Resumo
Os videogames são frequentemente acusados de serem prejudiciais à saúde. Sua operatividade colocaria o jogador em uma série de rotinas irracionais, muito próximas a uma relação estímulo-resposta. Sugerimos que tal posição limita as possibilidades de relação entre o videogame e a aprendizagem e está baseada em uma imagem teleológica do desenvolvimento da cognição que toma o aprender como uma caminhada em direção à racionalidade lógica. O presente artigo parte da descrição do aprendizado de um dos autores analisada a partir da retórica procedural com um jogo eletrônico para propor um modo de compreender a ação com o videogame, que convoca a uma constante recomposição do sujeito que joga e do jogo. A teoria da enação, por sua vez, apresenta proposições que sustentam uma modalidade de conhecimento operativo e incorporado, mais próximo da experiência com os videogames.
Palavras-chave:
cognição; videogame; enação; jogos eletrônicos; aprendizagem
Resumen
Los videojuegos son a menudo acusados de ser perjudicial para la salud. Su operatividad poner al jugador en una serie de rutinas irracionales, muy cerca de una relación estímulo-respuesta. Sugerimos que tal posición limita las posibilidades de relación entre el juego y el aprendizaje y se basa en una imagen teleológica del desarrollo de la cognición que se necesita para aprender a caminar hacia la racionalidad lógica. Este artículo es parte de la descripción de aprendizaje de uno de los autores analizados de la retórica procedimental con un juego electrónico para proponer una forma de entender la acción con el juego, lo que exige una constante recomposición del sujeto y jugar el juego. La teoría de la promulgación, a su vez, presenta proposiciones que soportan un modo de funcionamiento y el conocimiento corporativo, más cerca de la experiencia con los videojuegos.
Palabras clave:
cognición; video juego; enaction; juegos electrónicos; el aprendizaje
Abstract
Video games are often accused of being harmful to health. Its operability would place the player in a series of mindless routines, very close to a stimulus-response relationship. We suggest that such position limits the possibilities of relationship between videogames and learning and is based on a teleological picture of cognition that takes the learning as a walk toward the logical rationality. This article begins with the description of the learning of one of the authors with an electronic game analyzed from the procedural rhetoric perspective. We propose a way of understanding the action with the videogames that demands a constant rearrangement of the subject playing and the game. The theory of enaction, in turn, presents propositions that support a modality of knowledge operational embodied nearer from experience with videogames.
Keywords:
cognition; video game; enaction; electronic games; learning
Introdução
Dois tipos de crítica dominam o senso comum em relação aos videogames. A primeira se refere a uma aparente natureza violenta dos jogos, e ataca títulos específicos como Doom (Id Software; Activision (FIRM), 2003Id Software, I. & Activision (FIRM). (2003). Doom. Irvine, CA: Autores. ), GTA (Rockstar Games, 2005)Rockstar Games (FIRM). (2005). Grand theft auto: San Andreas. Autor. e Counter-Strike (Ritual Entertainment (FIRM), 2003)Ritual Entertainment. (2003). Counter strike.Microsoft Corp.. A preocupação central de tal crítica é o suposto comportamento que emerge da interação com imagens brutais. A maioria dos estudos, entretanto, não mostra nenhuma relação da interação com videogames e o comportamento pós-jogo (Gee, 2007Gee, J. P. (2007). What videogames have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan. ; Newman, 2004Newman, J. (2004). Videogames. London; New York: Routledge . ; 2008).
Existe um segundo tipo de crítica que, ao invés de focar em um jogo em particular, trata o videogame como uma massa disforme. Nessa abordagem, os jogos eletrônicos aparecem como tecnológica e experiencialmente idênticos (Newman, 2008Newman, J. (2008). Playing with videogames. London; New York: Routledge . ), figurando ora como sintoma, ora como causa de um declínio cultural e educacional (Newman, 2008; Squire, 2008Squire, K. (2008). Video-game literacy - A literacy of expertise. In J. Coiro, M. Knobel, C. Lankshear, & D. Leu (Eds.), Handbook of research on new literacies (pp. 635-670). New York: Lawrence Erlbaum Associates/Taylor & Francis Group. ).
Esse ponto de vista pode ser observado em uma declaração de Charles, Príncipe de Gales:
Uma das grandes batalhas que enfrentamos hoje é afastar nossas crianças dos jogos de computador na direção do que só pode ser descrito como livros que valem a pena … Nenhum de nós pode subestimar a importância dos livros numa era dominada por telas de computador e o desejo constante de gratificação imediata (“Prince battles video games”, 2001Prince battles videogames. (2001, 11 de julho). BBC News. Acesso em 10 de abril, 2016, em Acesso em 10 de abril, 2016, em http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/1433290.stm
http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment... ).
É possível perceber uma posição análoga na fala do atual prefeito de Londres que torna as escolas não só incompatíveis com a tecnologia, mas também impotentes frente ao avanço dos jogos digitais:
Exigimos que os professores forneçam a nossas crianças capacidade para a leitura; esperamos que as escolas as preencham com amor aos livros; ainda assim em casa as deixamos prostradas em frente aos consoles. Continuamos com nossa vida hedonística do século 21, enquanto uma outra sala pisca e brilha com garotinhos em um êxtase sem palavras, seus rostos passivos lavados em horror e sangue. Eles se sentam por tanto tempo que suas almas parecem ter sido sugadas para dentro do tubo de raios catódicos.
Elas se tornam como lagartos piscando, imóveis, absorvidas, apenas o movimento das suas mãos mostrando que ainda estão conscientes. Estas máquinas não lhes ensinam nada. Elas não estimulam nenhum raciocínio, descoberta ou façanha de memória - embora algumas delas possam astuciosamente fingir ser educativas. (Johnson, 2006Johnson, B. B. (2006, 28 dezembro). The writing is on the wall - computer games rot the brain. DailyTelegraph. Acesso em 16 de abril, 2016, em Acesso em 16 de abril, 2016, em http://www.telegraph.co.uk/comment/personal-view/3635699/The-writing-is-on-the-wall-computer-games-rot-the-brain.html
http://www.telegraph.co.uk/comment/perso... ; tradução nossa)
Os videogames, reconhecidos por sua interatividade, são acusados de reduzirem seus jogadores a uma passividade alienante. A ideia do jogador absorvido remete à imagem do obsessivo ou do viciado (Suzuki, Matias, Silva, & Oliveira, 2009Suzuki, F. T. I., Matias, M. V., Silva, M. T. A., & Oliveira, M. P. M. T. (2009). O uso de videogames, jogos de computador e internet por uma amostra de universitários da Universidade de São Paulo. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 58(3), 162-168. ). Ao não dirigir a crítica a nenhum jogo em particular, os críticos livram-se da tirania do detalhe e da precisão, encontram-se, assim, livres para discutir os jogos eletrônicos como um grupo homogêneo de experiências que se desenvolvem ao redor da destruição exacerbada de inimigos e colocam os jogadores em um estado sonolento, em um transe quase “zumbi”. Aqui, o problema não é exatamente a destruição, os barulhos ou as luzes piscantes. O fato de o jogador matar alguém em um ambiente virtual é menos importante do que vê-lo engajado em uma atividade que toma todo o seu ser, mas que não oferece nenhum benefício. Os videogames tornam-se um todo indiferenciado que ameaça sistematicamente a saúde mental dos jovens através de produtos irremediavelmente malignos, sem rosto e sem nome (Newman, 2008Newman, J. (2008). Playing with videogames. London; New York: Routledge . ).
