Resumo
O debate sobre os efeitos psicossociais do racismo ganha crescente presença no campo da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Consideramos que a manicomialização no Brasil tem ancoragem na colonialidade, configurando o manicolonial: a vinculação do significante negro à loucura. Visando investigar movimentos críticos, acompanhamos, de 2019 a 2021, na perspectiva metodológica da pesquisa cartográfica, dois coletivos antirracistas na Rede de Atenção Psicossocial do Município de São Paulo - Kilombrasa e Café Preto. O material colhido, em uma participação-observante das atividades; entrevistas e rodas de conversa com os profissionais, foi trabalhado na forma de fragmentos narrativos. A prioridade da experiência relacional, como racialização - enegrecer - e como experiência diaspórica - desnortear -, produz efeitos antirracistas e um resgate da radicalidade ético-política libertária da Luta Antimanicomial. Todavia, dessa vez, radicalizada como antimanicolonialidade: ressignificação do louco e do negro em um vaivém no Atlântico negro, em um pensamento da travessia contrário ao pensamento fixo, característico da manicolonialidade.
Palavras-chave:
Racismo; Saúde mental; Atenção Psicossocial; Loucura; Colonialidade
Resumen
El debate sobre los efectos psicosociales del racismo ha crecido en el campo de la Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Consideramos que la manicomialización en Brasil está anclada en la colonialidad, configurando el manicolonial: la vinculación del significante Negro a la locura. Con el objetivo de investigar movimientos críticos, acompañamos, de 2019 a 2021, en la perspectiva metodológica de la pesquisa cartográfica, dos colectivos antirracistas en la Red de Atención Psicosocial del Município de São Paulo - Kilombrasa y Café Preto. El material recogido, en participación-observante de las actividades; entrevistas y charlas con los profesionales, fue trabajado en forma de fragmentos narrativos. La prioridad de la experiencia relacional, como racialización (enegrecer) y como experiencia diaspórica (desnortar), produce efectos antirracistas y un rescate de la radicalidad ético-política libertária de la Lucha Antimanicomial. Sin embargo, de esta vez, radicalizada como antimanicolonialidad: resignificación del loco y del negro en un vaivém en el atlántico negro, en un pensamiento del cruce contrario al del pensamiento fijo, característico de la manicolonialidad.
Palabras-clave:
Racismo; Salud mental; Atención Psicosocial; Locura; Colonialidad
Abstract
The debate on the psychological consequences of racism is becoming more prominent in the field of Anti-Asylum Psychiatric Reform. We consider institutionalization in Brazil to be rooted in coloniality, defining manicolonial as a tie between the black signifier and madness. Aiming to investigate critical movements, from the methodological perspective of cartographic research, we followed two anti-racist collectives in the Psychosocial Care Network of the Municipality of São Paulo - Kilombrasa and Café Preto - between 2019 and 2021. The information gathered through observative participation of activities, interviews, and conversation circles with professionals was transformed into narrative fragments. The prioritization of relational experience as racialization - blackening - and diasporic experience - disorienting the north - produces anti-racist effects and a rescue of the liberatory ethical-political radicality of the Anti-Asylum Fight. This time, however, radicalized as antimanicoloniality: re-signification of the insane and the black in a black Atlantic passage, a crossing idea opposed to the fixed thought characteristic of manicoloniality.
Keywords:
Racism; Mental health; Psychosocial care; Madness; Coloniality
Introdução
O debate sobre a promoção da equidade racial por meio de políticas que intervenham nos efeitos psicossociais do racismo tem ganhado crescente presença no campo da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, produzindo a arguição das perspectivas teórico-metodológicas utilizadas na atenção à população negra e suscitando experimentações no campo técnico assistencial que valorizem as dimensões territoriais e culturais da população negra.
Na pesquisa de doutorado em Psicologia Social desenvolvida pelo primeiro autor deste texto (David, 2022David, Emiliano de Camargo (2022). Saúde mental e racismo: saberes e saber-fazer desnorteado na/para a Reforma Psiquiátrica brasileira antimanicolonial [Tese de Doutoramento em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/SP].), e orientada pela segunda autora, consideramos que a manicomialização no Brasil tem ancoragem na colonialidade, configurando o que chamamos de manicolonial1 1 Negritamos para fazer ver a distinção com o manicomial ao longo do texto e em todas suas variantes. , como vinculação do significante negro à loucura, na forma da periculosidade e inferioridade raciais (Fanon, 1979Fanon, Frantz (1979). Os condenados da terra. Civilização Brasileira.; Mbembe, 2018Mbembe, Achille (2018). Crítica da razão negra. n-1 Edições.).
De fato, o louco e o negro (e vice-versa) não foram criados desassociadamente. Pelo contrário, no Brasil, foram costurados pela afirmação da loucura e da criminalidade como atributo da raça negra, na forma da exclusão e da separação/morte: o racismo manicomial - manicolonial . Como aponta Achille Mbembe: ao outorgar “à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura: a da loucura codificada” (2018, p. 13). E Michel Foucault (2010Foucault, Michel (2010). Em defesa da sociedade: Curso no Collége de France (1975-1976). Martins Fontes.) considera que, tal como a loucura, a criminalidade foi pensada em termos de racismo, tornando possível a condenação à morte de um criminoso ou seu isolamento. Para o autor, o racismo “assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população” (p. 217).
Em contraponto a essa construção histórica, que afirma o branco e a razão como normas, convidamos ao desnorteamento e à afirmação da loucura e da negritude. Tal afirmação não deve estabelecer, no entanto, fixações. Ao contrário, tem desorientação afro-atlântica, logo movimento, promovendo a desabilitação do caráter eurocêntrico e racista da manicomialidade.
