Open-access PATERNIDADE EM TRANSFORMAÇÃO NOS LIVROS DE AUTOAJUDA

PATERNIDAD EN TRANSFORMACIÓN EN LOS LIBROS DE AUTOAYUDA

FATHERHOOD IN TRANSFORMATION IN SELF-HELP BOOKS

Resumo

Este artigo visa a problematizar a produção da paternidade em um conjunto de livros de autoajuda composto por uma obra publicada originalmente na França, em 1946, e por duas outras publicadas no século 21, mostrando os deslocamentos e inflexões que aparecem nesses materiais. A pesquisa foi desenvolvida por meio de uma análise discursiva de cunho pós-estruturalista. As análises indicam que enquanto a obra de meados do século 20 tem por objetivo apresentar princípios educacionais voltados para a formação de sujeitos obedientes, ordeiros e com valores morais tradicionais, aquelas do início do século 21 exortam os pais a realizarem uma transformação de si que os tornem capazes de exercer uma paternidade que produza filhos felizes e bem-sucedidos.

Palavras-chave: Paternidade; Autoajuda; Análise discursiva

Resumen

Este artículo busca problematizar la producción de la paternidad en un conjunto de libros de autoayuda compuesto por una obra publicada originalmente en Francia en 1946 y por otras dos publicadas en el siglo XXI, mostrando los desplazamientos e inflexiones que aparecen en dichos materiales. La investigación se llevó a cabo por medio de un análisis discursivo de cuño postestructuralista. Los análisis indican que mientras que la obra de mediados del siglo XX tiene por objetivo presentar principios educativos orientados a la formación de sujetos obedientes, ordenados y con valores morales tradicionales, las de comienzos del siglo XXI exhortan a los padres a realizar una transformación de sí mismos que los vuelva capaces de ejercer una paternidad que produzca hijos felices y exitosos.

Palabras clave: Paternidad; Autoayuda; Análisis discursivo

Abstract

This article aims to problematize the production of fatherhood in a set of self-help books composed by a work originally published in France in 1946 and two others published in the 21st century, showing the displacements and inflections that appear in these materials.

The research was developed through a discursive analysis of post-structuralist nature. The analyses indicate that while the mid-20th century work intends to present principles oriented to the education of obedient, orderly people with traditional moral values. On the other hand, those of the beginning of the 21st century exhort fathers to make a transformation of themselves that enable them to exercise a fatherhood that produces happy and successful children.

Keywords: Fatherhood; Self-help; Discursive analysis

Àquele que foi meu pai mil dias antes de me conhecer

Introdução

O entendimento de família nas sociedades ocidentais vem se reconfigurando nas últimas décadas. Na esteira de movimentos feministas, estamos passando por uma transformação das identidades e papéis de gênero, o que, inevitavelmente, se atravessa na construção das maternidades e paternidades1. Neste momento de mudanças alavancadas pelas reivindicações femininas, tornou-se quase lugar-comum enunciar que “os homens estão confusos sobre como devem agir”. Porém, não é apenas a performatividade (Butler, 2010) masculina que está sob tensão. A própria experiência da paternidade tem sido deslocada e ressignificada.

Atualmente, existe uma expressiva quantidade de materiais disponíveis para orientar os pais no exercício da paternidade: blogs, páginas em rede sociais, canais no Youtube, cursos e livros, entre outros, compunham um conjunto diversificado de materiais. Na maioria desses materiais, encontramos conselhos de como se conduzir para desempenhar de modo satisfatório a paternidade. Desse modo, é possível identificar uma verdadeira explosão discursiva e midiática sobre a figura paterna.

Segundo Hennigen e Guareschi (2002), investigações sobre a paternidade e sobre a importância do pai na vida das crianças foram mobilizadas a partir do aumento de divórcios que, frequentemente, acarretam o enfraquecimento dos laços entre pai e filho. Os materiais coletados para a presente investigação enfatizam exatamente a importância de uma paternidade presente. Presença, esta, que não se resume a uma proximidade física, mas que exige envolvimento emocional, disponibilidade para o diálogo e abertura para práticas de cuidado.

Em muitos casos, os artefatos voltados para discussão da paternidade são desenvolvidos a partir da experiência dos autores, sendo a maioria desses artefatos composta por blogs, canais de Youtube e páginas em redes sociais. Em outros casos, é a voz do especialista que tem um saber acadêmico que ressoa, em especial, o saber da psicologia. Embora sejam em menor número, estes artefatos diferem dos anteriores não apenas pela orientação epistemológica, como também pelo seu suporte: não mais privilegiam canais da cultura digital, mas edições impressas. São alguns desses livros que compõem a empiria deste artigo.

Em um primeiro momento, o material empírico da pesquisa incluía livros que classifico, de acordo com discussões que apresento na próxima seção, como de autoajuda, todos publicados no século 21. Contudo, durante o processo investigativo, deparei-me com uma obra publicada originalmente em meados do século 20, Os dez mandamentos dos pais (Vèrine, 1962) 2. Embora fosse voltada para o casal (lesparents, no original), a inclusão do pai parece ser algo novo, pois considerava que a responsabilidade pela criação dos filhos não seria apenas da mãe, algo incomum para a época. E foi a partir dessa obra que desenvolvi este artigo, movida pelo desejo de compreender as transformações na concepção da função paterna.

