Resumo
Analisamos um episódio no Twitter de linchamento virtual de um homem trans pela sua participação em campanha publicitária do Dia dos Pais em 2020. Os comentários foram analisados a partir do primado do objeto, fundamentado na Teoria Crítica, nos Estudos sobre a Personalidade Autoritária e em A Dialética do Esclarecimento. Das 461 postagens selecionadas, derivamos 7 categorias: 1. Conservador religioso; 2. Elementos projetivos; 3. Elementos de destrutividade; 4. Preocupação com o sexo; 5. Humor e ironia; 6. Base político-econômica; 7. Defesa da empresa e/ou de Thammy. Pretendemos contribuir científica e criticamente com a compreensão sobre o que fundamenta as relações contemporâneas, em especial no ambiente virtual.
Palavras-chave: Teoria Crítica; Preconceito; Linchamento Virtual; Transfobia; Mídias sociais
Resumen
Analizamos un episodio del linchamiento virtual por su participación en una campaña publicitaria del Día del Padre en 2020. Los comentarios fueron analizados a partir de primacía del objeto, con base en la Teoría Crítica, en los Estudios sobre la Personalidad Autoritaria y en La Dialéctica de la Ilustración. De las 461 publicaciones seleccionadas, derivamos 7 categorías: 1. Conservador religioso; 2. Elementos proyectivos; 3. Elementos de destructividad; 4. Preocupación por el sexo; 5. Humor e ironía; 6. Base político-económica; 7. Defensa de la empresa y/o Thammy. Pretendemos contribuir científicamente y críticamente a la comprensión lo que subyace las relaciones contemporáneas, especialmente en el torno virtual.
Palabras clave: Teoría Crítica; Prejuicio; Linchamiento Virtual; Transfobia; Redes Sociales
Abstract
We analyzed an episode on Twitter of the virtual lynching of a trans man for his participation in a Father’s Day advertising campaign in 2020. The comments were analyzed based on the primacy of the object, underpinned on Critical Theory, in Studies on the Authoritarian Personality and on The Dialectics of Enlightenment. From the 461 posts, we derived 7 categories: 1 Religious Conservative; 2. Projective elements; 3. Elements of destructiveness; 4. Preoccupation sex; 5. Humor and irony; 6. Political-economic base; 7. Defense of the company and/ or Thammy. We intend to contribute scientifically and critically to the understanding of what underlies contemporary relationships, especially in virtual environment.
Keywords: Critical Theory; Prejudice; Virtual Lynching; Transphobia; Social Media
Introdução
Thammy Miranda é um homem trans, ator, repórter e político. Em julho de 2020, ele e seu filho participaram da campanha publicitária para o Dia dos Pais da Natura em um vídeo de 37 segundos com registros cotidianos. Isso gerou grande repercussão e Thammy se tornou alvo de ataques homotransfóbicos nas redes sociais. O slogan da campanha era #meupaipresente, inspirado na convivência entre pais e filhos na pandemia: “Nestes últimos meses, pais mergulharam na rotina dos filhos. Filhos conheceram novos lados de seus pais. E, assim, nasceram histórias diferentes, momentos divertidos, emocionantes e inspiradores. Entre a louça e a lição, a dança e as brigas, os medos e as reconciliações, uma descoberta: a presença é o maior presente1. ” O vídeo divulgado em TV aberta mostrava pais e filhos “anônimos” no cotidiano, cantando “Velha Infância”, dos Tribalistas. Nas redes sociais, pais famosos, como Henrique Fogaça, Babu Santana, Rafael Zulu, Fernando Ferraz e Thammy Miranda divulgaram a campanha com a hashtag #meupaipresente.
As manifestações em torno do episódio revelam como consumidores de conteúdo das redes sociais abandonam a condição de espectadores e participam do processo midiático, onde “criam, compartilham, reusam, remixam, recombinam e redistribuem os conteúdos que consomem...” (Buzato & Severo, 2010, p. 2).
Aparentemente, o ambiente digital possui um caráter democrático, com maior empoderamento e liberdade de expressão. Contudo, ele tem se mostrado conflituoso, pois parte dus usuáries exercem um tipo de justiça popular na internet, o linchamento virtual, que consiste em humilhação pública, exposição, julgamento e incitação à “justiça” nas redes sociais (Mercuri, 2016).
Segundo André Carvalho et al. (2018), o que se apresenta contrário à moralidade movimenta o linchamento virtual, uma variante das formas existentes de violência coletiva. Ele decorre da tentativa de arquitetar um modelo de sociedade por meio da ‘retomada da ordem outrora rompida’ pelas condutas sociais, ou estabelecimento de uma “nova ordem”, tornando-se perceptível que sua incidência está atrelada à sociedade onde ocorre, ao mesmo tempo em que diz sobre ela (Martins, 2015). A partir disso, buscamos aqui o estudo crítico do episódio de linchamento virtual exposto a partir da análise de postagens de usuáries do Twitter. Acreditamos que essa análise é capaz de revelar facetas da realidade presentes nesse objeto, promovendo a compreensão de elementos sobre a organização da sociedade e das manifestações psicológicas que sustentam a reprodução da violência no virtual. Acreditamos que “A análise micrológica de casos particulares é especialmente relevante, pois permite a imersão nos menores detalhes, negligenciados quando se trata de formar conceitos a partir do que os objetos têm em comum” (Antunes, 2014, p. 136).Reconhecemos a urgência em discutir temas pertinentes às pessoas transsexuais na mídia, ressaltada por Jaqueline de Jesus (2013). Na visão da autora, por mais que elus existam nos mais diversos ambientes, como o “políticos, técnicos ou acadêmicos” o aspecto da “visibilidade na sociedade e nos meios de comunicação é concentrada no aspecto marginal” (Jesus, 2013, p.13) e de modo muito ínfimo nos aspectos que atravessam o “cotidianos e as demandas” que de fato vivem.