Tal abordagem obscurece e limita as possibilidades de relacionar os videogames com a aprendizagem , tornando a jogabilidade uma série de rotinas irracionais, muito próximas de uma relação estímulo-resposta de tipo pavloviano. O que impulsiona essa abordagem é a ideia de um desenvolvimento teleológico da cognição, que aponta para uma compreensão do aprender como uma caminhada na direção de uma estrutura lógico-formal.
No presente artigo, recorremos a uma compressão enativa da aprendizagem que considera a diversidade de possibilidades de acoplamentos com os videogames. A partir da descrição do processo de jogar, do primeiro autor deste texto, com um jogo eletrônico busca-se visualizar o modo como a ação com o videogame, longe de ser automática, convoca uma constante recomposição do sujeito que joga e do próprio jogo. Embora entendida como uma abordagem global da cognição, a perspectiva enativa mostra uma visão da aprendizagem que coloca em evidência a participação do corpo. Nela, ovideogame se mostra como um campo de fácil evidência. Traçamos esse percurso na expectativa de apresentar o processo de jogar videogame como uma aprendizagem inventiva, contribuindo para a construção de conhecimento sobre o tema de forma implicada, a partir da experiência de um observador inserido.
Metodologia
Com o objetivo de mapear esses acoplamentos , exploramos a experiência de jogar DefenseoftheAncients (DotA), um jogo online multiplayer de arena de combate. O cenário do game foi criado com base no jogo de estratégia em tempo real Warcraft III (Blizzard Entertainment (Firm), 2002)Blizzard Entertainment (FIRM). (2002). WarCraft III reign of chaos. Irvine, CA: Autor. , inspirado, por sua vez, no mapa de outro jogo, Starcraft (Blizzard Entertainment (Firm), 1998)Blizzard Entertainment (FIRM). (1998). StarCraft. Irvine, CA: Autor., chamado AeonofStrife. No jogo DotA, cada equipe com até cinco jogadores deve destruir uma estrutura adversária chamada Ancient. Cada uma dessas estruturas se localiza em pontos opostos do mapa. Os jogadores controlam personagens chamados de “heróis” e são auxiliados por aliados controlados por inteligência artificial, denominados creepers. Ao longo das partidas, os jogadores melhoram seus personagens, adquirindo novas habilidades e usam moedas de ouro para comprar diferentes equipamentos.
O trabalho foi escrito a partir do diário de campo registrando 32 partidas disputadas, totalizando aproximadamente 80 horas de jogo. Abordamos a experiência de jogar através do conceito de Retórica Procedural (Bogost, 2008Bogost, I. (2008). The rhetoric of video games. In Katie Salen (Ed.), The ecology of games: Connecting youth, games, and learning (pp. 117-140). Cambridge, MA: MIT Press. ), que considera os videogames como sistemas que, por meio do seu conjunto de regras, criam modelos processuais que abrem espaços para diferentes conjuntos de ações. As regras criam simultaneamente o que é possível e impossível na experiência do jogo, assim como dão sentido a essa experiência. As imagens, os símbolos e o combate descrevem apenas parcialmente a capacidade expressiva do jogo. O significado se constrói mediante a manipulação dos símbolos disponibilizados ao jogador e das regras que regem o jogo. Encontramos o significado de um jogo explorando as possibilidades no próprio jogar, privilegiando as regras e interrogando a narrativa e o discurso visual à medida que eles se articulam a tal sistema de regras.
Contudo, nos aproximamos de Voorhees (2009Voorhees, G. A. (2009). I Play Therefore I Am Sid Meier's Civilization, Turn-Based Strategy Games and the Cogito. Games and Culture, 4(3), 254-275.) que, ao contrário de compreender o processo totalmente contido no interior da máquina, cujo papel do jogador seria apenas disparar ou executar o que as regras definem; tomamos o processo de um modo amplo, envolvendo operações maquínicas, protocolos de software e ação do jogador. Analisamos o jogo destacando a relação entre a performance do jogador com os demais elementos do jogo, compreendendo o jogo não somente como uma coautoria entre designers, escritores e programadores, mas fundamentalmente com o jogador. Esse jogo só opera como jogo enquanto jogado.
Compreendemos a interação com os jogos eletrônicos como de experiência projetada (Squire, 2006Squire, K. D. (2006). From Content to Context: Videogames as Designed Experience. Educational Researcher, 35(8), 19-29. ), como ambientes construídos que permitem diferentes modos de exploração e de efeitos, dependendo das ações do jogador. “Game designers ‘escrevem’ os parâmetros para a experiência dos jogadores, e a experiência do jogo como tal é melhor descrita como uma interação do game designer com o jogador” (Squire, 2006, p. 21).
Os designers do jogo criam mundos imersivos com regras embutidas e relações entre objetos que permitem experiências dinâmicas. O jogo não é uma reprodução em escala 1:1 da realidade, nem necessita de verossimilhança, ele é a criação de um mundo experiencial. O jogo utiliza elementos estéticos para que o jogador consiga identificar os elementos que constituem o desafio/problema e, a partir disso, possa elaborar estratégias de solução.
Essa organização serve, em termos gerais, para criar uma atmosfera que encoraje a performance do jogador, a competitividade ou a colaboração, de acordo com cada caso. As regras definem as condições de possibilidade da experiência, sem determinar cada um dos comportamentos esperados. Os designers do jogo criam um campo de possíveis, mas, em última instância, são os jogadores que decidem quais ações serão realizadas.
