Open-access Política externa brasileira: os desafios de sua caracterização como política pública

Brazilian foreign policy: challenges to its characterization as a public policy

Resumos

Partindo da perspectiva de que a política externa é uma política pública (o Estado e o governo em ação no plano internacional), este artigo discute os desdobramentos conceituais e políticos da nova configuração da política externa brasileira. Ao considerarmos a política externa como política pública, rompemos sua associação automática com as versões mais cruas do realismo e a trazemos para o terreno da politics, ou seja, reconhecemos que sua formulação e implementação se inserem na dinâmica das escolhas de governo que, por sua vez, resultam de coalizões, barganhas, disputas, acordos entre representantes de interesses diversos. Portanto, retiramos a política externa de uma condição inercial vinculada a supostos interesses nacionais autoevidentes e/ou permanentes (protegidos das injunções conjunturais de natureza político-partidária) e a despimos das características geralmente atribuídas (ou preconcebidas) ao que se chama de política de Estado. Por fim, sugerimos caminhos de investigação inovadores, tais como: avançar no debate sociológico, organizacional e institucional sobre o papel da agência diplomática, seu processo de aprendizado e de transformação, bem como a necessidade de definir novos arranjos institucionais; repensar o lugar da agência diplomática na administração pública; e incorporar a perspectiva comparada no tempo e no espaço, com vistas a alargar nossa capacidade analítica a respeito dos distintos contextos e tensões, buscando entender as variáveis sistêmicas e a presença de múltiplos atores, estatais e não estatais, domésticos e inter/transnacionais, nas agendas de política externa, mormente em países com características semelhantes às do Brasil.

Política Externa Brasileira; Análise de Política Externa; Atores e Agendas; Política Pública


Starting from the perspective that foreign policy is a public policy (i.e. the state and government in action at the international level) this article discusses t he conceptual and political implications of the n ew configuration of Brazilian foreign policy. By considering foreign policy as public policy, the authors break its automatic association with crude versions of Realism and bring it to the field of politics, thus recognizing that its formulation a nd implementation f all w ithin the dynamics of governmental choices which, in turn, stem from negotiations within coalitions, bargaining, disputes and agreements between representatives of diverse interests. As a result, the text removes foreign policy from a condition linked to inertial and supposedly self-evident and/or permanent national interests (protected from injunctions of cyclical nature related to partisan politics) and strips it of features generally attributed (or preconceived) to so-called state policies. Finally, the authors suggest avenues for an innovative research agenda, such as (i) advancing sociological, organizational and institutional debates on the role of diplomatic agency, the process of learning and transformation, and the need to establish new institutional arrangements; (ii) rethinking the place of diplomatic agency in public administration; and (iii) incorporating comparative spatial and temporal perspectives in foreign policy analysis, in order to broaden our analytical capacities on contexts and contradictions. These moves allow the reader to understand how systemic opportunities, different national and historical contexts, multiple state and non-state actors, domestic and inter/transnational agendas play a role in foreign policy, especially in countries with characteristics similar to those of Brazil.

Brazilian Foreign Policy; Foreign Policy Analysis; Actors and Agendas; Public Policy


ARTIGOS

Política externa brasileira: os desafios de sua caracterização como política pública

Brazilian foreign policy: challenges to its characterization as a public policy

Carlos R. S. MilaniI; Leticia PinheiroII

IPós-doutor em Relações Internacionais pelo Institut d'Etudes Politiques de Paris (Sciences Po), professor adjunto do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), pesquisador 1-D do CNPq, coordenador do Labmundo-Rio e atual secretário executivo da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). E-mail: crsmilani@iesp.uerj.br IIPós-doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Oxford, professora adjunta do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio), pesquisadora 2 do CNPq e coordenadora da Rede de Pesquisa Agendas e Atores de Política Externa. E-mail: pinheiro.leticia14@gmail.com