Elementos metodológicos
O Twitter é uma das redes sociais mais populares do mundo. Criado em 2009, atualmente ele possibilita a publicação de mensagens (tweets) com até 280 caracteres. Possui a função retweet, que permite o compartilhamento das postagens de seguidores em outras páginas e reply, que possibilita responder às mensagens. Há também o uso de tags, que destacam um assunto e o torna mais visível na ferramenta de busca.
Coletamos mensagens publicadas na rede entre os dias 20 de junho e 09 de agosto de 2020, através da página do Twitter e no TweetDeck, ferramenta que viabilizou a busca por publicações a partir de tags, utilizando filtros como data e localização. Tanto na coleta através do Twitter como pelo TweetDeck utilizamos a tag #boicotenatura para acessar as publicações relacionadas ao descritor. Encontramos 1054 tweets. Destes, 35 se mostraram a favor da campanha e/ou manifestaram defesa ao Thammy. Em contrapartida, 813 tweets demonstraram discordância tanto com a empresa como com a presença de Thammy na campanha, além de 206 tweets com conteúdos de outras temáticas2. Ofensas, palavrões e ameaças de boicote em postagens com a hashtag #meupaipresente, #NaturaNao, #Boicotenatura e #Paitemqueserhomem foram utilizadas nas semanas que antecederam o dia dos pais, ficando entre um dos temas mais comentados no Twitter. O assunto também apareceu em portais de notícias, sobretudo em razão de postagens com posicionamentos homofóbicos, religiosos e conservadores, de pessoas com visibilidade no meio midiático, político e religioso. Estabelecemos como critério de inclusão postagens que possuíssem a hashtag #boicotenatura no corpo textual, o que resultou em 461 tweets. Foram excluídos da análise 558 tweets que trouxessem somente a tag #boicotenatura sem a presença de texto, além de conteúdos incompatíveis com a temática da campanha, como imagens ou cards, perfazendo a quantidade 352 tweets.
Para garantir anonimato, ocultamos nomes e usernames, substituindo-os pelo termo IN (Internauta) e por uma numeração sequencial. Os comentários foram analisados a partir do conceito de primado do objeto na condução dos estudos, deixando que ele revele o processo histórico e social sedimentado em si mesmo (Antunes, 2014). O referencial teórico da Teoria Crítica da Sociedade foi utilizado para embasar o processo de análise imanente do discurso. Ao analisar os aspectos subjetivos da realidade, a Teoria Crítica parte de uma Psicologia Social psicanaliticamente orientada que “investiga seriamente as condições subjetivas da irracionalidade objetiva’’. (Adorno, 1955/1986, p. 36), assim, não consideramos o objeto mensageiro portador de uma verdade absoluta, mas capaz de despertar processos de reflexão contínuos (Fontana, 2009, p. 50), em contato com o concreto e suas contradições.
Das categorias e análise dos comentários
Das postagens derivamos 7 categorias: 1. Conservador religioso; 2. Elementos projetivos; 3. Elementos de destrutividade; 4. Preocupação com o sexo; 5. Humor e ironia; 6. Base político-econômica; 7. Defesa da empresa e/ou de Thammy.
Conservador religioso
Aqui, os comentários sugerem a adesão rígida a valores morais convencionais, o desprezo e o anseio por punição aos considerados transgressores (outgroup). Encontramos a repetição da ideia de “inversão de valores”, a acusação de que se “cospe nos valores cristãos” além da afirmativa de que não há respeito pela “família tradicional”:
Inversão de valores e afronta ao povo conservador. Pra mim o boicote é certo, ainda bem que a notícia veio em tempo, já que sempre gostei muito dos produtos dessa marca, e não raro comprava kits de campanhas (mãe, namorados, pais, Natal). Pra mim perdeu o brilho. (IN 1)
Vamos BOICOTAR essa empresa, já que ela não reconhece e não está respeitando a família tradicional. Se não trabalha para os Pais de verdade, não trabalha para as Família. (IN 9)
A Natura escarnece do pai, cospe nos valores cristãos e ignora milhões e milhões de pessoas conservadoras, vamos mostrar pra essa marca que quem lacra não lucra. (IN 11)
A religião aparece como “cimento social”, distorcida em instrumento de abuso, subserviência, ajustamento exagerado à lealdade àqueles que pertencem ao ingroup, e oculta o ódio contra quem é visto como dissidente. Theodor Adorno (1950/2019), ao descrever e mensurar tendências ideológicas, de personalidade e de contexto social, elencou variáveis que formavam “uma mesma síndrome, uma estrutura mais ou menos duradoura” (p. 135), entre elas está o convencionalismo: uma “adesão rígida a valores convencionais, de classe média” (p. 135), que se diferencia dos valores convencionais em si, pois a forma como se adere a eles é primordial. Adorno aponta que “se a adesão dos valores convencionais fosse expressão de uma consciência individual plenamente estabelecida, então não deveríamos esperar nenhuma conexão necessária entre esses valores e o potencial antidemocrático” (p. 138).