Este artigo visa a problematizar a produção da paternidade em um conjunto de livros de autoajuda, composto por uma obra publicada originalmente na França, em 1946, Os dez mandamentos dos pais (Vèrine, 1962) e por duas outras publicadas no século 21: Ser pai hoje: a paternidade em toda a sua relevância e grandeza (Balancho, 2012) e Seu filho precisa de você: lições para tornar-se um pai ainda melhor (Bernstein, 2008). Mais especificamente, o artigo propõe-se a compreender quais os objetivos do exercício da paternidade e quais as estratégias propostas para atingir este fim. Na próxima seção, apresento a metodologia e o material empírico de modo mais detalhado para, posteriormente, desenvolver as análises.

Manuais para pais

Livros voltados para orientar as condutas dos leitores nas mais diversas áreas existem há bastante tempo. Erasmo de Rotterdam já apresentava, no século XVI, De pueris, um manual para corrigir os comportamentos, civilizando os meninos. Os livros de autoajuda, embora não tão antigos, também não são recentes. Ainda que percebamos tanto uma proliferação do número de títulos quanto um crescimento de vendas a partir do final do século 20, eles surgiram ainda no século 19 (Marín-Diaz, 2017).

Mas o que estou chamando de literatura de autoajuda? De acordo com a definição do Dicionário Aulete Digital3, a autoajuda seria um “conjunto de informações e orientações que visam a possibilitar a alguém a superação de seus problemas emocionais e dificuldades de ordem prática, ou a conquista de objetivos específicos, por meio dos próprios recursos mentais e morais da pessoa”. Portanto, a literatura de autoajuda consiste em obras que explicitamente orientam seus leitores a realizarem de modo autônomo um trabalho de transformação de si, visando a modificar sua conduta para atingir determinados fins. Na esteira de Foucault (2004, p.234), entendo que estas obras funcionam como

tecnologias de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade.

Desse modo, considero livros de autoajuda aqueles que colocam em movimento

tecnologias que induzem os leitores a realizarem certas transformações em suas condutas visando a alcançar determinados objetivos. Tomo os livros de autoajuda como instituidores de focos de experiência4 capazes de modificar os modos de ser e estar no mundo. Em especial, assumo que os livros em análise constituem-se como obras de autoajuda que produzem a paternidade como um foco de experiência. E será a partir deste referencial que desenvolvo uma análise discursiva de orientação pós-estruturalista, mais especificamente foucaultiana (Fischer, 2001), dos livros que constituem a empiria.

O primeiro material que compõe a empiria e que constitui o ponto de partida deste artigo é a obra Os dez mandamentos dos pais, escrito por Vérine (1962). Este era o pseudônimo de Marguerite Lebrun, esposa do presidente da França Albert Lebrun, que governou entre 1932 e 1940. Em 1929, a autora fundou a Escola de Pais (Écoledesparents), visando a proporcionar às crianças uma educação “esclarecida pela psicologia” (Ohayon, 2000, p. 635). Chama a atenção que já em 1929, quando fundou a Escola de Pais, referisse-se não apenas às mães, como também aos pais, enfatizando sua importância na criação dos filhos.

A obra em análise foi publicada pela primeira vez na França, em 1946 (Ohayon, 2000). Segundo a autora, seu intuito seria “simplesmente, beneficiar as famílias com a nossa modesta experiência de mãe, avó e educadora” (Vérine, 1962, p. 11), indicando que o que a capacita para dar conselhos não é sua formação, mas sua experiência. Contudo, apesar de a autora não ser psicóloga, ela valorizava esse campo de saber e buscava desenvolver sua obra baseada na psicologia, tanto que a edição brasileira, com 127 páginas, foi publicada pelas Edições Paulinas em uma coleção denominada Psicológica Prática, que teria por objetivo ser “remédio e resposta para dúvidas psicológicas” (Vérine, 1962, orelha). A obra está dividida em dez capítulos, cada um correspondendo a um dos mandamentos.

Incluir os pais, e não apenas as mães, em uma obra que trata da educação das crianças, não era comum nessa época. A autora justifica a importância da família nos seguintes termos: “Exceção feita dos eclipses decorrentes dos períodos de decadência, a família, desde milhares de anos, foi sempre a salvaguarda da civilização em perigo e a reserva moral e religiosa do gênero humano” (Vérine, 1962, p. 71). De acordo com Donzelot (1980), o discurso da “família feliz” que se consolida nos anos 1950 tem como uma das condições de emergência justamente esta Escola de Pais francesa. Segundo o autor, o objetivo dessa instituição seria “uma reunião, em torno do projeto de ativação pedagógica da vida familiar, desse grupo de pressão obcecado pela ameaça bolchevique, pelo medo da coletivização” (Donzelot, 1980, p. 147). Ou seja, a Escola de Pais pretendia fazer renascer o espírito familiar, salvaguardando os direitos da família sobre a criança por meio de uma educação que preservasse seus valores morais. Portanto, a análise dessa obra se justifica pelo seu valor histórico.

Além desta obra de meados do século 20, compõem o material empírico dois livros publicados no início do século 21. A escolha dessas obras deu-se por serem aquelas relativas à paternidade com melhores vendagens em agosto de 2018 no site da Amazon. A obra Ser pai hoje: a paternidade em toda a sua relevância e grandeza (Balancho, 2012) foi escrita, de acordo com a orelha do livro, por uma doutora em psicologia educacional portuguesa. A obra foi publicada no Brasil pela Editora Juruá, em 2012, anunciando na capa que em Portugal, até aquele momento, já haveria nove edições. A edição brasileira tem 110 páginas. A obra é fruto de uma investigação, apresentando análises que são ilustradas com excertos de entrevistas com os sujeitos da pesquisa. Os excertos não são de onde partem as análises, mas servem, antes, para corroborar as afirmações da autora.

