Open-access OPERADORES ANALÍTICOS DA PESQUISA COM ARQUIVOS EM MICHEL FOUCAULT

OPERADORES ANALÍTICOS DE LA INVESTIGACIÓN CON ARCHIVOS EN MICHEL FOUCAULT

ANALYTICAL RESEARCH OPERATORS WITH ARCHIVES ON MICHEL FOUCAULT

Resumo

Estudar documentos não é algo comum à Psicologia, porém, é um caminho pertinente para operar a problematização de nosso presente, que diz respeito a uma área tradicionalmente trabalhada pelos historiadores. Contudo, a Psicologia Social e Institucional tem buscado se apropriar dessa metodologia e, assim, aberto um campo relevante de estudos até então negligenciado pelos pesquisadores em Psicologia. Como nossa pesquisa se insere em um campo de estudos ainda pouco explorado pela Psicologia, acreditamos ser pertinente apresentar apontamentos sobre os embates que operaram no campo da história, para que se formasse uma visão mais ampla e abrangente sobre a noção de documento, além da abertura às novas temáticas com forte destaque ao movimento dos Annales. A partir dessa contextualização, procuramos focalizar a inserção das pesquisas históricas efetivadas por Michel Foucault, e a constituição de uma trilha de precauções metodológicas, denominada arqueogenealogia.

Palavras-chave: Documentos; Foucault; Arquivos; Genealogia; História

Resumen

Aunque el estudio de documentos no sea algo común a la Psicología, es una forma pertinente de operar la problematización de nuestro presente, que se refiere a un área tradicionalmente trabajada por historiadores. Sin embargo, la Psicología Social e Institucional ha tratado de apropiarse de esta metodología y, por lo tanto, abierto un campo de estudios relevante hasta ahora descuidado por los investigadores en Psicología. Como nuestra investigación es parte de un campo de estudios aún poco explorado por la Psicología, creemos que es pertinente presentar notas sobre los enfrentamientos que operaron en el campo de la historia, para que se formase una visión más amplia e integral sobre la noción de documento, además de la apertura a las nuevas temáticas, con un fuerte énfasis en el movimiento de los Annales. Desde este contexto, buscamos centrarnos en la inserción de las investigaciones históricas llevadas a cabo por Michel Foucault, y en la constitución de un rastro de precauciones metodológicas, llamado arqueogenealogía.

Palabras clave: Documentos; Foucault; Archivos; Genealogía; Historia

Abstract

To study documents is not something common to psychology, however, it is an effective way to operate the questioning of our present, which relates to an area traditionally crafted by historians. However, Social and Institutional Psychology has sought to appropriate this methodology and thus open up a relevant field studies previously neglected by researchers in psychology. As our research is part of a field of study still little explored by psychology, we believe it is pertinent to present notes on the clashes that operated in the field of history, towards the formation of a broader and more comprehensive view of the notion of document, as well as opening the new themes with a strong emphasis on the movement of the Annales. From this context, we seek to focus on the integration of historical research carried out by Michel Foucault, and the establishment of a trail of methodological precautions, denominated archeogenealogy.

Keywords: Documents; Foucault; Files; Genealogy; History

Introdução

Este artigo é um ensaio, fruto de uma trajetória de pesquisas com estudos documentais e aportes de Michel Foucault, em diálogo com a História. Busca-se por meio deste texto oferecer suporte aos e às que desejam iniciar e ampliar estudos com documentos, nas Psicologias. É importante salientar que a metodologia histórica pode contribuir com as pesquisas em diversas áreas e processos de trabalho das Psicologias.

A constituição do campo histórico enquanto um domínio da ciência ocorreu durante a passagem do século XIX para o XX, em que a escola positivista eclodiu na Europa como modelo de cientificidade, desde o qual se buscou para a História status de ciência (Birardi, Castelani, & Belatto, 2001). O Positivismo tem como pressuposto básico a cientificidade, a qual norteia todo pensamento construído e as investigações empreendidas. A escola positivista tem por intuito a obtenção de resultados claros, objetivos e fidedignos. Tratando-se especificamente do historiador, esse deveria ser neutro e imparcial, reduzindo-se a retratar de forma descritiva os chamados “fatos” históricos, porém, sem analisá-los.

Nesse período, os historiadores buscavam legitimar o saber e o fazer histórico, diferenciando-os dos textos literários, ao creditar aos documentos a base de suas produções. Por conseguinte, o documento escrito foi eleito como a única fonte confiável para as pesquisas históricas e adquiriu caráter de prova - registro do “fato” histórico -, o qual representava a materialização da verdade. Assim, o historiador tornou-se o único habilitado a interpretar os traços materiais do passado, os quais deveriam estar devidamente catalogados em arquivos, de modo geral, reduzindo-se à descrição da vida dos “grandes homens” de destaque político e seus feitos.