Porém, quando a adesão a valores convencionais se faz por pressão social, a pessoa se associa a um padrão de poder coletivo que “no momento, está identificado, então devemos esperar uma estreita associação com a receptividade antidemocrática. É este o último estado de coisas que gostaríamos de chamar de convencionalismo - e de distinguir da mera aceitação de valores convencionais” (Adorno, 2019, p. 138). As expressões do convencionalismo se associam às formas mais manifestas de preconceito. Em nosso estudo, um dos argumentos de rejeição da campanha publicitária se ampara na ideia de homem:
Temos muitos homens que representam a MAIORIA do povo brasileiro e merecem ser imagem-símbolo do Dia dos Pais. Querem nos enfiar goela abaixo essa m3%da de Ideologia de Gênero. Eu digo NÃO à Natura!”. (IN 2)
QUE ABSURDO!! COM TANTO HOMEM DE VERDADE NO BRASIL, A NATURA ESCOLHE UMA MULHER??? (IN 7)
Percebemos a negação da identidade de um homem trans e seus papéis sociais para além de membro da comunidade LGBTQIA+3. Além disso, na realidade, são as mulheres a maioria no Brasil, somando 51,8% da população, de acordo com os dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 20194. O que us internautas parecem apontar é o desejo de permanecerem maioria ideológica, mantendo privilégios e hegemonia em relação às mulheres e às pessoas trans.
Ao serem vistos como desviantes do padrão heteronormativo e/ou das normas de gênero, as pessoas LGBTQIA+ têm sua existência e seus comportamentos reprovados em discursos violentos e estereotipados, que os colocam em um lugar de: “abominação; crime contra a natureza; pecado nefando; vício dos bugres; abominável pecado de sodomia; velhacaria; descaração; desvio; doença; viadagem; frescura” (Moot, 2001, p. 445). A possibilidade de exercerem outros papéis produz repulsa e necessidade de demarcar lugar: “respeito se a mulher vira homem ou se o homem vira mulher e para isto já existe o dia do orgulho LGBT. Agora respeitem também o dia do pai e o dia da mãe” (IN 6).
Jaqueline de Jesus (2013) aponta que a conjuntura brasileira reserva a mulheres e homens transsexuais e travestis o lugar de exclusão extrema, negando direitos civis básicos e até mesmo o reconhecimento da identidade. Aqui parece certeira a afirmação de Adorno e Max Horkheimer (1947/1985): “A mera existência do outro é motivo de irritação. Todos os outros são ‘muito espaçosos’ e devem ser recolocados em seus limites, que são os limites do terror sem limites” (p. 151). Indica-se a negação do direito de outrem de realizar todas as suas possibilidades existenciais. Contudo, para pessoas trans, a luta se inicia pelos direitos fundamentais, como o direito à vida (Jesus, 2013), atravessando assim a luta por espaços dentro da sociedade que não sejam a própria margem desta.
Quanto a isto, temos a ideia de que os valores, a família e “milhões e milhões de pessoas conservadoras” se encontram ameaçados, e uma contradição: aqueles que se sentem ferides em seus valores e formas de ser, são es mesmes que propõem e executam um ataque massivo a uma minoria que é retratada de forma ínfima na campanha publicitária: de cinco representantes da figura paterna nas redes sociais, somente uma se identifica como homem trans, as outras estão dentro de um padrão cisheteronormativo. Paralelo a isso, o vídeo da campanha veiculado na TV aberta não contou com nenhum homem transexual: a campanha não é, de fato, ameaçadora da cisheteronormatividade e a presença de uma minoria trans nas imagens veiculadas produz um medo e uma projetividade paranoica: “não vai ser eu que vou ficar olhando indiferente para essa brutal inversão de valores, e não me venha com essa babaquice de homofobia” (IN 10).
Aqui, a pessoa se coloca em posição defensiva: ‘babaquice de homofobia’, e tenta eliminar a contra-argumentação. Porém, é elu que se utiliza da expressão para conferir ao seu discurso o tom que se nega a aceitar como seu, denunciando-se. Como afirmam Adorno e Hokheimer (1985): “o indivíduo obcecado pelo desejo de matar sempre viu na vítima o perseguidor que o forçava a uma desesperada e legítima defesa” (p. 154). Os autores se referem àqueles que enxergam u outre em posição de ameaça e despejam sobre elu sua fúria, mas não reconhecem o aspecto projetivo mobilizador deste ataque. Tal aspecto aparece com ainda mais ênfase na categoria seguinte.
Elementos projetivos
A questão não é se “ele” é um bom pai ou não. A questão é que querem criar uma narrativa, aonde o homem - trans supera o homem hétero. Construir para desconstruir. Em uma sociedade que já é violenta com racismo, exclusão social e agora, “conflito de masculinidade”. (IN 14)
No comentário, Thammy é referido pelo masculino, no entanto, entre aspas, o que sugere ironia quanto a esta identidade, colocando sob suspeita sua real intencionalidade. Mais à frente, o internauta alega que há uma iniciativa que busca a superação do “homem hétero” pelo “homem-trans”, também de base projetiva paranoica. Outrossim, elu infere que a ação publicitária causa conflito de masculinidade, o que também sugere um processo projetivo, já que na campanha não se discute a masculinidade e sim a relação entre pais e filhos. Além disso, há uma confusão entre as categorias gênero e sexualidade. Similarmente, vemos esse processo: “a Natura está dando tiro no pé. Colocando trans para fazer propaganda do Dia dos Pais. Campanhas onde destacam apenas pessoas negras. Todas as raças importam. O racismo vem em dar importância a apenas uma” (IN 12).
