicação: olhares e aproximações [trabalho completo]. In ComSaúde,X Conferência
Brasileira de Comunicação e Saúde (pp. 2-17). São Paulo: Universidade Metodista São
Paulo. Acesso em 01 setembro, 2012, em,
http://encipecom.metodista.br/mediawiki/images/5/5c/Idosos_Indigenas.pdf
http://encipecom.metodista.br/mediawiki/...
de que já aos 40 anos um Mbyá pode ser considerado
ancião, uma vez que já reuniu conhecimento suficiente para aconselhar e orientar os
demais (desde que responsável e maduro), pois já terá acumulado suficiente
conhecimento para tal, bem como em Luciano
(2006)Luciano, G. J. S. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Mec - Ministéro Educação e
Cultura, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) &
Unesco - Organização das Nações Unidas . Acesso em 12 de abril de 2013; em
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/00...
que assegura que com maturidade e o "ser velho assume" um estatuto
de pessoa mais sábia e respeitada da comunidade.
De modo que optamos por essa interlocução com informantes privilegiados: os membros do Conselho de Anciãos. Na ocasião, a cacique (uma mulher na ocasião) comunicou-nos que 10 pessoas estavam à disposição; entretanto, alguns desistiram e outros membros se ausentaram para participação em outras atividades fora do estado; o que resultou em 06 participantes. As entrevistas foram realizadas individualmente em local privado à escolha do entrevistado (sala da unidade de saúde, sala de reuniões da associação, ou em bancos/espaços afastados na aldeia). A todos foi explicado e todos os entrevistados consentiram livremente que registrássemos aquilo que considerávamos necessário.
Utilizamos de entrevista aberta baseada em tópicos que estimulavam a narrativa do entrevistado: (a) gostaria de lhe pedir que começasse por falar um pouco sobre a aldeia Krukutu; (b) gostaria que me falasse sobre papel ou função da pessoa mais velha nesta comunidade. Optamos por questões genéricas para permitir a expressão de opiniões, atitudes e sentimentos; além disso, atendendo às barreiras linguísticas, tornou-se mais adequado dar mais liberdade ao entrevistado em sua expressão. Alguns conteúdos foram registrados de forma imediata e após, as entrevisas foram transcritas, bem como as impressões subjetivas obtidas pela observação de comportametos e expressões verbais e não verbais, nesses contatos constantes. Os 6 participantes (3 homens e 3 mulheres), membros do conselho de anciãos com idades entre os 35 e 51 anos, recebaram nomes fictícios para facilitar e leitura. Estes são descritos como: Moema (40 anos, sexo feminino, casada e mãe de 06 filhos); Araci (35 anos, sexo feminino, casada, 06 filhos); Jaci (41 anos, masculino, separado e pai de 03 filhos); Jupi (46 anos, sexo masculino, casado, pai de 05 filhos); Iracema (35 anos, feminino, separada e mãe de 1 filho); Ubirajara (51 anos, sexo masculino, vive 2º. Casamento e pai de 07 filhos).
Procedimento de análise
Após transcrição, realizamos a análise de conteúdo e optamos por analisar os dados com base na lexicometria, ou seja, o estudo científico do vocabulário, que se faz a partir do reconhecimento de unidades de significação simples (palavras) e remete às classificações pela frequência (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de Conteúdo (ed. revisada e atualizada). Lisboa: Edições 70.). Assume que as palavras usadas pelos indivíduos transmitem informação independente do contexto semântico e que localizar a palavra no discurso permite extrair o seu mundo de valores e significados. A análise decorreu evitando-se palavras repetidas menos de 3 vezes no discurso por participante (Tausczik & Pennebaker, 2010Tausczik, Y. R. & Pennebaker, J. W. (2010). The Psychological Meaning of Words: LIWC and Computerized Text Analysis Methods. Journal of Language and Social Psychology, 29 (1), 24-54.); eliminamos as palavras de função (que compõem frases, incluindo preposições, pronomes, artigos, conjunções); selecionamos palavras mais mencionadas em cada entrevista, e que revelassem conteúdo (transmitem o conteúdo da mensagem, incluindo nomes, verbos regulares, adjetivos e advérbios). Deste modo, emergiram 20 palavras. Após, localizamos palavras no discurso para categorizar e extrair significados. Este processo foi realizado num processo de refinamento sucessivo: fizemos individualmente a organização de categorias e palavras que cada categoria continha; depois nos reuníamos para discutí-las e isso foi repetido até chegarmos a um consenso. Juntamos palavras que emergiram associadas nos discursos. Extraímos cinco categorias de análise.
Resultados
No processo de análise emergiram 5 categorias (quadro I), sendo 4 associadas à dinâmica da aldeia indígena Krukutu (Ser Guarani, Organização da Aldeia; Ligação ao exterior; Vida quotidiana); 1 relacionada às pessoas mais velhas (Papel dos mais velhos).
A categoria "Ser Guarani" evoca a identidade Guarani-Mbyá, considerando tanto a tradição, costumes, valores e sua transmissão, quanto o espaço geográfico - como é organizado, bem como sua população. Com o desenvolver dos resultados, observamos que as demais categorias confluiram no significado de "ser Guarani-Mbyá. Mas, discutiremos mais adiante. Essa categoria incluiu, em princípio, 9 palavras (aldeia, comunidade, Guarani, cultura, indígenas, tradição, educação e respeito). Agrupamos palavras que emergiam associadas nos discursos, como: Guarani com aldeia; Guarani com comunidade e cultura. "Aldeia Guarani" (68 referências) refere-se ao espaço geográfico onde vivem e/ou trabalham: "Viver na aldeia Guarani é maravilhoso...! Aqui somos unidos. Trabalhamos e vivemos juntos! Não me imagino viver como os brancos: um lá outro cá" (Araci).
