Resumo
Este artigo discute a saúde do trabalhador e mais especificamente os aspectos relativos à saúde mental relacionada ao trabalho, a partir de entrevistas com 24 trabalhadores e trabalhadoras em situação de sofrimento e adoecimento. A utilização de um roteiro de entrevistas e o uso conjunto do SRQ-20 possibilitaram o entendimento da história do trabalhador, sua relação com o trabalho e de sua saúde em intrínseca associação com o vivido no espaço laboral. A proposta é que a discussão e os instrumentos utilizados possam servir para profissionais da saúde que necessitam fazer investigação diagnóstica da relação saúde mental e trabalho, além de trazer importantes questionamentos para construir uma proposta de acompanhamento terapêutico para o trabalhador ou trabalhadora que busca o serviço. O objetivo maior é o de subsidiar a construção de propostas para uma clínica em saúde mental e trabalho para os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).
Palavras-chave: saúde mental e trabalho; clínica do trabalho; SUS
Resumen
En este artículo se analiza la salud de los trabajadores, y más específicamente los aspectos de el labor relacionada con la salud mental, a partir de entrevistas con 24 trabajadores y trabajadoras en situación de padecimiento y enfermamiento. El uso de una serie de entrevistas y la utilización conjunta del SRQ -20 permitió a la comprensión de la historia del trabajador, su relación con el trabajo y su relación intrínseca de la salud en los espacios de trabajo. La propuesta es que la discusión y los instrumentos utilizados se pueden utilizar para los profesionales de la salud que necesitan hacer investigación diagnóstica de la relación entre la salud mental y ocupacional, y llevar a preguntas importantes para construir una asistencia terapéutica propuesta para el trabajador o trabajadora que buscan el servicio. El principal objetivo es apoyar el desarrollo de propuestas para una clínica de salud mental y el trabajo de los servicios del Sistema Único de Salud (SUS).
Palabras clave: salud mental y trabajo; clínica del trabajo; SUS
Abstract
This article discusses the health of workers and more specifically the work-related aspects of mental health, based in interviews with 24 workers from both sexes in suffering and illness situation. The joint use of scripted interviews and the SRQ-20 enabled the understanding of the history of the workers and their relation with work and their health, in intrinsic association with what was lived in the work place. The proposal here is that this discussion and instruments used may serve to health professionals who need to do diagnostic researches of the relationship between mental health and work, and to bring important questions in hopes to build a therapeutic follow-up proposal for the workers who seeks the service. The main objective is to support the development of proposals for a mental health and work clinic for the services of the Sistema Unico de Saude (SUS), that is, the Brazilian Universal Health Care System.
Keywords: mental health and work; work clinic; SUS
Introdução
Entende-se o trabalho como constituidor da identidade e articulador entre a esfera social e a vida privada do trabalhador. Nesse sentido, o trabalho permite promover saúde mental de trabalhadores e trabalhadoras, entretanto, é necessário considerar sempre o confronto com a organização do trabalho que pode, por sua vez, gerar prazer, mas também sofrimento e adoecimento.
Nos últimos anos ocorreram avanços importantes no desenvolvimento do campo da saúde mental do trabalhador, principalmente com a compreensão proposta pela Clínica Psicodinâmica do Trabalho (Dejour & Bègue 2010; Lancman & Sznelwar, 2004). Por outro lado, é grande a dificuldade de investigação e acompanhamento dos trabalhadores com sofrimento mental relacionado ao trabalho. Uma das dificuldades encontradas é a caracterização da vinculação entre os quadros clínicos e o trabalho, pois não existe consenso para a classificação dos distúrbios psíquicos relacionados.
Apesar da ampliação multidisciplinar nos atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), na maioria das vezes os profissionais não conseguem estabelecer a relação entre saúde mental e trabalho, já que carecem de ferramentas orientadoras para investigação e atendimentos.
A discussão da saúde do trabalhador e mais especificamente de aspectos relativos à saúde mental relacionada ao trabalho são discutidos neste artigo, com alguns dos resultados obtidos em pesquisa de tese1, em que o objetivo principal, entre outros, foi construir propostas para uma clínica em saúde mental e trabalho para o SUS. As reflexões aqui apresentadas foram feitas a partir de entrevistas com 24 trabalhadores e trabalhadoras encaminhados por um serviço que presta atendimento ambulatorial hospitalar em saúde do trabalhador, o Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (ADT/HCPA).
Relação saúde mental e trabalho
A compreensão da realidade atual enfrentada pelos trabalhadores envolve o conhecimento dos processos que foram sendo desencadeados ao longo dos anos por trabalhadores, instituições, legislações e transformações sociais.
No Brasil, ao final dos anos 1980, “a redação da Constituição promulgada em 1988 incluiu a maior parte das propostas das organizações populares e de especialistas na área da saúde” (Bertolli, 2008, p. 63). De acordo com Dias (1993, p. 154), o texto constitucional apresenta um conceito ampliado de saúde, o que contribui para que os anos 1980 sejam importantes nos encaminhamentos relativos à saúde dos trabalhadores. Por mais que o contexto no período não seja o mais favorável, “não se pode perder a visão de processo e os ganhos significativos conquistados pelos trabalhadores” (Dias, 1993, p. 154).
Com a promulgação da Constituição Federal (CF), fica definido que é dever do Estado a garantia de saúde da população, conforme Artigo 196, “que, ao mencionar a saúde do trabalhador e o ambiente do trabalho, o faz expressamente no capítulo do direito à saúde” (Ramminger & Nardi, 2007, p. 11). Mesmo que à época as questões relacionadas às doenças profissionais e acidentes de trabalho tivessem destaque nas ações de saúde do trabalhador, o cruzamento do discurso da Saúde do Trabalhador e da Saúde Mental ainda é incipiente na I e II Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador (Ramminger & Nardi, 2007).