Ferreira & Amado (2000) afirma que a História como disciplina possuía um método de estudo, pautado na prática regular de decifração do documento, a partir da concepção de objetividade, em que o historiador deveria se distanciar dos problemas do presente e só quando não mais existissem testemunhos vivos dos mundos estaria autorizado pela normativa positivista a realizar suas análises. A delimitação de parâmetros temporais rígidos, ao lado de outros aspectos ligados à constituição da disciplina histórica, não pode ser dissociada das relações de luta de grupos sociais na disputa por espaço no mundo acadêmico e profissional, envolvidos em jogos de poder para legitimar uma prática, no caso, positivista. Podemos sintetizar o movimento da Escola metódica, o qual propunha ao campo histórico preceitos alicerçados na orientação positivista, ao dar visibilidade aos seguintes aspectos: realização de análise com base em documentos oficiais na forma escrita; estudo do tempo curto, linear e acumulativo; delimitação rígida de limites cronológicos, espaciais e temáticos; e História como uma disciplina encerrada em si mesma, sem ligações interdisciplinares.

Objetivava-se, com tal delimitação, uma história essencialmente descritiva, narrativa, imparcial e objetiva. Outro aspecto caro aos historiadores metodistas era o subjetivismo adjacente à análise documental. Nesse quesito, os historiadores deveriam controlar e, se possível, silenciar qualquer subjetivismo. A História deveria meramente descrever de forma fidedigna os “fatos” condizentes às transformações ocorridas nas sociedades passadas (Farias, Fonseca, & Roiz, 2006). Delimitamos, em linhas gerais, aspectos de relevância para esta pesquisa sobre a perspectiva da linha metodista. Ainda que se reconheça a abrangência dessa discussão, recortamos basicamente os supostos de relevância para o caminho metodológico proposto em nossa pesquisa. De fato, neste trabalho, empreende-se uma descrição geral de como é realizada uma investigação documental a partir da noção ampliada de documento.

Ampliar a analítica de um documento é não se limitar apenas aos arquivos oficiais e não se encerra no material apresentado em sua forma escrita, mas é tomado também na extensão de suas imagens, oralidades, sons, objetos, além de se relacionar às diversas práticas vizinhas que estão entrecruzadas em um jogo de intrigas, na montagem do documento.

Borges (2008) afirma que, para dar conta das perguntas suscitadas pelo presente e endereçá-las ao passado, os historiadores necessitaram intensificar o diálogo com os demais campos do saber, tais como: a Economia, a Sociologia, a Demografia, com o desenvolvimento de um novo método de pesquisa. No decorrer desse processo de troca e criação, houve o rompimento com um modelo metódico de História, pelo que alguns teóricos chamaram de passagem da história-fazer para a história-conhecimento. Assim, os horizontes de ação do historiador ampliaram-se e possibilitaram o resgate da memória do passado a partir de questões colocadas pelo tempo presente, ao contrário da Escola Metódica.

História dos Annales e pesquisa documental

Os Annales dizem respeito a uma revista idealizada, inicialmente por Febvre, ao final da Primeira Guerra Mundial, mas que só teve sua primeira edição publicada, em 1928, com a entrada de Bloch. Os editores Febvre e Bloch pretendiam difundir uma abordagem histórica e interdisciplinar. As ressonâncias da revista foram tão intensas que os Annales se transformaram em um verdadeiro movimento de transformação das pesquisas históricas. É possível destacar alguns pontos, como a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma de história problema; a ampliação do estudo para a história de todas as atividades humanas e não somente a história política; e a interface com outras disciplinas, tais como a Geografia, a Sociologia, a Psicologia, a Economia, a Linguística, a Antropologia Social etc. (Burke, 1997).

Farias, Fonseca e Roiz (2006), em uma releitura do movimento dos Annales, sintetizam as diversas transformações ocorridas, ao longo das últimas décadas. Para esses autores, a Escola dos Annales ampliou sobremaneira as fontes históricas, as quais foram multiplicadas, estabelecendo uma relação transdisciplinar com as ciências sociais e humanas. Quanto ao objeto de estudo, abrangeu não apenas o estudo do passado, mas se estendeu ao tempo presente. Explorou-se todo o espaço de dimensões possíveis de caráter interpretativo da história, com explicações mais complexas que romperam com o limite anteriormente imposto pela chamada história nacional. Trabalhou com a análise das conjunturas e dos processos de longa duração, rechaçando a ideia linear e simplista de progresso. E, por fim, os autores salientam a ampliação operada no domínio de abrangência dos Annales, ao superar barreiras cronológicas, espaciais e temáticas anteriormente impostas ao ofício em questão.

Esse movimento, de acordo com a obra de Burke, intitulado A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia, pode ser dividido em três gerações, que, embora não excludentes entre si, possuem ênfases específicas. Para maior inserção no debate proposto pelo que se convencionou chamar História Nova, explicitaremos ainda mais alguns pontos que se destacaram em cada geração. O primeiro grande embate travado pelos Annales consistiu em um posicionamento radical contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos. Na segunda geração, o movimento consolidou o caráter de escola, ao apresentar de forma densa os conceitos de estrutura e conjuntura. Seu principal representante foi Braudel, o qual desenvolveu uma história socioeconômica e possibilitou, com seu trabalho, que a revista e o movimento se tornassem conhecidos em toda a Europa. Em acréscimo, inseriu um novo método referente à história de longa duração ou serial.