RESUMO

Partindo da perspectiva de que a política externa é uma política pública (o Estado e o governo em ação no plano internacional), este artigo discute os desdobramentos conceituais e políticos da nova configuração da política externa brasileira. Ao considerarmos a política externa como política pública, rompemos sua associação automática com as versões mais cruas do realismo e a trazemos para o terreno da politics, ou seja, reconhecemos que sua formulação e implementação se inserem na dinâmica das escolhas de governo que, por sua vez, resultam de coalizões, barganhas, disputas, acordos entre representantes de interesses diversos. Portanto, retiramos a política externa de uma condição inercial vinculada a supostos interesses nacionais autoevidentes e/ou permanentes (protegidos das injunções conjunturais de natureza político-partidária) e a despimos das características geralmente atribuídas (ou preconcebidas) ao que se chama de política de Estado. Por fim, sugerimos caminhos de investigação inovadores, tais como: avançar no debate sociológico, organizacional e institucional sobre o papel da agência diplomática, seu processo de aprendizado e de transformação, bem como a necessidade de definir novos arranjos institucionais; repensar o lugar da agência diplomática na administração pública; e incorporar a perspectiva comparada no tempo e no espaço, com vistas a alargar nossa capacidade analítica a respeito dos distintos contextos e tensões, buscando entender as variáveis sistêmicas e a presença de múltiplos atores, estatais e não estatais, domésticos e inter/transnacionais, nas agendas de política externa, mormente em países com características semelhantes às do Brasil.

Palavras-chave: Política Externa Brasileira – Análise de Política Externa – Atores e Agendas – Política Pública

ABSTRACT

Starting from the perspective that foreign policy is a public policy (i.e. the state and government in action at the international level) this article discusses t he conceptual and political implications of the n ew configuration of Brazilian foreign policy. By considering foreign policy as public policy, the authors break its automatic association with crude versions of Realism and bring it to the field of politics, thus recognizing that its formulation a nd implementation f all w ithin the dynamics of governmental choices which, in turn, stem from negotiations within coalitions, bargaining, disputes and agreements between representatives of diverse interests. As a result, the text removes foreign policy from a condition linked to inertial and supposedly self-evident and/or permanent national interests (protected from injunctions of cyclical nature related to partisan politics) and strips it of features generally attributed (or preconceived) to so-called state policies. Finally, the authors suggest avenues for an innovative research agenda, such as (i) advancing sociological, organizational and institutional debates on the role of diplomatic agency, the process of learning and transformation, and the need to establish new institutional arrangements; (ii) rethinking the place of diplomatic agency in public administration; and (iii) incorporating comparative spatial and temporal perspectives in foreign policy analysis, in order to broaden our analytical capacities on contexts and contradictions. These moves allow the reader to understand how systemic opportunities, different national and historical contexts, multiple state and non-state actors, domestic and inter/transnational agendas play a role in foreign policy, especially in countries with characteristics similar to those of Brazil.

Keywords: Brazilian Foreign Policy – Foreign Policy Analysis – Actors and Agendas – Public Policy

Introdução

No campo de estudos sobre a política externa brasileira (PEB), atribuir a um único indivíduo ou a uma única instituição a origem das decisões da política externa tem sido fato recorrente. Hoje, ainda seria possível apontar indivíduos e instituições que se destacam no processo decisório de política externa, mas supor que a presença de lideranças carismáticas ou o monopólio de uma agência possam per se explicar a definição dos interesses do país no plano internacional se tornou analiticamente menos convincente. Da mesma forma, era comum atribuir à diplomacia brasileira somente o trato de questões de alta sensibilidade política e estratégica, a chamada alta política.

Atualmente, entretanto, tal atribuição sofre da própria dificuldade de distinção entreo que seriaa altaea baixa política. No caso brasileiro e no de outras potências consideradas emergentes (África do Sul, Turquia, Índia ou México, por exemplo), temas tradicionais da baixa política (cultura, educação, cooperação para o desenvolvimento, capacidade de negociação diplomática) têm desempenhado papel importante na projeção de poder regional e global. Por fim, se a forte presença da agência diplomática brasileira, o Itamaraty, na arena decisória de política externa e seu alegado insulamento do debate público levaram a que, no passado, alguns adotassem para o Brasil a máxima de que a política externa começaria onde terminasse a política doméstica, essa é uma premissa distante da concepção de política externa que adotamos neste artigo. Acreditamos que a política externa necessita de parâmetros de investigação que incorporem os diversos atores presentes em seu processo decisório, em suas mais distintas formas de participação e levando-se em conta os variados modelos de interação política (influência, participação, cooperação, resistência, conflito).

Com base nessas premissas, procuramos neste artigo discutir o que chamamos de uma nova configuração da PEB, apresentando algumas de suas características e apontando desafios conceituais e políticos daí decorrentes. Para tanto, primeiramente discorreremos sobre como se desenvolveu o campo de estudos da política externa (também chamado de "análise de política externa"), lembrando as indagações de seus fundadores para, em seguida, apresentar novas perguntas de pesquisa suscitadas pelo cenário contemporâneo mundial, em geral, e brasileiro em particular. Em seguida, apresentaremos e analisaremos alguns setores em que a multiplicidade de agendas e atores indica claramente o sentido de mudança e reforça o argumento aqui levantado de que a política externa também deve ser pensada como política pública. A título de conclusão, sugerimos alguns caminhos possíveis de investigação e análise.