"Comunidade e cultura Guarani" (63 referências) é utilizada para referir: (a) população da aldeia, o povo indígena Guarani-Mbya; (b) seus costumes e identidade, caracterizados pela estrutura, dinâmica e valores associados à cultura indígena Guarani-Mbyá (viver juntos e transmitir a tradição; morar na mata; manter a língua guarani; manter a religião). "Ser Guarani é morar na mata e é viver tudo junto...A cultura Guarani é uma comunidade, religião, tradição, é continuar a falar a língua Guarani. Tem uma forma de pensar diferente do ocidente" (Jupi).
O vocábulo "indígena" (15 referências) é usado para: (a) sublinhar a identidade da aldeia, incluindo o fortalecimento dos direitos indígenas permitindo que se afirmem enquanto etnia e se defendam da civilização; (b) desmistificar preconceitos que sentem existir em relação à sua etnia, tais como serem menos do que os brancos. A fala de Jupi indica: "Sinto que a visão geral da civilização é que o indígena não sabe ler, escrever, que é burro...Mas os índios também podem ser pessoas inteligentes como os brancos!" (Jupi).
A palavra "tradição" (19 referências) referiu-se à transmissão e preservação dos costumes: mitos, rituais e frequência à casa de reza. Observamos preocupação em preservar a religião, evitando quebra da tradição; por isso, a função de escritor é relevante para Jupi, que escreve e publica em português "todos os mitos da cultura Guarani-Mbyá", e continua:
Há um mito na aldeia da mulher que virou Urutau [ave]; quase já ninguém sabe...e se um dia o povo esquecer, vai estar registada no meu livro. Sou velho, um dia não estou mais aqui, mas fica a tradição na minha escrita para ninguém esquecer. (Jupi)
Nessa transmissão da tradição a casa de reza adquire um valor fundamental, pois é nela que o Xamoi (ou Pajé) e outras pessoas mais velhas, todas as noites, reúnem-se com pessoas da comunidade rezar, realizar os rituais religiosos, além de cantos e aconselhamentos, contar histórias, a fim de transmitir seus costumes, valores e religião (destaca-se que esse hábito é rigorosamente mantido na aldeia Krucutu). Araci afirma que "ninguém é obrigado" a frequentar a casa de reza, mas fazê-lo "contribui para a preservação da tradição", pois lá se transmite a tradição que as mães "tem esquecido de passar às filhas". Araci explica que agora "vai menos gente, por desleixo: deixam de ir porque preferem ficar em casa e ver televisão".
A palavra "educação" (16 referências) também referiu-se à transmissão da tradição. A via de transmissão é a educação que decorre: casa da família, CECI, escola e casa de reza. Moema explica: "educação Guarani-Mbyá surge em casa com a mãe que ensina a cozinhar, cuidar da casa, não beber". Jaci sublinha a importância do CECI no incitamento da tradição indígena desde tenra idade. Na escola a criança "tem que aprender a tradição, com o professor indígena ensinar os mitos da aldeia". Os participantes referem que a função da comunidade Guarani-Mbyá é "educar para transmitir e garantir a tradição" (Jaci).
A palavra "respeito" reflete o valor moral mais privilegiado na aldeia e descrito como proporcional à idade. Jaci afirma que na medida em que se vai envelhecendo, se sente mais respeitado. O respeito também se associa ao status na aldeia ou cargo na comunidade. Por exemplo, Moema sente-se "muito respeitada", sobretudo devido ao "cargo na aldeia" que lhe permite ajudar toda a comunidade em caso de doença, e expressa: "As pessoas vão sempre ter respeito comigo; sabem que faço o bem pra elas e os filhos quando ficam doentes, e então me tratam bem, agradecem e me respeitam muito" (Moema).
A categoria "organização da aldeia" reúne informação relativa à estrutura e organização da aldeia; inclui as palavras: "conselho", "anciãos", "cacique" "saúde"; "trabalho". As palavras conselho e ancião foram agrupados na expressão conselho de anciãos, pois eram sempre referidas em conjunto. O "conselho de anciãos" (6 referências) é o órgão responsável pela "discussão de assuntos e tomada de decisões da aldeia em conjunto com o cacique" - explica Moema. Araci explica como são escolhidos os membros e diz:
Ao considerar que a pessoa é amadurecida, responsável e tem poder de decisão, ou que tem opiniões que apresentam consistência e poder de influência na comunidade, incluem essas pessoas em conselhos, seja homem ou mulher. O conselho de anciãos é um dos mais importantes. (Araci)
"Cacique" (18 vezes) refere-se ao chefe político da aldeia; preside o conselho de anciãos e tem as funções: fomentar o bom convívio social; garantir a continuidade das tradições, providenciando rituais e ritos; comandar a defesa da aldeia em caso de guerra; determinar atividades diárias (como quem fará venda de artesanatos); resolver problemas de doenças e conflitos; aplicar sanções em caso de desobediência ou mau comportamento; discutir com o conselho de anciãos as decisões a serem tomadas. Araci, explica:
O cacique é o chefe da aldeia resolve as coisas da aldeia a qualquer hora! Tem que se estar atento a qualquer coisa que aconteça; as pessoas procuram o cacique para resolver problemas...Quando vem alguém bêbado à noite deixamos num lugar fechado e seguro para passar a bebedeira. Esperamos o dia seguinte e falamos para não fazer mais isso; se fizer expulsamos para outro lugar. Se for daqui da aldeia, tem castigos; por exemplo: tem que fazer serviço de limpeza na aldeia. (Araci)
O cacique é escolhido de acordo com as regras da aldeia: por transferência hereditária e votos da aldeia; ou seja, apesar da herança do cargo, a pessoa pode não querer assumi-lo ou pode não mostrar-se à altura, por isso é submetida ao voto da aldeia. Araci explica: "O meu pai já era cacique, mas como o meu irmão não quis ser, o povo nomeou outro cacique porque também se disponibilizou e mostrou responsável...é uma grande responsabilidade." A "saúde" (9 referências) está entre os principais objetivos da comunidade; e, melhorar a saúde de todos é uma tarefa, pois existem situações complicadas, como desnutrição em crianças. Na fala de Moema observamos a preocupação: "Ainda temos muitas crianças com desnutrição. Não temos lugar para plantar nada, dependemos das pessoas de fora. Não gostamos muito disso. Hoje em dia só peço a Deus que dê tudo certo e peço mais saúde para todos!"