Enquanto isso, a terceira geração foi marcada pela fragmentação, exercendo notável influência sobre a historiografia, através de abordagens que se convencionou chamar de Nova História ou História Cultural (Burke, 1997). Faz-se necessário voltarmo-nos a alguns pontos levantados pela terceira geração, pois se coadunam com aspectos relevantes para as análises operadas neste artigo. A terceira geração dos Annales foi marcada por intensas mudanças intelectuais e culturais. As discussões disparadas adentraram por diversos países e houve uma abertura maior para ideias vindas do exterior e a inclusão de novos eixos temáticos ao campo histórico. Talvez, a transformação principal consista em uma mudança de interesses da base econômica para a cultural sem prejuízo das análises economicistas.

Em síntese, podemos sublinhar que, com Escola dos Annales, passou-se a privilegiar uma abordagem mais globalizante, o que levou à ampliação consubstancial do conceito de documento, para além de sua versão escrita, passando a considerar fontes documentais uma imagem, a transmissão de uma informação pelo som, utensílios ou objetos, dentre outras formas (Le Goff, 2003). Nessa ótica, os documentos são considerados enquanto produto da sociedade que os fabrica, segundo as relações de forças as quais entram em articulação, ao acaso do encontro, na emergência do acontecimento. Em decorrência, Le Goff defendeu que somente a análise do documento enquanto monumento, não necessariamente na forma escrita, permitiria à memória coletiva recuperá-lo, desmontá-lo, e ao historiador usá-lo em diversas montagens e narrativas.

Portanto, o documento é resultado de uma montagem de práticas históricas, na época da sociedade que o produziu, de acordo com interesses em jogo e disputas que o alimentam, fazendo-se necessário interrogá-lo. Nesse sentido, Castro (2008) evidencia que não se deve partir de uma visão ingênua ou acrítica em relação à memória social dos documentos/monumentos nos quais tal memória se encontra objetivada. Com efeito, a preservação de uma memória envolve diversos interesses que conduzem a uma seleção dos aspectos, os quais, em determinado contexto, se tornam relevantes, determinando o que deve ser guardado. Segundo Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009), é primordial que se avalie o contexto histórico no qual foi produzido um documento. O pesquisador deve conhecer satisfatoriamente a conjuntura socioeconômica-cultural e política que propiciou a produção de um determinado documento. Isso possibilita apreender os esquemas conceituais dos autores, seus argumentos, refutações, reações e, ainda, identificar pessoas, grupos sociais, lugares institucionais, posições de sujeito, locais, fatos aos quais se faz alusão, etc.

Nessa empreitada, é importante situar a aproximação de Foucault ao movimento dos Annales, suas similitudes e descompassos. Foucault, por ser contemporâneo à terceira geração e partilhar parte dos pressupostos da escola dos Annales, chegou a ser inserido por alguns autores como um dos nomes de destaque da terceira geração, ainda que outras vezes tenha sido chamado de pós-estruturalista. Sem dúvida, as pesquisas de Foucault, em diversos aspectos, como o questionamento do presente a partir de novas formas de abordagens e métodos, coadunam-se com as proposições da Nova História, porém, não se encerram nela.

Para Burke (1997), Foucault aproximou-se da terceira geração do Annales, uma vez que estava preocupado em ampliar os temas da história. Porém, diferia quanto à dimensão da história intelectual, pois criticava a ênfase excessiva na continuidade, priorizando as rupturas, ao atentar para as modificações nas visões de mundo, o que o distinguia sobremaneira dos historiadores das mentalidades. Como exposto acima, houve uma ampliação da noção de documento ligada diretamente a rupturas e o desenvolvimento de novas perspectivas teóricas e metodológicas.

Com base nessa contextualização sobre o movimento que foi a mola propulsora para a ampliação da noção de documento, trazemos para o debate mais de perto os apontamentos de Foucault (1997), o qual afirma que o documento não é mais para a história a mera reconstrução do que os homens fizeram ou disseram no passado. O documento se define no próprio tecido documental com o qual trabalha (unidades, conjuntos séries, relações), levando-se em conta as relações de poder que selecionam e excluem, de acordo com interesses específicos, o que deve ou não se constituir em documento. Foucault (1997), pensando sobre o fazer histórico ao longo do tempo e sua consequente produção documental, propôs:

É necessário desligar a história da imagem com que ela se deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropológica: a de uma memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranças; ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental (livros, textos, narrações, registros atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc.) que apresenta sempre em toda parte, em qualquer sociedade, formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas. O documento não é o feliz instrumento de uma história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa. (Foucault, 1997, pp. 07-08)

As massas documentais, às quais Foucault fez referência, foram organizadas em arquivos que, para Castro (2008, p. 08), constituem “um conjunto de documentos selecionados como relevante por alguém, organizado e preservado segundo determinada lógica, e disponibilizado de acordo com alguns critérios”. Quanto aos arquivos, Foucault (1997, p. 149) problematiza aquilo que é selecionado para ser preservado:

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas.