Essas conferências aconteceram, respectivamente, em 1986 e 1994. Já a iniciativa específica voltada para a Saúde do Trabalhador, com diretrizes e estratégias, vai se dar a partir da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), em setembro de 2002. Na sua proposta de atenção integral, estão os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST). Esses Centros recebem verbas do Fundo Nacional de Saúde (FNS), para realizar “ações de promoção, prevenção, vigilância, assistência e reabilitação em saúde dos trabalhadores urbanos e rurais, independente do vínculo empregatício e do tipo de inserção no mercado de trabalho” (Portaria n. 1823/2012, p. 01). A continuidade da política para a saúde do trabalhador e trabalhadora serão apresentados em item específico do texto.
Este percurso de construção histórica da saúde do trabalhador trouxe novas formas de organização do trabalho e da gestão, que em cada contexto apresentava também novas formas de manipulação da subjetividade e exploração dos trabalhadores. As situações de sofrimento/adoecimento vividas pelos trabalhadores na atualidade têm sido associadas com os novos modelos de gestão, suas metamorfoses e modulações.
Dejours (citado por Lancman & Sznelwar, 2004, p. 65) parte do pressuposto de que o trabalho deve sempre ser pensado como social, e nos diz que “trabalho é a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda não está prescrito pela organização do trabalho”. Por essa razão, é fundamental fazer uma breve retomada das transformações que a organização do trabalho vem passando, nos últimos tempos. Neste cenário, a expansão do neoliberalismo, no final dos anos de 1970, ditou a implementação da reestruturação produtiva, com a privatização acelerada, o enxugamento do Estado e a sintonização das políticas fiscais e monetárias com os organismos mundiais de controle de capital.
As formas diferenciadas de exploração do trabalhador podem ser observadas historicamente nas organizações do sistema capitalista. Jost, Fernandes e Soboll (2014, p. 48) apontam que “O capitalismo compreende diversos ciclos de crescimento e de crise, que são acompanhados de transformações na forma de gestão e organização do trabalho, assim como nas exigências de qualificação e nas formas de controle sobre os trabalhadores”.
As atuais organizações do trabalho, para Sennet (2006) e Heloani (2010), têm promovido cada vez mais dependência aos trabalhadores. A manipulação do inconsciente gerada pela competição, pressão contínua, vai construir uma fidelização à empresa para a manutenção do exercício das funções e do próprio trabalho (Sennet, 2003). A empresa então se apropria das “virtudes” dos trabalhadores, como se fosse um produto seu, causando uma subordinação de ordem afetiva, subjetiva e psicológica.
Os aspectos de poder gerencialista buscam captar a psique dos trabalhadores para o atingimento dos objetivos da empresa. A gestão de recursos humanos substitui a gestão de pessoal e das relações pessoais, quando a lógica financeira é sobreposta à produção (Gaulejac, 2007). Os trabalhadores são um “custo”, e as palavras de ordem são adaptabilidade, flexibilidade e reatividade para o “bom” gerenciamento.
Os profissionais responsáveis pelas áreas de Recursos Humanos (RH), como psicólogos e administradores, são convocados a aprimorar ferramentas que aumentem a produtividades e capturem a subjetividade do trabalhador. Barreto e Heloani (2014, p. 55) destacam que “A partir da década de 1990, os paradigmas incorporados às políticas de Recursos Humanos (RH), alteraram conceitos e valores organizacionais até então utilizados”. Nesse período surgem novos métodos de gestão e de organização da produção, principalmente modelos de empresas japonesas.
Para Gaulejac (2011, p. 96), “as modalidades de gestão que atualmente estão sendo introduzidas no mundo do trabalho levam à produção de exigências paradoxais (conflitantes) que engendram um sistema”. Há uma dupla coação que faz com que o sujeito sinta-se subordinado/dominado, por exigências simultaneamente obrigatórias e antagônicas. Ao mesmo tempo, os modelos atuais propõem a chamada “administração participativa”, utilizando termos como participação coletiva, trabalho em equipe, desenvolvimento de talentos (Heloani, 2010; Oltramari, Paula, & Ferraz, 2014).
Nesse sentido, o que se busca são melhores condições para o aumento da produtividade e que os trabalhadores, além de participarem, o façam de acordo com as orientações, com as prescrições dos gestores e que estão contidas nos manuais de RH. Apesar de solicitarem a participação coletiva, os subsistemas de recursos humanos propõem que as ações sejam individualizadas, o que demonstra as contradições internas destes modelos.
Segundo Dejours e Bègue (2010, p. 34), há muito tempo que a relação entre organização do trabalho e saúde mental foi estabelecida; o que ocorre nos últimos anos, como as patologias relacionadas ao trabalho que vêm se agravando, “é que a organização do trabalho deve ter mudado substancialmente”. Mesmo assim, há resistência a essas mudanças a partir do “trabalho bem feito”, mas a resistência não é suficiente e criam-se novos movimentos para quebrá-la. Ocorre substituição de profissionais experientes, transferem-se tarefas para terceirizadas; somado a isso, a flexibilidade, a introdução da precarização generalizada e das demissões.