A obra Seu filho precisa de você: lições para tornar-se um pai ainda melhor (Bernstein, 2008) também foi escrita por um psicólogo, que também é pai. Portanto, nesse caso, o autor aliaria seu saber acadêmico com uma experiência em primeira pessoa da paternidade, dando uma dupla legitimação à obra. Sua experiência de pai aparece com frequência ao longo do livro, apesar de ter como foco os casos que o psicólogo enfrentou em seu consultório. Na discursividade presente nessa obra está implícito que o saber acadêmico se reforça quando aliado às práticas concretas da paternidade. O livro foi publicado na versão original nos EUA em 2008, saindo no Brasil no mesmo ano, pela Editora Prumo, com 260 páginas.

Desse modo, parece-me possível afirmar que o recurso de autoridade acadêmica é utilizado para conferir credibilidade às duas obras do século 21, ainda que em um dos casos haja articulação com a experiência concreta da paternidade. Se as obras atuais destacam a formação e experiência profissional dos autores, observa-se aí um deslizamento em relação à obra do século 20: não existe na publicação nem uma referência à formação acadêmica e prática profissional da autora. Entretanto, as obras atuais prescindem de referências bibliográficas, enquanto a de Vérine apresenta várias. Portanto, parece-me que enquanto as obras atuais têm sua veracidade atestada pelo currículo dos autores, aquela do século passado necessitava apoiar-se nas verdades enunciadas por terceiros para consolidar sua credibilidade.

Para desenvolver as análises, foi realizada a leitura das obras, organizando-se um banco com excertos que dialogassem com os objetivos deste artigo. Em um primeiro momento, foi feita uma tentativa de construir categorias de análise que abrangessem todas as três obras. Porém, a grande heterogeneidade entre o livro de meados do século 20 e aqueles do início do século 21 não permitiu sequer encontrar elementos em comum de modo consistente que possibilitassem esta organização. Entendi que neste caso seria mais produtivo iniciar pela análise do livro mais antigo e depois analisar conjuntamente os atuais, bastante coincidentes entre si, marcando neste segundo momento os deslocamentos entre as obras, que sinalizam transformações culturais mais amplas. Na seção seguinte, faço uma análise do livro de Vèrine e, posteriormente, dos dois livros do século 21, contrapondo-os com o primeiro.

Os dez mandamentos dos pais

“A educação é uma sugestão, uma insinuação lenta, persuasiva e progressiva dos princípios imutáveis que devem reger tôda vida”. (Vèrine, 1962, p.23)

Conforme já foi comentado, esta obra de meados do século 20 não está voltada estritamente para o pai (père), mas para o casal, para os pais (parents), ficando isso evidente no título original em francês. Entretanto, levando-se em conta que nessa época muito pouco ainda se discutia o papel do pai na criação dos filhos, como comentam os próprios autores dos livros mais recentes aqui analisados (Balancho, 2012; Bernstein, 2008), entendo que o fato do pai estar incluído já sinaliza uma transformação importante. Perpassa a obra uma preocupação fortemente moralizadora, em que a formação do caráter está associada com virtude, com moderação e com valores cristãos. Cabe destacar que esse livro foi editado pelas Edições Paulinas, ligada à Igreja Católica. Essa orientação religiosa já fica evidente no título da obra, Os dez mandamentos dos pais, uma clara alusão ao decálogo constante no Velho Testamento.

A religiosidade é retomada em outros momentos, sendo associada por vezes à questão da pátria: “Se soubermos interessá-la [a criança] a vencer-se a si própria, que bom operário de Deus e da Pátria estaremos preparando!” (Vérine, 1962, p. 33). Porém, se o patriotismo é invocado, a pátria também é um risco: “Acrescentemos, por exemplo, que a formação do caráter só se tomou um problema na França, quando ali se manifestou o que se pode chamar de movimento de descristianização do país, verificado no correr do século XVIII” (Vérine, 1962, p. 70). Este último excerto mostra uma preocupação com a formação das crianças e jovens, que estariam sendo corrompidas pela descristianização . Este pânico moral aparece em outros momentos:

Aos pais e educadores principalmente assiste o dever dêsse reerguimento, pois estão investidos de um verdadeiro sacerdócio. Deixemos, pois, aos celibatários existencialistas a triste faculdade de destruir, de "minar" as energias, vertendo nas almas, em alta dose, o veneno mortífero do pessimismo, do vício e do desespero. (Vérine, 1962, p.11, grifo meu)

O excerto acima faz referência ao existencialismo, corrente filosófica que se popularizou nos anos 1940, sob a liderança de Jean-Paul Sartre. Embasado na crença da precedência da existência sobre a essência e de que o ser se constitui a partir de escolhas pessoais, realizadas com liberdade, o existencialismo não exclui, necessariamente, a existência de Deus. Porém, havia uma forte tendência entre seus principais representantes de assumirem um posicionamento ateu (Moutinho, 2003). Portanto, para os católicos, os existencialistas eram um mal a ser combatido, assim como os comunistas.

Entretanto, o perigo para as almas infantis não estaria apenas na filosofia existencialista e no comunismo, mas nos artefatos da cultura popular, como o cinema e a televisão, e nas relações sociais. Para a autora, “somente aquêles que amam verdadeiramente a criança encontram sugestões felizes, que contrabalançarão com as outras perniciosas, que ela terá de enfrentar no correr dos anos, seja por meio de colegas, de livros ou do cinema” (Vérine, 1962, p. 23). Ela recomenda ordem e virtude para combater estas influências perniciosas.