Análise de Política Externa: Principais Conceitos e Debates

Nem sempreo processo decisório, a diversidade temáticaea dinâmica política estiveram presentes nos estudos sobre política externa. No entanto, desde que se constituiu como relevante área da disciplina de Relações Internacionais (RI), após a publicação do trabalho seminal de Snyder et al. (1962), a análise de política externa (APE) adotou o plano doméstico, em particular o processo decisório, como variável explicativa para o comportamento dos Estados no plano internacional. Ao resgatar a contribuição da corrente liberal para o campo de reflexão das relações internacionais, em particular o papel dos indivíduos e das instituições no processo de formulação das políticas, a APE ressaltava o poder do agente nas escolhas internacionais dos Estados. Convergindo com essa visão, Sprout e Sprout (1956) sublinharam a importância das percepções e interpretações acerca do contexto internacional dos indivíduos e grupos na APE.

O conflito do Vietnã (1965-73) e as controvérsias geradas no Congresso e junto à opinião pública nos Estados Unidos se somariam à constatação de que a compreensão das motivações e das estratégias da política externa norte-americana não poderia deixar de lado variáveis domésticas. Com a publicação de Domestic Sources of Foreign Policy, Rosenau (1967) reforçou a premissa de que atores e fatores domésticos não eram menos relevantes para a formulação e o conteúdo da política externa do que o contexto internacional, somando esforços à sua contribuição anterior em que já apontara a necessidade de desenvolver uma teoria que desse conta dos diferentes níveis de análise para explicar a política externa dos Estados. Alguns anos depois, outro estudo seminal contribuiria para o fortalecimento da tese de que era necessário "abrir a caixa-preta" do Estado: a pesquisa de Allison (1971) sobre a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, ocorrida em outubro de 1962. Assim, a APE foi se enriquecendo com diferentes abordagens para o estudo do comportamento internacional dos Estados até o surgimento do realismo estrutural. Com a publicação – e grande aceitação – de sua obra Theory of International Politics, em 1979, Kenneth Waltz muito contribuiu para relegar a APE a um plano secundário por alguns anos.

Em que pese esse momento de baixa visibilidade nos Estados Unidos, alguns pesquisadores, inclusive em países semiperiféricos a exemplo do Brasil, onde a disciplina de RI se desenvolveu tardiamente (HIRST, 1992), estavam atentos às margens de manobra e aos comportamentos dos agentes estatais, e passaram a buscar em modelos teóricos sobre processos decisórios algumas ferramentas analíticas para entender a atuação mais autônoma de Estados periféricos e semiperiféricos, apesar da hegemonia norte-americana. No contexto latino-americano, as correntes sistêmicas e estruturais eram insuficientes, quando não equivocadas, para explicarem tal fenômeno (MOURA, 1980; LIMA, 1986; HIRST, 1996).

Os acontecimentos das duas últimas décadas do século XX foram fundamentais para que houvesse um misto de resgate e renovação das teses de APE na área de RI. Foi nesse momento que diversos analistas começaram a se referir ao surgimento de uma nova política externa (HILL, 2003; NEACK, 2003; HUDSON, 2005). A simultaneidade de fatores – tais como o fim da competição bipolar, a diversificação das coalizões, os processos de globalização e liberalização econômica, as crises financeiras de natureza sistêmica, a revolução tecnológica na área de informação e a ação transnacional de redes de ativismo e movimentos sociais – produziu uma inflexão nas concepções contemporâneas sobre o papel do Estado e em suas práticas no campo da política externa. Surgiram novas possibilidades de ação internacional dos Estados, mas também novos constrangimentos.

Esse diagnóstico complexo e paradoxal decorre da constatação de que as relações internacionais, na atualidade, não apenas englobam um leque mais amplo de questões (meio ambiente, direitos humanos, migrações, pobreza, internacionalização da educação, da saúde e da cultura, cooperação para o desenvolvimento etc.) que demandam conhecimentos e expertises particulares, como também implicam, de forma cada vez mais densa e institucionalizada, uma diversidade de atores agora envolvidos em inúmeros assuntos internacionais. Empresas, organizações não governamentais, mídia, movimentos sociais, igrejas, organismos públicos municipais ou estaduais, por exemplo, passaram a atuar internacionalmente de maneira mais orgânica e articulada, agindo em muitas ocasiões à revelia do próprio Estado, em nome de interesses privados ou ainda na defesa de causas políticas das mais diversas. Disso tudo resulta o reconhecimento da inegável conexão entre problemas internacionais e temas domésticos. As crises financeiras globais afetam o cotidiano dos cidadãos, a difusão midiática do aquecimento planetário influencia comportamentos no âmbito local, a defesa dos direitos humanos em países distantes mobiliza pessoas de inúmeras nacionalidades, colocando em xeque a distinção, em termos absolutos, entre o doméstico e o internacional, um dos pilares de sustentação do realismo.