A flexibilização das relações de trabalho trouxe mais desigualdade e uma “nova geografia do poder”, de acordo com Sennet (2006, p. 72), pois a estrutura das instituições foi desmontada. Até alguns anos atrás se pensava em ganhos de longo prazo, mas agora a estratégia é por ganhos imediatos, por essa razão aponta a perda do prestígio moral da estabilidade do trabalho: “Como em gerações anteriores, o valor atribuído pela maioria ao seu próprio trabalho depende de seus resultados na família e na comunidade”.
Dejours (2012) vai destacar mudanças na organização do trabalho: o privilégio concedido à gestão em detrimento do trabalho e a psicodinâmica do reconhecimento desestabilizada pela gestão e a ruptura do contrato moral. A avaliação individualizada de desempenhos, a exigência do cumprimento de metas “inatingíveis” em busca da qualidade total levam o trabalhador à realização do trabalho malfeito, fazendo-o “trair a ética profissional, e também a experimentar a traição de si próprio” (Dejours & Bègue, 2010, p. 52). Para esses autores, essas têm sido as principais causas de mal-estar e depressão no trabalho. As reações defensivas são utilizadas para que o sujeito suporte a violência e conviva com um sistema de gestão do qual deseja ao mesmo tempo se livrar. Muitas vezes o adoecimento e o afastamento do trabalho vai ser a única forma de que o sujeito possa existir de forma objetiva e subjetiva (Gaulejac, 2011).
Política Nacional da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
A Política Nacional da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Portaria n. 1.823/2012), conforme determinação do Ministério da Saúde, deve ser articulada à Política e ao Plano Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador (PNSST), em todo o âmbito do SUS, além do Ministério do Trabalho e Emprego e da Previdência Social. A proposta maior é sua concepção de ação transversal, entendendo o trabalho como determinante do processo de saúde-doença. Nessa concepção, busca desconstruir que o processo de adoecimento seja responsabilidade do trabalhador e não dos modelos de desenvolvimento e/ou processos produtivos, o que pode ser verificado no acréscimo do princípio da precaução, além dos princípios gerais do SUS. Também reforça ações já existentes desenvolvidas em muitos municípios, compreendendo a necessidade da articulação intersetorial e das atribuições nas três esferas de governo: federal, estadual e municipal.
Como já colocado, em 2002 institui-se a Rede Nacional de Atenção Integral (RENAST), pela Portaria MS/GM n. 1679/2002, que “dispõe sobre a estruturação da rede nacional de atenção integral à saúde do trabalhador no SUS e dá outras providências”. Entre as atribuições da Rede, estão a organização e implantação de ações na rede de Atenção Básica e no Programa de Saúde da Família (PSF), Rede de Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) e ações na rede assistencial de média e alta complexidade do SUS.
Até o momento, há 210 CEREST no país, sendo 26 estaduais e 184 regionais. Na PNSTT e agenda estratégica do MS foi definido como prioridade fortalecer a Vigilância em Saúde do Trabalhador, tendo como meta a ampliação dos CEREST, desenvolvendo ações “com vistas à promoção da saúde e de ambientes de trabalho saudáveis” (Vasconcellos, Gomez, & Machado, 2014).
Os CEREST recebem demandas de investigação de alguns setores específicos profissionais de acordo com sua característica regional. Quando existem profissionais da área da saúde mental no serviço, são realizadas, muitas vezes, avaliações psicológicas e, em alguns casos, atendimento psicoterápico. Mas na grande maioria das vezes é feito o acolhimento e o encaminhamento para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), ou, na sua ausência, para profissionais psicólogos e psiquiatras externos ao SUS. O que ocorre é que nem sempre essas ações conseguem compreender o que foi gerador de sofrimento e adoecimento, não agindo, portanto, no estabelecimento de ações de intervenção e/ou prevenção/promoção.
Metodologia da pesquisa
A pesquisa desenvolveu uma abordagem qualitativa que compreende as relações e atividades humanas, vividas no cotidiano do trabalho, ao mesmo tempo em que faz uso de um instrumento quantitativo para complementar e relacionar os aspectos encontrados em relação aos atendimentos. O saber e a experiência na clínica do trabalho são inseparáveis: “Trata-se, ao mesmo tempo, de compreender para transformar e de transformar para compreender, o que inscreve a clínica do trabalho numa perspectiva de pesquisa-ação” (Lhuilier, 2014, p. 8). Esta pesquisa foi avaliada e aprovada pela comissão científica do hospital e pelo Comitê de Ética em pesquisa do mesmo local, conforme CAAE 12446413.7.000.5327.
As pesquisas em clínica do trabalho se orientam a partir da concepção de uma sociedade justa - para todos, e pela ética da prática. Por isso, em suas intervenções são trabalhados estudos de caso, histórias de vida, a articulações com teorias e conceitos distintos como psicologia, sociologia, ciência política, ao invés de levantamentos e representações numéricas da realidade. Busca-se, a partir de formas discursivas, construir ou reconstruir o real do trabalho qualitativamente (Bendassolli & Soboll, 2011)
Nesse sentido, a proposta metodológica é uma construção a partir da realidade vivenciada, nas situações de adoecimento e atenção à saúde mental e trabalho estando em consonância com o problema estudado. Por isso, utilizaram-se entrevistas individuais e um instrumento complementar, o Self-Reporting Questionnaire, SRQ-20, e da Clínica Psicodinâmica do Trabalho, proposta por Dejours (1992; Lancman & Sznelwar, 2004) para sua discussão e análise.
O SRQ-20 é um instrumento utilizado para rastreamento psiquiátrico, sendo indicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para uso de apoio diagnóstico principalmente nos serviços de atenção básica. Tem sido utilizado na detecção para transtornos mentais não psicóticos, sempre como complemento ao processo diagnóstico com entrevistas e avaliação em saúde mental (Gonçalves, Stein, & Kapczinski, 2008; Santos, Araújo, & Oliveira, 2009).