Felix Guattari (2000Guattari, Félix (2000). Caosmose: Um novo paradigma estético. Ed. 34.) considerou que “a psicose revela um motor essencial do ser no mundo” e aponta que não basta significá-la, é necessário ir além, topar a vertigem caótica da loucura (p. 99). Jean-Claude Polack e Danielle Sivadon (2013Polack, Jean-Claude & Sivadon, Danielle (2013). A íntima utopia: Trabalho analítico e processos psicóticos. N-1 Edições.) destacam a importância da liberdade não apenas para aquela(e) que é atendida(o), mas para quem cuida/atende. Liberdade das possíveis amarras na filiação/fixação em abordagens e linhas teóricas “para abrir, às vezes de modo iconoclasta, novos espaços de liberdade: pensar melhor, a um só tempo, os avatares da História e os impasses da Razão” (p. 17). Trata-se de afirmar a potência do desnorteamento epistemológico, desorientando a fixidez nessa ou naquela abordagem ou naquela(e) autora(or). Estar “desnorteado” - modo recorrente de falar do desatino e da loucura - como afirmação da diferença e da inflexão ao sul, sem perder a potência da diáspora.
Lélia Gonzalez (1988/2020bGonzalez, Lélia (1988/2020b). Por um feminismo afro-latino-americano. In Flavia Rios & Marcia Lima (Orgs.), Lélia Gonzalez, por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, intervenções e diálogos (pp. 139-150). Zahar.) identificou e propôs a categoria de “amefricanidade” como presença negra na América Latina ao longo de séculos na forma de resistência cultural e de organização social livre, como as revoltas e os quilombos: “reconhecê-la é, em última instância, reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o outro lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos” (Gonzalez, 1988/2020aGonzales, Lélia (1988/2020a). A categoria político-cultural de amefricanidade. In Flavia Rios & Marcia Lima (Orgs.), Lélia Gonzales, por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, intervenções e diálogos (pp. 127-138). Zahar., p. 138).
Franz Fanon (1956/2020Fanon, Frantz (1956/2020). Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. Ubu.), ao sinalizar que a manicomialização e a psiquiatria colonial eram/são ferramentas de alienação e aprisionamento, rompe com a instituição colonial e sua lógica e busca o desenvolvimento de tecnologias libertárias, desalienantes e revolucionárias de cuidado em saúde mental e de sociedade. Rachel Gouveia Passos (2019Passos, Rachel Gouveia (2019). Frantz Fanon, Reforma Psiquiátrica e luta antimanicomial no Brasil: o que escapou nesse processo. Sociedade em Debate, 25(3), 74-88. https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/article/view/2352
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) e Deivison Faustino (2020aFaustino, Deivison Mendes (2020a). A psiquiatria de Fanon. Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Frantz Fanon, o psiquiatra que articulou antirracismo e prática clínica. Folha de São Paulo. https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/psicologia/a-psiquiatria-de-fanon
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) têm demonstrado que tanto Frantz Fanon quanto Franco Basaglia denunciaram, na relação entre médicos e pacientes, “uma expressão colonial, em suas manifestações de violência e exclusão” (Faustino, 2020a, p. 3). Por isso, ambos, antimanicoloniais, propuseram uma clínica que não se abstenha da política, em momento algum, e que compreenda o sofrimento psíquico como efeito da colonialidade.
Na contramão da manicolonização, entendemos que a perspectiva antimanicolonial da/na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) se faz em dois movimentos: de forma desnorteada, pelo exercício contracultural no qual elementos da diáspora negra na América Latina possam ressignificar negritude e desrazão; de forma aquilombada, tomando os quilombos como metáfora viva da radicalização das relações nas diferenças (David, 2022David, Emiliano de Camargo (2022). Saúde mental e racismo: saberes e saber-fazer desnorteado na/para a Reforma Psiquiátrica brasileira antimanicolonial [Tese de Doutoramento em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/SP].).
Identificamos tais ideias-força - desnortear, aquilombar - encarnadas em algumas experiências, como as que cartografamos no estudo empírico da referida pesquisa, cuja análise foi privilegiada neste texto. Entre 2019 e 2021, acompanhamos três coletivos antirracistas - Kilombrasa, Café Preto e Aquilombamento das Margens - que desenvolvem suas ações junto à RAPS do Município de São Paulo e Grande São Paulo, visando caracterizar suas práticas e tendo como foco os processos de subjetivação engendrados nessas experiências.
As ações de cuidado em saúde mental, por se produzirem em ato, a partir de relações e afecções nos encontros entre os profissionais e os territórios, usuários, familiares, movimentos sociais, são lócus privilegiado para o acompanhamento da dimensão micropolítica do racismo e das estratégias antirracistas.
Optou-se pela perspectiva metodológica da pesquisa intervenção cartográfica, em uma direção participativa e inclusiva (Kastrup & Passos, 2013Kastrup, Virgínia & Passos, Eduardo (2013). Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, 25(2), 263-280.https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
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; Lourau, 1993Lourau, René (1993). Análise institucional e prática de pesquisa. Editora da UERJ.), recorrendo-se a diferentes procedimentos: participação-observante de atividades nos serviços de saúde mental ou em ações de formação com os profissionais da rede; realização de entrevistas e rodas de conversa com os profissionais dos coletivos sobre seus saberes e fazeres. Tais procedimentos foram realizados, em parte, na modalidade on-line em função da pandemia de covid-19. Os registros utilizados foram: audiogravações, anotações em diário de campo e registros fotográficos das atividades.
Na perspectiva cartográfica, busca-se “potencializar saberes até então excluídos” e “fazer aparecer o coletivo como experiência do comum” (Kastrup & Passos, 2013Kastrup, Virgínia & Passos, Eduardo (2013). Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, 25(2), 263-280.https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
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, p. 266). Ao ‘fazer com’ as experiências, a cartografia deixa-se afetar por elas, para que outros mundos possam ser criados nesse encontro (Rolnik, 1989Rolnik, Suely (1989). Cartografia sentimental: Transformação contemporâneas do desejo. Estação Liberdade.). O material colhido foi trabalhado na forma de fragmentos narrativos dando visibilidade aos jogos de força e subjetivação presentes nas relações raciais. A revisão da literatura descolonial e das relações raciais possibilitou conceitualizar as estratégias cartografadas. Duas das experiências pesquisadas, Kilombrasa e Café Preto, e dois efeitos de subjetivação são destacados neste texto: o primeiro, a subjetivação racializada, quando se privilegia a estratégia do letramento racial (Schucman, 2014Schucman, Lia Vainer (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Annablume.; Twine, 2004Twine, France Winddance (2004). A White Side of Black Britain: The Concept of Racial Literacy. Ethnic and Racial Studies, 27(6), 878-907. ) em Relação2
2
O termo Relação está grafado em maiúsculo quando tratamos do conceito proposto por Glissant (2005).