Separar o interno do externo facilitou aos realistas defenderem, filosófica e epistemologicamente, a construção de uma concepção do Estado como uma casa de portas e janelas sempre fechadas, cujas relações econômicas, sociais, culturais e políticas no plano doméstico não deveriam merecer a atenção dos analistas de política externa. Embora essa casa tenha, em muitas ocasiões, mantido suas janelas e portas bem abertas (migrações, trocas econômicas, intercâmbios educativos e cooperações das mais diversas), a concepção realista logrou, por muitas décadas, motivar a construção de marcos interpretativos de estadistas, diplomatas, militares e, de certa forma, da própria sociedade no sentido de que a política externa seria um campo distante do cotidiano dos cidadãos. Hoje, isso mudou tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista empírico, graças a diversas análises das transformações históricas de muitos países, inclusive do Brasil.

Tendo em vista essas transformações, é necessário adotar um ângulo de observação distinto, a partir do qual se possa desenhar um conjunto renovado de categorias teóricas e marcos interpretativos a fim de melhor compreender e analisar a política externa dos Estados e, mais particularmente, a PEB. Aqui nos referimos à revitalização do campo de APE no âmbito das RI, ou seja, ao retorno dos pressupostos analíticos que concebem a política externa como resultado de iniciativas tomadas por diferentes atores (principalmente, mas não exclusivamente, o Estado) em interação com o ambiente internacional.

Com base no que afirmamos acima, os fundamentos do realismo, ao reificarem a noção de interesse nacional sem proporem uma teoria abrangente do Estado, não logram abarcar as transformações contemporâneas no campo da política externa. Em contraposição, nossa perspectiva aborda uma série de desafios: por exemplo, se a política externa permanece um importante, porém transformado, lócus de agência nas relações, quais outros atores, para além dos Estados, seriam dotados de agência em política externa? Se o plano doméstico e o externo das relações de poder foram diluídos, como então se integrariam as políticas e os mecanismos? Como pensar a política externa como um contínuo entre o nacional e o internacional? Na tentativa de distinguir o conteúdo da política externa do das relações exteriores, tudo o que se projeta política e estrategicamente para além das fronteiras do Estado seria definido como política externa? Em termos normativos, considerando-se que a política externa envolve valores, identidades e princípios, ela deveria ser transparente aos cidadãos? Seria relevante prestar contas, publicamente, sobre temas de política externa? Como lidar com a noção de responsabilidade no campo da política externa? Perante quem o Estado e seus agentes deveriam ser considerados responsáveis?

Se esse conjunto de questões já é bastante visível nos países centrais do Ocidente sob regimes representativos, ele não é menos verdadeiro em países em desenvolvimento e periféricos. Ademais, a combinação entre a condição de jovens democracias e a implementação recente de programas de liberalização econômica gerou nesses países o crescimento do número de atores e uma significativa diversificação de interesses, em um contexto que poderíamos rotular de demanda reprimida por participação em questões internacionais. Como explica Lima (2000, p. 295) sobre o caso brasileiro, a coincidência entre a liberalização políticaea abertura econômica deu início a uma nova fase da política externa do país, por ela denominada de "integração competitiva". Nesta, assiste-se a uma nova realidade, uma vez que a política externa – antes caracterizada pela condução de políticas sem efeitos distributivos – passou a ter que contemplar interesses setoriais, que se refletiram sobre a alegada histórica autonomia relativa do Itamaraty na condução da política externa.

No Brasil, a década de 1980 testemunhou um movimento de êxodo de diplomatas para outras agências governamentais, ao passo que a década de 1990 foi palco de um movimento distinto, embora não antagônico ao anterior: a incorporação crescente de temas de política externa por outras agências do governo. A nosso ver, embora esse segundo movimento tenha ocorrido principalmente em função da mudança na natureza das questões domésticas que, com os efeitos da globalização sobre a política, a economia e a cultura, foram se tornando, dia após dia, mais próximos dos temas internacionais, a presença de pessoal formado no Instituto Rio Branco nas outras agências em muito colaborou para que se atentasse para a potencialidade, as articulações e tensões desses temas "domésticos" com as agendas da PEB. Como resultado, passou-se a questionar o que antes parecia ser senso comum, ou seja, a relativa autonomia e o insulamento burocrático do Itamaraty no processo de formulação e condução da política externa.