Não nos deixemos sobrecarregar com extraordinários, visitas, saídas, conversas inúteis; não sejamos fanáticos pela televisão e pelo cinema (os bons filmes são tão raros). Coloquemos ordem na nossa vida, beleza, claridade; fujamos das manifestações mundanas; a vida de família, com alguns amigos escolhidos, e todos os seus recursos afetivos, intelectuais, artísticos, é tão atraente, como enriquecedora. (Vérine, 1962, pp. 53-54)

O excerto acima assinala que, apesar de raros, existem filmes que podem contribuir com a educação. Quanto aos livros, Vérine tem uma posição ambivalente. Tanto podem ser uma influência perniciosa como fonte de educação: “Os livros, juntamente com os pais, devem ser os melhores treinadores de esforço” (Vérine, 1962, p. 39). Essa ambivalência em relação aos livros estende-se aos colegas: “colegas, como os livros, podem ser treinadores ou destruidores de esforço” (Vérine, 1962, p. 39).

Apesar de a autora referir com alguma frequência questões religiosas, a fundamentação do livro é constituída basicamente por autores com reconhecimento científico, muitos deles ligados à área psi, ou filosófico, tais como Édouard Claparède, Ph. Ponsard, Jacques Jean Lhermitte, Henri Pradel, André Berge, Gabriel Tarde, Florence Millot, Albert Millot e Henri Bergson. Segundo a autora, “na época atual, nenhum educador tem o direito de ignorar os progressos da pedagogia e viver no mundo fechado dêsse conservantismo” (Vérine, 1962, p. 5). De acordo com essa obra, para criar adequadamente um filho é necessário que os pais tenham um preparo intelectual. “É curioso como tantos pais julgam que se possa ser um educador sem trabalhar para êste fim, e que a mais difícil de tôdas as profissões - a de serem pais - seja a única que não requeira nenhuma aprendizagem” (Vérine, 1962, pp. 69-70). Esse preparo constituiria até mesmo uma condição para amar os filhos: “Por que a inteligência deseja compreender? Para comungar, realmente, com os sêres: ama-se, não em virtude do que se sente, mas em virtude daquilo que se conhece, compreende, e comunica” (Vérine, 1962, p. 78).

Na esteira das discussões educacionais de sua época, Vérine (1962, p. 6) preconizava a utilização de “métodos ativos” na educação das crianças. “Os métodos ativos, assim denominados porque se opõem aos outros exclusivamente receptivos, ensinaram-nos a nos ocultar para melhor observar a criança e ajudá-la oportunamente”. É importante, contudo, observar que a autora sinaliza que a liberdade que os métodos ativos outorgam aos aprendizes deve ter limites, pois “em algumas escolas (‘montessorianas’ ou outras) a liberdade foi insuficientemente orientada” (Vérine, 1962, p. 6). Apesar de defender o uso de conhecimentos atualizados para educar as crianças, a autora faz ressalvas: “Isto significa então, que vamos abraçar cegamente a ‘Educação Moderna’, cujas idéias avançadas muitas vêzes têm assustado os educadores da família? Não, evidentemente” (Vérine, 1962, p. 5). Segundo a autora, “no que concerne à triste época em que vivemos, na qual uma excessiva fraqueza sucedeu a uma severidade demasiada, a situação é muito mais grave” (Vérine, 1962, p. 72). Ou seja, conhecimentos, mesmo que considerados científicos, só serão aceitos quando não confrontarem os valores tradicionais.

De acordo com Varela (1996), as metodologias ativas constituem uma forma sutil de governo das condutas, que apela mais para as intervenções sobre o meio do que propriamente para a obediência para obter seus resultados. Desse modo, por meio das metodologias ativas é possível modelar as condutas das crianças e jovens por meio de estratégias menos coercitivas, o que lhes confere maior eficácia por suscitar menos resistência. Entretanto, de forma contraditória, a autora, apesar de exaltar a educação por meio de métodos ativos, considera o desenvolvimento da obediência um dos pontos fundamentais do processo educacional. “O primeiro esfôrço da criança deve orientar-se para êsse objetivo: obedecer” (Vérine, 1962, p. 30). O teor dessa obra é fortemente disciplinar, apesar dos esforços da autora em utilizar teorizações do que ela chama de educação moderna, o que fica evidenciado pela ênfase na obediência. Seu caráter prescritivo e normativo é um apelo continuado a vencer os impulsos reforçam essa percepção.

Desde cedo a criança deve familiarizar-se com o sacrifício, porquanto o encontrará muitas vêzes no decorrer da sua vida ... Importa, pois, associar ao sacrifício não a idéia de prazer, o que seria errôneo (pois onde há sacrifício, há sofrimento), mas sim a idéia de vitória. (Vérine, 1962, pp.34-35)

A obediência não se desenvolveria naturalmente, sendo necessária a intervenção dos pais: “A criança deve passar pelas três etapas da obediência: obedecer porque assim o querem; saber obedecer porque é preciso; querer obedecer por necessidade e interesse” (Vérine, 1962, p.28). Os infantis devem compreender, o mais rápido possível, que é impossível escapar da autoridade parental, devendo “sentir que há ali uma espécie de fatalismo maravilhoso, que lhe simplificará tudo se o aceitar” (Vérine, 1962, p. 30).