A palavra saúde também surge relacionada com o local onde tratam a doença (Unidade Básica de Saúde), o posto de saúde, considerado uma conquista da aldeia (criado em 2004). Possui uma enfermeira diariamente e atendentes de enfermagem, um médico (em visitas semanais), além de agentes de saúde (pessoas indígenas) todos funcionários da prefeitura. A palavra surge também para se referir a estes últimos, que tem as seguintes funções: marcar consultas; sinalizar casos de doença; providenciar transporte de doentes e acompanhá-os às unidades hospitalares da prefeitura. Estes profissionais frequentaram cursos disponibilizados pelo estado. Moema refere:
Sou agente de saúde comunitária, gosto de fazer o bem às pessoas. O meu trabalho é marcar as consultas de prevenção, vacina...dou conselhos para as mães jovens, se alguém estiver doente eu aviso a enfermeira e providencio consulta, e ainda vou com eles ao hospital da prefeitura se for necessário.
A palavra "trabalho" é mencionada (9 vezes) para referir as atividades da da comunidade, que constituem a base da organização. Inclui: atividades remuneradas, como diz Jaci que sente-se "orgulhoso e feliz" com a sua profissão (escritor e educador) que é das "coisas mais positivas da vida" porque contribui para a "perpetuação da educação e cultura Guarani-Mbyá" ao trabalhar junto ao CECI; outras atividades não remuneradas são relacionadas com produção agrícola (desempenhada por homens e mulheres) e com a caça (só homens). Sobre o trabalho, Moema salienta: "O que gosto mais aqui é de trabalhar na terra, de plantar mandioca, milho mas a prefeitura não deixa destruir árvores então fica meio limitado para nós".
A categoria "vida quotidiana" reflete a dinâmica familiar e comunitária da aldeia, contemplando as seguintes palavras: "casa"; "família"; "reza"; "problemas"; "conversar"; referidas num total de 89 vezes.
A palavra "casa" refere-se ao lugar onde moram/habitam; inclui a casa do próprio e dos pais (para sublinhar o local de transmissão da cultura Guarani-Mbyá). Ubirajara explica que " as mães ficam em casa e dar o exemplo para as crianças". Iracema, que está em processo de separação conjugal, vive com a filha na casa da mãe que "a ajuda muito nas lidas domésticas e na educação da filha". As casas são feitas de pau a pique e algumas também em alvenaria ou tábua, os telhados com folhas de guaricanga (espécie de palmeira) ou chapa. Todos os participantes mencionam "família" (30 referências) que assume dois significados: família comunitária Guarani-Mbyá e a família de laços de sangue. Os participantes consideram a comunidade como uma grande família que vive unida. Moema refere: "Aqui na aldeia vivemos tudo junto, somos uma grande família, todos ajudam todos! A família Guarani tem a função de ensinar a língua, a tradição e a religião".
E também há a família de laços de sangue, que inclui ascendentes, descendentes e/ou colaterais por consanguinidade ou não, com quem podem ou não coabitar. Araci refere que a sua família é exemplar por viverem "muito perto um do outro"; sublinha que não imagina como seria "viver como os brancos, sem a família por perto".
A palavra "reza" (8 referências) está associada às tradições e costumes, e aos mitos e crenças que explicam o mundo em que vivem. Araci conta que "tem reza todas as noites para estarem juntos e transmitirem bons valores e lembrar os mitos, apesar de irem mais as mães e o pajé". A casa de reza é o local onde rezam e transmitem a religião e tradição. Trata-se de uma casa ampla no centro da aldeia (vedada com barro para que espíritos indesejáveis não entrem), onde se realizam festas religiosas e rituais sagrados (as crianças recebem nomes, os doentes são curados, as sementes de milho são abençoadas antes de serem plantadas e são realizados funerais). Jupi explica:
É muito importante ir á casa de reza. Quando tem rituais ainda mais! Insisto que todos venham. As futuras lideranças são as crianças; é importante que estejam presentes para saberem o que é a nossa tradição e dar continuidade. A liderança tem de estar unida para se defender do mundo lá fora.