Contêm na versão brasileira 20 questões, sendo que as respostas são tipo sim/não, podendo ser aplicado ou autorrespondido. Cada resposta sim é considerada 1 (um) ponto no valor total, sendo relacionado o valor final para 0 (nenhuma probabilidade) até 20 (extrema probabilidade) em relação à possibilidade de ocorrência de transtorno mental. O ponto de corte utilizado tem sido o de 7/8 respostas positivas (Gonçalves, Stein, & Kapczinski, 2008).
O processo foi realizado em momentos distintos: escolha dos participantes; entrevista com os participantes escolhidos anteriormente; encaminhamentos e acompanhamento quando necessário. Os participantes foram escolhidos entre aqueles trabalhadores e trabalhadoras que buscam o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, mais especificamente o Ambulatório de Doenças do Trabalho.
No atendimento inicial, feito por médicos e /ou residentes, os usuários-trabalhadores foram submetidos a algumas questões, incluídas na anamnese de rotina do Ambulatório. As questões selecionadas dizem respeito ao grupo do SRQ-20 relativos ao “Decréscimo de energia vital”, por serem aquelas consideradas como expressivas do trabalho. São as questões: você se cansa com facilidade? Tem dificuldade em tomar decisão? Tem dificuldades de ter satisfação em suas tarefas? O seu trabalho traz sofrimento? Sente-se cansado todo o tempo? Tem dificuldade de pensar claramente?
Posteriormente, o profissional marcou um retorno para a agenda de pesquisa ou não, de acordo com as respostas obtidas, ou ainda discutiu o caso com a pesquisadora. As questões buscam verificar, inicialmente, indícios de adoecimento relacionado ao trabalho. Mas caso a queixa principal do atendimento já fosse essa ou o médico/residente verificasse a situação de sofrimento e/ou adoecimento psíquico, o encaminhamento seria para a agenda de pesquisa, sem que necessariamente fossem feitas as questões acima relacionadas.
Os usuários-trabalhadores selecionados previamente foram informados sobre os objetivos da pesquisa, e antes de serem atendidos optaram pela participação, mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Como procedimento ético, seus nomes, quando citados, foram substituídos, assim como o nome de outras pessoas ou locais de trabalho.
A partir do aceite, o usuário-trabalhador participou de uma entrevista individual. Iniciou-se com a aplicação completa do SRQ-20 que se constituiu como um disparador para o início da entrevista, na medida em que os trabalhadores perguntavam sobre as questões e já as comentavam durante o preenchimento. Na sequência, foi usado o roteiro de entrevista, permitindo flexibilidade na ordem das perguntas, o relato de situações que tinham vivido ou outras informações que foram consideradas importantes. Esse instrumento foi baseado inicialmente em alguns já existentes (Camargo, Caetano, & Guimarães, 2010; Mendes, 2007; Moura, 2014; Pezé, 2010).
O roteiro de entrevista organizado conta com uma primeira parte composta por informações gerais do entrevistado, passando logo para o histórico do trabalho e queixa, depois a história de situação de saúde e história de vida pessoal, totalizando 36 questões, além das informações iniciais. As entrevistas foram realizadas com duração média de uma hora e trinta minutos a duas horas.
Quando necessário, a situação do atendimento foi discutida, da mesma forma que verificada a necessidade de permanência de acompanhamento no Ambulatório, ou de encaminhamento para outra especialidade, como a psiquiatria, por exemplo, ou ainda retorno para o serviço de origem caso o trabalhador tivesse referência.
Em relação à descrição dos resultados, a elaboração foi feita da seguinte forma: (a) levantamento do SRQ-20 realizado em planilha do Excel e transformado em gráficos para melhor visualização; (b) escrita de entrevistas e transcrição das gravações realizadas, leitura e releitura do material transcrito e preparação dos relatos; (c) leitura do referencial teórico e do material organizado, estabelecendo o que é relevante em ambos para a organização dos comentários verbais/apontamentos e relação do que foi considerado relevante, com os objetivos da pesquisa; (d) apresentação das falas dos trabalhadores, que foram transcritas de forma literal; e (e) estabelecimento da articulação entre o material organizado e a teoria apresentada.
Apresenta-se aqui o que foi sistematizado dos encontros com os trabalhadores, e o entrelaçamento teórico feito com os relatos, assim como resultados compilados de discussões mais extensas apresentadas na pesquisa original. Optou-se pelo uso da denominação comentários verbais/apontamentos dos trabalhadores na medida em que os comentários verbais dos trabalhadores são o que nos interessa conhecer (Lancman & Sznelwar, 2004).
Análise e discussão dos resultados
Foram entrevistados 24 trabalhadores e trabalhadoras, num período de sete meses. Dos 24 participantes, quatro são homens. Apenas seis em relação ao total estavam trabalhando no momento, e essas eram todas mulheres. Ao todo, 16 moram em Porto Alegre, e os demais na região Metropolitana, considerando as cidades de Alvorada, São Leopoldo, Gravataí, Viamão e Canoas. Todos os participantes já estiveram em Licença Saúde (LS) anteriormente por questões relacionadas ao trabalho, mesmo os que estavam em atividade no momento.