Se jogos são 'espaços de possibilidade', então pesquisadores precisam considerar como jogadores habitam eles e os mecanismos pelos quais significados são interpretados dessas experiências. Para educadores criando jogos, isso muda a questão de 'passar conteúdo' para 'projetar experiências'. (Squire, 2006Squire, K. D. (2006). From Content to Context: Videogames as Designed Experience. Educational Researcher, 35(8), 19-29. , p. 20)
Com isso, não tomamos por elemento de análise imagens ou símbolos do jogo, nem mesmo o conteúdo da fala de outros jogadores, mas a experiência de participar de uma disputa de DotA. É importante destacar que a escrita do presente textoé feita a quatro mãos e que o engajamento dos dois autores não é simétrico. Ainda assim, ambos compartilham a experiência de problematizar as formas de atualização da cognição. Como este texto se constrói justamente no ponto de encontro entre a experiência e o questionamento teórico, optamos, inspirados por Alvarez e Passos (2010Alvarez, J. & Passos, E. (2010). Cartografar é habitar um território existencial. In V. Kastrup, L. D. Escossia, & E. Passos (Orgs.), Pistas do método da cartografia (pp.131-149). Porto Alegre: Sulina.), por não respeitar a regra acadêmica de uniformização da pessoa narrativa. Com isso, ora escreveremos no plural, problematizando a experiência, ora no singular, recorrendo à experiência de jogar de um dos autores. Por fim, as imagens, símbolos e falas, não parecem aqui remetidos a outro sistema simbólico que lhes dá sentido, mas exercem a função de compor a experiência do jogador e são evocados ao longo do trabalho na medida em que fazem fazer ou pensar.
Do progresso à deriva
A postura mais comum no que tange ao aprendizado e ao conhecimento descreve a relação entre ambos como a capacidade de armazenar (apreender) uma quantidade de informação, de modo geral associada a domínios intelectuais ou acadêmicos, como literatura, história ou física. Essa atividade é geralmente desempenhada dentro dos muros da escola. A demonstração de conhecimento se dá pela capacidade de reproduzir corretamente tal informação. Esse modelo de compreensão pode ser facilmente relacionadoà dispersão das tecnologias ligadasà lógica escrita e aos temas da acumulação e da racionalização do conhecimento. Nesse cenário, o saber aparece como uma imagem estática à qual podemos recorrer quando for necessário. O trabalho da aprendizagem seria imprimir internamente essa informação, tal como a prensa imprime as letras no papel. Do mesmo modo, os conhecimentos que ganham valor são aqueles que se apoiam na leitura e na representação escrita. A noção de procedimento analítico baseado na lógica, por exemplo, só é comum em culturas que possuem a escrita como tecnologia, pois é o repouso das palavras no papel que permite a comparação e a percepção de contradições. O mesmo pode ser dito sobre outros desempenhos cognitivos considerados de “ordem superior”, como a categorização por classe de palavras e o silogismo (Levy, 2004Levy, P. (2004). As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34. ).
As teorias cognitivas tratam o problema das transformações da cognição sob a lógica do desenvolvimento. Este, por sua vez, encontra-se intimamente vinculado com a ideia de evolução, que organiza a transformação das formas em linhagens, por elos de filiação e descendência. A passagem do tempo responde, desse modo, pela construção das estruturas cognitivas numa dada ordem. Criança e adulto são distintos por sua estrutura cognitiva específica na qual o modo adulto se apresenta como horizonte possível e definitivo ao desenvolvimento da cognição infantil. Esse modo de comparação entre criança e adulto deixa entrever a ideia de progresso, uma vez que a forma de conhecer da criança passa a ser entendida a partir de estágios menos desenvolvidos. Busca-se saber o que falta à criança para que possa compreender como um adulto.
O problema da transformação temporal da cognição é posto a partir de um plano cartesiano onde uma primeira linha é horizontal e diz respeito à consideração de sua ocorrência no curso de um tempo sequencial, e a segunda é vertical, referindo-se a uma ordem de sucessão marcada pelo progresso (Kastrup, 2000Kastrup, V. (2000). O devir-criança e a cognição contemporânea. Psicologia, Reflexão e Critica, 13(3), 373-382.). As estruturas cognitivas derivam, assim, umas das outras, por filiação progressiva, estando então todas relacionadasa estruturas lógico-matemáticas. Poderíamos utilizar o exemplo da questão piagetiana : como alguém pode pensar como um cientista? De maneira que todas as formas de conhecer aparecem como preparação para operações lógico-formais, elas são consideradas então pré-lógicas, evidenciando desequilíbrios a serem ultrapassados.
Desenvolver-se é, nesse cenário, superar desequilíbrios, toda a transformação da cognição é pensada com base noprogresso e de uma maior capacidade de previsibilidade. Todavia, a meta é um conjunto de proposições relacionadas ao acoplamento com a escrita, como a capacidade de aplicar raciocínio lógico a todas as classes de problemas. Não estamos propondo que a marcha até uma operatividade lógico-formal não exista, o que sugerimos éque esse modo de configuração cognitiva seria dependente de um certo modo de associar tecnologias (como a da escrita) e instituições (como a escola). O que o presente artigo propõe é que estudar os videogames pode abrir a questão para outras marchas cognitivas possíveis, associadas a distintas tecnologias e práticas.
Jogar videogame envolve operar com um conjunto de símbolos e padrões distintos da escrita que podem eventualmente ser confundidos com gráficos sem sentido. Ao mesmo tempo, os jogos digitais privilegiam um conhecimento funcional em vez de um conhecimento declarativo, causando, frequentemente, a impressão de que não há aprendizado algum para além de um refinamento da coordenação sensório-motora.
De acordo com a Biologia do Conhecer, podemos pensar o conhecimento - e, logo, a aprendizagem - não como uma representação de informações do mundo, mas como uma performance corporal. Ao executar um cálculo matemático, não estamos apenas recuperando as informações que possuímos armazenadas sobre a matemática, mas operando-a e transformando aquilo que sabemos. Nessa perspectiva, a aprendizagem é pensada como um movimento de problematização, de bifurcação do conhecer. Com isso, a dissociação entre conhecimento declarativo e conhecimento funcional torna-se pouco valiosa, assim, seria mais útil pensarmos qual a organização que permite a expressão de um determinado desempenho cognitivo (Maturana & Varela, 2004Maturana, H. R. & Varela, F. J. (2004). A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena. ).