A palavra "problemas" (14 referências) evoca os principais problemas da aldeia, relacionadas com alcoolismo, dificuldades conjugais e excesso de ver televisão. O alcoolismo é recente, inexistente nas gerações passadas. São os vizinhos (não indígenas) que vendem o álcool (cachaça) fora da aldeia aos habitantes desta aldeia.
O problema é o álcool. A mãe bebe, o pai bebe, o filho vai beber também! Trazem pinga para a aldeia e isso não é bom. Nós temos de dar o exemplo, ou a aldeia perde-se! Antes não havia nada disso. Os velhos nunca tocaram em álcool. É um problema que antes quase não existia. As mães ficam em casa e devem dar o exemplo. (Ubirajara)
Também há relatos de dificuldades conjugais principalmente relacionadas com ciúmes, adultério e recasamentos na aldeia. Jupi refere que desde que a esposa descobriu que tem uma filha de outra mulher, e tem problemas todos os dias! Mas relativiza acrescentando que a cultura Guarni´Mbyá é assim: casa e descasa!
A televisão é um passatempo recente (13 anos) "que prende os mais jovens em casa, por isso deixam de ir na casa de reza, o que quebra a tradição" (Araci).
O que gosto menos é que vejam televisão. Às vezes discuto com eles. Não gosto que fiquem vendo televisão, com este calor ainda por cima! Não se fala, não se reúne na casa de reza. Não gosto, não faz parte da cultura. Antes não havia televisão. (Araci)
"Conversar" referido (6 vezes) é uma atividade que promove a dinâmica familiar, permitindo partilhar a experiência e tradição e educar os mais jovens. "A mulher está em casa e tem o papel mais importante, porque fica faz artesanato, cozinha, a reza, conversa com as crianças e elas aprendem"(Jupi).
A categoria "ligação ao exterior" é constituída pela palavra "mundo" (22 referências), que descreve o mundo interior e exterior da aldeia e a ligação entre ambos. É usada para descrever o mundo em geral, indicando os diversos países e continentes; por exemplo, Jupi escreve "literatura indígena para o mundo entender a cultura Guarni-Mbyá". Também se refere à comunidade externa próxima da aldeia, indicando os "vizinhos civilizados" (não indígenas) que se dedicam à criação de gado e vendem álcool à aldeia. Araci vive "preocupada" com os filhos, que "vão para o mundo lá fora .... é lá nos vizinhos que vendem o álcool". Aqui incluem a civilização ou mundo Juruá, que é o mundo dos não indígenas. Iracema refere que o "mundo dos juruá também tem coisas boas", explicando que "para ser dentista tem de ser no mundo Juruá". E, é no mundo Guarani-Mbyá, que Jupi sente que " a civilização é um mundo atrasado", e por isso escreve livros para "realçar que o mundo indígena sabe ler e escrever!"
A categoria "papel dos mais velhos" remete para os valores associados às pessoas idosas da aldeia, essencialmente ligados à função e/ou dinâmica e à tradição Guarani-Mbyá. A palavra "velhos" é referida 25 vezes e engloba os seguintes significados: (a) Respeito e valorização: o velho é a pessoa mais respeitada na comunidade, em quem os mais novos buscam inspiração para condutas de vida. Acreditam que ao respeitá-los serão respeitados quando forem idosos. "Nós respeitamos muito os velhos, para sermos respeitados um dia também."(Jupi); (b) Perpetuação da cultura e tradição: a pessoa idosa é o alicerce da aldeia na transmissão da cultura. Valoriza-se o saber e conhecimento dos mais velhos, que são os guardiões e transmissores de conhecimentos. Para Jaci, os velhos têm cultura a 100%; e os novos de agora não vão ter a cultura a 100% quando forem velhos. (c) Autoridade e experiência: a pessoa idosa é fonte de sabedoria, que aumenta à medida que a idade avança, por isso pode aconselhar as pessoas e a aldeia. "O velho todo o mundo ouve e faz o que ele diz, ele viveu mais e sabe mais. Quanto mais velho, mais experiência de vida, sabe mais! Se tem 60 anos, tem 60 anos de experiências!"(Jaci).
Importância de conhecer o passado: reconhecer o passado amplia o conhecimento sobre a cultura e permite que nunca seja esquecido pelo tempo. Moema fica "encantada" a ouvir a "educação dos antepassados" relatados pelos idosos; são coisas "que não esquece e transmite aos filhos!".
Discussão
Dinâmica Guarani- Mbya na aldeia Krukutu
Os indicativos sobre a dinâmica refletiram um desejo e uma preocupação quanto à
preservação e continuidade do "ser Guarani-Mbyá" (primeira categoria), uma vez que
todas as categorias e seus indicadores confluiram para um todo que envolve: viver na
aldeia, preservar o lugar e a família, manter os costumes, seus rituais, crenças,
transmitindo-os pela educação, bem como a resguardar a identidade individual e
comunitária. Ser Guarani-Mbyá nessa aldeia é um modo de viver e de estar - indicando
a própria dinâmica. Essa dinâmica intimamente relacionada ao modo de ser - pode
indicar o que Ladeira (1992)Ladeira, M. I. (1992). O caminhar sob a luz - o território Mbya à beira
do oceano. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Antropologia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. e Cassula & Bernardino (2012)Cassula, M. & Bernardino, M. (2012). A importância da oralidade para
a revitalização cultural dos Guarani Nhandewa [trabalho completo]. In IX Seminário de
pesquisa em educação Região Sul- IX ANPED SUL - A Pós-Graduação e Interlocuções com a
Educação Básica (pp.1-16). Caxias do Sul, RS: Anped Sul. Acesso em 10 abril, 2013, em
http://www.portalanpedsul.com.br/admin/uploads/2012/Educacao_Cultura_e_Relacoes_Etnico_Raciais/Trabalho/06_37_44_2764-6881-1-PB.pdf
http://www.portalanpedsul.com.br/admin/u...