Pode-se dizer que Foucault parte da premissa de que há uma relação de saber/poder frente ao que é dito e arquivado, tendo em vista os efeitos que há em guardar determinados fragmentos da história e excluir outros. Nessa perspectiva, o documento deve ser analisado enquanto um conjunto de práticas discursivas, coextensivas às práticas de poder e de subjetivação (Lemos & Cardoso, 2009). A partir de uma nova visada, a história mudou sua posição acerca do documento: ao invés de interpretá-lo ou julgá-lo se falso ou verdadeiro, passou a trabalhá-lo no interior. De acordo com Foucault, essa nova história “organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações” (Foucault, 1997, p. 06).

Foucault, em suas pesquisas que rompiam com a produção de uma história factual e contínua, estudou temas que eram considerados irrelevantes à história, como a loucura, as prisões e a sexualidade. Muitos comentadores de Foucault separam seu trabalho em três grandes eixos - o da arqueologia, em que deu ênfase à análise dos saberes; o da genealogia, quando se voltou à análise das relações de poder; e um terceiro momento, em que tratou sobre as questões ligadas à ética, conferindo maior visibilidade às formas de constituição e emergência da subjetividade. Tais perspectivas, longe de representarem fases estanques, correspondem a direcionamentos guiados por problemáticas específicas, as quais exigiram de Foucault redefinições teórico-metodológicas.

Foucault e a constituição do método arqueogenealógico

Longe de buscar seguir um modelo de cientificidade, Foucault, diante de seus objetos de estudo, empreendeu um modo de fazer pesquisa histórica diferente, o que denominou de arqueologia; porém, existem aspectos distintos nessa ferramenta metodológica, em que há sucessivos deslocamentos que demarcam um caráter provisório assumido ao longo das análises de Foucault, posto que as pesquisas históricas de Foucault operam através da problematização, em um pensar interrogante estabelecido no espanto, no estranhamento, em um exercício constante de demolição das evidências.

Em vista disso, Machado (2009) sugere a existência de arqueologias, pois, de acordo com a problemática estudada, Foucault delimitou um modo de empreender suas pesquisas arqueológicas, sendo que iremos nos ater ao último momento da referente à arqueologia do saber, com o objetivo de abordar aspectos relevantes da arqueologia para esta investigação, uma vez que seus apontamentos servirão de ferramenta metodológica para as nossas análises.

Foucault, por esse trabalho, conclui que “o século XVIII percebe o louco, mas deduz a loucura” (Machado, 2009, p. 61), já que o louco ainda não era interrogado para ser classificado em parâmetros de anormalidade. O que havia era uma análise da doença no nível de sua estrutura perceptiva e não quanto a um sistema conceitual ou a um conjunto de sintomas. Com base na análise da constituição histórica da loucura, Foucault remete à noção de descontinuidade e normatividade, que atravessam a sua tese sobre a constituição do objeto loucura. Na verdade, ao ter como fio condutor a loucura, empreendeu uma análise do conjunto heterogêneo de discursos que possibilitaram sua constituição como objeto. Foucault segue seu raciocínio por meio da crítica a uma história continuísta, em que as transformações na Psiquiatria apareceriam de forma linear.

Quanto à descontinuidade, ponto importante da análise arqueológica, Foucault destaca que o historiador tradicionalmente se encarregava de suprimir da história, organizando-a em torno de grandes periodizações com características bem delimitadas, sendo excluído tudo aquilo que não se encaixasse em tais contextos previamente determinados. Além disso, põe em relevo três aspectos associados à análise da descontinuidade (Machado, 2009), que são importantes para o método arqueológico.

Em primeiro lugar, Foucault nos ensina que a ruptura é geral, mas não é global, porque aparece em seu trabalho sempre circunscrita à problemática da loucura, na sua heterogeneidade, ligada ao campo da percepção e do conhecimento. Em segundo lugar, as rupturas são operadas na sua verticalidade, visto que a arqueologia articula níveis diferentes de análise. E, por fim, a investigação histórica proposta por Foucault não estabelece uma ruptura estanque entre as diversas épocas, não há fases ou períodos rigorosamente delimitados entre um período e outro.