(Glissant, 2005Glissant, Édouard (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Editora UFJF.), num continuum processo de racializar para desracializar (Fanon, 1952/2008Fanon, Frantz (1952/2008). Pele negra, máscaras brancas. EdUFBA.); o segundo, a subjetivação diaspórica que privilegia o deslocamento, a travessia, ao contrário do pensamento fixo ou definido, na aposta do comum da diferença (Mbembe, 2018Mbembe, Achille (2018). Crítica da razão negra. n-1 Edições.). Nas duas estratégias, é a agudização e a arguição da experiência relacional que fazem frente aos sintomas psicoafetivos que atuam na manutenção da colonialidade.
Kilombrasa - racializar em Relação
O Kilombrasa é um coletivo de trabalhadoras(es) inter-racial e intersetorial da/na RAPS da Zona Norte e Noroeste do Município de São Paulo, que tem seu agente germinador nas discussões e ações antirracistas que passaram a ocorrer no Centro de Atenção Psicossocial Infanto juvenil (CAPSij) de Brasilândia, a partir de meados de 2010. Todavia, em 2019, é que a expressiva experiência da “1ª Feira Preta de Troca de Tempo” promove uma grande incursão da RAPS do território da Freguesia do Ó/Brasilândia com a temática étnico-racial.
Na Brasilândia, conhecida como “Brasa”, 50,6% dos 281.977 habitantes se autodeclaram negros, e a presença de mulheres é maior que a de homens, 52,1%. No que tange à oferta de emprego formal, o índice do território está entre os quatro menores do município, aspecto que impacta diretamente na baixa qualidade da habitação, no alto índice de evasão escolar e na baixa expectativa de vida. (Gomes et al., 2023Gomes, José Agnaldo, Paulo, Rodrigo Lucas, & Cordeiro, Carlos (2023). Brasilândia em contexto: delineamentos sociopolíticos em tempo de pandemia. In Eliza Zaneratto Rosa et al. (Orgs.), Do Brasil à Brasilândia: Desmontes e resistências no contexto da pandemia covid-19 (pp. 69-88). Educ.).
No Kilombrasa, as relações raciais deixam de ser discutidas apenas no CAPSij e ampliam-se, atingindo profissionais de outros serviços e extrapolando o território da Freguesia do Ó/Brasilândia.
O CAPSij Brasilândia, baseado nas propostas do Banco de Tempo de Coimbra, realiza, desde 2017, sua Feira de Troca de Tempo! A proposta é simples e horizontal: tempo por tempo e todas as horas têm o mesmo valor. A intenção primeira é subverter a lógica do capital, onde tudo subjetivamente (e intencionalmente!) é valorado. Na feira, a troca, a doação, as permutas ditam o caminho dos afetos, encontros e toda produção de vida3 3 Trecho do texto elaborado pelas(os) trabalhadoras(es) do CAPSij, enviado ao Prêmio Edna Muniz 2019, que buscou valorizar experiências que promovessem equidade na oferta de ações de saúde para a população negra. . A seguir apresentamos um exemplo de como acontece a Feira Preta de Troca de Tempo;
com o avanço das discussões raciais, a gente propôs, em 2018, fazer a feira de troca de tempo com o empoderamento da população negra, chamando o maior número possível de pessoas negras, representantes de todos os setores da sociedade, e que a gente pudesse fazer um dia aqui, no CAPS, de encontro. Então, nesse dia, rolou roda de conversa, feijoada, samba, brincadeiras, um monte de coisa, foi um dia inteiro de evento. E teve bastante repercussão na rede. As pessoas... tiveram uma identificação não só com o tema, mas no corpo; de muitos profissionais contarem para a gente quanto que era difícil eles conseguirem sustentar o cabelo crespo. E depois de ver tanta gente de cabelo crespo no mesmo espaço, com vários penteados, eles... essas pessoas falaram: “bom, isso me deu força”. (Enfermeira de CAPSij que se autodeclara preta [grifo nosso])
De fato, se historicamente os modos de vida e as culturas negras foram (e são) rotulados como inferiores, criminalizados, estigmatizados e objeto de inúmeras tentativas de impedimento dos seus exercícios, propô-los psicossocialmente é intervenção em saúde mental antirracista, pois colabora com os processos de descolonialização do saber e do poder. Mas, a antimanicolonialização não deve se limitar à oferta de intervenções em saúde mental fruto das tradições negras; mas deve se inscrever nos contraditórios jogos de forças que a afirmação dessa cultura, como elemento simbólico, pode promover perante as normatividades que organizam fixamente o “regime de inconsciente colonial-racializante-capitalístico” (Rolnik, 2018Rolnik, Suely (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. N-1 Edições.).
No próximo relato, identificamos os desafios relativos aos processos de subjetivação que as relações raciais reivindicam.
Os manicômios, eles são verdadeiros navios negreiros, ele não é um holocausto, o movimento negro tem dito isso. ... E tem uma parte mais do sentimento, que, como a J. falou, não é fácil discutir as questões raciais, não é docinho, não dá para discutir os temas raciais de uma forma fofa...
Então é um jeito, um processo de enegrecer ou um processo de embranquecer, são processos doloridos. O processo da população branca olhar o seu privilégio e olhar o seu lugar nesse contexto racial também não é fácil. Então o grupo também é um espaço de a gente se acolher.