entenderam como
Tekoá que significa "modo de ser, de estar, sistema, lei,
cultura, norma, comportamento, costumes. Tekoa seria, pois, o lugar
onde existem as condições de se exercer o "modo de ser" Guarani. É então o lugar que
reúne condições físicas (geográficas e ecológicas) e estratégicas que, como salientou
(Ladeira, 1992Ladeira, M. I. (1992). O caminhar sob a luz - o território Mbya à beira
do oceano. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Antropologia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.) permitem compor, a partir
de uma família extensa, um espaço político-social fundamentado na religião e na
agricultura de subsistência. De modo que, embora a palavra Tekoá não
tivesse sido verbalizada, é expressada num discurso que traz significados acerca de
suas relações político-econômicas, sociais e organização político-religiosas, de
integridade física e psicológica; que, conforme Pereira (1995)Pereira, M. A. C. (1995). Uma rebelião cultural silenciosa: investigação
sobre os suicídios entre os Guarani. Brasília, DF: FUNAI., é mais que um lugar concreto, há um lugar da
"terra-sem-males" ou yvy marã ey já descrita por Nimuendaju (1987)Nimuendaju, C. (1987). As lendas da criação e destruição do mundo. São
Paulo: Hucitec; EDUSP..
Os participantes corroboram este "modo de ser" em todas as categorias e podem ser bem observadas em: "educação" como manutenção e transmissão do "modo de ser e viver", remetendo-se a: falar Guarani; ser agricultor, cultivador; praticar uma economia de reciprocidade; manter os seus rituais, religião e costumes; cuidar saúde, e viver na mata e comunidade - como aspectos fundamentais, pois é nesse espaço (também sentido como ameaçado) que reúnem forças para concretizar e preservar suas tradições.
A família sua organização e funcionamento também é aludida como um valor a ser mantido nesse "ser Guarani-Mbyá"; tanto a família de laços de sangue quanto a família comunitária. Na aldeia em questão há essa preocupação em manter essa organização familiar tal qual seus ansestrais lhes transmitiram e como descreveu Shaden (1969)Schaden, E. (1969). Aculturação indígena. São Paulo: Pioneira; EdUSP., ou seja, baseada na "família-grande", constituída pelo casal, filhas casadas, genros, que ocupam habitações muito próximas, uma vez que o congraçamento das famílias constitui a aldeia ou parte dela. Isso aparece nas falas, inclusive ao se mostrarem enfáticos quando se referem em como essa família se organiza e funciona; como expressou Moema: "Aqui na aldeia vivemos tudo junto, somos uma grande família, todos ajudam todos! E Jupi: "a mulher está em casa...fica lá, faz artesanato, cozinha, reza, conversa com as crianças e elas aprendem". Ou são efusivos, como Moema: "minha família é exemplar...vivemos muito perto um do outro...não sei como seria viver como os brancos, sem a família por perto...a família Guarani tem a função de ensinar a língua, a tradição e a religião" (Moema integra uma das famílias mais tradicionais da aldeia). Destaca-se que os problemas conjugais e as separações são relativizados, sendo encarados como parte da cultura.
Ameaça e Asseguramento do Ser-Guarani-Mbyá
Assegurar e transmitir a "tradição" caracteriza o modo de "ser Guarani-Mbyá", sugerindo que o comportamento em sociedade é sustentado num arsenal mítico e ideológico como já apontou Susnik (1982)Susnik, B. (1982). Los aborigenes del Paraguay. V. 2: Etnohistoria de los Guaranies. Assunção : Museo Etnográfico Andres Barbeiro.; e a "tradição" valoriza o passado, presente e o futuro consubstanciado na preservação da identidade, que permitiu a sobrevivência da aldeia até à atualidade. Todavia, há uma preocupação ante a ameça a esse asseguramento, como vimos: "Trazem pinga para a aldeia e isso não é bom...É um problema que antes quase não existia"; "O que gosto menos é que vejam televisão"; "prende os mais jovens...deixam de ir à casa de reza, o que quebra a tradição"; " não gosto, não faz parte da cultura".
Esta preocupação em assegurar parece aguçar o empenho dessas pessoas na manutenção de
suas tradições. Denota o quanto se veem ameaçados pela transformação dada pelo
contato com o mundo juruá (não indígena). E aqui também reflete uma
característica específica da aldeia em questão, pois esta é, sem dúvida, a mais
conservadora entre as demais, conforme já descreveu Bonfim (2011)Bonfim, T. H. (2011). Saúde mental e sofrimento psíquico de indígenas
Guarani-Mbyá de São Paulo: um relato de experiência. Tese de Doutorado, Programa de
Pós-graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, São Paulo. e, tal como apontado por Dos
Santos e Torres-Morales (2007)Dos Santos, S. & Torres-Morales, O. E. (2007). Idosos indígenas e
comunicação: olhares e aproximações [trabalho completo]. In ComSaúde,X Conferência
Brasileira de Comunicação e Saúde (pp. 2-17). São Paulo: Universidade Metodista São
Paulo. Acesso em 01 setembro, 2012, em,
http://encipecom.metodista.br/mediawiki/images/5/5c/Idosos_Indigenas.pdf
http://encipecom.metodista.br/mediawiki/...