Dos entrevistados, 21 apresentaram um número de respostas positivas acima de sete (7) para o SRQ-20. Apenas um entrevistado não marcou resposta positiva para as questões. Importante ressaltar que 20 marcaram mais de dez respostas positivas, um resultado muito significativo; 88%, ou seja, 21 dos entrevistados apresentaram 08 ou mais respostas positivas; 4% tiveram 6 ou 7 respostas Sim e 8% pontuaram 5 respostas positivas ou abaixo disso.
A seguir alguns destaques dos comentários verbais/apontamentos dos entrevistados foram separados em cinco grupos temáticos, feitos pelos pesquisadores: adoecimento (incluindo tentativas de suicídio e ideação suicida); gestão (assédio moral, violência psicológica, assédio de colegas, espaço de reunião); relação com o trabalho - dedicação (enfrentamento); escuta - atendimento (medicamento-diagnóstico, entendimento, apoio da família, sindicato-justiça, INSS) e possibilidade de tratamento - sugestões (SUS). Ainda em relação aos comentários, apresenta-se um agrupamento - sobre a pesquisa, escuta, atendimento - que diz respeito ao próprio processo de pesquisa e surgiu como apontamentos espontâneos e reflexivos dos entrevistados.
Adoecimento
Conforme coloca Dejours (2000, p. 35), “Se o sofrimento não se faz acompanhar de descompensação psicopatológica (ou seja, de uma ruptura do equilíbrio psíquico que se manifesta pela eclosão da doença mental), é porque contra ele o sujeito emprega defesas que lhe permitem controlá-lo”. Os trabalhadores relatam situações de adoecimento que foram acontecendo aos poucos no contexto do trabalho.
O que se vê nos relatos das entrevistas são, ao contrário, situações de adoecimento estabelecidas com dores generalizadas, episódios depressivos, cansaço, vontade de não retornar ao trabalho, indicando que seu trabalho tem trazido sofrimento conforme verificado nas respostas à pergunta 13 do SRQ-20: Tem dificuldades no serviço (seu trabalho é penoso, lhe causa sofrimento)? Isso representa 71% dos entrevistados, 17 respostas positivas.
Desde que eu tava lá era dor na cabeça e dor no estômago. Eu até fui na doutora e a doutora falou: tu não tem uma úlcera nem nada, mas me deu pra tomar porque eu não aguentava de dor no estomago e azia. E lá em casa eu tenho duas crianças pequenas eu não conseguia ajudar o guri a fazer as tarefas, tinha tarefa da escola e eu não conseguia ajudar ele. Eu não queria nem que eles falassem comigo. Quando eu chegava em casa do serviço eu gostaria de fazer só o que eu tinha pra fazer e me deitar, se não precisasse falar comigo era melhor.
Outra situação relatada é do medo. Muitas vezes situações de medo generalizado, pânico, fobia. Tanto o medo de não conseguir mais trabalhar quanto o medo de retornar ao trabalho depois de um período de afastamento.
Alguns trabalhadores (4) relataram e falaram em detalhes das tentativas de suicídio, em alguns casos a família não sabe da situação. Foram questionados principalmente após terem respondido positivamente a questão no SRQ-20.
Aparentemente a relação entre suicídio e trabalho não existe, o que é uma ideia superficial, sustentada por teorias que buscam apenas focar a história pessoal dos indivíduos, ignorando a importância e centralidade do trabalho no contemporâneo. O ato de excluir o mundo do trabalho das análises que focam o suicídio faz com que não se criem novas possibilidades de investigação e, a partir disso, limita a compreensão do ato em si, ignorando as novas expressões de dor e sofrimento que têm sido impostas pelo atual contexto do mundo do trabalho, regido pelo sistema capitalista onde as relações se mostram, inúmeras vezes, destrutivas (Barreto & Venco, 2011).
As tentativas com ingestão de medicamentos são as mais relatadas, e isso ocorre por terem disponíveis medicamentos da família ou seus próprios. Dos entrevistados, pelo menos dez relataram já terem elaborado formas de tirarem a própria vida, e relataram suas ideias, inclusive pensado na forma, com instrumentos, mas nunca chegaram ao ato. Referiram não terem seguido adiante por falta de coragem, por terem pensado nos filhos e família, entre outras considerações, mas que no momento queriam apenas acabar com o sofrimento.
No SRQ-20, foram dez respostas relativas a essa situação, sendo que a indicação de resposta é para o “problema descrito nos últimos 30 dias”; outros entrevistados responderam já terem tido ideias suicidas anteriormente a esse período. Os trabalhadores relataram ideação suicida, principalmente após as perguntas: “Tem pensado em dar fim à sua vida?”, o que representa 42% dos entrevistados; ou “Sente-se inútil em sua vida?”, com 50% de respostas positivas.
As tentativas de suicídio demonstram o quanto os trabalhadores não puderam falar do exacerbamento de seu sofrimento, e consequentemente do sofrimento patogênico. Há um silenciamento dos sentimentos e das percepções em relação ao vivido no trabalho. Estão isolados, sozinhos, o que se percebe quanto se remete às patologias da solidão (Ferreira, 2013), quando não se encontra no espaço coletivo lugar para falar, para dividir com os demais. Seja com os colegas ou com a família, o conforto, proteção e amparo não é vivido.
Gestão
O relato de mudanças na forma de gestão é muito frequente, em alguns casos com mudanças muito claras por adoção de um novo modelo (instituições maiores), em outros, mudanças que foram acontecendo aos poucos principalmente nas relações e na solicitação das tarefas. Os trabalhadores também discorreram sobre mudanças importantes na gestão dos locais, como remuneração variável, diminuição de funcionários e aumento da demanda de trabalho, troca de turnos sem aviso ou consulta prévia, aumento de controles e processos de registros.