Então tem essa parte mais técnica, mais pragmática, da gente estudar mesmo, estudar a lei da [saúde da] população negra e fazer uma intersecção com a luta antimanicomial, mas tem também esse lugar que é mais de acolher mesmo, porque se a gente se acolhe entre a gente, a gente consegue acolher o usuário. (Enfermeira de CAPSij que se autodeclara preta [grifo nosso])
O exercício de saúde mental aquilombado parte do entendimento das leis e portarias específicas para a saúde da população negra, e visa transformações antirracistas na esfera da garantia dos direitos e da equidade. Essa articulação, por não ocorrer apenas no trabalho pragmático da conscientização de políticas e leis, aglutina-se aos regimes de afetação; nas palavras da trabalhadora, “parte mais do sentimento”, e costuma ser um processo dolorido. Essas exigentes experiências afetivas são acolhidas no coletivo, e esse acolhimento é compreendido como exercício de aquilombação e como princípio do cuidado antirracista.
Os dois próximos fragmentos abordam mais uma vez o processo da racialização e o tempo singular que ele exige - racializar para desracializar (Fanon, 1952/2008). Frantz Fanon inova ao tensionar os limites e as possibilidades de sociabilidades modernas marcadamente racializadas com o convite à racializar para desracializar: destituir o branco do lugar de suposto universal e o negro da suposta ontologia negativa.
No primeiro fragmento, uma profissional negra considera a delicadeza do processo de tornar-se negro.
O processo de enegrecer ele é um processo, o K. tem falado muito isso comigo, isso tem me ajudado, que é um processo subjetivo, um processo delicado e que leva tempo. Não está dado, é isso. Assim como não está dado para o branco se enxergar como branco, também não quer dizer que todo negro se enxerga como negro e aquilo está dado. (Enfermeira de CAPSij que se autodeclara preta [grifo nosso])
Neusa Santos Souza (1983/2021) dedicou-se a pesquisar e acompanhar clinicamente processos de subjetivação de negras(os) brasileiras(os) em ascensão social, trabalho que resultou no célebre livro Tornar-se negro (2021). No fragmento supracitado, a profissional de RAPS fala que o enegrecer seria um processo de subjetivação delicado e que não estaria dado. A percepção da trabalhadora dialoga com as concepções de Neusa Santos Souza (1983/2021, p. 46):
a descoberta de ser negra é mais do que a constatação do óbvio . . . Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.
A psicanalista toma a experiência do tornar-se negra(o) como um recriar-se em potencialidades, matéria-prima indispensável para negras(os), o que ela considerou um processo subjetivo de “real libertação” (Souza, 1983/2021, p. 46).
O Kilombrasa demonstra estar muito atento a esse recriar-se em potencialidade, fomentando e partilhando em seu grupo de mensagens instantâneas (WhatsApp) uma série de conteúdos que exaltam a beleza negra, que vão desde fotos das famílias das trabalhadoras, passeios, atividades culturais da cidade (ou virtuais) que abarcam a temática racial, trocas de poemas, receitas, músicas, filmes, entre outros.
Outra psicanalista negra, Maria Lúcia da Silva, reconhece que o movimento histórico sociopolítico-subjetivo do vir a ser negra(o) tem gerado, em muitas(os), identificação positiva com a negritude, mesmo perante o racismo estrutural, que busca aplacar esse movimento potente de identificação. Mas alerta: “enquanto a branquitude mantiver seus privilégios, invisibilizando tudo que é branco, também ela perde, não alargando seus horizontes” (SilvaSouza, Neusa Santos (1983/2021). Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Zahar. (Original publicado em 1983), 2021Silva, Maria Lúcia da (2021). Prefácio. In Neusa Santos Souza (Org.), Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (pp. 9-21). Zahar., p. 19).
Em continuidade, debruçamo-nos sobre a próxima narrativa, em que uma trabalhadora branca da RAPS vai reconhecendo a sua brancura e se perguntando o que essa condição racial produz (ou pode produzir) na luta antirracista na saúde mental.
é um grande desafio e eu acho que é importante estarmos todos juntos aqui nesse sentido de poder lidar com a racialização, porque ela existe, porque nós [brancos] temos isso que é hegemônico como o normal, natural e o que não é dessa hegemonia a gente entende como desvio. ... eu entendo que quem é branco não se liga nisso, não dá lugar, não dá conta e não se responsabiliza um tanto por isso, não é muito fácil. Então que a gente possa lidar com tudo isso, que a gente não está só para falar da questão do negro, a gente está para falar de relações inter-raciais e o que elas produzem. E quem está do lado mais hegemônico é coprodutor, mesmo que diga que não é. E o quê que a gente pode fazer como ações antirracistas? ... Eu preciso reconhecer o que eu sou, que lugar eu ocupo, o que eu reproduzo. (Terapeuta ocupacional de CAPSij que se autodeclara branca [grifo nosso])
Destacamos que logo de partida a profissional afirma a existência social das raças: “é importante estarmos todos juntos aqui nesse sentido, de poder lidar com a racialização, porque ela existe”. A partir daí, a trabalhadora pode avançar para a desconstrução da ideia manicomial que há na branquitude, a qual legitima o branco como normal e os demais grupos raciais como desviantes: “nós brancos temos isso que é hegemônico como normal, natural e o que não é dessa hegemonia a gente entende como desvio”. Esse lugar (branquitude) se baseia em uma hierarquização das raças, mecanismo de manutenção de privilégios para brancas(os) (Bento, 2002Bento, Maria Aparecida Silva (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In Iraí Carone & Maria Aparecida Silva Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo: Estudos sobre a branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-58). Vozes.; Schucman, 2014Schucman, Lia Vainer (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Annablume.).
Ao fazer o devido reconhecimento, a trabalhadora implica o seu grupo racial (branco) como parte atuante dos processos de descolonização do pensamento e convoca a análise inter-racial no/do Kilombrasa: “o que a gente [branco] pode fazer como ações antirracistas? Eu preciso reconhecer o que eu sou, que lugar ocupo, o que eu reproduzo”. Lembrando que um dos sintomas da branquitude é tomar a discussão racial como uma questão exclusiva de negras(os) e para negras(os) e desconsiderar os efeitos psicossociais do racismo sobre as(os) brancas(os) (Bento, 2002Bento, Maria Aparecida Silva (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In Iraí Carone & Maria Aparecida Silva Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo: Estudos sobre a branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-58). Vozes.; Schucman, 2014Schucman, Lia Vainer (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Annablume.).