e Litaiff
(1996)Litaiff, A. (1996). As divinas palavras: identidade étnica dos
Guarani-mbya. Florianópolis: Editora da UFSC. a transmissão entre gerações (na economia da reciprocidade, respeito
e equilíbrio com o meio ambiente e religiosidade) tem sido a principal arma de
resistência desse povo. Mas, a aparente preocupação dos participantes se mostra não
necessariamente quando se referem aos "problemas", mas perpassa por todas as falas,
inclusive nas expressões não verbais, ao se mostrarem zangados, com certa irritação
quanto relatam a interferência dos "vizinhos", como: "vão para o mundo lá
fora...nos vizinhos que vendem o álcool";
"a aldeia perde-se!"; "viver como os brancos, sem a família
por perto"; "Não
me imagino viver como os brancos."
Há, pois, a preocupação com a inevitável entrada de "vizinhos" na aldeia, sem poder
impedir, como é o caso da televisão "não gosto, não faz parte da cultura".
Aqui lembramos Meliá (1991)Meliá, B. (1991). El guarani: experiência religiosa. Asunción:
CEADUC/CEPAG. ao
observar que esses possuem uma íntima relação com a terra, pois dela se desprendem
também aspectos religiosos e sócio-culturais; mas as reservas de terras adaptadas
para esses Mbyá impõem-lhes restrições e determinam variações em seu modo de viver;
aspecto também relatado por Ladeira (1992Ladeira, M. I. (1992). O caminhar sob a luz - o território Mbya à beira
do oceano. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Antropologia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.,
2004Ladeira, M. I. (2004). Editorial: Terras indígenas e unidades de
conservação na Mata Atlântica - áreas protegidas? Marandú, 1(2) 1-14, Brasília, DF:
CTI - Centro de Trabalho Indigena. Acesso em 17 de junho, 2012 em
http://bd.trabalhoindigenista.org.br/sites/default/files/editorial.pdf
http://bd.trabalhoindigenista.org.br/sit...
). Um paralelo deste aspecto da
interferência do mundo não indígina versus a preservação de sua
cultura e integridade foi muito bem relatado por Grubits e Darrault-Harris (2003)Grubits, S. & Darrault-Harris, I. (2003). Ambiente, identidade e
cultura: reflexões sobre comunidades Guarani/Kaiowá e Kadiwéu de Mato Grosso do Sul.
Psicologia & Sociedade, 15(1), 182-200. , pois observaram significativas
diferenças entre os indígenas Kadiwéu e os Guarani / Kaiowá; as notadas diferenças
estiveram justamente no fato de que o difícil acesso à reserva Kadiwéu ajudava-os em
sua preservação ambiental, originalidade de seus trabalhos artesanais e na própria
expressão de suas produções gráficas e, com isso a manutenção de sua identidade
étnica. Por outro lado, continuam os autores, também observaram que de modo
contrário, os Guarani/Kaiowá, habitantes em locais mais próximo à cidade, tinham
prejuízos ambientais e perda do conhecimento e habilidades para produzir objetos
artesanais; além disso, os meninos e homens tendiam a sair da reserva indígena a fim
de buscarem trabalho na cidade, deixando para as mulheres a tarefa de guardiãs de seu
patrimônio cultural do passado, o que provoca importantes reflexos nas relações de
gênero, saúde mental e educação. Mas, em trabalho mais recente Grubits (2014)Grubits, S. (2014). Mulheres Indígenas brasileiras educação e políticas
públicas. Psicologia & Sociedade, 26(1), 116-121. aponta que as mulheres Guarani (da região de
Dourados, MS) vêm participando cada vez mais de atividades dentro e fora da
comunidade, visando ajudar na renda familiar, além de estimular seus filhos em seus
estudos até a universidade; o que denota ainda mais esse contato interétinico; e
entre os Kadiwéu, embora mais afastados do mundo não indígena a autora já observou
algumas modificações, na medida em que aspectos econômicos começaram a entrar e
interferir na cultura, de modo que as atividades com valor econômico passam a ser
lentamente valorizadas.
Em relação à saúde também há preocupações constantes, inclusive com o alcoolismo e
outros desajustamentos comportamentais; fatos esses, inclusive, que levou as
lideranças a solicitar-nos intervenções nas duas comunidades - Krucutu e Tenondê Porã
(Bonfim & Tardivo, 2008Bonfim, T. E. & Tardivo, L. S. L. P. C. (2008). Reflexões acerca de
uma experiência de intervenção psicológica em comunidades indígenas Guarani-Mbyá da
cidade de São Paulo. In L. S. L. P. C. Tardivo & C. A. Gil (Orgs.), Apoiar: Novas
propostas em psicologia clínica (pp. 457-471). São Paulo: Sarvier. ; Bonfim, Tardivo, Vizzotto, & Arias, 2006Bonfim, T. E., Tardivo, L. S. L. P. C, Vizzotto, M. M., & Arias, G.
S. (2006). Dibujos-Cuentos de una adolescente indígena Guarani-Mbyá Brasileña:
aspetos de la dinamica interna y los impasses delante de la aculturacion. In
Asociacion Argentina de Estudio e Investigacion en Psicodiagnostico - Adeip. Libro de
Ponencias - Crises, Mutaciones, Rupturas y posibilidades (pp. 56-64). X Congreso
Nacional de Psicodiagnóstico, Buenos Aires: Adeip.).