A mudança estrutural, na teoria de Maturana e Varela (2004Maturana, H. R. & Varela, F. J. (2004). A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena. ), é pensada como deriva natural. Tal concepção difere das teorias desenvolvimentistas, principalmente, pela ausência de uma teleonomia. O desenvolvimento cognitivo não se dá na direção de um uso optimizado da mente, mas está submetido à manutenção da autopoiese e é determinada pelo histórico de acoplamentos que o sujeito foi capaz de estabelecer. Na interação com o meio, uma perturbação localizada dispara uma mudança estrutural global que conduz a uma compensação. A recorrência da pertubação e da compensação pode estabelecer um tipo de compatibilidade ou adaptação entre o organismo e o meio. Tal efeito, contudo, não éoptimizante, mas uma composição possível, ou satisfatória, de funcionamento. O acoplamento resulta das transformações mútuas que meio e organismo sofrem no decorrer de suas interações.
Essa concepção de transformação pode ser vislumbrada em uma analogia sugerida pelos autores cuja clareza compensa a longa referência:
Imaginemos uma colina de cume agudo. Figuremos que a partir desse pico jogamos encosta abaixo gotas d'água, sempre na mesma direção, embora pela mecânica do lançamento haja variações no seu modo de cair. Imaginemos, por fim, que as gotas lançadas deixem uma trilha sobre o terreno que constitui a marca de sua descida.
Como é evidente, se repetirmos muitas vezes nosso experimento, teremos resultados ligeiramente diversos. Algumas gotas descerão diretamente para a direção escolhida; outras encontrarão obstáculos, que contornarão de maneiras diversas por causa de suas pequenas diferenças de peso e impulso, e se desviarão para um lado e para o outro; talvez haja leves mudanças nas correntes de vento, que levem outras por caminhos muito sinuosos, ou que as façam distanciar-se bem mais da direção inicial. E assim indefinidamente. (Maturana &Varela, 2004Maturana, H. R. & Varela, F. J. (2004). A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena. , p. 121)
Do acoplamento entre formas individuadas com diferenças do mundo material surgem estabilizações ou diversificações. No entanto, taltransformação se dá por caminhos múltiplos e divergentes, em deriva, sujeito a bifurcações diante de obstáculos. Esse feito de acoplamento é,com o meio, uma composição ou um coengendramento, e não uma acomodação. É uma viabilização de continuidade,muito mais que um aperfeiçoamento do uso (Kastrup, 1999Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo : uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Campinas, SP: Papirus. ). Desse modo, pensar o processo cognitivo como uma marcha em direção ao conhecimento lógico-formal seria tomar um dos caminhos possíveis como se fosse o único.
Aprender não significa exclusivamente um processo de acumulação de representações de um meio independente. Mas um contínuo processo de transformação de si e do mundo através de uma mudança contínua na capacidade cognitiva de viver-fazer com ele. A ação de lembrar não depende da retenção indefinida de uma invariante estrutural que representa uma entidade, como uma ideia ou um símbolo, mas a capacidade funcional do sistema de criar, quando as condições recorrentes são dadas, uma ação satisfatória (Maturana & Varela, 1980Maturana, H. R. & Varela, F. J. (1980). Autopoiesis and cognition : the realization of the living. Dordrecht, Holland; Boston: Reidel Pub.). Não se trata mais somente de pensar como um cientista, mas pensar com um conjunto dos acoplamentos disponíveis. É claro que o pensar acoplado com a instituição acadêmica produz um funcionamento que reconhecemos como científico, porém, outros acoplamentos convocam regras diversas de funcionamento. A segunda metade de nosso artigo descreve o processo de aprendizagem de um dos autores para que possamos refletir sobre a construção desse acoplamento com o jogo.
Incorporando a ação
Depois da instalação e configurações necessárias, dou início ao meu primeiro jogo … Seleciono um personagem aleatoriamente, entre as mais de cem opções, Ominiknighté o nome.
Vejo meu personagem próximo a uma fonte azul, cercado por outros personagens de jogadores do meu time. Um som que se assemelha a um berrante marca o início da partida. A partir de cliques no botão esquerdo do mouse, meu personagem se desloca pelo cenário; sigo pela direita, caminho que segue na horizontal. O caminho é cercado por árvores e não muito largo, aproximadamente 20% da tela. Passo por duas torres aliadas, elas parecem grandes árvores com braços. Chego a uma curva, percorri toda a largura do cenário, e começo a subir, mais uma torre aliada.
Quando me aproximo de um rio percebo um bando de pequenas criaturas (os creeps) descendo em direção ao meu campo. Começo a atacá-los, minha energia (uma barra verde sobre minha cabeça) cai rapidamente. Vejo um dos jogadores oponentes. Ele me ataca e me mata quase instantaneamente.
Alguns segundos sem jogar e estou de volta à fonte, faço o mesmo caminho. Dessa vez, um pouco antes do ponto onde morri, há uma massa indistinta de creeps aliados e oponentes atacando uns aos outros. Não consigo diferenciá-los, então uso o cursor do mouse: quando o mouse está sobre um deles, a respectiva barra de energia é mostrada, uma barra verde para os aliados, uma vermelha para os inimigos. O processo, contudo, demora alguns segundos, e me matam de novo.
Volto para a fonte, percorro o caminho, massa de criaturas, morte. Esse processo é tão rápido que por volta de cinco minutos de jogo já havia morrido várias vezes. Tantas que meu time decide encerrar a partida. (Diário de campo, fev. de 2012)
O conceito de experiência planejada (Squire, 2006Squire, K. D. (2006). From Content to Context: Videogames as Designed Experience. Educational Researcher, 35(8), 19-29. ; 2011) nos permite descrever os jogos digitais, entendendo-os mais como um contexto de atuação do que como um roteiro a ser seguido. Diferentes de outras experiências audiovisuais, o aprendizado do videogame se dá de modo ativo, de forma diversa àquela dos filmes e programas de televisão. Apesar de já ter jogado diversos jogos, observado algumas partidas, assistido alguns vídeos de DotA e conversado sobre o jogo, essas experiências pouco serviram ao jogador.
A situação remonta à célebre pesquisa em que gatos divididos em dois grupos são criados com exposição à luz controlada. Ao primeiro grupo era permitido mover-se normalmente, entretanto cada um deles carregava uma espécie de carroça com um animal do segundo grupo. Ainda que expostos à mesma experiência visual, algumas semanas depois, quando foram libertos, os animais do segundo grupo comportavam-se como se fossem cegos, esbarravam contra objetos e caíam repetidamente (Varela, Thompson, & Rosch, 2001Varela, F. J., Thompson, E., & Rosch, E. (2001). A mente corpórea, ciência cognitiva e experiência humana. Lisboa: Instituto Piaget. ).