Seguindo essa direção crítica, recorremos ao estudo de Lia Vainer Schucman (2018Schucman, Lia Vainer (2018). Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor. EdUFBA.) que considera que a composição inter-racial não basta se não houver deslocamentos de ambas as partes (brancas[os] e negras[os]) da negação ou da fixação racial: “é exatamente a convivência não hierarquizada que permitiu ... se deslocarem de si e se colocarem no lugar deste outro, para depois, voltarem o olhar para si” (Schucman, 2018, p. 128).
A pesquisadora encontra nos afetos não hierarquizados pela raça um dos aspectos fundamentais para esse deslocamento e reposicionamento subjetivo nas relações inter-raciais:
os dois tiveram relações de afetos não hierarquizadas pela raça com não brancos e, ao mesmo tempo, sentiram-se em lugar de duplo pertencimento, ora privilegiados pelo fato de serem brancos, ora discriminados por estarem ao lado de negros. É importante perceber que a chave não está na convivência com os negros, nem na convivência pacífica, mas sim na convivência não hierarquizada. ... o que possibilita esta vivência não é a experiência positiva com o outro, mas sim o deslocamento de si para outra posição subjetiva, a de perceber a alteridade nem como inferior nem como superior ou mesmo com qualquer conteúdo a priori. É percebê-la apenas como alteridade. (Schucman, 2018Schucman, Lia Vainer (2018). Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor. EdUFBA., p. 128)
Essa posição à qual a autora nos convida é algo que, nesta pesquisa, compreendemos como atributo da desrazão-descolonial e como uma das chaves libertárias da aquilombação: “não estão na cor da pessoa as condições para uma postura antirracista, mas sim no reconhecimento dos privilégios da branquitude, na empatia pela dor do outro, na leitura cotidiana das práticas racializadas” (Schucman, 2018Schucman, Lia Vainer (2018). Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor. EdUFBA., p. 130). Isso não exclui a indispensável presença negra nesse processo relacional, assim como compreende a(o) branca(o) como parte elementar; por isso, falamos de relações inter-raciais nos processos de aquilombação.
Todavia, há uma grande questão: como operar essa ética inter-racial da aquilombação antimanicolonial em uma sociedade que, o tempo todo, hierarquiza simbólica e materialmente brancos e negros como opostos?
Schucman (2014Schucman, Lia Vainer (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Annablume.) considera que, por meio do letramento racial, a brancura pode demover-se da branquitude, adquirindo uma consciência dos privilégios conferidos pela brancura, reconhecendo a estrutura sociopolítica do racismo, e posteriormente se rever perante suas identidades raciais brancas, por fim, desidentificando a brancura de branquitude. Para definirmos letramento racial, seguimos com o diálogo que Schucman (2014) estabelece com France Winddance Twine (2004Twine, France Winddance (2004). A White Side of Black Britain: The Concept of Racial Literacy. Ethnic and Racial Studies, 27(6), 878-907.), que apresentou o conceito de Racial Literacy, termo que Schucman (2014) sugere ser traduzido como “Letramento Racial”:
“Racial Literacy” é um conjunto de práticas que pode ser melhor caracterizado como uma “prática de leitura” - uma forma de perceber e responder individualmente às tensões das hierarquias raciais da estrutura social - que inclui o seguinte: (a) o reconhecimento do valor simbólico e material da branquitude; (b) a definição do racismo como um problema social atual, em vez de um legado histórico; (c) um entendimento de que as identidades raciais são aprendidas e um resultado de práticas sociais; (d) a posse de gramática e um vocabulário racial que facilita a discussão de raça, racismo e antirracismo; (e) a capacidade de traduzir e interpretar os códigos e práticas racializadas de nossa sociedade e (f) uma análise das formas em que o racismo é mediado por desigualdades de classe, hierarquias de gênero e heteronormatividade. (Twine 2004Twine, France Winddance (2004). A White Side of Black Britain: The Concept of Racial Literacy. Ethnic and Racial Studies, 27(6), 878-907., p. 344 citado por Schucman, 2014Schucman, Lia Vainer (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Annablume., p. 172)
Anuímos às perspectivas de Twine (2004Twine, France Winddance (2004). A White Side of Black Britain: The Concept of Racial Literacy. Ethnic and Racial Studies, 27(6), 878-907.) e Schucman (2014Schucman, Lia Vainer (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Annablume.), que compreendem o letramento racial como uma importante etapa para o reposicionamento de sujeitos e grupos nos quais a branquitude faz exercício. Esse reconhecimento/análise dos diferentes aspectos que compõem o racismo e a branquitude exige Relação (Glissant, 2005Glissant, Édouard (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Editora UFJF.). Do contrário, teremos uma sociedade consciente da existência do racismo, que tomou posse de um almanaque de condutas antirracistas, contudo não fez relação íntima, não se tornou (subjetivamente) antirracista. Depreendemos que é nos jogos de força das relações raciais que esse conjunto de práticas ultrapassa a esfera da leitura, em direção ao vir a ser, esse desnorteamento do tornar-se quilombo.
A psicanalista Isildinha Baptista Nogueira (2021Nogueira, Isildinha Baptista (2021). A cor do inconsciente: Significações do corpo negro. Perspectiva.), em seus estudos sobre a significação social do corpo negro, reconhece que, na dinâmica das relações raciais, para o negro instauram-se as dimensões do distante, do afastamento, enquanto para o branco instauram-se gestos de proximidade, de adesão. Sabemos que esse afastamento relativo ao corpo negro não se limita às relações interpessoais, as instituições também protagonizam esse distanciamento - de espaço e tempo -, esta lógica de separação fruto do racismo estrutural (Rosemberg, 2017Rosemberg, Fúlvia (2017). Psicanálise e relações raciais. In Noemi Moritz Kon, Cristiane Curi Abud, & Maria Lúcia da Silva (Orgs.), O racismo e o negro no Brasil: Questões para a psicanálise (pp. 129-142). Perspectiva.). Dinâmica brutal para os cuidados em saúde mental, que, por sua vez, dependem de proximidade - afetação. Romper com essa lógica de distanciamento e desafetação que o racismo promove para com negras(os) é demanda descolonial na saúde mental.