Outros problemas, como a desnutrição (Litaiff,
1996Litaiff, A. (1996). As divinas palavras: identidade étnica dos
Guarani-mbya. Florianópolis: Editora da UFSC.) têm sido contornadas pelos programas da Prefeitura de São Paulo
(Ladeira, 2004Ladeira, M. I. (2004). Editorial: Terras indígenas e unidades de
conservação na Mata Atlântica - áreas protegidas? Marandú, 1(2) 1-14, Brasília, DF:
CTI - Centro de Trabalho Indigena. Acesso em 17 de junho, 2012 em
http://bd.trabalhoindigenista.org.br/sites/default/files/editorial.pdf
http://bd.trabalhoindigenista.org.br/sit...
, 2008Ladeira, M. I. (2008). Espaço geográfico Guarani-Mbya: significado,
constituição e uso. Maringá, PR: Eduem; São Paulo: Edusp. ) e com a ativa Unidade Básica de Saúde. Essas formas de
"contornar" - no combate à desnutrição, na introdução de programas sociais e de saúde
e, inclusive, nossa própria estada entre os Mbyá, denotam relações interétnicas que,
se por um lado podem auxiliá-los na promoção de saúde, prevenção de doenças, por
outro também revelam interferência e influência. Esse dilema também aparece no
discurso: "mundo dos juruá
também tem coisas boas"; "para ser dentista tem que ser no
mundo Juruá"; " meu trabalho é marcar as consultas de prevenção,
vacina...ainda vou com eles ao hospital da prefeitura se for necessário".
Isso mostra que, se por um lado há um empenho e uma perseverança na conservação de
"ser Guarani-Mbyá", há, outrossim, um reconhecimento e aceitação das contribuições
advindas do meio externo à aldeia como necessário à sobrevivência; fato que revela um
processo dinâmico de mudança, construção, a partir dessas condições vida em que se
dão as relações de contato interétnico, aspecto muito bem apontado por Bonfim (2011)Bonfim, T. H. (2011). Saúde mental e sofrimento psíquico de indígenas
Guarani-Mbyá de São Paulo: um relato de experiência. Tese de Doutorado, Programa de
Pós-graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, São Paulo. quando de seu trabalho de atenção
psicológica aos adultos, adolescentes, bem como crianças indígenas, também na aldeia
Krucutu - Guarany-Mbyá de São Paulo; pois tais conteúdos acerca dos contatos
interétinicos foram detectados pela autora como uma forma inevitável de sofrimento
(revelando a ambiquidade e a ambivalência afetiva). Essas transformações, no campo da
saúde não são novas, pois já foram descritas como a "ciência médica Mbyá" e seus dois
ramos: a medicina Racional e a Mística. A primeira refere-se às "doenças do mundo",
advindas do contato com seres sobrenaturais que habitam os espaços terrenos e
tratadas tanto pela medicina tradicional (dietas, restrições nos hábitos, banhos e
fumegações) quanto pela ocidental (medicina dos brancos) (Cardoso, 2000Cardoso, A. M. (2000). Prevalência de doenças crônico-degenerativas na
população Guarani-Mbyá do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Programa
de Pós-graduação em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Osvaldo
Cruz, Rio de Janeiro, RJ.). Na Medicina Mística encontram-se as "doenças
espirituais", misteriosas (maldade, feitiços) e tratadas pelos pajés (Littaif, 1996);
além disso existem as "doenças de fora", vindas do contato com os não indígenas. Essa
questão, também foi bem observada por Luciano
(2006)Luciano, G. J. S. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Mec - Ministéro Educação e
Cultura, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) &
Unesco - Organização das Nações Unidas . Acesso em 12 de abril de 2013; em
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como um conflito no mundo da saúde (entre o indígena tradicional e o
ocidental científico), pois embora tenham suas conceções e formas de tratamento,
observam-se uma aceitação da medicina ocidental, considerada uma conquista, pois lhes
permite evitar doenças, mesmo ainda valorizando as tradições da medicina
indígena.
Assim, como observou Bonfim (2011)Bonfim, T. H. (2011). Saúde mental e sofrimento psíquico de indígenas Guarani-Mbyá de São Paulo: um relato de experiência. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo., o asseguramento do Ser-Guarani-Mbyá torna-se ambíguo e muitas vezes ambivalente, pois os Mbyá hão de assegurar seus costumes e tradições, porém, o contato interétnico é inevitável e traz em seu bojo tanto ameaças como agregam valores.
Uma visão da pessoa mais velha
O conteúdo sugeriu dois conceitos: "ancião" e "velho". Ancião indicou ser detentor de
responsabilidade e maturidade para a tomada de decisões, independentemente da idade
cronológica; a pessoa anciã (amadurecida) tem um papel auxiliar nas decisões
organizacionais e políticas, na proteção e implementação dos direitos e deveres da
comunidade. A pessoa mais velha assume uma função e um papel muito mais relacionado à
transmissão da tradição, mas detém um estatuto elevado e respeitado na aldeia.
"O velho todo o mundo ouve e faz o que ele diz, ele viveu mais e sabe
mais. Quanto mais velho, mais experiência de vida, sabe mais!". Como
ressaltou Cardoso (2000)Cardoso, A. M. (2000). Prevalência de doenças crônico-degenerativas na
população Guarani-Mbyá do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Programa
de Pós-graduação em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Osvaldo
Cruz, Rio de Janeiro, RJ. os velhos têm menor
responsabilidade quanto às atividades físicas e à produção, mas possuem papel
fundamental no aconselhamento do grupo e na transmissão de experiências de vida.