Ainda segundo a autora, para obter os resultados desejados, os pais devem punir: “Castiguemos justa e severamente quando isto fôr necessário, mas o menos possível” (Vérine, 1962, p. 64). O uso da punição como estratégia de normalização é uma característica dos sistemas disciplinares (Foucault, 1999). As sanções prescritas priorizam interditar à criança indisciplinada algumas atividades agradáveis: “As privações são excelentes quando são bem adaptadas e bem dosadas; privação de sociedade, de liberdade, de brinquedo, de passeio, de prazer, de gulodices” (Vérine, 1962, p.64). Porém, não estão descartadas as sanções que atingem diretamente o corpo: “As palmadas, na maioria dos casos, infelizmente constituem um meio simples, utilizado pelos pais ... Em princípio, dêle só devemos lançar mão em último caso, quando todos os recursos forem esgotados” (Vérine, 1962, p. 62). A autora reconhece que estas sanções podem ser humilhantes e recomenda moderação: “A humilhação deve ser empregada com muita cautela, pois arrisca-se a produzir o complexo de inferioridade” (Vérine, 1962, p. 63).

Entretanto, a obra destaca que melhor do que castigar, é educar com doçura e por meio do convencimento: “Os métodos ativos ... procuram obter, antes de tudo, a adesão voluntária da criança. Nada de estável podendo ser realizado sem êsse consentimento consciente e livre” (Vérine, 1962, p. 19). Aqui, Vèrine reconhece a eficácia dos métodos ativos na condução das condutas. Nesse sentido, o exemplo constitui-se uma importante estratégia educacional: “As crianças precisam de exemplos vivos; eis porque insistimos tanto sôbre a necessidade de sermos corteses, bons, calmos, justos, sinceros, para que a criança também seja cortês, boa, calma, justa, sincera” (Vérine, 1962, p. 115). Portanto, a autora acredita que deva haver um equilíbrio entre metodologias ativas e disciplina para a boa educação e formação moral das crianças, bem como uma associação entre punições com outras estratégias menos coercitivas para moldar as condutas das crianças.

Outro ponto que merece destaque é a importância que a autora confere à verdade e o quanto considera uma falta grave a mentira. Na relação com o filho, ela enfatiza que “devemos persuadi-lo de que ama a verdade, para que venha a amá-la e que, se mentiu foi por engano ou brincadeira” (Vérine, 1962, p. 24). De acordo com Vèrine (1962, p. 90),“se todos os pais concordassem que a mentira é o defeito mais fácil da criança contrair, empregariam todos os meios para impedi-lo de nascer, a fim de não serem obrigados a corrigi-la”.

A verdade que a criança deve enunciar é uma verdade sobre si e sobre seus atos. Em suma, é uma verdade confessional. Em diversos momentos de sua obra, Foucault problematiza a relação sujeito-verdade. No curso Do governo dos vivos, ministrado no Collège de France, em 1980, ele aponta dois modos que as sociedades ocidentais vêm significando o verdadeiro desde os gregos: aquilo que se opõe ao falso, mas também aquilo que se arranca do oculto. Portanto, o dizer verdadeiro se opõe à mentira e também à ocultação da verdade, a seu silenciamento (Foucault, 2014). Segundo a autora, “a mais bela qualidade, a mais nobre, e meritória, e igualmente a mais rara, e preciosa, a que deveríamos acima de tudo desejar para nossos filhos, é a franqueza” (Vérine, 1962, p. 89). A franqueza é a desocultação da verdade. Para que aconteça este franco falar, é necessário confiança. “Para que a criança não minta, é necessário que, embora respeitando seus pais (o respeito é o comêço da submissão), dêles não tenha medo” (Vérine, 1962, p. 90).

No curso Fazer mal, dizer a verdade, ministrado na universidade belga de Louvain, em 1981, Foucault (2012) afirma que a confissão disseminou-se nas sociedades contemporâneas a partir das práticas cristãs. A confissão obriga o sujeito a enunciar uma verdade sobre si. Mesmo sendo extraída com maior ou menor coerção, deve ligar o sujeito da enunciação a seu enunciado, comprometendo-o com suas afirmações, colocando-o em relação de submissão àquele que recebe a confissão e, por sua vez, modificando a relação consigo. Confessar a verdade sobre si é desde já emitir um julgamento e comprometer-se com sua transformação.

Entretanto, mesmo que a mentira seja um vício grave e a franqueza uma virtude a ser desenvolvida, a autora recrimina a delação. “Não suportemos, tampouco, a delação, que abafa a bondade nos jovens corações” (Vérine, 1962, p. 94). Essa passagem torna mais evidente que a verdade exigida da criança refere-se, sobretudo, à verdade sobre si. Assim, apesar do enaltecimento à franqueza, a autora reconhece que a bondade constitui-se como uma virtude ainda maior.

Embora educar seja papel de ambos os pais, existem, segundo a obra em questão, pontos que serão delegados exclusivamente à mãe. Um exemplo são os hábitos de higiene: “Se a mãe tiver incutido na criança hábitos de ordem e de limpeza, aos três anos, ela já não poderá suportar a desordem” (Vérine, 1962, p.29). O papel da mãe é mais proeminente, pois a obediência exige um envolvimento ativo da criança, cuja “capacidade do esfôrço da mãe dependerá” (Vérine, 1962, p.27). Aqui, é importante observar que embora a maior parte das tarefas seja apresentada no livro como sendo compartilhada pelo casal, em alguns momentos a mãe recebe incumbências específicas. Com o pai, isto é muito mais raro. Em um dado momento, o pai é chamado a não anular os efeitos do esforço materno, sinalizando que sua maior tarefa é apoiar o trabalho realizado pela mãe.