Ambas as situações deixam claro que a compreensão (e capacidade para ação) não se dá pela extração visual de características do meio, sugerindo que a cognição deve ser entendida como uma ação corporalizada. Ou seja, na qual os processos sensório-motores são inseparáveis da cognição vivida e a própria experiência surge de um corpo com esses processos. A ação não serve apenas para “calibrar” a visão ou destituir ambigüidades, mas, ao contrário, as ações corpóreas e visuais constroem-se mutuamente.
Na abordagem da enação, a percepção é uma ação guiada perceptualmente, isto é, não se trata do processamento de informações de um mundo preestabelecido. Ao contrário, a questão é como o sujeito perceptor guia suas ações numa situação local. Uma vez que essa situação se altera constantemente como resultado da atividade do sujeito que percebe, o problema que se evidencia é: como a ação pode ser guiada perceptualmente num mundo que depende da ação do sujeito? O sujeito não pode ser considerado um receptáculo dos estímulos externos; tampouco afirmamos que as ações do sujeito e do meio se encontram simplesmente misturadas, tais interações constituem um acoplamento. A compreensão do ambiente é inventada pelo conjunto de perturbações que o organismo é capaz de compensar, tornando organismo e meio ligados por especificação recíproca, ou acoplamento estrutural. Ambos, sujeito e meio associado, fabricam-se conjuntamente como enação.
Nessa perspectiva, o conhecimento é o resultado de uma contínua interpretação que emerge, ou se destaca, de um fundo ou campo de entendimento, esse, por sua vez, enraizado nas estruturas de nossa corporalidade biológica, mas vivido e experienciado dentro de um domínio de ações consensuais. Todas as ações, incluindo aqui a fala, são realizadas em relação a esse domínio, e só ganham sentido em relação a ele. O êxito de uma ação depende, assim, de competências motoras adquiridas e do estabelecimento desse fundo consensual acerca do modo de funcionamento de um ambiente. Tal domínio não é nem subjetivo, ou seja, não pertence a um sujeito em particular; tampouco é objetivo, independente do sujeito (Winograd & Flores, 1986Winograd, T. & Flores, F. (1986). Understanding computers and cognition : a new foundation for design. Norwood, NJ: Ablex. ). Isso se explica facilmente quando relembramos que o estado atual do organismo especifica o domínio de perturbações. O sujeito não existe em um espaço externo independente dele. O histórico de acoplamentos gera um espaço continuamente mutante de perturbações que selecionarão seus estados (Maturana & Varela, 2004Maturana, H. R. & Varela, F. J. (2004). A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena. ), tal como podemos ver em uma entrada dez dias depois no diário de campo:
Ainda escolho os personagens de forma aleatória, mais pela imagem do que pelo que ele é capaz de fazer. Agora, porém, consigo jogar. Aprendi que não posso avançar em relação aos meus creeps. Sigo a primeira onda até que ela se choque com a onda inimiga. Já consigo distinguir com mais clareza os amigos dos inimigos, mesmo enquanto estão se enfrentando. Movo o mouse esperando encontrar aquele com pouca energia. Assim que acho, ataco-o. Percebi que desferir o último golpe dá mais XP e dinheiro. Com essa estratégia básica, permaneço vivo por mais tempo. Ainda assim, sempre que encontro um herói inimigo, sou morto quase instantaneamente.
Aos vinte minutos, meu time parece estar ganhando, já destruímos uma torre inimiga; um jogador diz “ah, o Lion [eu / meu personagem] ainda não tem item”. Isso me diz que estou atrasado no jogo. Que já deveria ter comprado itens. Não sei onde se compram os itens, nem quais existem, nem pra que servem. Decido que, antes de jogar novamente, tenho que ler sobre os itens, onde e quais comprar e sobre os personagens, para tomar uma decisão melhor. (Diário de campo, março de 2012)
É possível perceber na descrição que as formas distinguidas emergem de um fundo processual, mas continuam imersas nele, e redefinem-se constantemente. E é através da ação-interação que é possível perceber as configurações de transformações do mundo. O conhecimento resulta da relação que se produz no meio do caminho entre sujeito e objeto, um ponto de indiferenciação e não de intercâmbio entre duas formas dadas (Kastrup, 1999Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo : uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Campinas, SP: Papirus. ).
O videogame não expõe simplesmente o jogador a imagens que podem conter representações de ações ou coisas. O jogador treina para modificar suas ações diante das perturbações provocadas pelas operações do jogo - que se traduzem em imagens na tela - e estas, por sua vez, se reconfiguram em relação a tais ações. A observação pode, de fato, ter efeitos sobre a ação do jogador, mas a recorrência da ação transforma o campo de observação.
Quando comparamos o primeiro e o segundo registro do diário de campo, podemos notar um aumento da permanência, uma transformação da compreensão dos símbolos e das regras. Os creeps aliados e inimigos ficaram visualmente mais claros e sua função mais definida,o que resultou em uma maior clareza do papel do jogador durante a partida. Se no princípio ele se lançava em direção ao campo inimigo, procurando avançar o máximo possível, percebeu que a melhor estratégia era seguir os creeps (que não são controlados por nenhum jogador) e usá-los como escudo, atacando apenas quando fosse vantajoso.
Esse efeito remete a uma pesquisa na qual os sujeitos foram convidados a usar continuamente óculos especiais com lentes que invertiam a imagem do olho esquerdo para o olho direito (Kholer, 1964). Tais óculos foram projetados de modo que a luz que normalmente atinge o campo visual direito atingisse, com a mesma inclinação, o campo visual esquerdo. O objetivo original do pesquisador era investigar o tempo de adaptação necessário para que o usuário agisse normalmente com a imagem invertida. Sua hipótese supunha que seria mais difícil para os participantes cumprir tarefas cotidianas, já que tudo se pareceria como se visto através de um espelho.
Os resultados, todavia, foram bem mais imprevisíveis. Nos primeiros momentos de adaptação, quando os sujeitos tentavam fixar um ponto, qualquer movimento da cabeça provocava transformações inesperadas nos objetos de seu campo visual. Formas anteriormente familiares pareciam dissolver-se e reintegrar-se de modos nunca antes vistos. Por vezes, partes de figuras misturavam-se com o espaço e desapareciam. Os participantes descreviam sentirem-se enganados pelas distorções da imagem, ou serem pegos de surpresa, quando, por exemplo, uma parede parecia inclinar-se sobre a rua. Ou ainda, quando um caminhão que era acompanhado com o olhar, começava a dobrar-se e a própria estrada curvava-se como uma onda (Kohler, 1964Kohler, I. (1964). The Formation and Transformation of the Perceptual World. PsychologicalIssues, 3(4), 1-173.). Mais do que ver o mundo de forma invertida, os sujeitos de Kohler foram transportados para um espaço surreal. Com algum tempo de uso dos óculos, o mundo começava a retomar a forma conhecida e só então, em uma segunda fase, podia ser visto como invertido.