Nos relatos aparecem as cobranças de forma mais rude, nas formas das chefias tratarem os funcionários com gritos, punições, advertências informais e formais bem como a exposição aos demais colegas de uma situação que não é pública.
Mudou muita coisa assim que as cobranças foram muito maiores em cima da gente, mudaram muitas rotinas, aumentaram muitas rotinas, só que o número de funcionários continua o mesmo, o tempo pra desenvolver essas rotinas novas também é o mesmo.
O controle do trabalho por metas evidencia as mudanças ocorridas nos processos de trabalho, exigindo mais produção dos trabalhadores, principalmente quando os serviços têm programas de qualidade ou de avaliação nesse sentido.
A condução do processo de avaliação de desempenho também é relatada como motivo de sofrimento, desentendimento com as chefias e discordância daquilo que é o real do trabalho. Conforme colocado por Dejours e Bègue (2010), não há como mensurar o trabalho apenas por seus resultados e de forma individualizada.
Só que quando chega na tua gestão a nota que vale é a nota que elas botam, não é a tua, não é tu revidar, tu até pode revidar, mas resolve? Muda?
Não vai... por isso que muitas vezes a gente fica quieta, engole sapo porque não vai mudar, só vai piorar.
As situações relatadas referem-se ao assédio moral no trabalho, na medida em que ocorreram por um período prolongado, com exposição a situações vexatórias na frente de colegas, exposição de situações particulares, pedidos de não comunicação, ameaças, não aceitação de atestados, mudanças de horário e local de atividade sem consulta prévia, entre outras.
Com relação ao entendimento da situação que levou ao adoecimento dos entrevistados, as de violência psicológica e assédio moral no trabalho são a grande maioria, mas aparecem outras de sobrecarga física de trabalho, e aumento da demanda, sendo que essas são posteriormente complementadas com situações igualmente assediadoras. As atitudes de xingamentos, exposição aos demais colegas e humilhações apareceram em muitos relatos. O que aparece fortemente é a intensidade das situações de assédio e não necessariamente a sua permanência por longo período. O efeito de uma ação assediadora à estabilidade psíquica do sujeito pode ser ainda mais nocivo do que um processo de assédio de longo período.
Os atos de violência aparecem de diversas formas, em atitudes, palavras. Às vezes expressas pela própria chefia imediata, em outras, por pessoas que são intermediárias dessa função e até mesmo colegas. Como consequências, o trabalhador pode apresentar prejuízos à saúde física e psicológica. Em algumas situações, os atos de violência psicológica, antes ocorridos de forma isolada, transformaram-se em práticas de assédio moral.
As reações de chefias com gritos e situações que chamavam a atenção também foram práticas frequentes relatadas pelos trabalhadores. De acordo com Soboll (2008, p. 143), são vários os comportamentos que podem ser caracterizados como violência psicológica no trabalho: “humilhações, provocações de grupos, discriminações, gestão por estresse, gestão por injúria, agressões, pontuais, assédio organizacional”.
Alguns relatos trouxeram situações assediadoras promovidas pelos colegas, com conivência da chefia. Isso era demonstrado quando a chefia não tomava posição do caso de um desentendimento entre colegas, ou ainda quando “tomava partido” sempre do colega assediador. Em algumas situações, as discordâncias no trabalho chegaram às agressões físicas e não somente verbais. Conforme aponta Soboll (2008), as situações de violência psicológica não são desencadeadas apenas pelos gestores, mas também pelos pares. De acordo com Dejours (1999), estes trabalhadores que são partícipes das situações assediadoras desenvolvem estratégias de individualismo e racionalização, e essas práticas são fruto do incentivo para a rivalidade e competição no trabalho.
Daqueles que relataram algum espaço de reunião ou de encontro no local de trabalho, foi no sentido de cobrança ou de passagem de informação. Não houve referência dos entrevistados a reuniões como um momento para discussão do trabalho e/ou espaço para falar das dificuldades encontradas no cotidiano.
Relação com o trabalho - dedicação
A relação de importância para com o trabalho, dedicação, interesse em permanecer trabalhando está presente em todas as falas. Mesmo aqueles que foram assediados ou estão afastados por longos períodos, todos falam da importância do trabalho em suas vidas. Para Dejours e Bègue (2010) é mais fácil pensarmos a importância do trabalho na vida dos sujeitos se invertermos a situação colocando os efeitos da falta dele.
Eu gostava, eu dizia ainda para eles, eu falei no dia que a gente brigou, eu não vinha nem pelo dinheiro, mas mais pelo gostar de trabalhar, de ir. Até meu marido perguntou: FULANA tu não tá nem com um pouquinho de falta do serviço? Eu disse: não, nem um pouquinho mesmo. Nada de vontade de trabalhar naquele lugar.
Apesar do interesse em permanecer trabalhando ou retornar ao trabalho, as falas remetem à evitação das vivências de sofrimento ocorridas, pois as pessoas esperam uma retribuição pelo seu trabalho que é o reconhecimento do trabalho bem feito.
Eu nunca quis tirar atestado, agora eu já to preocupada, que eu penso em voltar semana que vem, mas não sei se vou ter condições, e quando se aproxima do tempo de voltar eu fico muito agitada, eu tô me preparando, hoje eu vou sair daqui e vou ir lá no HOSPITAL levar os papéis que o psiquiatra me entregou para mudar de setor e também de noite, quero trocar tudo, para ver se melhora minha cabeça também, quero ir para a noite da enfermeira FULANA, que é aquela que não faz burocracia, é uma pessoa humana. Mas eu posso fazer o teste, eu não posso perder a coragem e desistir.