O mais grave, finalmente, são os mimos exagerados, o pai que propositadamente, certos dias, faz tôdas as vontades aos filhos, dando livre expansão a seus impulsos sentimentais, sem compreender que agindo assim está destruindo a obra paciente e tão difícil da mãe. (Vérine, 1962, p. 109)

Por outro lado, a obra destaca que a autoridade paterna é incontestável. Ele é aquele que se sacrifica para prover o bem-estar da família. E o sacrifício do pai deve ser recompensado com um esforço da esposa e dos filhos em preservar seu sossego. Destaco que, em nenhum momento, a obra associa a tarefa materna com sacrifício.

As mães que assim destroem a autoridade do pai não sabem o mal que fazem. As mães inteligentes e prudentes jamais criticariam o chefe de família diante das crianças, mas saberiam manter o seu prestígio. Se a espôsa vê o marido chegar contrariado e de mau humor, fará compreender aos filhos a necessidade de ficarem calmos, afetuosos, sorridentes e alegres, segundo a intuição de seu coração e do momento, para não irritarem um pai preocupado, demasiadamente cansado e que se sacrifica tanto para manter a vida e a felicidade dos seus (Vérine, 1962, pp. 108-109)

As análises mostram que o livro Os dez mandamentos do pai está centrado em comunicar ao casal princípios educacionais para formar sujeitos obedientes, ordeiros e com valores morais tradicionais. Nessa obra não existe destaque para um exercício de paternidade ou maternidade que tenha por objetivo tornar os filhos felizes e bem-sucedidos, nem mesmo uma interpelação para que os pais transformem-se a si mesmos. A obra está muito mais calcada em princípios normativos e morais do que em princípios éticos. A boa educação é fruto de atitudes e não de uma transformação de si.

É preciso ser pai hoje, pois seu filho precisa de você

“Espanto dos espantos: tanta coisa escrita, refletida, estudada sobre as crianças e a forma de educá-las, e tão pouca para o pai e sobre o pai”. (Balancho, 2012, p. 11)

Os livros publicados no século 21 que são aqui analisados enfatizam que o exercício da paternidade hoje deve ser bem diferente daquele dos tempos de Vèrine. “A versão do homem tradicional, emocionalmente distante, luta ainda com a versão do novo homem reconstruído. Ambos são produtos das suas gerações e das exigências e necessidades que a sociedade, a família, o trabalho têm para eles” (Balancho, 2012, p. 27). A relação com o pai passa a ser considerada importante desde o nascimento: “Até trinta anos atrás, as concepções de vida e de sociedade negavam a importância do pai na vida do bebê; quando muito, aceitava-se que o pai tivesse urna intervenção mais tardia na vida dos filhos” (Balancho, 2012, p. 54). As transformações, contudo, não se dão apenas na ênfase da participação do pai na vida dos filhos, como também em ressignificar o papel do pai.

Entre 40 e 50 anos atrás, os pais ficavam calados quando se tratava de assuntos familiares. Era trabalho das mães acordar as crianças, vesti-las para a escola, preparar os lanches e dar-lhes banho. Eram elas que consolavam os filhos quando eles iam mal nos jogos, e instruíam seus meninos a serem como o pai. (Bernstein, 2008, p. 15)

Se o exercício da paternidade se transforma, exigindo um maior envolvimento emocional dos pais, também os propósitos da educação dos filhos se redirecionam. Conforme a seção anterior, Vèrine concedia grande importância em desenvolver a obediência, a franqueza e uma disciplinarização dos infantis que valorizava uma vida virtuosa, baseada em valores tradicionais e no sacrifício do prazer pelo dever. Esses elementos já não estão presentes nos livros atuais: não encontramos exortações a que se desenvolva a obediência, o amor pela verdade e um senso de dever que tolera sacrifícios. O que é valorizado nesses livros é a felicidade dos filhos e um futuro de sucesso.

Segundo Balancho (2012, p.12), “o pai, tanto quanto a mãe, precisa cada vez mais de ajuda para educar para a felicidade”. A ideia de felicidade é associada com outros elementos, como equilíbrio: “Ser pai é por isso ser central, essencial, único, ainda mais porque se sabe, e o veremos mais adiante, a qualidade da ligação com o pai tem um valor vital no equilíbrio psicoemocional dos filhos” (Balancho, 2012, p. 23); e bem-estar: “A disponibilidade para as tarefas diárias está assim associada à disponibilidade emocional e a sua ligação permite uma contribuição única no bem-estar dos filhos” (Balancho, 2012, p. 36).

A felicidade do filho implica negar o fracasso: “não há nada mais penoso do que ver seu filho fracassar, sabendo que você teve uma participação direta na criação dessa situação” (Bernstein, 2008, p. 125). De acordo com Foucault (2008), o princípio de inteligibilidade do neoliberalismo é a concorrência. Daí, pode-se depreender que ser um vencedor constitui-se em requisito necessário, e talvez até suficiente, para ser feliz. Em uma sociedade em que sucesso e felicidade são sinônimos, evitar o fracasso tornou-se uma tarefa paterna. Uma tarefa hercúlea, tendo em vista que frustrações sempre acontecerão.

A ênfase dos livros em criar filhos felizes, equilibrados e protegidos do fracasso é um efeito do imperativo contemporâneo da felicidade. “O mandato de ser feliz, custe o que custar, se coloca hoje, efetivamente, na cena da contemporaneidade, como uma demanda inequívoca”. (Birman, 2010, p. 27). Ser feliz parece ser hoje o objetivo de todos e de cada um. Binkley (2010) coloca que possivelmente sejamos a primeira sociedade em que os sujeitos tornam-se infelizes por não serem felizes. Eis aí o paradoxo da felicidade.