Assim, embora Foucault introduza, em As palavras e as coisas, o saber como objeto de análise da arqueologia, é em seu trabalho de 1969, chamado de Arqueologia do Saber, que irá sistematizar seu pensamento sobre a importância do saber em suas análises. Esse trabalho oferece um caminho metodológico sobre um minucioso exame dos elementos intrínsecos ligados à formação dos saberes, que será brevemente aqui esboçado. Em sua obra Arqueologia do Saber, de 1997, Foucault deixa claro que não pretende realizar uma história da verdade nos moldes da história das ciências, mas estudar as regras históricas as quais determinam que um discurso apareça como verdadeiro. Nesse momento, Foucault pretende, com a arqueologia, estudar os arquivos, entendendo-os enquanto um conjunto de saberes associados aos acontecimentos dispersos e descontínuos, os quais Foucault toma, na sua raridade, como um acontecimento único que jamais se repetirá. Um arquivo é formado pela multiplicidade de acontecimentos heterogêneos, linhas de forças que se entrecruzam e constituem um conjunto de práticas vizinhas em coexistência e imanência. Foucault alertava para o fato de que as práticas discursivas não podem ser descoladas das práticas institucionais e das posições que os sujeitos ocupam, as quais dizem sobre as condições de possibilidade de emergência de certas práticas discursivas/saberes.

Por intermédio da perspectiva arqueológica, busca romper com a tomada de um acontecimento como verdadeiro, pois, para ele, será sempre uma versão em meio a muitas outras; logo, não há verdade, mas produções de verdades. Assim, critica a ideia dos “começos aparentes” ou da “origem secreta” e sustenta: “É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida” (Foucault, 1997, p. 28).

Segundo Machado (2009), a arqueologia não se interessa pelos discursos possíveis, discursos para os quais se estabelecem princípios de verdade, porém estuda os discursos reais efetivamente pronunciados, existentes como materialidade (p. 153). Lemos e Cardoso (2009) consideram que Foucault adotava o método arqueológico, preocupando-se com as regras que regiam as práticas discursivas, tendo como foco os saberes, uma vez que, para ele, um saber se define pelas possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso (Foucault, 1997, p. 207).

Nesse sentido, vale a pena frisar que Foucault não trabalha com o sujeito fenomenológico, o qual toma o autor como fundamento de todo sentido e significado: parte do discurso enquanto ato ou, como chamou, de práticas discursivas. Ou seja, um “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definem, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault, 1997, p. 136). A análise das práticas discursivas permite que Foucault se afaste da linguística, bem como da tradição fenomenológica que considera um autor como fundamento de todo sentido e significado do discurso; seu interesse não reside em identificar as intenções de determinado autor, mas em empreender uma análise do que foi dito (Vandresen, 2008). O saber é tomado como uma prática discursiva que se encontra especificada no domínio constituído pelos diferentes objetos que podem, ou não, adquirir um caráter científico. Paul Veyne (1998, p. 280) esclarece:

Toda a história é arqueológica por natureza e não por escolha: explicar e explicitar a história consiste, primeiramente, em vê-la em seu conjunto, em correlacionar os pretensos objetos naturais às práticas datadas e raras que os objetivizam, e em explicar essas práticas não a partir de uma causa única, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais se ancoram. Esse método pictórico produz quadros estranhos, onde as relações substituem os objetos.

Assim, é possível afirmar que a arqueologia buscava problematizar como conjuntos de elementos eram formados de modo regular por práticas discursivas na produção de saberes. Paul Veyne (1998, p. 250) explica que “os objetos parecem determinar nossa conduta, mas, primeiramente, nossa prática determina esses objetos”. Logo, o objeto é o correlato da prática, não existindo antes dela. Portanto, quando os objetos não são tomados como naturais, é possível perceber as práticas históricas que os formam.

Conforme Foucault (1997), a arqueologia, ao invés de percorrer o eixo consciência-conhecimento-ciência, percorre o eixo prática discursiva-saber-ciência, pautando sua análise no saber - isto é, em um domínio no qual o sujeito é situado e dependente, ou seja, ao invés de ser considerado titular de algo enquanto atividade transcendental ou consciência empírica, é pensado como produzido. Estabelecidos como um regime de prática, os discursos são analisados a partir dos documentos entendidos como monumentos; a leitura arqueológica procede, por conseguinte, à delimitação das regras de formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos, dos termos e das teorias, com o objetivo de determinar o tipo de positividade que os caracteriza. Desse modo, com o desmonte do documento/monumento, podemos descrever os procedimentos de produção do documento, que, ao ser desmontado, torna visível as diversas séries entrecruzadas de enunciados dispersos e seus pontos de ruptura, muitas vezes lá onde se tentava mostrar uma prática discursiva uníssona. Foucault parte da premissa de que há regras que dirigem as práticas discursivas e produzem os objetos sobre os quais se fala. Nesse contexto, toma os enunciados como unidade que propicia definir o regime geral em que as práticas discursivas são institucionalizadas, empregadas, reutilizadas e combinadas. Sobre os enunciados, Foucault enfatiza que:

não existe enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente, mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, apoiando-se neles e se distinguindo deles: ele sempre se integra em um jogo enunciativo, em que tem sua parte, por pouco importante ou ínfima que seja. (Foucault, 1997, p. 152)

A arqueologia lida com o domínio dos acontecimentos para explicar as regularidades que permitem que um enunciado apareça como tal. Nesse sentido, um enunciado configura-se em materialidade, seja através do eco de uma voz, seja da escrita de uma frase, de um texto ou imagem, dentre outras formas possíveis: o que importa é a função enunciativa que adquire ao entrar em redes, em campos de utilização, ou seja, o enunciado circula, entra na ordem das lutas (Foucault, 1997). Ao levar em conta a função enunciativa, Foucault se interessa pelos feixes de relações discursivas, não toma o discurso como obra de um autor enquanto uma unidade ou identidade, posto que não importa a ele a análise de quem fala, mas a posição de onde se fala.