Muitas vezes os trabalhadores fizeram o enfrentamento individualmente, sem contar com o apoio dos colegas, mas, pelo entendimento de que o acontecido não era correto ou justo, não se calaram e responderam às chefias. Os enfrentamentos foram individuais - mesmo que algum colega compartilhasse do entendimento - pela ausência de grupo, e/ou de cooperação entre os pares.
Escuta - atendimento
Muitos dos trabalhadores e trabalhadoras em sofrimento/adoecimento psíquico relacionado ao trabalho buscam atendimento psíquico com psicólogo e/ou psiquiatra, nem sempre conseguindo. Do grupo dos entrevistados, apenas 04 estão sem algum tipo de vínculo. Por outro lado, não chegam a 10 trabalhadores e trabalhadoras que têm um acompanhamento psicológico periódico e com vínculo.
Todos os trabalhadores e trabalhadoras atestaram a importância de algum tipo de acompanhamento de profissional da área da saúde mental, mesmo os que não estão em atendimento. É importante que os profissionais possam direcionar sua escuta para o sofrimento/adoecimento psíquico relacionado ao trabalho, como colocam Franco e Magalhães (2007, p. 04), “onde a assistência deve ser multiprofissional, operando através de diretrizes como a do acolhimento e vinculação de clientela, onde a equipe se responsabiliza pelo seu cuidado”.
A médica me disse que não, é o estresse que eu estou. Ela botou no atestado que é transtorno de adaptação e estresse grave. É isso aí, ela fez tudo isso aí. Eu discuti com ela antes de eu ir na Drª FULANA, ela me deu os quatro dias e aí eu voltei. Aí nós discutimos porque eu disse me manda embora, eu não quero mais trabalhar aqui, vocês me fizeram tudo isso. Aí ela mesma reconheceu: ah, é, eu fiquei braba porque o teu filho cobrando dinheiro, ele sabia, ele entrou consciente que eu não ia assinar a carteira dele. Mas eu disse: o meu filho é o meu filho e eu sou eu. Eu sou uma pessoa e ele é outra.
Alguns locais de trabalho que possuem atendimento médico e psicológico fazem a diferença na escuta dos trabalhadores que estão afastados, em processo de readaptação ou em adoecimento.
Esta escuta às questões específicas relativas ao trabalho atenua e elabora a violência sofrida, num processo que permite ao trabalhador se posicionar novamente de forma ativa frente ao trabalho. Mesmo aqueles que não estavam em atendimento periódico no momento das entrevistas relataram a necessidade de falar com alguém, de ter quem os escutasse. Um dos efeitos da escuta clínica ao trabalho é o de tirar o sujeito de sua solidão, da individualização de seu sofrimento e adoecimento, por mais que este seja singular.
Até quando a moça me atendeu, ela perguntou: o que tu pensa, tu quer um acompanhamento? Eu disse; eu quero, simplesmente. Aí eu pedi pra ela e ela disse: quando eu tiver eu vou te ligar. Porque às vezes a gente consegue aqui dentro mesmo, né? Foi isso que eu ainda disse pra ela, eu acho que eu preciso conversar com alguém, porque eu não era assim, eu tô assim agora. E ela disse: eu vou te conseguir, quando eu te conseguir eu encaixo e te ligo.
Quanto ao diagnóstico, foi considerado o relato feito independente de ter recebido a informação de um médico ou não. Considerou-se o entendimento dinâmico que o sujeito tem a respeito de sua situação de saúde. Neste caso a depressão foi a mais citada, seguida de fobia, crises de ansiedade e angústia generalizadas.
No momento da entrevista apenas quatro trabalhadores não faziam uso de medicação, um porque ainda não havia consultado um psiquiatra e outra porque achou que não necessitava no momento e estava grávida, sendo que outros dois disseram estar necessitando.
Dos entrevistados que estão em atendimento psicoterápico, esses estão construindo o entendimento de que a “culpa” pelo adoecimento e/ou saída do trabalho não é sua. Mesmo assim em alguns momentos se questionam se poderiam ter agido de forma diferente, ou o que de suas ações influenciaram na situação. Verifica-se o quanto a culpabilização pelo adoecimento é algo recorrente na história desses trabalhadores, já que o aparato social dentro e fora do trabalho está precarizado.
Na maioria dos relatos os trabalhadores apontam que, embora as famílias os apoiem, muitas vezes por não compreender a situação vivida, não sabem como oferecer ajuda. Sabe-se que não há como separar o dentro e fora do trabalho, pois não existe uma cisão psíquica, na medida em que o trabalho é constituidor do sujeito (Dejours, 1999; Lancman & Sznelwar, 2004). Não há separação entre a vida no trabalho e a vida fora dele, na família, por exemplo; nesse sentido, o trabalhador não deixa seus problemas de casa, ao entrar no trabalho e vice-versa.
Alguns dos entrevistados foram indicados pela psicóloga do sindicato para participarem da pesquisa. Por essa razão, um grupo desses trabalhadores tem mais clareza das ações do sindicato, seu papel na relação com o empregador e no atendimento de seus filiados. Segundo Perez (2014), o trabalho relacionado a ações de saúde mental em sindicatos acontece, entre outras cidades, em Brasília (DF), Porto Alegre (RS), Curitiba (PR), São Paulo (SP). Grande parte dos casos atendidos em grupos ou individualmente são encaminhados pelo médico do trabalho, pelos dirigentes sindicais e/ou advogados, responsáveis muitas vezes pelo primeiro atendimento.