Todavia, a felicidade não é apenas o telos da criação dos filhos, como também uma justificativa para o envolvimento dos pais. Se Vérine destacava um senso de dever com os filhos, que exigia determinados sacrifícios, os livros atuais, embora não excluam totalmente a ideia de sacrifício, enfatizam mais os benefícios emocionais que advêm do exercício da paternidade: “encorajar uma paternidade responsável é também a maneira de fazer os homens de hoje mais felizes” (Balancho, 2012, p. 35). “Quanto mais os homens mantêm seus sentimentos trancados, menos energia possuem para devotar em sua busca da felicidade - e para ter um relacionamento saudável com seus filhos” (Bernstein, 2008, p. 210). Pais presentes contribuem não apenas para a felicidade dos filhos, mas para a sua própria.

A presença paterna também aumenta as chances de desenvolvimento do que vem sendo chamado de capital humano. Esse conceito, criado por Schultz (1962), refere-se a um conjunto de capacidades e características dos sujeitos que qualificam para o exercício de atividades remuneradas. Segundo esse autor, o desenvolvimento do capital humano permite auferir rendas maiores. Para ele, a educação seria o principal fator para aumento do capital humano, ainda que reconheça que as condições de saúde também sejam importantes. Nesse sentido, “As crianças que sentem falta de pais mais interessados e de modelos masculinos adequados não vão bem na escola. Elas estão em grande risco de apresentar problemas” (Bernstein, 2008, p. 68). A falta de envolvimento paterno, segundo uma das obras, não interfere apenas na aprendizagem, mas no próprio desenvolvimento da inteligência: “A competência intelectual, o chamado QI, já surgiu correlacionada com o envolvimento do pai nas brincadeiras, tempo de interação e aspirações sobre a independência das suas crianças” (Balancho, 2012, p. 58).

Cabe destacar que frente às mudanças da organização do trabalho desde a publicação do livro de Schultz, competências emocionais como equilíbrio, capacidade de liderança e autoestima tornaram-se gradativamente mais importantes na composição do capital humano. Estas outras competências também são abaladas pela ausência paterna. “Há indícios de que as crianças que crescem sem pai se mostram mais perturbadas na construção da sua identidade sexual, nos resultados escolares e no ajustamento psicossocial” (Balancho, 2012, p. 67).

Se Vèrine conferia grande importância para a obediência, os livros atuais destacam a imposição de limites: “uma das lições mais importantes que se pode ensinar nos primeiros anos é aceitar limites e aprender o autocontrole” (Bernstein, 2008, p. 78).

Um pai que tenha uma resposta atenta, meiga e centrada na criança (responsabilidade), e atitudes de controle parental moderado (estabelecendo regras e limites, mas dando espaço à criança para autonomia e tomadas de decisão), tenderá a ser um bom pai, já que os seus filhos mostrarão ter elevada autoestima, sucesso acadêmico, adequado desenvolvimento cognitivo e menos problemas de comportamento que os que têm pais controladores, autoritários. (Balancho, 2012, p. 73)

A ênfase na obediência a regras desloca-se para a ideia de autocontrole, as crianças devem desenvolver a capacidade de controlar a si mesmas para além de regras como requisito para obter o desejado sucesso. Esse deslocamento sinaliza a passagem da produção de sujeitos orientados por uma ordem disciplinar para uma produção de indivíduos capazes de gerir sua vida como uma empresa, agindo como empresários de si (Foucault, 2008).

Entretanto, mesmo que esses livros destaquem a diferença entre pais de alguns anos atrás e pais atuais, é possível perceber que existe ainda uma grande tolerância em relação a falhas no exercício da paternidade. “Não será intencional - longe de nós atribuir aos pais negligentes, abusadores ou violentos a culpa de não serem o que os filhos precisavam - mas muitos pais acabam por magoar os filhos para a vida, e marcá-los com cicatrizes que dificilmente saram” (Balancho, 2012, p. 76). Na obra de Vérine, a paternidade era associada com um sacrifício em prol da família. A noção de sacrifício já não aparece, porém existe uma exaltação àqueles que agem como bons pais. “Meu coração simpatiza com os homens que estão fazendo o melhor possível, mas sentem-se esmagados pela insegurança” (Bernstein, 2008, p.119).

Se o bom exercício da maternidade é entendido ainda hoje como uma obrigação, havendo fortes recriminações a deslizes que as mães cometam, o simples fato de esforçar-se para ser bom pai já deve ser reconhecido: “É aqui que nos encontramos, neste início de milênio, cada vez mais reconhecidos ao pai por aquilo que ele é e faz, e cada vez menos críticos em relação a ele” (Balancho, 2012, p. 55). Em muitos momentos, os livros trazem que a dificuldade de vivenciar uma paternidade mais presente está nas múltiplas atividades que os homens se envolvem:

Algo inesperado acontece no caminho desses homens, quando estão se tornando grandes pais. Eles se vêem aquém das próprias expectativas - e das expectativas de suas esposas e filhos. Por quê? É impossível desempenhar direito todos os papéis. Eles sentem a pressão para serem bem-sucedidos no trabalho, para estarem atentos às esposas e para serem um modelo de cidadãos em sua comunidade. E o mais importante: eles sofrem a pressão para se tornarem bons pais. (Bernstein, 2008, p. 21)

Porém, ao contrário dos pais, parece que as múltiplas tarefas das mulheres não seriam uma obstrução para uma maternidade presente. Inclusive, recairia sobre elas a responsabilidade de aproximar pais e filhos. Um capítulo do livro Bernstein, que tem por título “Mães astutas favorecem bons pais” (Bernstein, 2008, p. 234), traz o seguinte: “O primeiro passo para ajudar a melhorar as habilidades parentais do marido é organizá-lo. Muitas vezes, os pais precisam de ajuda para estabelecer prioridades” (Bernstein, 2008, p. 236). Se, para Vèrine, mães inteligentes não criticam os pais na frente dos filhos e proporcionam sossego para os maridos, Bernstein sugere que mães astutas proporcionam organização.