O elemento projetivo se sobressai quando e internauta coloca negros e transsexuais em posição de destaque. Ao utilizar a premissa de que “todas as vidas importam” para justificar seu repúdio, elu expressa sua contradição por não aceitar a presença de pessoas diferentes de si mesmo, e não chega a suspeitar do racismo inerente às campanhas em que atuam apenas pessoas brancas. A existência de campanhas que explorem, ainda que de modo ínfimo, a diversidade aparece ao interlocuter como ameaça e por isso a adesão delu a um boicote para “defender” seu espaço.
Para Adorno e Horkheimer (1985) a projeção “está automatizada ..., assim como as outras funções de ataque e proteção, que se tornaram reflexos.” (p. 155), ela é um mecanismo inerente à condição humana, em que a percepção do exterior é um reflexo do que há na pessoa e a partir da visão da Psicanálise, se caracterizaria pela transferência dos impulsos subjetivos - socialmente condenados - para o objeto. No entanto, devido à pressão do supereu, o eu projeta para o exterior os impulsos do isso, que são interpretados como uma ameaça para ele mesmo (Antunes, 2014). Nos estudos sobre a Personalidade Autoritária, esse mecanismo é definido por Adorno (2019) como: “A disposição para acreditar que coisas tresloucadas (wild) e perigosas acontecem no mundo; a projeção para fora de impulsos emocionais inconscientes” (p. 135). Ao livrar-se dos impulsos que não admite como seus, a projeção atua para preservar o eu. Ela surge em conexão com a agressividade autoritária e ocorre quando se insiste que alguém possui uma intencionalidade hostil, mas essa suspeita não tem amparo na realidade. A configuração contraditória presente nas afirmações du IN 14 e du IN 12 revela a existência de constructos imaginários sobre um poder excessivo du inimigu escolhide (Antunes, 2014). Aqui aparece uma preocupação com a existência de eventos geradores de medo de aniquilação, que na verdade revelam seus próprios anseios inconscientes tanto de sexualidade, quanto de destrutividade, que está mais enfatizada na categoria a seguir.
Elementos de destrutividade
“P. Devo boicotar a Natura? R. Só depois de boicotar o SUS por operar transgêneros”. (IN 15)
A Natura errou ao politizar o Dia dos Pais, escolhendo uma mulher como protagonista de sua propaganda. A publicidade da empresa demonstra despreparo e desconexão com o momento vivido no país. - Aos ofendidos, cabe, sim, boicote. Lembrando que a BODY SHOP também pertence ao grupo. (IN 16)
Os comentários desta categoria possuem, de modo mais direto, uma configuração de levante ao boicote e uma convocação à destruição, não somente da marca, mas de outras empresas e instituições que dão algum espaço a pessoas consideradas indignas5. Eles revelam ressentimento e sentimento de privação, por acreditarem que aquelu que é considerade um bode-expiatório frauda e goza de direitos que lhe são negados. Essa contradição remonta aos escritos de Adorno (2019) sobre o preconceito como um sintoma resultante de um conflito. Esse conflito em nosso estudo é gerador de desconforto e parece se encontrar num impasse entre os anseios psicológicos, o estereótipo e sua experiência concreta.
Segundo Adorno (2019), a agressividade, efeito da frustração das necessidades e satisfações do eu, é deslocada para pessoas do outgroup. No entanto, a manifestação desses impulsos agressivos “raramente são expressos com total franqueza pelos adultos, mas devem, em vez disso, ser suficientemente modificados, ou pelo menos justificados, para que sejam aceitáveis para o eu” (p. 155). Direcionar agressividade e destrutividade através das redes sociais a uma marca que escolheu um homem trans para participar de sua campanha publicitária, parece ser um eufemismo para a verdadeira intencionalidade de apagamento da identidade de gênero, da existência e dos lugares de potencial ocupação dessa pessoa.
Preocupação com o sexo
Aqui os discursos remetem às funções anatômicas ao enquadramento da paternidade: órgãos sexuais são argumentação para sustentar a rejeição de um homem trans à campanha. Útero, seios, pênis ou “pau” integram o apelo (ir)racional construído em desqualificação à identidade de gênero, sucumbindo à distinção meramente biológica e binária entre os sexos como justificativa do preconceito explícito.
No comentário du IN 22: “como posso comprar presente para meu pai na @NaturaBrasil, se não conseguiram achar um homem para o comercial do Dia dos Pais?”, há um protesto: apenas nascides com características consideradas anatomofisiológicas masculinas poderiam representar o paterno. Elu sugere inabilidade em suportar o que não atende aos seus critérios rigidamente estabelecidos. A demasiada obsessão com a diversidade nos modos de viver a sexualidade foi encontrada também na pesquisa sobre a personalidade autoritária. Ali, como aqui, o sentimento de ódio apareceu destinado àquelu que, ao viver sua sexualidade, confronta princípios e valores fortemente arraigados de quem parece ter sofrido repressão neste campo. Contudo, todo o arsenal emotivo tenderia a se concentrar, na verdade, em elementos muito mais intensos e conectados com os próprios anseios inconscientes da própria sexualidade, que outrora reprimidos, agora ameaçam sair de sua esfera de controle. A partir disso, o discurso abaixo mostra o pavor du internaute:
“#BoicoteNatura! Compre ou venda Jequiti e outras marcas que não fazem apologia glbt, (sic) mas não compre ou venda Natura. Nossas futuras crianças irão agradecer. Elas não precisarão viver num hospício de anomalias sexuais”. (IN 17)
A expressão “hospício de anomalias sexuais” mistura as ideias de doenças, identidades e modos de expressão da sexualidade não-hegemônicas como pertencentes ao mesmo campo. Ela reflete a combinação de preocupação exacerbada com sexo e pensamento estereotipado que servem de base para o preconceito. O discurso de patologização de identidades LGBTQIA+ foi amparado pela ciência através de manuais como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e pelo CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde) - que descreveram doenças e seus códigos utilizados e aceitos internacionalmente por profissionais de saúde (Bento & Pelúcio, 2012). O DSM-5, versão mais atualizada do manual, lançado em 2013, substitui “Transtorno de Identidade de Gênero” por Disforia de Gênero, apontando uma condição. Em 2019, a OMS (Organização Mundial de Saúde) retirou a transexualidade da classificação de transtorno mental na 11ª versão do CID6. Mesmo após estas alterações, ainda ocorre a continuidade de um discurso que se ampara na patologização dos comportamentos “a partir do pressuposto heterormativo, que exige uma linearidade sem fissuras entre sexo genital, gênero, desejo e práticas sexuais” (Bento & Pelúcio, 2012, p. 572).