O que a experiência com o videogame e a de Kohler sugerem conjuntamente é que a percepção não é auxiliada por nossa ação no mundo, mas construída por ela, por nosso corpo e por nossas capacidades sensório-motoras. Construímos ativamente as características do mundo no qual vivemos e construímos nosso plano a partir delas, o que nos permite falar da percepção como uma ação.
Apesar da ênfase no saber-fazer, não significa que jogar videogame descarte um saber-sobre, ou seja, a reflexão lógico-proposicional. Essa prática, no entanto, é mais comum no espaço entre partidas (Squire, 2011Squire, K. D. (2011). Videogames and learning : teaching and participatory culture in the digital age. New York: Teachers College Press.). Se observarmos o transcorrer de diversas partidas, podemos reconhecer um processo de construção de hipóteses, definição de estratégias de teste, reteste e reconsideração (Gee, 2007Gee, J. P. (2007). What videogames have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan. ). Quando eu nada sabia do jogo, simplesmente avancei clicando com pouca preocupação, explorando o cenário. Após várias derrotas em diversas partidas, percebi que vivia por mais tempo quando ficava atrás da minha onda de creeps. Essa hipótese se provou válida, o que fez com que eu repensasse minha ação no jogo. Na verdade, o próprio jogo se transformou para mim e começou a durar mais. Com mais tempo, foi possível entrar em contato com outros elementos, como a necessidade de comprar itens; e essa transformação se segue insistentemente.
A excelência em um jogo consiste em transformar o saber-sobre em um saber-fazer adquirindo um corpo capaz de uma ação efetiva em seu meio associado. Isso possibilita entender intuitivamente os padrões emergentes sem pensar neles, enfrentando desafios constantes e monitorando as informações recebidas. O que não significa dizer que se trata de uma ação sem pensamento, visto que o pensamento foi incorporado à própria ação, podendo agora ser enagido. A atividade de jogar privilegia aquilo que o jogador é efetivamente capaz de fazer, o conhecimento relevante é aquele incorporado e performático. A repetição permite que o jogador perceba os padrões que emergem da ação e desenvolva as habilidades motoras necessárias (Squire, 2005Squire, K. D. (2005). Educating the fighter: buttonmashing, seeing, being. On the Horizon On the Horizon, 13(2), 75-88. ). Novamente, insistimos que isso não implica ausência de reflexão ou impossibilidade de o aprendizado ser parcialmente transformado em descrições, opiniões e direcionamentos para outros jogadores. De fato, muitos jogadores escrevem milhares de walkthroughs, muitos deles com centenas de páginas para orientar jogadores menos experientes. Eles estão enraizados na cultura gamer, o que não significa uma imersão somente no ato de jogar. Em certo momento escrevi em meu diário de campo: “Já possuo uma ‘metodologia de trabalho’. Leio o guia sobre o personagem. Jogo contra os bots para conhecer as habilidades. Depois jogo um jogo de verdade. Por fim, volto ao guia para reler coisas que eventualmente tenha esquecido”. (Diário de campo, março de 2012)
A leitura dos referidos textos, porém, não faz sentido algum, a menos que o leitor já tenha experienciado o jogo por algum tempo. Isso porque os textos associados a jogos são construídos com base em uma epistemologia funcional (Squire, 2008Squire, K. (2008). Video-game literacy - A literacy of expertise. In J. Coiro, M. Knobel, C. Lankshear, & D. Leu (Eds.), Handbook of research on new literacies (pp. 635-670). New York: Lawrence Erlbaum Associates/Taylor & Francis Group. ), ou seja, tudo é descrito em referência às ações possíveis no jogo.
É importante notar que não é a leitura das fórmulas e das regras que garante o sucesso no jogo. Na verdade, tal leitura não é nem sequer obrigatória. Isso porque a centralidade do sentido no videogame não é um saber-sobre desconectado de um saber-fazer. Os desempenhos de um jogador ganham significado através da realização, essa sempre local e histórica. Os jogos convocam um saber-fazer no qual ação-percepção-reflexão encontram-se ligadas em ato. Esse ato não é desconectado do contexto e da história corpórea e não pode ser tratado como um resíduo que deve ser progressivamente eliminado a favor de regras mais sofisticadas e passíveis de generalização. Ele deve ser tomado “como a própria essência da cognição criativa” (Varela et al., 2001Varela, F. J., Thompson, E., & Rosch, E. (2001). A mente corpórea, ciência cognitiva e experiência humana. Lisboa: Instituto Piaget. ). Nessa última sessão, descrevemos com mais precisão o desenvolvimento desse saber-fazer e sua relação com o processo inventivo.
Ação incorporada
Joguei com os GoblinsTech's. Depois de ter aprendido a função de cada magia, consegui pensar numa estratégia. Plantava um campo de minas e atraía um inimigo. Era difícil acompanhar a energia do inimigo pra saber se valia a pena atacar ou fugir. Mas meu aprendizado ficou mais claro. Comprar itens fez toda a diferença. Porém, demorei muitos minutos procurando os itens e fiquei numa desvantagem muito grande contra meu oponente. A partida durou cerca de meia hora. Meu time venceu. Ainda não consigo acompanhar estratégias de time. Acho difícil lembrar da tecla de atalho de cada habilidade de meu personagem, mas pelo ritmo que o jogo segue, me parece que não há outro jeito de vencer. Consegui, porém, vencer alguns combates individuais, o que deixou o jogo mais divertido. (Diário de campo, abril de 2012).
Percebemos mais claramente como cada símbolo que aparece na tela e cada habilidade que aprendemos estão interconectados com tudo mais que aprendemos e fazemos no jogo. Podemos, então, compreender o jogo como um sistema ao invés de um conjunto discreto de perícias (Gee, 2004Gee, J. P. (2004). Situated language and learning : a critique of traditional schooling. New York: Routledge. ). Por exemplo, se esconder atrás dos aliados, identificar o mais frágil, atacar, usar o dinheiro para comprar itens, plantar bombas e atrair o oponente é um conjunto integrado de desempenhos. O avanço só é possível se o jogador conseguir interpretar os elementos dispostos no cenário. Essa interpretação, contudo, só pode ser feita através da compreensão do campo de possibilidades de ação do personagem e de como tais ações interagem com o espaço do jogo.