Nessa perspectiva, busca-se focar o discurso como resultante de enunciados anônimos, organizados em uma rede complexa e materializada por meio de práticas sociais e políticas de circulação dos saberes, a partir de uma dinâmica de poderes. Portanto, a análise do campo discursivo é explicada em Arqueologia do Saber pela compreensão do enunciado em sua estreiteza e singularidade, em que são determinadas as condições de sua existência, a partir da fixação de seus limites, estabelecendo as correlações com outros enunciados aos quais possam estar ligados, sem desconsiderar a análise daqueles que exclui. Foucault explicita de maneira minuciosa, na obra anteriormente mencionada, como um conjunto de enunciados que têm seus princípios e regularidades em uma mesma formação discursiva, através de uma sequência finita de signos verbais, possibilita a ocorrência de determinadas informações e dá sustentabilidade ou efeito de verdade a um discurso. A arqueologia, ao problematizar a produção de saberes, buscou analisar as positividades, quer dizer, mostrar como uma prática discursiva formava grupos de objetos, conjuntos de enunciações, jogos de conceitos e séries de escolhas teóricas:

O horizonte ao qual se dirige a arqueologia não é, pois, uma ciência, uma racionalidade, uma mentalidade, uma cultura; é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de cruzamentos não podem ser fixados de imediato. A arqueologia: uma análise comparativa que não se destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizá-los, mas sim a repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparação arqueológica não tem um efeito unificador, mas multiplicador. (Foucault, 1997, p. 183)

Dando destaque a esse efeito multiplicador supracitado, a partir das considerações de Foucault, podemos salientar que a arqueologia se refere a uma reescrita, ou seja, a uma transformação regulada do que já foi escrito. Para Deleuze (2005), não há possível nem virtual, no domínio dos enunciados; nele, tudo é real - o que importa é exatamente a materialidade formulada em um dado momento. Além disso, alude à inseparabilidade do enunciado da rede de multiplicidades que abarca seus pontos singulares, seus lugares e suas funções. O enunciado é um objeto específico de um acúmulo através do qual ele se conserva, se transmite ou se repete, sem deixar de ser raro, visto que os acontecimentos distintos circulam, produzindo-o.

Acreditamos ser pertinente elencar uma precaução metodológica do arquivista, relacionada às análises das séries. Ao examinar um documento e efetivar o seu desmonte, é importante ter nítido que as séries dizem respeito a uma determinada ênfase, mas que em todo o momento nos deparamos com séries diferentes, que se justapõem, se sucedem, se entrecruzam, sem poder ser reduzidas a um sistema linear. Focalizando o fazer do “arquivista”, Deleuze avança, ao afirmar que a construção de séries dentro de multiplicidades determináveis tem como ponto principal a teoria dos cortes, de modo que propõe uma análise transversal dos enunciados:

há que se perseguir as séries, atravessar os níveis, ultrapassar os limiares, nunca se contentar em desenrolar os fenômenos e os enunciados segundo uma dimensão horizontal ou vertical - mas formar uma transversal, uma diagonal móvel, na qual deve se mover o arquivista-arqueólogo. (Deleuze, 2005, 32)

Nessa feita, a verticalidade ou a horizontalidade seriam insuficientes para uma abrangência da visão de todos os acontecimentos intercruzados, na formação de um discurso de prática inevitavelmente correlacionada a diversos enunciados. Na fase arqueológica, Foucault explica o aparecimento dos saberes pela configuração de sua positividade, relacionando-os com o não discursivo apenas para mostrar que coexistem em uma mesma articulação; já na fase genealógica, principalmente a questão do poder surge como instrumento capaz de explicar a produção de saberes pela dimensão política.

A genealogia marca a entrada da problemática do poder nas análises de Foucault e aparece pela primeira vez em seu trabalho intitulado A Ordem do discurso, referente à sua aula inaugural proferida em 1970, no Collège de France, em que fez a reflexão sobre os efeitos das práticas discursivas. Com a utilização do termo genealogia, Foucault dá visibilidade à presença nietzschiana em seu percurso metodológico, interessando-se, nesse ponto, pela tomada do conhecimento enquanto luta e relação de forças.

Desse modo, na visão de Foucault, o discurso é uma instituição sem começos solenes, fruto de lutas de perigos de tensões e disputas. Em suas palavras: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta o poder do qual nós queremos apoderar” (Foucault, 2009, p. 10). Logo, o discurso é produzido, selecionado, controlado e autorizado a circular a partir de vitórias em batalhas travadas nas redes de instituições em que alguns saberes são permitidos de serem usados e falados, enquanto outros são silenciados.