A fundamentação em supostas ideias científicas promove estigmas e desconhecimento e fomenta posturas deterministas:
se Tammy retirar os seios, será uma mulher sem seios. Se tirar o útero, será uma mulher sem útero. Se tiver barba, será uma mulher de barba. Num momento em que todos dizem que tem que ter comprovação científica. Tammy, cientificamente, é mulher! (IN 23)
O gênero é negado às pessoas trans, definidas a partir do sexo biológico, tendo em vista a unificação da sexualidade com o gênero, simplificada com uma expressão performática e unilateral. A limitação acontece mediante a dificuldade de compreensão e significação a respeito das representações de gênero para além da perspectiva sexual, sob uma ótica biopsicossocial.
É possível perceber ainda a presença de um teor de humor e/ou sarcasmo quando internautas utilizaram a tag #boicotenatura escrevendo comentários que colocam em xeque a identidade de Thammy enquanto homem trans, apontando para as condições anatomofisiológicas, no entanto seus tweets não se limitaram a citar o sexo como fator “impeditivo” para o reconhecimento da identidade de Thammy como pai. Percebe-se que, por meio do sarcasmo e ironia, a finalidade do comentário não se resume à negação da identidade, mas inclui provocação ao riso e ridicularização de Thammy e da Natura:
A Natura sai na frente e lança a campanha para o dia das mães de 2021, só não mandaram o valor dos produtos ainda porque esse será mais de R$ 100 paus! (IN 57)
Só compro Natura quando nascer as bolas da Thammy. (IN 58)
Esses comentários são analisados na categoria a seguir.
Humor e ironia
“100 paus” tem duplo sentido: faz referência ao valor dos produtos da marca, e a ausência do órgão genital masculino. Sigmund Freud em “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905/1980), explorou o papel dos chistes na economia psíquica. Segundo o autor: “As palavras são um material plástico, que se presta a todo tipo de coisas. Há palavras que, usadas em certas conexões, perdem todo seu sentido original, mas o recuperam em outras conexões” (1980, p. 22). O chiste é considerado por Freud uma formação psíquica do inconsciente que destaca as dimensões do sentido e do desejo existentes na sua produção pelo sujeito (Morais, 2008).
O jogo de palavras daquelus que se manifestam em tom de “brincadeira” revela uma aderência ao boicote que não se faz pela via do reforço a posições conservadoras e destrutivas a priori, mas que utiliza do sarcasmo para lidar com a dificuldade em aceitar a diferença, tratando-a com escárnio. Us internautas empregaram o que Freud (1980) chamou de técnica de condensação ao trocar o “sem” que denotaria ausência por “100”, que tanto indica uma quantidade/valor, como soa oralmente no sentido de ausência.
IN 60 é explicitamente irônice: “TODO MUNDO É OBRIGADO A ACEITAR TAMMY MIRANDA COMO O PAPAI QUERIDINHO DO ANO!!!”, ao mesmo tempo as letras garrafais indicam fúria. A ironia enquanto técnica de chiste, segundo Freud (1980):
consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra pessoa, mas poupando a esta uma réplica contraditória fazendo-lhe entender - pelo tom de voz, por algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está envolvida) por algumas pequenas indicações estilísticas - que se quer dizer o contrário do que se diz. (p. 113)
No mesmo sentido, IN 63 apontou outra pessoa da comunidade LGBTQIA+ de destaque na mídia, para condicionar uma “aceitação” cujo tom irônico revelou seu próprio incômodo: “só vou concordar com essa da Thamy se as mães concordarem em colocar a @familiavittar #pablovittar como “garota propaganda” do dia das mães.”
A ironia continua na referência ao homem trans como “transformer” pelu IN 62:
“Não tenho nada contra a Tammy. Se não prejudica ninguém, cada um pode ser feliz do jeito que gosta. Mas a lacradora Natura é ridícula! Utilizar um Transformer para homenagear o Dia dos Pais”. (IN 62)
O uso do termo “Transformer” sugere uma referência ao ser trans, ao mesmo tempo que faz alusão ao não natural, artificial e robótico, assim como é retratado na franquia cinematográfica Transformers7. Do mesmo modo, u IN 61 se referiu ao Thammy como “HomemFake” e apontou para a negação dele como pessoa. Jesus (2013) aponta que pessoas trans são vistas como seres abjetos e por isso não humanos, pelo fato de não serem compreendides dentro dos padrões hegemônicos de gênero - o chamado binarismo - e de sexualidade. Desta forma, a relação realizada entre ser trans e ao robótico confere o tom de ser não humane.