Café Preto - vaivém diaspórico
A segunda experiência leva o nome de Café Preto, projeto que teve início em fevereiro de 2019 com trabalhadoras(es) e usuárias(os) do CAPS-Álcool e outras Drogas (AD) III, do bairro do Belém, Zona Sudeste da Cidade de São Paulo/SP. Esta região também possui alta concentração de população negra. O objetivo do Café Preto é planejar e desenvolver ações territoriais antirracistas em saúde/saúde mental que qualifiquem o cuidado da população atendida nesses equipamentos, em especial a população negra desses territórios.
Participam do Café Preto profissionais de distintas áreas da saúde. Essas(es) profissionais se reúnem com periodicidade quinzenal para discutir suas ações, compartilhar experiências e se acolher. Regularmente, há atividades formativas, em que as(os) integrantes recebem convidadas(os), leem textos, discutem teorias que subsidiem suas práticas. Algumas dessas formações são abertas para todas(os) trabalhadoras(es) e usuárias(os) da RAPS do território e acolhem também pesquisadoras(es).
As estratégias de cuidado são diversas: “onde estiver uma integrante do Café o Café está”. Para além dessa estratégia ampliada de ação, existem momentos grupais, ações psicossociais do Café Preto dentro dos CAPS Adulto e CAPS AD.
Instituir o Café Preto é constantemente desconstruir estereótipos negativos da identidade negra, levando em consideração as vulnerabilidades dos pacientes e as ferramentas clínicas que podemos usar e criar de forma compartilhada para dar-lhes suporte. Percebemos que a aquilombação (David, 2018David, Emiliano de Camargo (2018). Saúde mental e racismo: a atuação de um Centro de Atenção Psicossocial II infantojuvenil [Dissertação de Mestrado em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/SP].) precisa ser um processo longitudinal que transcenda inclusive a equipe facilitadora do projeto, abrangendo todos os demais profissionais4 4 Trecho do texto elaborado pelas(os) integrantes do Café Preto e enviado ao Prêmio Edna Muniz, 2019, que buscou valorizar experiências que promovessem equidade e integralidade na oferta de ações de saúde para a população negra. .
No fragmento narrativo a seguir, a médica que se autodeclara preta traz a desumanização característica da manicolonialidade e indica que o espaço do Café é agente de vida -lugar de existência -, que aplaca esse sintoma colonial e racista. Segundo a trabalhadora, o Café Preto promove uma dupla experiência: a primeira, política, de resistência ao racismo; a segunda, de caráter subjetivo, re-existência.
Para a gente talvez alcançar esse lugar não só de resistência, mas esse lugar de existência, porque é tão complexo tantas vezes ser desumanizado ... esse espaço do Café possibilita muito isso e é o que me manteve no CAPS esse tempo inteiro. (Médica de CAPS AD que se autodeclara preta [grifo nosso])
A psicóloga Clélia Prestes (2018Prestes, Clélia (2018). Ressignificação da identidade e amor como resistências à violência racial, em favor da saúde psíquica. In Maria Lúcia da Silva, Marcio Farias, Maria Cristina Ocariz, & Augusto Stiel (Orgs.), Violência e sociedade: O racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro (pp. 169-176). Escuta.) promove um diálogo conceitual entre Frantz Fanon e bell hooks a fim de demonstrar como os afetos amorosos são ferramentas potentes para ressignificar a desumanização que a colonialidade promove. No referido ensaio, a psicóloga compreende que, por vezes, nas experiências coletivas de resistência ao racismo, pode-se criar espaços e relações de cuidado. Espaços em que os afetos amorosos tenham campo para circulação, agindo como ferramenta político-social de combate às opressões, e, também, no enlace afetivo, promovendo autocuidado e relações ampliadas de humanidade: “no horizonte, resistência às violências, com ressignificação da humanidade e amor, em favor da saúde psíquica” (Prestes, 2018, p. 175).
Não à toa, a trabalhadora reconhece que o efeito humanizador da experiência do Café Preto foi o que permitiu sua permanência/manutenção como profissional do CAPS AD: “é tão complexo tantas vezes ser desumanizado; e esse espaço do Café ... é o que me manteve no CAPS esse tempo inteiro. Acho que realmente a gente está plantando uma semente muito importante com esse espaço.” (Médica de CAPS AD que se autodeclara preta)
Os frutos dessa semente à qual a médica se refere precisam ser espalhados. Nessa toada, destacaremos dois fragmentos que demonstram algumas das intencionalidades do Café, com o trabalho em equipe e na rede. A equipe do Café Preto discutira a necessidade de estratégias de manutenção e ampliação do debate racial junto aos demais integrantes do CAPS; dois meses depois, a equipe do Café começava a desenvolver uma estratégia de ampliação da temática para a RAPS do território: Coar Café.
O nosso grande objetivo como Café não é aquilombar a luta antimanicomial? Não é estar nesse espaço de uma forma que a gente consiga ampliar a pauta? Eu acho que os espaços abertos com a equipe são espaços muito importantes, sabe? Às vezes, pensamos em alternar; fazer uma vez com o Café e outra vez com a equipe. Mas acho que perder esse lugar aí, de fazer esse debate qualificado com a equipe, com as equipes, seria dar um passo atrás, que eu acho que pode prejudicar o Café. (Médica de CAPS AD que se autodeclara preta)
Nesse fragmento narrativo, fica evidente o trabalho da integrante do Café Preto de lembrar as(os) demais integrantes sobre o risco da “guetificação” desse grupo de trabalhadoras(es) antirracistas, o que os(as) levaria à cilada de discutir a questão racial apenas entre si e perder a relação nas diferenças. A médica assevera a importância do trabalho com o grande grupo de trabalhadoras(es) do serviço, não apenas aquelas(es) que compõem o Café Preto: “eu acho que os espaços abertos com a equipe são espaços muito importantes ... acho que perder esse lugar aí, de fazer esse debate qualificado com a equipe, com as equipes, seria dar um passo atrás” (Médica de CAPS AD que se autodeclara preta).
