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AMAR É ATO POLÍTICO REVOLUCIONÁRIO: PUBLICAÇÃO CIENTIFICA NAS LINHAS E TRAMAS DE UMA ÉTICA AMOROSA

AMAR ES ACTO POLÍTICO REVOLUCIONARIO: PUBLICACIÓN CIENTÍFICA EN LAS LÍNEAS Y TRAMAS DE UNA ÉTICA AMOROSA

AMAR IS REVOLUTIONARY POLITICAL ACT: SCIENTIFIC PUBLICATION IN THE LINES AND PLOTS OF A LOVING ETHIC

“Imagine viver em um mundo onde não há dominação, em que mulheres e homens não são parecidos nem mesmo sempre iguais, mas em que a noção de mutualidade é o ethos que determina nossa interação. Imagine viver em um mundo onde todos nós podemos ser quem somos, um mundo de paz e possibilidades. Uma revolução feminista sozinha não criará esse mundo; precisamos acabar com o racismo, o elitismo, o imperialismo. Mas ela tornará possível que sejamos pessoas - mulheres e homens - autorrealizadas, capazes de criar uma comunidade amorosa...” (bell hooks, 2020: 15HOOKS, bell. (2020). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rosa dos Tempos.).

Esta citação foi retirada de um livro da escritora, teórica feminista e crítica cultural antirracista afro-americana bell hooks, originalmente publicado em 2000, no qual ela justifica a necessidade de um texto em que falaria do feminismo: 1) a partir de uma experiência concreta, daquilo que acontecia na sua vida e 2) para pessoas concretas que a rodeavam, de modo a tentar aproximá-lo de todos e todas e evitar a simplificação do feminismo como um movimento de mulheres radicalmente contra os homens.

Queria ela escrever um livro que mostrasse que o feminismo era para todas e todos, pois se referia a um ethos, a um modo de estar no mundo e viver em um mundo que pudesse ser compartilhado por todas as formas de viver. Um mundo em que todas as formas de viver pudessem ter os mesmos direitos, pudessem escolher, pudessem circular das mesmas formas e com as mesmas condições: “uma comunidade amorosa”. Ensinar o feminismo não seria ensinar, portanto, pregoar que uns são melhores que os outros - nesse caso, que mulheres seriam melhores que homens -, ao contrário, seria reconhecer que todas as vidas são passíveis de luto e, em razão disso, de lutarmos por elas como vidas dignas de existência tal qual como qualquer vida.

Como ela nos aleta: “para acabar com o patriarcado (outra maneira de nomear o sexismo institucionalizado), precisamos deixar claro que todos/as nós participamos da disseminação do sexismo, até mudarmos a consciência e o coração; até desapegarmos de pensamentos e ações sexistas e substituí-los por pensamentos e ações feministas” (p. 10)

Em sua proposta de ética amorosa, bell hooks nos convida a pensar o amor não como um substantivo, e sim como um verbo - uma ação que, para existir precisa de outros ingredientes. “Para amar verdadeiramente, devemos aprender a misturar vários ingredientes - carinho, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, assim como honestidade e comunicação aberta” (hooks, 2020: 47HOOKS, bell. (2020). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rosa dos Tempos.). Amar é, portanto, um ato genuinamente político e revolucionário, por isso, “o pensamento feminista ensina a todos nós como amar a justiça e a liberdade, de maneira a nutrir e afirmar a vida” (p. 61).

Inspirados nesta ética amorosa, produzimos este Editorial, despedimo-nos de 2022; um ano no qual as ferramentas de valorização da vida e das pessoas, em sua diversidade, foram fundamentais para sobrevivermos. Um ano que fortaleceu lutas e pactos com (e para) a não-violência e pela afirmação de compromissos éticos, estéticos e políticos comprometidos com a justiça social.

Pensar um Editorial para nossa Revista, no final de um ano como este, é um grande desafio. Psicologia & sociedade é, como demais instrumentos de divulgação científica, uma ferramenta situada, que (se) alimenta (de) uma complexa dinâmica micropolítica, de luta, de experiências concretas, que nos acompanham em nossa vida, em nossas batalhas e encontros cotidianos de fazeres e produções científicas. Em nosso caso particular, trata-se de escrever um Editorial que viveu os desafios e controvérsias de um ano que materializou e durante o qual se visibilizaram muitas violências.

Vivemos nos últimos 4 anos, no Brasil, a implementação de um projeto político de sociedade e de estado que se diz “conservador” e “liberal” e cuja estética se fundamenta na valorização de um único modelo de família, numa pátria que sequer com reconhece a desigualdade social que dirá a importância de investimentos para sua superação, e em um Deus que não produz alianças e solidariedade, mas que julga e hierarquiza.

Este projeto político, armados até os dentes, defende um mercado e uma sociedade que se autodenomina “livre” e, para isso, se posiciona a favor do capital transnacional e das elites no poder, e contra a liberdade de expressões de gênero e sexualidade, impondo um modelo cisheteronormativo, que busca regular, controlar e violentar as pessoas em função de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero. Leituras intencionalmente acríticas e enviesadas do cristianismo são acionadas para justificar opressões. Reivindicações e demandas do movimento negro, dos movimentos feministas, dos movimentos LGBTQIA+ e dos movimentos sociais em geral são tratados com descaso, repressão e desprezo.