O compartilhamento dos cuidados com os filhos, em muitos momentos, aparece como algo opcional e está no nível do suporte e da ajuda à mãe: “Um outro importante elemento da sua função é ser suporte emocional para a mãe das suas crianças” (Bernstein, 2008, p. 65). A paternidade como escolha pode ser percebida quando uma das obras trata da presença compulsória de um pai desempregado:

Se [o envolvimento com o filho] é imposto (por exemplo, devido a situação do desemprego do pai enquanto a mãe mantém o seu emprego fora de casa) toma-se numa situação em que há ressentimento, desvalorização pessoal e um conjunto vasto de emoções negativas, que transforma o pai não num pai feliz por poder interagir mais com os filhos, mas num pai revoltado porque o faz em consequência de não ter outra opção. (Balancho, 2012, p. 78)

Portanto, a paternidade que emerge dos livros atuais afasta-se da ideia de sacrifício e, em alguns momentos, surge como escolha. O pai contemporâneo escolhe estar presente na vida dos filhos para proporcionar-lhes felicidade, mas também para ele mesmo ser mais feliz. Seu esforço para o exercício da boa paternidade é sobrevalorizado, havendo bastante tolerância com seus erros.

Considerações finais

As análises das obras que compuseram o material empírico deste artigo mostram que entre meados do século 20 e início do século 21 a concepção do que seja um bom pai e dos objetivos e estratégias do exercício da paternidade sofreram grandes deslocamentos. O bom pai de Vèrine era um pai virtuoso, com fortes obrigações com a família e que tinha a função de prover sustento e disciplinar os filhos, junto com a mãe. A paternidade implicava sacrifícios em prol da família, porém a maternidade não recebia o mesmo tratamento. O livro Os dez mandamentos dos pais apresentava esquemas bem delineados de como proceder na criação dos filhos, apoiados em conhecimentos científicos e filosóficos, ainda que subordinados a princípios morais conservadores e religiosos. Os filhos deveriam ser educados para serem virtuosos, obedientes e com amor pela verdade.

Já o pai que emerge das obras do século 21 é interpelado para que seja um pai presente. Ainda que a função de provedor de condições materiais não tenha desaparecido, o bom exercício da paternidade exige uma presença que transcende ao aspecto físico e deve se refletir pela proximidade emocional. Esse pai, que é interpelado para proceder de modo distinto daqueles de gerações anteriores, deve orientar sua ação para a criação de filhos felizes e bem-sucedidos, capazes de tomarem as rédeas de suas vidas. A noção de sacrifício paterno praticamente desaparece e o bom exercício da paternidade é associado antes com a felicidade e realização do pai. O exercício de uma paternidade presente, entretanto, surge como uma escolha dos homens, havendo uma grande valorização do esforço e grande tolerância com as falhas. O papel da mãe nos cuidados ainda se destaca e não se encontra a mesma exaltação de sua dedicação. A forma como proceder para o bom exercício da paternidade já não é tão prescritiva e ao longo das duas obras é possível encontrar uma série de exercícios que incitam os leitores a realizarem transformações de si, o que não ocorria na obra de Vèrine.

Embora o papel do pai tenha se transformado entre meados do século 20 e início do século 21, os livros mostram que permanece ainda uma ênfase na mãe como responsável pela criação dos filhos. Nesse sentido, o bom exercício da paternidade ainda surge nas obras publicadas neste século como escolha, conforme mostrei na seção anterior, enquanto o exercício da maternidade parece ser entendido como uma obrigação natural, ao colocar a mãe como a que organiza o próprio exercício da paternidade.

Referências

  • Balancho, L. (2012). Ser pai hoje Curitiba: Juruá.
  • Bernstein, N. I. (2008). Seu filho precisa de você São Paulo: Prumo.
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  • Vèrine (1962). Os dez mandamentos dos pais São Paulo: Paulinas.

Notas

  • 1
    Diversos trabalhos vêm problematizando os novos arranjos familiares e suas relações com as identidades e papéis de gênero. Destacamos os trabalhos de Rinaldi (2017), Rodriguez e Gomes (2012) e Perucchi e Beirão (2007).
  • 2
    Este livro foi encontrado na casa de meu pai, por ocasião de seu falecimento, com sua assinatura e datado seis meses após meu nascimento.
  • 3
    Recuperado de http://www.aulete.com.br/autoajuda
  • 4
    Segundo Foucault (2010, p. 5), focos de experiência seriam a articulação de “formas de um saber possível, matrizes normativas de comportamento, modos de existência virtuais para sujeitos possíveis”.
  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento: Pesquisa documental.
  • Financiamento: Não houve financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2019
  • Revisado
    23 Mar 2020
  • Aceito
    22 Maio 2020
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