Porém, com a entrada na genealogia, Foucault não abandona o projeto arqueológico, mas o complementa, objetivando, segundo Machado (2009), explicar o aparecimento dos saberes a partir de suas condições de possibilidade externas. Segundo Deleuze (2005), entre poder e saber há heterogeneidade e reciprocidade, de modo que o saber abrange a forma e o poder contempla as forças. O saber articula o par ver e falar, visível/enunciável, enquanto o poder transita entre as linhas de forças, sem colar-se em lugar algum. Nesse aspecto, toma os saberes como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente política, situando-os como peças das relações de poder. Nesse aspecto, através da Ordem do Discurso, Foucault nos ajuda a entender as relações de saber-poder articuladas na produção de verdades, explicando que há uma vontade de verdade que atravessa vários dispositivos, incluindo as instituições, os laboratórios, os sistemas de educação, de repartição etc. ligados a valores morais, preceitos, recomendações, os quais se relacionam a sistemas de controle que forjam a repetição, o comentário, a fim de silenciar a dispersão e a raridade dos acontecimentos.

Foucault salienta que, longe de estar ligada a uma espécie de retorno de algum segredo da origem, sua pesquisa arqueogenealógica está correlacionada à descrição sistemática de um discurso-objeto, em que “a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem” (Foucault, 2009, p. 16).

De acordo ainda com Deleuze (2005), “local” tem dois sentidos bem diferentes em Foucault: o poder é local porque nunca é global, mas ele não é local nem localizável porque é difuso (p. 36). Desse modo, Deleuze nos ajuda a entender que as relações de poder são diagonais e moleculares, não têm centro e concernem a um emaranhado de forças dispersas. Faz-se necessário deixar bem claro que poder, para Foucault, refere-se a uma multiplicidade de forças heterogêneas, não apenas negativas, mas principalmente produtivas; o poder produz coisas, produz modos de ser. Além disso, outro ponto chave para sua concepção de poder diz respeito ao fato de que só há poder quando há contrapoder, logo, possibilidade de resistência, de sorte que essa microfísica do poder está para além da análise do poder em termos de soberania, como abuso, coerção, punições legais e violência. Dessa maneira, a relação não é pensada apenas em termos econômicos entre as classes sociais dominadas pelo Estado, por um grupo, ou por uma instituição através de um poder obscuro e ideológico. Para Foucault, onde há saber há poder e vice-versa.

Em resumo, quanto ao método genealógico, Foucault adverte sobre algumas precauções metodológicas. Primeiramente, destaca que buscou analisar o poder por suas extremidades, na sua capilaridade, lá onde ele se estende, ao penetrar as instituições corporificadas em técnicas específicas; segunda precaução: não analisa o poder no plano da intenção ou da decisão, mas na sua materialidade, atendo-se às práticas reais e efetivas do objeto, alvo ou campo de aplicação; terceira precaução: o poder deve ser analisado como algo que circula, se exerce em rede, logo, não deve ser tratado como uma propriedade de alguém; quarta precaução: o poder deve ser analisado de forma ascendente, a partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, com técnicas e táticas que dizem de como esses mecanismos de poder foram e ainda são investidos e utilizados, por mecanismos dominação gerais; quinta e última precaução: o poder, para se exercer, se apoia em aparelhos de saber que lhe garantam sustentabilidade e o tornem legítimo.

Além disso, Foucault, em função do trabalho de Nietzsche, nos ensina que um dos pontos principais da genealogia se refere à análise de emergência e análise de proveniência. A proveniência é o que permite encontrar, através da proliferação dos acontecimentos, o aspecto único que os liga à formação de um conceito, sem, no entanto, pretender fazer um recuo temporal de forma contínua. O que Foucault objetiva com a análise de proveniência é verificar a dispersão própria dos acontecimentos, seus acidentes e desvios, já que, para ele, “a pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo” (Foucault, 1992, p. 21).

Um aspecto relacionado à dimensão do corpo é evidenciado por Foucault, ao tratar da análise de proveniência, que se inscreve no corpo justamente porque é nele que encontramos as marcas: do clima, da alimentação, dos dissabores, da moral, da saúde ou da doença etc. E foi justamente nessa articulação entre o corpo e a história que Foucault situou sua análise genealógica. Enquanto isso, a análise de emergência refere-se especificamente ao ponto de surgimento em que determinada prática discursiva aparece. A análise de emergência deve mostrar as forças que operam e os combates travados na constituição de um objeto.