Os relatos em relação à avaliação pericial no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) são diversos. Alguns se sentem insatisfeitos, outros agradecem o tratamento recebido dizendo que verificam melhoras na avaliação. Mesmo assim, parte dos trabalhadores ficaram com longos períodos sem avaliação, ou com licenças negadas, o que fez com que tivessem que recorrer à justiça e isso tivesse impacto financeiro em suas vidas.
O que foi colocado por trabalhadores que discutiram o atendimento feito pelo INSS é referente à falta de humanização e de condutas pouco atenciosas dos peritos, não relativas somente a seus atendimentos, mas de outros trabalhadores que conhecem.
Possibilidade de tratamento - sugestões
Depois de relatarem suas histórias relativas ao trabalho, nas entrevistas, a fala mais predominante foi da dificuldade em conseguir um atendimento, ou melhor, sair da paralisia instalada pela situação de violência vivida e saber qual recurso buscar. Nas vivências desses trabalhadores e trabalhadoras a busca por atendimento na área da saúde, mais especificamente relativa ao sofrimento e adoecimento mental, aconteceu após o processo estar instalado e na grande maioria das vezes já em afastamento do trabalho. Os atendimentos iniciais foram relativos a sintomas de cansaço, dores no corpo, insônia, falta de apetite e outros indicadores prévios de que algo não estava bem.
Em relação ao SUS, os comentários, na maioria das vezes, são de falta de atendimento, demora, ou não entendimento da situação vivida:
Que também é cara, por isso que eu digo assim: como faz uma pessoa que não tem condições ou depende do SUS, como faz? Faz 4 meses que eu tive essa consulta. O rapaz me disse uma semana, no máximo 15 dias eles te chamam, faz 4 meses.
Dos 24 entrevistados, 13 são da área da saúde e, por essa razão, tiveram acesso a serviços para atendimento com certa facilidade. Mesmo assim, os que comentaram sobre o SUS gostariam que a saúde pública pudesse atender a todos sem muita espera e com resolutividade. Grande parte dos atendimentos via SUS foram no âmbito hospitalar.
Ao final das entrevistas, alguns falaram sobre a possibilidade de continuidade de um tipo de atendimento (como a pesquisa), ou de grupos como participam em seus sindicatos. Os apontamentos espontâneos e reflexivos decorrem do processo do trabalho de pesquisa e trazem, no que diz respeito à realização dos grupos e à construção de novas possibilidades para esses trabalhadores, algo a ser discutido mais adiante. Pois conforme afirma Dejours (1999, p. 166), “Escutar o sofrimento dos trabalhadores é um comprometimento, quer se queira, quer não”.
Considerações finais
Verificou-se que os novos modelos de gestão e as provenientes transformações no modo de operar o trabalho mostraram estreita relação com o aumento da violência psicológica e assédio moral vivido nas organizações. A ausência de espaços coletivos para a discussão sobre o trabalho, com a consequente diminuição da solidariedade, confiança e reconhecimento entre os pares evidencia um enfraquecimento dos laços sociais demonstrado pela competição, individualismo, traição e agressividade. Por outro lado, mas na mesma discussão, a Clínica Psicodinâmica do Trabalho, ao fazer leitura desses acontecimentos e seus impactos, permitiu reconhecer o quanto esse cenário tem um caráter político, econômico, social e cultural e, por isso mesmo, essas transformações não influenciam apenas a subjetividade dos trabalhadores, mas de toda a sociedade.
Outro aspecto é que o ciclo de adoecimento é visível, manifesto pela permanência no trabalho mesmo em casos de adoecimento e com licenças saúde indicadas em avaliação médica, mas não utilizadas. O medo de se afastar do trabalho é uma constante, pelos sentimentos de inutilidade e descarte exacerbados pelo discurso gerencial de fácil substituição. Esses trabalhadores, em sua maioria afastados das atividades laborais, relatam profundo sofrimento e situações de adoecimento relacionadas ao seu trabalho; alguns, chegando ao desespero e desesperança de mudanças em suas vidas, fizeram tentativas de suicídio. É possível afirmar que o trabalho para este grupo tem se constituído mais como fonte de sofrimento e consequente adoecimento, na medida em que a permanência nos espaços laborais chegou ao insuportável.
A organização do roteiro para as entrevistas e o uso conjunto do SRQ-20 possibilitaram o entendimento da história do trabalhador, sua relação com o trabalho e de sua saúde em intrínseca associação com o vivido no espaço laboral. Essa ferramenta pode se constituir como acessória para profissionais da saúde que necessitam fazer investigação diagnóstica da relação saúde mental e trabalho, além de trazer importantes questionamentos para construir uma proposta de acompanhamento terapêutico para o trabalhador ou trabalhadora que busca o serviço.
Nesse sentido sugere-se a discussão e construção da Linha de Cuidado em Saúde Mental do Trabalhador, que, com seus integrantes/ferramentas, indica uma dimensão do cuidado integral aos trabalhadores e trabalhadoras que pode ser construída como expressão da Clínica do Trabalho no SUS, numa composição entre usuário-trabalhador, profissional da saúde e serviços.
Acredita-se que a participação dos trabalhadores na pesquisa pode contribuir para a construção de novas possibilidades com vistas à modificação das atuais condições de trabalho e saúde mental. Suas contribuições apontam caminhos possíveis para a política da saúde ao sistematizar um percurso que inclui a escuta, a clínica e a promoção de saúde, intrinsecamente ligadas, buscando a superação das situações adversas vividas pelos trabalhadores.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2017
Histórico
-
Recebido
07 Nov 2015 -
Aceito
02 Maio 2016