Base político-econômica
O controle social, efeito da evolução tecnológica, promoveu um extenso processo de administração da cultura, do que resulta o arrefecimento de esquemas de pensamentos dentro de uma mesma lógica de padronização. Adorno (2019) encontrou em sua pesquisa a tendência de identificação das pessoas preconceituosas às ideologias partidárias conservadoras e pessoas que não apresentaram tendências preconceituosas aos ideais partidários liberais8. Os comentários aqui apresentaram uma distinção semelhante na divisão entre conservadores e liberais em tweets que relacionaram pessoas que se manifestaram contra a campanha como conservadoras: “Mano esses bolsominions divulgam as marcas mais do que os publicitários” (IN 53), mostrando como essa divisão tem se tornado lugar comum.
Postagens discordantes apresentavam-se abertamente à direita:
Toda crítica e até meras opiniões contrárias aos ideais progressistas e do politicamente correto já são considerados “ataques” e logo são rotulados com algum tipo de definição criminosa. É simples: não representou nem a mim, nem aos meus pares - BOICOTE!” (IN 55)
Além disso, a ideologia política de esquerda apareceu colada a qualquer um que apoiasse e defendesse a campanha: “Que somente os esquerdóides comprem dessa empresa doente. Que vá a falência” (IN 54).
Analisando o pensamento político a partir de sua constituição formal, é possível perceber uma tendência a confundir o conhecimento político com opinião. A ignorância e a confusão tendem a assinalar as postagens tanto dus que não apresentam preconceito, quanto dus que se mostram preconceituosus, contudo, mais evidentes nus últimus.
O “anti-intelectualismo” e um “otimismo oficial” (Adorno, 2019, p. 345) fazem as pessoas com tendência ao preconceito se apresentarem mais propícias à “ignorância e à confusão”. Isso porque há uma predisposição a “excluir aquele tipo de análise crítica das condições existentes da qual depende o julgamento político racional” (p. 345), como é possível identificar no tweet du IN 55 acima. Nota-se nele uma tendência a perceber o mundo de forma superficial, negando aprofundar-se racionalmente nos elementos da realidade.
Outro aspecto que sugere propensão à ignorância e confusão dentro do segmento político por pessoas com tendências preconceituosas é a predisposição à praticidade e à não emocionalização, o que compõem distanciamento, pouco engajamento com o conteúdo em si e desinteresse que culmina em uma busca pouco fidedigna por conhecimento político. A ignorância e a confusão atreladas ao funcionamento da dinâmica política sugerem uma experiência de angústia, que se remete às vivências da infância (Adorno, 2019, p. 355). Para administrar tais sentimentos, ocorre a construção de estratégias que concedam alguma orientação à pessoa e por mais rude que possa parecer, esta é uma forma de lidar com algo de difícil compreensão. Como estratégia de compreensão para o “não-compreensível” duas ferramentas originárias de repetições de esquemas infantis são empregadas, a estereotipia e a personalização.
Nos estágios iniciais do desenvolvimento, ideias dicotômicas fazem parte do imaginário, como por exemplo, “bem e mal”, e servem como edificações para organizar e compreender a realidade confusa na qual somos inseridos. Adorno (2019) apontou que “mesmo os estereótipos da criança já trazem a marca da experiência atrofiada e da angústia” (p. 356). Isso incide sobre a realidade desordenada do mundo, bem como no impacto sofrido a partir das “fantasias de onipotência da primeira infância” (p. 356). Os estereótipos que carregamos funcionam tanto como vestígios da experiência quanto instrumentos que auxiliam a dinâmica psíquica. Os elementos traumáticos que agem em obstrução ao efeito da realidade também funcionam como um meio de adaptação. A partir disso, surge a oportunidade ideal para que os esquemas infantis de estereotipia e personalização entrem em cena. O processo de racionalização política utilizado pelas pessoas que já possuem uma configuração de informação frágil e confusa são, na verdade, “reavivamentos compulsivos de mecanismos irracionais nunca superados durante o crescimento infantil” (p. 357).
Nos conteúdos dos tweets, percebemos esse movimento também quando us IN 52 e 54 utilizam os termos “ESQUERDALHA” e “esquerdóides”, eufemismos que se remetem à ‘“gentalha” e “debiloides”, numa sugestão de que liberais são necessariamente de esquerda, pessoas de “baixa categoria” ou “deficientes mentais”. Já u IN 53 usa o termo “bolsominions”, para aquelus que se colocam de forma preconceituosa para com as pessoas trans, ou seja, os termos utilizados nomeiam na verdade indicativos de ameaças que pertencem à própria história e que, de algum modo, foi aludido pela campanha, demonstrando a conexão existente entre aquilo que é opinião socialmente condicionada e os determinantes psíquicos individuais.
Defesa da empresa e/ou de Thammy
Ao discutir sobre us não preconceituosus, Adorno sugere que elus têm um acentuado “senso de justiça” (Adorno, 2019, p. 325), empatia ao oprimide, e atitudes de reparação de situações percebidas como injustas. Isso não estaria pautado em mera ideologia superficial introjetada ou em uma forma narcísica de autogratificação pela ação humanizada frente à outre, mas é algo que possui uma base real na personalidade (Adorno, 2019). Dentre os tweets que se mostram em defesa da marca e de Thammy Miranda encontramos alguns traços da busca por reparação através de uma ação tangível - estímulo à compra dos produtos da Natura - e por uma defesa de um lugar na TV aberta para a expressão da paternidade de Thammy como forma de representação do amor e do respeito ao próximu a fim de amenizar o linchamento virtual sofrido.