Emiliano David e Lidiane Silva (2018David, Emiliano de Camargo & Silva, Lidiane Aparecida de Araujo (2018). Territórios racializados: A Rede de Atenção Psicossocial e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. In Maria Lúcia da Silva, Marcio Farias, Maria Cristina Ocariz, & Augusto Stiel (Orgs.), Violência e sociedade: O racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro (pp. 169-176). Escuta.) apontam que, para as equipes de saúde/saúde mental do território estarem sensíveis e aptas para a escuta e o cuidado com os possíveis sofrimentos psíquicos advindos do racismo, faz-se necessária a permanente e continuada formação, mas não só, configuram-se fundamentais as diversas trocas/diálogos sobre a temática, não apenas nos espaços formativos e formais. O autor e a autora compreendem que essas trocas/Relação se dão no território, assim como se tornam agentes racializadores do próprio território.
Nesta pesquisa, consideramos atlântico esse movimento de alternar entre os grupos/equipes, que o Café Preto se propôs: “eu acho que os espaços abertos com a equipe são espaços muito importantes, sabe? Vamos fazer uma vez com o Café e outra vez com a equipe” [grifo nosso].
Essa abertura ao alternar, movimento atlântico, é antimanicolonial e dialoga com a proposta de pensamento mbembiano: é necessário “um pensamento em circulação, um pensamento da travessia, um pensamento-mundo” (Mbembe, 2018Mbembe, Achille (2018). Crítica da razão negra. n-1 Edições., p. 309), contrário ao pensamento fixo ou definido, adverso ao pensamento eterno e irrevogável, típico da colonialidade.
Com Édouard Glissant (2005Glissant, Édouard (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Editora UFJF.), compreendemos o risco do pensamento permanente de mundo, pois a errância colonial ocidental promoveu uma cultura de fixidez do/no território, uma imobilidade física e subjetiva. Na contramão da manicolonialidade, o Café Preto, ao navegar em Relação, ir e vir na diferença, põe-se no movimento de quebrar as paredes manicoloniais da raça e da psicopatologização. Assim, o Café Preto convocou a RAPS local à posição Todo-Mundo, essa posição subjetiva que quebra com a colonial e terrificante fixidez do território e intervém no sofrimento e na anuência desse negativo (Glissant, 2005).
Sabemos que aparentemente seria mais “confortável” dialogar apenas entre os seus, contudo o Café Preto não se limitou a esse suposto conforto colonial; afinal, tal fixidez não promove a descolonização subjetiva - a antimanicolonialidade . Logo, o Café Preto abriu-se para a Relação na diferença, ligando-se com as(os) demais trabalhadoras(es) do CAPS e da RAPS do território, movimento que nomearam Coar Café.
Esse tipo de movimento, que consideramos antimanicolonial, Glissant (2005Glissant, Édouard (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Editora UFJF.) chamou de “crioulização”, e o distingue da mestiçagem. Sabemos que o antimanicolonial é efeito da Relação, e o Café foi ao seu encontro crioulamente, “a mestiçagem é o determinismo, e em contraposição, a crioulização é produtora de imprevisibilidade. A crioulização é a impossibilidade de previsão. Podemos prever ou determinar a mestiçagem, mas não podemos prever ou determinar a crioulização” (Glissant, 2005, p. 106).
A aquilombação da Luta Antimanicomial é urgente; todavia, essa Luta Antimanicolonial é indeterminada, pois a crioulização é rizomática, não tem uma raiz única (Glissant, 2005Glissant, Édouard (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Editora UFJF.). Embora haja um protagonismo negro e de mulheres, essa luta é feita na Relação com a diferença. Como veremos à frente, o Coar Café visa ao descentramento do CAPS - sintoma da Reforma Psiquiátrica contemporânea que tem se configurado CAPS-Cêntrica.
A Luta Antimanicolonial, por sua vez, é radicalmente produzida a partir do território, e isso compreende comunidade, movimentos sociais (diversos), usuárias(os), familiares, trabalhadoras(es) da RAPS, pesquisadoras(es) etc. Conforme a integrante do Café Preto disse: “demais parceiros que não estão dentro da rede pública”.
Vejamos a enunciação desse movimento de abertura antimanicolonial no fragmento a seguir:
a nossa ideia é manter esse espaço aberto uma vez por mês. Então nós vamos ter três reuniões do Café por mês, e uma vez por mês nós vamos fazer uma reunião aberta do Café. Que é esse Coar Café. ... a nossa ideia é que, daqui para frente, a gente abra tanto para os parceiros da rede da RAPS quanto os serviços da assistência e demais parceiros que não estão dentro da rede pública. (Médica de CAPS AD que se autodeclara preta)
O Coar Café, em nosso entendimento, configura-se como uma dessas “diásporas imaginadas” (Butler & Domingues, 2020Butler, Kim & Domingues, Petrônio (2020). Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras. Perspectiva.), pois contribui para a reflexão, o debate e o estabelecimento de políticas públicas para a comunidade negra, ancoradas na construção e manutenção de solidariedades e lutas antirracistas, como projeto político radical de cidadania, direitos humanos e transformação subjetiva e social (Butler & Domingues, 2020). Nessa esteira, o trabalho, à luz das relações raciais no Sistema Único de Saúde e mais especificamente na saúde mental, consegue ultrapassar a questão do signo e trabalhar na experiência. O Coar Café convida ao ato, à práxis, e para isso é necessário fazer jus à metáfora, à imagem escolhida pelo coletivo de trabalhadoras(es) antimanicoloniais .