Enquanto jogava com os Goblins, precisava simultaneamente acompanhar a posição e os movimentos de seus oponentes por meio de mapa, identificar quais habilidades podiam ser utilizadas a cada situação e ser capaz de julgar a ordem de prioridades adequada para utilizá-las. O que para um espectador, em um primeiro momento, poderia parecer somente uma cena de ação violenta que requer do jogador uma disposição agressiva, se mostra uma ação cognitiva complexa que exige constante classificação, ordenação e configuração de ações coordenadas com a disposição do sistema (Squire, 2005Squire, K. D. (2005). Educating the fighter: buttonmashing, seeing, being. On the Horizon On the Horizon, 13(2), 75-88. ).
Os sons e as animações são sinais da condição do jogo que precisam ser usados constantemente para organizar a ação do jogador. Para alguém não familiarizado, esses diversos sinais podem ser incompreensíveis ou podem mesmo nem ser reconhecidos como sinais que precisam de atenção. Observar um sujeito enquanto joga, especialmente jogos com muita ação, pode parecer uma tentativa frenética de esmagar os botões do controle ou as teclas do computador. Mas o que ocorre é, na verdade, uma sofisticada prática que envolve o reconhecimento de sinais e padrões. Tal refinamento de conhecimento é alcançado através da interação de quatro processos (Squire, 2005Squire, K. D. (2005). Educating the fighter: buttonmashing, seeing, being. On the Horizon On the Horizon, 13(2), 75-88. ):
(a) aprender a “ler” o jogo como um sistema semiótico, (b) aprendendo, dominando e entendendo os efeitos e a gama de movimentos possíveis, (c) entendendo a hierarquia de interação dessas regras e (d) monitoramento e reflexão contínuos sobre os objetivos e subobjetivos. (p. 8)
Por exemplo, para derrotar um oponente, o jogador deve compreender o que é importante no espaço do jogo. Para isso, precisa relacionar seus movimentos com os do oponente e ajustar os objetivos de acordo com cada momento. Jogadores experientes veem as animações como sinais da situação do jogo que são interpretados para determinar o curso da ação. Essa experiência não pode ser totalmente transformada em conhecimento declarativo e, se o for, deve conservar-se como ato, isto é, incorporar o conhecimento declarativo para performar o ato. Assim como na prática de um instrumento, a experiência desempenha um importante papel para se acomodar ao tempo dos eventos e perceber os padrões de interação das variáveis. Jogadores mais experientes, ao guiar os iniciantes, reduzem suas explicações a: “Você sentirá o tempo do movimento depois de vê-lo algumas vezes, assim como o som que ele faz” (Baum & Maraschin, 2011Baum, C. & Maraschin, C. (2011). Explorando “ArkhamAsylum”: sobre videogame e aprendizagem inventiva. Revista Polis e Psique, 1(2), 38-52.).
A visão do jogador é, então, moldada pela significância estratégica dos sinais e de sua ação no mundo, de modo que as distinções e atribuições de significado emergem de padrões sensório-motores recorrentes que permitem que a ação seja guiada pela percepção em um determinado domínio. É preciso construir uma sintonia com os movimentos e possibilidades do jogo e, a partir disso, coordenar os movimentos. Não basta que conheçamos os movimentos possíveis através de uma descrição, é necessário, ao longo do jogo, construir uma competência corporal que gradualmente inclua as possibilidades do avatar e as disposições do cenário, alargando a percepção do jogador, que capta aspectos cada vez mais finos e variáveis que vão tomando parte na composição do seu campo cognitivo. É preciso que o jogador permita que o personagem o habite ou, nas palavras de Gee (2007Gee, J. P. (2007). What videogames have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan. ), que se torne um híbrido com o personagem. Essa multiplicação e esse refinamento dos traços percebidos recorrem ao campo inventivo da cognição, que passa a atualizar-se na criação de soluções locais e inéditas.
Essa é uma disposição para a invenção na qual é possível:
Entrar na espessura do problema é ... tocá-lo de maneira não representativa, é problematizar-se com ele ... A invenção depende, portanto, de uma abertura para um campo de multiplicidades ou, antes, para o que existe de diferencial no objeto, para o que não foi codificado na representação. (Kastrup, 1999Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo : uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Campinas, SP: Papirus. , p. 80)
Apesar de não ser o caso de DotA, uma característica muito importante nos videogames é, justamente, impedir que o jogador torne rotineiro o uso do aprendizado, pois a cada vez que uma solução foi construída, um novo conjunto de problemas emerge, mantendo o jogo sempre no limiar da competência do jogador. Se, eventualmente, os desafios tornam-se muito fáceis, o jogador fica entediado; se muito difíceis, ele fica frustrado. Os game designers se utilizam de diversas técnicas para construir uma sensação que pode ser descrita como “difícil, mas justo” (Gee, 2009Gee, J. P. (2009). Bons videogames e boa aprendizagem. Revista Perspectiva, 27(1), 167-178. ).
O que se produz nessa aprendizagem não é uma repetição mecânica, mas uma atividade criadora que elimina o determinismo do objeto. Aprende aquele que cria permanentemente na relação, reinventando-se também de maneira incessante. A cada partida com os Goblins, o campo de possibilidades do jogador expandia-se, ele aprendia mais sobre seu funcionamento e inventava novos usos para suas habilidades. Os funcionamentos e as habilidades do personagem ficavam cada vez mais definidos, o que permitia uma constantemente redefinição do jogador. Por isso é importante distinguir automatismo de ato performático.
Não aprende melhor aquele que toca uma música sempre da mesma forma, mas aquele que é capaz de interpretá-la, aquele que, em suas repetições, é capaz de um maior número de variações. E é justamente aí que reside o lugar da repetição na aprendizagem, ela serve para corporificar o conhecimento, incorporando a análise e a representação como ato. Repetir não é criar automatismos, hábitos mecânicos. A repetição tem a função de produzir uma intimidade com o objeto, até encarná-lo (Kastrup, 2008Kastrup, V. (2008). Cogniçäo contemporânea e a aprendizagem inventiva. In V. Kastrup & E. Passos (Orgs.), Políticas da cognição (pp. 93-112). Porto Alegre: Sulina . ). Encarnar, enatuar, distingue-se de introjetar, pois não existem interações instrutivas. A aprendizagem resulta de uma mudança estrutural que se agencia na convivência, que altera o corpo e o mundo no qual o corpo se acopla.