No tweet “Hoje em dia as pessoas não tentam nem esconder o preconceito exacerbado, e pior ainda são as justificativas pra tais atitudes. Vamos comprar presente da Natura sim, porque o amor e o respeito ao próximo, devem brilhar na televisão” (IN 48), é apontado que a expressão do preconceito existe, mas enseja atitudes que mudem essa lógica e desejam fazer algo sobre - ainda que apoiar o capital não seja de fato uma saída verdadeira. Adorno (2019) chama a atenção para a ausência de fatalismo dus não preconceituosus, por não terem interiorizado as ideias de inevitabilidade da maldade humana ou a constância de qualquer traço de caráter. No entanto, essa constatação não us leva a um “otimismo oficial” como afirma Adorno (2019), mas us torna cônscies sobre as perseguições que podem ocorrer, o que aparece, no entanto, como surpresa u IN 41:
fui procurar sobre o que era a tag #BoicoteNatura e to chocada com o tom agressivo que as pessoas estão usando para problematizar o thammy gretchen -um pai presente- ter sido escolhido para participar da campanha de dia dos pais [sic].
Grande parte dos tweets contra a campanha sedimentaram seu argumento no bloco anatomofisiológico do sexo feminino e masculino para delimitação de papéis sociais e familiares. A partir da percepção de tal racionalização, algumes internautas se mobilizaram, elaborando um caminho de contra argumentação que combatesse este pensamento fortemente arraigado. No entanto, a forma de produzir essa reflexão encontra compatibilidade com a mesma forma de enxergar o mundo - a partir de blocos - daqueles que propõem o boicote: “Deus também não tem pinto, e você chama ele de Pai, né?” (IN 29).
Adorno e Horkheimer (1985) afirmaram que “a humanidade continua dividida em um pequeno número de blocos armados. Esses blocos competem entre si mais desapiedadamente do que jamais o fizeram”(p. 168). Os autores abordaram que a oposição das ideias propostas nos blocos apresenta na verdade mentalidades que se diferem em conteúdo, mas que se assemelham em sua forma e que, ao final, não necessariamente representam um posicionamento crítico, voltado para o esclarecimento, que nos remete ao que Adorno e Horkheimer conceituaram de pensamento de ticket (1985) - uma forma de perceber o mundo mediante um esquema dotado de sentidos heteronomamente concedidos. Este modo de configurar o pensamento é interpretado pela pessoa como algo coerente, contudo, são na verdade profundamente contraditórios, pois se relacionam à estereotipia e à personificação, que por sua vez dizem sobre uma forma de pensamento por padrões.
Nos comentários em defesa, também foi possível perceber a incidência de destrutividade, além de teor agressivo, debochado, projetivo e com preocupações com sexo, semelhantes aos tweets que agiram em combate a campanha: “@PastorMalafaia vai sefude vlw...#BoicoteNatura #BoicoteMalafaia e melhor” (IN 35). “Por trás desse sujeito querendo boicotar a @naturabroficial, tem um ânus que pulsa na velocidade da luz” (IN 51).
Pessoas sem manifestação de comportamento preconceituoso podem parecer mais racionais do que pessoas preconceituosas, “pelo fato de seu julgamento parecer menos determinado por fatores inconscientes reprimidos, elus são simultaneamente menos bloqueades em relação a investimentos positivos e a expressão deles” (Adorno, 2019, p. 323), isso decorreria da estrutura psíquica geral e das atitudes perante às minorias. Enquanto pessoas preconceituosas demonstram ódio, elus demonstram genuína empatia, mesmo que seus comportamentos sugiram julgamento simplista. Assim, o que conecta “essa empatia e a racionalidade é a ideia de justiça” (p. 323):
E digo mais: Não quer Natura? Compra da Avon! (alto grau de deboche) Gente estúpida! Muda o que na vida? Vai mudar, por exemplo, a realidade de 5 milhões de crianças brasileiras sem registro paterno, quem sabe? Calem a boca! Mané #BoicoteNatura o quê… Vão carpir um lote!” (IN 45)
No entanto, no estereótipo político partidarista manifesto nos comentários du IN 44 “Uma breve navegada pela tag #BoicoteNatura e fiquei com ânsia de vômito. Impressionante como os bolsominions conseguem se superar” e du IN 24 “Se os direitistas resolverem boicotar tudo que é contra eles, irão boicotar o pastel, o liquidificador, o lençol, a árvore, o telescópio...”, é possível perceber a utilização do Ticket “bolsominion” - uma associação dus internautas de comportamentos preconceituosos contra minorias à base política conservadora. Além disso, observa-se um processo de “coisificação” da experiência, em que a lógica foi de evocar objetos de uso cotidiano, possivelmente desenvolvidos por pessoas LGBTQIA+ para ancorar o argumento em defesa da campanha e da paternidade trans, buscando mostrar o valor e a utilidade que elas podem ter no dia a dia. Embora a pretensão du IN 24 seja de defender, o ponto alto da retórica está na generalização de que o ato de rejeição ou de aceitação de algo ou de alguém se dá pela lógica utilitarista - aqui reforça-se a concepção de enxergar as relações da sociedade a partir da objetificação, característica corriqueira da civilização industrial avançada, sugerindo com Herbert Marcuse (1964/2015) a incidência de um “caráter irracional de sua racionalidade” (p. 47) onde o reconhecimento de si se faz na mercadoria transformando o mundo objetivo em “uma extensão do corpo e do espírito”.