Que possamos ter recipientes que sustentem a água aquecida, mantendo sua alta temperatura; afinal, trabalhar as relações raciais, em rede, não é matéria fria ou morna. Que possamos ter filtro para remover o gosto amargo no lento processo de cocção; sem ele, não conseguiríamos digerir, sentir, saborear, pois iríamos lidar com a matéria bruta do grão ou do pó, e, no dia a dia das relações raciais, filtros são necessários, tanto na escuta quanto na fala e até mesmo no olhar. Que possamos aguardar, porém de perto e ativamente; afinal a conscientização e a transformação em torno dos processos de racialização, racismo e branquitude exigem paciência. Segundo Mônica Mendes Gonçalves (Gonçalves, 2021Gonçalves, Mônica Mendes (2021). Raça, racismo e saúde: entendendo velhos conceitos, construindo novos mundos. In Mônica Lima et al. (Orgs.), Pensar junto/fazer com: Saúde mental na pandemia de covid-19 (pp. 375-404). EdUFBA., p. 393), “os sistemas raciais vêm sendo construídos e (re)elaborados há cinco séculos. A tarefa de combatê-los envolve esforços transgeracionais e supranacionais”; contudo, combater o racismo exige acompanhar esse processo de transformação, assim como no coar café, que exige paciência no aguardar a passagem da água quente pelo pó e pelo filtro. Fundamental que tenhamos olfato e paladar refinado, que permita identificar os sabores agradáveis (ou não) desse processo, a fim de podermos adicionar água ou mais pó, se necessário; para alguns, açúcar. As relações raciais exigem transformações estruturais; contudo, elas acontecerão a partir do sensível. Por fim, que não nos falte roda, para, de modo compartilhado, poder servir/ser servida(o), colocar os sentidos em ação e tomar/beber, sendo afetada(o) pelos sabores e efeitos do encontro - das relações.
Considerações finais
O conjunto dessas ações nos permitiu circunscrever duas estratégias antirracistas: a primeira, a do racializar para desracializar (Fanon, 1952/2008), que demove o debate da raça da esfera biológica e transporta-o para o campo das ações, dos modos de viver e existir, promovendo a desalienação colonial (Souza, Damico, & David, 2020Souza, Tadeu de Paula, Damico, José Geraldo & David, Emiliano de Camargo (2020). Paradoxos das políticas identitárias: (des)racialização como estratégia quilombista do comum. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, 42(3), 1-10. https://doi.org/10.4025/actascihumansoc.v42i3.56465.
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). A segunda, a do atiçamento do vaivém diaspórico (Gilroy, 2012Gilroy, Paul (2012). O Atlântico negro: Modernidade e dupla consciência. Editora 34; Universidade Cândido Mendes.; Nascimento, 1989/2018Nascimento, Maria Beatriz (1989/2018). Transcrição do documentário Orí. In Nascimento, quilombola e intelectual: Possibilidade nos dias da destruição (pp. 341-343). Diáspora Africana: Editora Filhos da África.), pela produção de experiências estéticas de afetação descoloniais, inventando lugares de visibilidade, reconhecimento e trocas de saberes, em meio à colonialidade manicomial do racismo brasileiro. Ao tomarmos como base conceitual da pesquisa a perspectiva das relações raciais, em particular as contribuições da Psicologia Social que situam a branquitude (Bento, 2002Bento, Maria Aparecida Silva (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In Iraí Carone & Maria Aparecida Silva Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo: Estudos sobre a branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-58). Vozes.; Schucman, 2014Schucman, Lia Vainer (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Annablume.) como lugar (existencial e político) de privilégios materiais e simbólicos direcionados às pessoas brancas, pôde-se articular as duas estratégias identificadas nas ações dos grupos e coletivos: a produção da racialização em seus efeitos psicossociais de “trocas de palavras e ruptura do silêncio” (Mbembe, 2017Mbembe, Achille (2017). Políticas da inimizade. Antígona., p. 190), “violenta o suficiente para ‘sacudir as raízes do edifício’ colonial-capitalista” (Faustino, 2020bFaustino, Deivison Mendes (2020b). Às vezes, a crítica à crítica da crítica é apenas ausência de autocrítica: sobre a realeza negra, a psicanálise e a crítica ao duplo narcisismo. Blog Nkosi. https://deivisonnkosi.com.br/artigos/diversos/as-vezes-a-critica-a-critica-da-critica-e-apenas-ausencia-de-autocritica-sobre-a-realeza-wakandiana-a-psicanalise-e-a-critica-ao-duplo-narcisismo/
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, p. 3). Tal ação, quando feita por meio de dispositivos (formativos, estéticos) interessados em fomentar a Relação (Glissant, 2021Glissant, Édouard (1990/2021). Poética da relação. Bazar do Tempo.), cria condições para uma experiência de produção do comum na diferença (Mbembe, 2018), ou ainda, do comum como produção de diferenças (Rolnik, 2018Rolnik, Suely (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. N-1 Edições.), e pode alcançar efeitos micropolíticos que sugerem um caminho fecundo para o cuidado antimanicolonial.
Referências
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Notas
-
1
Negritamos para fazer ver a distinção com o manicomial ao longo do texto e em todas suas variantes.
-
2
O termo Relação está grafado em maiúsculo quando tratamos do conceito proposto por Glissant (2005).
-
3
Trecho do texto elaborado pelas(os) trabalhadoras(es) do CAPSij, enviado ao Prêmio Edna Muniz 2019, que buscou valorizar experiências que promovessem equidade na oferta de ações de saúde para a população negra.
-
4
Trecho do texto elaborado pelas(os) integrantes do Café Preto e enviado ao Prêmio Edna Muniz, 2019, que buscou valorizar experiências que promovessem equidade e integralidade na oferta de ações de saúde para a população negra.
-
Financiamento
A pesquisa contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - n° 88887.308606/2018-00 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - nº 140170/2019-7. Maria Cristina Gonçalves Vicentin - CNPq, bolsa produtividade n 314659/2021-8. -
Aprovação, ética e consentimento
O projeto de pesquisa foi submetido aos Comitês de Ética da PUC-SP e da Secretaria Municipal de Saúde (SMS-SP) e aprovado sob os números: PUC-SP - Número do CAAE: 35180920.1.0000.5482 Número do Parecer: 4242772; SMS-SP - Número do CAAE: 35180920.1.3001.0086 Número do Parecer: 4428225.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
30 Jul 2023 -
Revisado
29 Set 2023 -
Aceito
29 Set 2023