Apesar da idade cronológica aparentar não ser decisiva para obter o estatuto de
idoso, ter mais idade que a maioria dos que os rodeiam implica ter vivido mais e
saber mais; principalmente conhecimentos espirituais (mitos, rituais, hábitos e
costumes), permitindo a sua transmissão e a consequente preservação de seus costumes
e tradição. Entre esses indígenas os sábios velhos têm um papel de destaque (Luciano, 2006Luciano, G. J. S. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Mec - Ministéro Educação e
Cultura, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) &
Unesco - Organização das Nações Unidas . Acesso em 12 de abril de 2013; em
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) e ocupam um espaço privilegiado na
comunidade e na família. Assim, há indicação de que a pessoa mais velha tem um papel
importantíssimo no trabalho de asseguramento ou garantia de transmissão da tradição e
que, por sua vez, relaciona-se com o "Ser Guarani-Mbyá". Aspecto esses relacionado `a
tradição linguística oral dos Guarani-Mbyá (embora hoje tenham idioma próprio -
escrito), uma vez que os .mais velhos, por meio de relatos sobre o passado da etnia,
revelam e criam vínculos entre os mais jovens e sua história. Fato importante para a
expansão idiomática e a preservação cultural, como apontaram Dos-Santos e Morales
(2007) e como o expressado por Moema, que fica "encantada" em ouvir
a "educação dos antepassados...são coisas que não
esquece e transmite aos filhos!".
Assim, a vivência do mais velho nessa comunidade parece ter o mesmo sentido que a própria dinâmica - "ser Guarani-Mbyá", valorizada pelos membros da comunidade e ameaçada pelo seu entorno e pelas mais diversas interferências do mundo não indígena. Nesse contato interétnico, a reação dos Guarani-Mbyá configura aquilo que os relatos históricos têm apontado - há uma assimilação de conteúdos dos mais diversos, uma vez que cultura não é estática e está em constante movimento (Cardoso, 2011Cardoso, R. (2011). Cultura brasileira: uma noção ambígua. In T. P. R. Caldeira (Org.), Ruth Cardoso: obra reunida (pp. 203-209). São Paulo: Mameluco.), de modo que, nessa concepção, é sem dúvida um sistema e está sempre sendo construída. Entretanto, não se verifica a mesma situação encontrada por Tardivo (2007)Tardivo, L. S. L. P. C. (2007). Sofrimento, desenraizamento e exclusão: relato de uma experiência com indígenas aculturados do Amazonas. Psicólogo InFormação, 11(11), 113-126. em comunidades do alto do rio negro, pois a autora narra um sofrimento coletivo (suicídio, violência, uso de drogas), traduzido pelo que chamou de "desenraizamento da cultura de seus ancestrais" e uma falta de perspectivas de vida e de esperança; um "processo de extermínio cultural" (p. 124).
A dinâmica cultural dos indígenas Guararni-Mbya da aldeia Krukutu baseia-se na
preservação dessa identidade - entendida como "ser Guarani-Mbyá"; preservação que se
dá pela perseverante transmissão, pela educação das suas tradições e de sua religião,
como muito bem apontou Bonfim (2011)Bonfim, T. H. (2011). Saúde mental e sofrimento psíquico de indígenas
Guarani-Mbyá de São Paulo: um relato de experiência. Tese de Doutorado, Programa de
Pós-graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, São Paulo.. Como
indica o estudo dessa autora, havia uma insistente cuidado, principalmente pelos
líderes, e pessoas integrantes do Conselho de Ansiãos. Estes habitantes continuam a
reunir esforços para preservar elementos relevantes da sua religião e mitos,
organização social e línguística, bem como sua tradicional transmissão de
conhecimentos tanto pela palavra escrita quanto pela sua tradicional oralidade. As
pessoas mais velhas têm um papel importante nessa preservação e contribuiem para a
assegurar a "tradição" que caracteriza o modo de "ser Guarani-Mbyá" quanto seu papel
também faz parte desse modo de ser. Esse aspecto também foi observado por Von Held, Lopes, Sá, e Porto, (2011)Von Held, A. A, Lopes, M. S. C., Sá, S. M. N. B, & Porto, D. O. S.
(2011). Percepção de saúde na etnia Guarani Mbyá e a atenção à saúde. Ciência &
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http://www.redalyc.org/pdf/630/63018473024.pdf
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entre os
GuaraniMbyá de Santa Catarina e Rio Grande do Sul , pois revelaram que a proximidade
dos juruá (não indígenas) dificulta-os na mantenção das tradições e
os mais velhos relatam que ainda conseguem influenciar os jovens na procura à
opy (casa de reza), para identificar doenças e tratamentos;
contudo, isto se torna cada vez mais difícil dada a influência da sociedade
envolvente.
Pôde-se concluir que apesar da ocorrência de conflitos, da ambiguidade do contato interétnico, na influência dos meios urbanos, os Mbyá mantêm uma unidade religiosa, lingüística, e uma perseverança na manutenção de seus costumes e tradições que tem lhes permitido se reconhecerem com uma identidade própria; e nessa perseverança, o papel dos mais velhos, inclusive dos pajés (Xamoi) têm garantido, de certa maneira, tal manutenção.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Ago 2015
Histórico
-
Recebido
25 Jun 2014 -
Revisado
17 Dez 2014 -
Aceito
02 Jan 2015