Considerações finais
Não pretendemos encaixar os discursos de modo a criar estigmas limitando a experiência concreta, tampouco os sujeitos envolvidos de forma a diagnosticá-los - até porque preconceito não é considerado patologia e representa a expressão de comportamentos de uma adequação social “bem-sucedida”. No entanto, foi possível discutir, com base nas categorias encontradas, elementos sociais e psicológicos envolvidos no episódio de linchamento virtual, que revelam as contradições presentes neste momento histórico e social que vivemos.
Apesar de termos encontrado sete categorias na análise, elas se comunicam e em um mesmo comentário é possível encontrar elementos de outras categorias, assim, não existem categorias puras. Também é possível perceber que os argumentos utilizados para se contrapor à campanha se amparam em modos de racionalização bastante semelhantes. Us internautas tendem a reproduzir uma racionalidade simplista, analisando os fatos a partir de sua própria ideologia, onde tudo o que é, num contexto social, configurado como disfuncional é emparelhado a uma personificação, impedindo que elu tome de fato contato com a situação em sua complexidade.
Foi possível perceber aproximações entre as categorias observadas no discurso e elementos dos ‘Estudos sobre a personalidade autoritária’ (Adorno, 2019). É necessário destacar que, mesmo com as aproximações realizadas entre a obra e o estudo realizado aqui, há que se considerar o contexto histórico e social. Além disso, vale apontar que a marca que se utilizou de uma pessoa trans em sua propaganda também o fez em meio aos ditames e necessidades sempre ampliadas do sistema capitalista - sua visibilidade e lucro aumentam na medida em que têm seu nome amplamente disseminado em hashtags nas redes, independente do conteúdo das mensagens que acompanham. Mais do que uma mensagem progressista em termos de visibilidade, a campanha da marca mantém a lei do valor ao se apropriar de imagens que se remetem às pautas e movimentos sociais que dizem respeito às necessidades de libertação e emancipação, utilizando-as para perpetuação do sistema que também violenta as pessoas LGBTQIA+.
O contexto em que a campanha publicitária ocorreu também reflete no episódio estudado, pois, em julho e agosto de 2020, atravessávamos a pandemia de Covid-19. As medidas restritivas de distanciamento social aumentaram o uso da internet como ferramenta de lazer, trabalho e socialização. No contexto político brasileiro, o Presidente da República eleito em 2018 proferiu declarações de cunho homofóbico, misógino e racista, baseando-se em um discurso conservador e antidemocrático em redes sociais, como o Twitter. Nosso maior intento, para além de explorar os traços possíveis de personalidade autoritária presentes nos comentários que vieram à público em tal circunstância, é contribuir com o ato reflexivo sobre o que circunda e fundamenta as atuais relações. É lastimável e preocupante que a sociedade, com os avanços científicos e tecnológicos, consinta com manifestação e disseminação do discurso antidemocrático.
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1
NATURA BRASIL. Dia dos pais. (2019). [Web page]. https://www.natura.com.br/dia-dos-pais
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2
Narcotráfico; política exterior; eventos políticos passados do país; manifestações contra ações do STF (Supremo Tribunal Federal); movimentos de cancelamento, boicote e xingamentos direcionados à outra pessoas públicas e empresas; propagandas; frases cujo sentido eram incompreensíveis; notícias sobre a campanha publicitária; redirecionamentos para outras páginas com conteúdos diferentes da campanha e do tema; vídeos; tweets sobre homossexualidade animal e manifestações de ironia sem um posicionamento específico por parte do interlocuter.
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3
Essa descrição visa a uma compreensão didática, contudo, não busca estabelecer limites sobre identidades não hegemônicas.
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4
https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html
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5
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem por premissa o acolhimento universal, logo, de todas as pessoas, sem distinção de gênero, sexualidade, raça e classe social.
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6
Transexualidade não é transtorno mental, oficializa OMS. https://site.cfp.org.br/transexualidade-nao-e-transtorno-mental-oficializa-oms/30#:~:text=A%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Mundial%20de%20Sa%C3%BAde,Problemas%20de%20Sa%C3%BAde%20(CID)
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7
Transformers é uma série de filmes de ficção científica baseada nos brinquedos da linha homônima da empresa Hasbro. https://pt.wikipedia.org/wiki/Transformers_(s%C3%A9rie_de_filmes)
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8
Em Estudos Sobre a Personalidade Autoritária, Adorno cita que “os altos pontuadores tendem a ser anti-Roosevelt e os baixos pontuadores pró-Roosevelt” (2019, p. 340). Franklin D. Roosevelt foi o 32° presidente dos Estados Unidos. Como político democrata, seus principais feitos foram o distanciamento dos moldes intervencionistas tradicionais da política militar dos Estados Unidos, reconheceu o governo soviético e deu origem à Lei de Segurança Social (1935), base da legislação trabalhista americana. Fonte: Franklin Delano Roosevelt. Britannica Escola. https://escola.britannica.com.br/artigo/Franklin-Delano-Roosevelt/482395
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Financiamento
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, com processo de número 88887.487418/2020-00
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Consentimento de uso de imagem
Não se aplica.
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Aprovação, ética e consentimento
Não se aplica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
02 Maio 2022 -
Revisado
22 Dez 2022 -
Aceito
23 Dez 2022