É preciso, então, que o jogador se engaje em um incessante processo de invenção de critérios de pertinência e o abandono de regras gerais em favor de táticas locais e imediatas. Esse processo diminui, gradualmente, o papel exercido pelas representações conscientes, com a progressiva corporificação do conhecimento, mais rápido e imediato, resultando em uma fluidez de movimentos e sincronia com o ambiente que se dá através de um acoplamento direto, sem a mediação da consciência, correspondendo a uma imersão cada vez maior no domínio cognitivo de quem opera. Para usar as palavras de Kastrup (2000Kastrup, V. (2000). O devir-criança e a cognição contemporânea. Psicologia, Reflexão e Critica, 13(3), 373-382.):
no momento em que o dispositivo se acopla com a inteligência, esta é colocada em um processo de virtualização, acionando processos de criação e de diferenciação em seu interior. Ao final, o uso dos dispositivos técnicos responde, nesse sentido, por um processo de transformação da forma de funcionamento da cognição. (p. 41)
Essa aprendizagem não se limita em transformar a desatenção em atenção ou a semiconsciência em apreciação. Diferentemente do automatismo, ela ensina o corpo a ser afetado pela influência dos sinais do jogo, que anteriormente atingiam o jogador, mas não o faziam agir, não o tornavam atento. Qualquer conjunto de símbolos produzia o mesmo efeito geral e indiferenciado. Com o acoplamento, cada signo na tela gera uma diferença no jogador, que vai gradualmente se articulando com o jogo e aprende a ser afetado por ele. É por meio de novas configurações de conduta que novos objetos podem surgir para o jogador, e assim se constituem, concomitantemente, um domínio de distinções e um domínio de ações coordenadas.
Enquanto o jogador move as mãos, os olhos e a boca, o computador computa ações. Ambos respondem um à ação do outro, construindo, em conjunto, uma espécie de “gramática da ação” (Galloway, 2006Galloway, A. R. (2006). Gaming: Essays on algorithmic culture. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press.) na qual a ação humana é codificada para que o computador a receba na forma de metáforas cinestésicas. Uma gramática particular em que o controle, o teclado e o mouse fornecem os principais vocabulários físicos para a pantomima do jogador nessa gramática gestual.
Considerações finais
A recorrência de padrões sensório-motores permite a emergência e transformações de estruturas cognitivas. Essas, por sua vez, permitem que a ação seja guiada perceptualmente (Varela et al., 2001Varela, F. J., Thompson, E., & Rosch, E. (2001). A mente corpórea, ciência cognitiva e experiência humana. Lisboa: Instituto Piaget. ). Tais estruturas, no entanto, não obedecem a uma lógica teleológica, nem se deslocam inexoravelmente para a lógica matemática, mas atuam mediante categorias muito básicas, principalmente através dos usos que o objeto permite à mente e ao corpo do sujeito percebedor.
Da transformação estrutural resulta um maior número de situações e objetos discrimináveis e um maior número de respostas apropriadas. Desse modo, apreender um videogame corresponde à criação de uma conduta inventiva, que produz simultaneamente o próprio território onde ela se estabelece. Enquanto o jogador aprende e executa novos movimentos, também constrói uma narrativa imagética pelasdecisões que toma. Contudo, isso só pode ser feito a partir de uma prática concreta naquele domínio cognitivo que emerge da interação jogo e jogador.
É importante notar que o protótipo do aluno em uma aprendizagem inventiva não é aquele somente capaz de solucionar problemas adequadamente. Seria mais adequado compará-lo a um estudante de música, que pode começar seu aprendizado por meio de instruções simbólicas, mas que consuma sua aprendizagem quando a relação simbólica é transformada em acoplamento direto do corpo com o instrumento, eliminando o intermediário da representação. Aprender não significa se adequar ao instrumento, mas agenciar-se com ele. O acoplamento não implica subordinação ou hierarquia, tampouco opera por causalidade, e sim por uma implicação recíproca de fluxos heterogêneos, por uma dupla captura, resultando na diferenciação de todas as linhas envolvidas (Kastrup, 2008Kastrup, V. (2008). Cogniçäo contemporânea e a aprendizagem inventiva. In V. Kastrup & E. Passos (Orgs.), Políticas da cognição (pp. 93-112). Porto Alegre: Sulina . ).
Assim como aprender uma língua, a alfabetização não se encerra na capacidade de decodificar as palavras (como ler), mas espera-se também que o aprendiz compreenda um certo conjunto de práticas e seja capaz de produzir (como escrever) nesse meio. No caso dos videogames, tais habilidades se encontram fortemente interligadas: é sua própria prática que pode levar à configuração de objetos diversos. Novas distinções levam o jogador a construir outras questões no jogo, expandindo constantemente o domínio interativo e os problemas possíveis dentro de um jogo. Assim, existe uma experimentação de como a ação é produtora de objetos. Podemos dizer que nos jogos temos ferramentas para experimentar como a ação leva à imagem num circuito de reciprocidade que produz sentido.
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1
Newman (2008) vai muito mais fundo em suas críticas e descreve uma associação na mídia inglesa do videogame com a junkfood e à competitividade capitalística, tornando os jogos digitais supostamente nocivos para a mente, o corpo e todo o conjunto da sociedade.
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2
Artigo elaborado a partir da dissertação Baum, C. sobre Video Games e Cognição Inventiva. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
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3
Para Maturana e Varela (2004), acoplamentos estruturais são o resultado de uma série de interações do organismo vivo e seu meio criando uma estabilidade ou recorrência entre as perturbações do meio e as respostas apresentadas pelo organismo.
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4
Embora não exista um consenso sobre o pertencimento de Jean Piaget ao movimento cognitivo com teóricos argumentando contra (Gardner, 1995Gardner, H. (1995). A nova ciência da mente. São Paulo: EDUSP. ; Miller, 2003Miller, G. A. (2003). The cognitive revolution: a historical perspective. Trends in cognitive sciences, 7(3), 141-144.) e a favor (Astington & Olson, 1995Astington, J. W. & Olson, D. R. (1995). The cognitive revolution in children’s understanding of mind. Human Development, 38(4-5), 179-189.); utilizamo-nos de sua questão clássica como forma de ilustrar o problema do tempo como evolução.
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5
Autopoiese é o processo através do qual toda a unidade viva produz seus elementos e distingue-se do meio simultaneamente. É o processo pelo qual Maturana e Varela (2004) distinguem os seres vivos dos não vivos.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2017
Histórico
-
Recebido
22 Mar 2014 -
Revisado
16 Set 2014 -
Aceito
24 Fev 2015