2022 foi um ano em que esse projeto político foi abertamente propagado, mas, ao final, derrotado nas urnas, em uma das eleições mais complexas e tensas da recente democracia brasileira. Foi, portanto, um ano de resistências públicas e de insistências micropolíticas. Foram elas que se mantiveram respirando e dançando. A cada performance de respirações e danças, gingas, movimentos de aproximações, encontros amorosos tornavam-se possíveis. E esses encontros pactuaram políticas do amor, da vida contra as de morte que vem como arrastão em nossos cotidianos.

Este Editorial 2022 de uma psicologia social crítica que sustenta Revista, se alia à proposta de bell hooks de que uma revolução feminista não criará mundos sozinha, pois ela não diz respeito apenas a uma questão teórica, é uma questão política: antirracista, anti-imperialista, antipatriarcalista. E foi nesse mundo que vivemos 2022. Foram essas microlutas que tiveram que fortalecer laços, as vezes inimagináveis, para que algumas estratégias fossem amplificadas. Ao passo que muito rapidamente se intensificaram as mais diferentes formas de políticas de morte (aumento do número de morte de indígenas, mulheres negras e pessoas trans, homens jovens negros, entre outros corpos subalternizados); por outro lado conseguimos ver um número crescente de representações negras, indígenas, trans no legislativo; conseguimos, ver a primeira presidenta de CRP trans (Céu Cavalcanti, também integrante da Diretoria Nacional da ABRAPSO Gestão 2022-2023), a primeira mulher trans doutora honoris causa da história do Brasil (Keila Simpson, que também é presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais - Antra). E isso tudo conta do nosso cotidiano prático da psicologia social, pois é com ele que trabalhamos, é com ele que nos constituímos como ciência e como profissão. É ele que nos desafia em termos de um projeto político de ciência e de sociedade.

Em 2022, foi possível a retomada dos processos de gestão da Revista, em maior sintonia com a coordenação nacional atual. Essa intensificação dos laços, que apenas reafirmam que Revista é o veículo de comunicação científica da ABRAPSO e não entidades distintas, que nutrem, portanto, mesmos valores e objetivos, permitindo que a Revista também pudesse ser olhada, assim como ensina bell hooks, como uma ferramenta de todas e todos e não ferramenta contra. Ou seja, a Revista é uma ferramenta de luta da psicologia social brasileira; é parte de uma estratégia de construção de afirmação de uma Psicologia que faz parte da vida, das lutas políticas e das alianças que não são feitas sozinhas.

A Revista, como parte da ABRAPSO, também foi parte das batalhas contra as diferentes formas de um processo político nacional complexo que explicitou as tramas que costuraram os quatro anos de Jair Bolsonaro na Presidência da República, as quais ameaçaram profundamente a democracia e as instituições públicas do país, recaindo sobre o fomento à produção científica no Brasil e a promoção de uma educação pública de qualidade para todas e todos. Nesse sentido, em 2022, a psicologia social não esteve à margem dessa vida concreta, que diz respeito a todas e todos nós. A psicologia social que compõe a Revista também entendeu que essas ameaças à democracia fazem parte de um amplo projeto político e, portanto, exigem uma resposta política de alianças, de comunidades, de laços e pactos. São jogos complexos e que não se resolvem (ou se encerram) com prontas respostas.

É importante resgatarmos, nesse processo de reconstrução do país, a potência crítica e a legitimidade da ciência e das universidades e de outros espaços de produção de conhecimento, na promoção de uma sociedade mais justa.

Ressaltamos que a ética amorosa de bell hooks, ou a sua política do amor, também pode nos aproximar de novo de movimentos de esperançar, da possibilidade da renovação da esperança, a partir da aposta em uma proposta política de coalização, baseada no respeito aos direitos humanos, na eliminação da miséria e na valorização da educação, da ciência e da cultura. E é nesse jogo entre políticas de morte e vida que os textos de 2022 foram sendo publicados. Tratam-se de manuscritos que assim como focalizam críticas ao cotidiano de extermínios e violências, também assinalam lutas por insistências, por sobrevivências da vida.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante a campanha eleitoral, fez referência ao educador Paulo Freire, dizendo que precisamos “estar junto com os divergentes para combater os antagônicos”. Considerando que a alteridade é um conceito central para pensarmos uma psicologia social crítica, precisamos trilhar caminhos que fomentem diálogos e alianças com divergentes. E este talvez seja um dos nossos grandes desafios atuais.

A todas as pessoas que nos acompanham, que nos leem, que comungam de um projeto político-científico que não apenas descreve, mas que inscreve criticamente suas análises, a coordenação editorial da Psicologia & Sociedade deseja um 2023 “sem nenhuma a menos”, pelas vias políticas do amor, as quais nos permitem promover a revisão de valores e práticas, envolvendo expressamente todas, todos e todes em movimentos potentes, em prol da justiça social.

Referência

  • HOOKS, bell. (2020). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras Rosa dos Tempos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022
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