Desse modo, através das análises de emergência e proveniência, a genealogia pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam. De acordo com Oropallo (2005), a diferença entre a proveniência e a emergência reside no fato de que, enquanto a primeira designa o que ficou marcado no corpo, ou seja, a luta dos bastidores, a segunda marca o lugar de enfrentamento onde se travaram as batalhas. Portanto, as análises de proveniência e de emergência são fundamentais para a análise documental; através dessas ferramentas analíticas, é possível fazer da pesquisa um instrumento de luta contra as tiranias dos discursos englobantes. Foucault historiciza os diferentes modos pelos quais, na cultura ocidental, os seres humanos se tornaram sujeitos. Cabe ao genealogista analisar a vontade de verdade que atravessa uma prática discursiva, a qual deve a todo o momento ser problematizada, para que apareçam as condições de possibilidade das formações discursivas e os poderes que estão em jogo (Deleuze, 2005, p. 13).

há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”; entendendo-se também que não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha. (Foucault, 1992, p. 13)

Mais uma vez, é notório o atravessamento da leitura nietzschiana na produção de Foucault, quanto à concepção da verdade como produto do poder e produtora de realidade. Nesse sentido, Foucault reconhece os instrumentos de poder específicos que são produzidos e aceitos na sociedade, de sorte que o que interessa é saber qual a vontade de verdade que está em jogo, a fim de que algo seja aceito como verdadeiro para um grupo social.

Essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional, sendo ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por um compacto conjunto de práticas, em que é direcionada, pelo modo como o saber é aplicado em determinada sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido ou de certo modo atribuído (Foucault, 1970/2009). Foucault, para analisar as relações entre saber-poder a partir do método genealógico, criou a noção de “dispositivo”, que é um conjunto, um diagrama de forças heterogêneas, múltiplas, intercruzadas, que abarca discursos, instituições, organizações arquitetônicas, táticas, documentos, formulários, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, fotos, equipamentos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Dessa maneira, o “dispositivo” auxilia metodologicamente na análise das práticas discursivas, de poder e de subjetivação (Foucault, 1992). Em síntese, busca orientar sua análise do poder para o âmbito dos operadores materiais, para as formas de sujeição e como são utilizadas localmente, com base em dispositivos de saber (Deleuze, 2005). Por meio do método arqueogenealógico, Foucault visa a estudar as relações de saber e poder, problematizar essas práticas que produzem objetos históricos, para fazer uma história dos acontecimentos que emergem no acaso das lutas - uma história política da verdade. Trata-se de efetuar uma atitude crítica frente ao presente e construir um campo de possíveis, que venha a operar deslocamentos sobre outras formas de pensar, agir e ser.

História e Psicologia na análise documental: algumas conversas iniciais

Quando se pensa sobre as relações entre História e Psicologia, em um primeiro momento, observa-se a construção da História da Psicologia como ciência e profissão por meio de pesquisas e grupos de trabalho que tomam os documentos do surgimento e mudanças na profissão, na formação universitária, nas leis que a regulam e nos saberes que a forjam de modo mais geral. É possível afirmar que há um encontro entre ambas as disciplinas e um dos mais tradicionais nos trabalhos de pesquisa em Psicologia, nos diversos processos de organização e materialização da mesma.

Um segundo ponto de encontro é a análise da história de vida, dos estudos de casos e a história das instituições, na medida em que as Psicologias se dedicam a pensar biografias e autobiografias, arquivos em prontuários e orais na valorização do cuidado integral em saúde mental e coletiva, bem como na educação popular e construtivista. Entre essas apropriações vale destacar o materialismo e as contribuições construtivistas e construcionistas da Psicologia sócio-histórica e dos trabalhos tanto da Psicologia Social quanto da Educação-Escolar, além das iniciativas realizadas na escuta clínica com estudos de caso e histórias de vida (Antunes, 2005; Spink, 2000).

Considerações finais

Concluindo provisoriamente, é possível afirmar que há todo um campo conceitual de análise entre os movimentos dos Annales na História com as transformações das pesquisas documentais, sobretudo, a partir da terceira geração, a qual foi nomeada como Nova História Cultural. Os trabalhos de Michel Foucault, chamados por ele de estudos históricos, eram realizados com fontes empíricas, de cunho documental e estavam alicerçados em conceitos tanto da Filosofia quanto da História Nova, entre outras contribuições utilizadas por esse autor, apropriadas dos trabalhos com documentos.

Ao longo das décadas do século XX e início do século XXI, as transformações na História e as conversações com outros saberes das ciências humanas e sociais foram incidindo e atravessando um conjunto de práticas de análise na pesquisa documental, as quais foram apropriadas por uma grande variedade de áreas e disciplinas, entre elas a Psicologia. Este artigo não teve a pretensão de esgotar o debate, nem mesmo de aprofundá-lo, mas de abrir uma brecha para a ampliação dos diálogos entre História e Psicologia, especialmente no que tange ao manejo de documentos e ao seu arquivamento, colocados em análise por uma metodologia histórica. No caso em tela, o foco principal foi a trajetória de Michel Foucault com a História Nova e com as fontes empíricas documentais.

Referências

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  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento: Não houve.
  • Financiamento: Não houve.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2016
  • Revisado
    01 Out 2019
  • Aceito
    19 Fev 2020
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