Toda essa discussão, como já enfatizado, diz respeito ao perfil e ao papel das agências diplomáticas em alguns países como o Brasil, à renovação das ideias no campo da política externa, à relação entre política doméstica e política externa, à disputa burocrática, bem como às relações Estado-sociedade. E é em vista desse novo cenário que nos perguntamos: nos dias de hoje, seria possível falar de uma nova configuração da arena decisória da PEB? E em que medida essa suposta nova configuração seria decorrente ou, antes, promotora de uma reconfiguração da própria política externa? Como veremos em seguida, pesquisas recentes colocam em evidência a pluralidade de atores e agendas da PEB.

Tal pluralidade envolve, além dos muitos atores estatais não tradicionais que desafiam o alegado monopólio do Itamaraty (ministérios e agências federais, entidades subnacionais etc.), inúmeros atores não estatais que podem defender interesses públicos e coletivos (saúde pública, direitos humanos, educação, cultura...), mas também interesses de determinados grupos e setores econômicos e culturais da sociedade brasileira (associações, movimentos sociais, empresas...). Essa pluralidade de atores e interesses decorre do fato de que tanto a ordem internacional como a doméstica, apesar das desigualdades e das diferenças que conformam suas estruturas, deixam em aberto – e de modo nem sempre previsível – vários espaços para a ação política. Posta dessa maneira, a pluralidade acaba por desafiar a nossa capacidade analítica de localizar com precisão o lócus institucional e o agente par excellence da decisão em matéria de política externa. Da pluralidade de atores e agendas da PEB emerge, de fato, uma complexidade crescente do próprio processo decisório. E desta complexidade emerge igualmente uma nova visão sobre a política externa, sua prática e seu estudo, como veremos a seguir.

Política Externa como Política Pública: A Reconfiguração da PEB

Até recentemente, era comum referir-se à PEB como política de Estado relativamente imune a mudanças e ingerências das agendas governamentais, e isso em grande parte devido ao profissionalismo, às capacidades de negociação do Itamaraty e à sua relativa autonomia na definição das agendas da PEB. No entanto, a partir sobretudo da transição entre os anos 1980 e 1990, inúmeros acontecimentos ilustraram a perda dessa alegada e, por que não dizer, cultuada autonomia do Itamaraty: o papel da Fazenda na negociação financeira internacional, a ação internacional organizada de vários ministérios, bem como de algumas entidades subnacionais. Tais fatos trouxeram para a academia a necessidade de renovar suas agendas de investigação, mas também colocaram em xeque seus marcos interpretativos acerca de como e por quem são tomadas decisões em matéria de política externa. Assim, de modo mais genérico, alguns passaram a falar de uma pluralização de atores da PEB (CASON; POWER, 2009), ao passo que outros se referiram a horizontalização e verticalização do processo decisório (PINHEIRO, 2009).

Outros pesquisadores vieram se somar a essa agenda de pesquisa. Entre os trabalhos que buscaram contribuir para o entendimento dessa nova realidade, destacamos os que nos ajudam a discutir a hipótese da reconfiguração da política externa. Este é o caso, por exemplo, da pesquisa sobre a distribuição de competências constitucionais em política externa tanto no plano do Poder Executivo como no do Legislativo (FRANÇA; SANCHEZ BADIN, 2010; SILVA et al., 2010), mas igualmente das evidências de que a participação ou influência do Legislativo na formulação da política externa não se dá necessariamente por meio dos mecanismos regulares de condução das relações entre os poderes, mas sim pela prática política (ALEXANDRE, 2006; DINIZ; RIBEIRO, 2008), o que acabaria por revelar um real interesse de alguns parlamentares pela formulação da PEB, negando, assim, a hipótese levantada anos antes de relativa abdicação da sua participação em temas de política externa (LIMA; SANTOS, 2001).

Também merecem destaque as pesquisas que ressaltam as implicações da presença de distintas agências do Executivo – assim como sua relação com atores sociais organizados – sobre o conteúdo propriamente dito da política externa. Nesse grupo, podemos incluir as contribuições reunidas em Pinheiro e Milani (2012), que analisaram a participação da Secretaria-Geral da Presidência da República, dos Ministérios da Saúde, da Educação e da Cultura, e das unidades subnacionais na formulação da PEB. Saindo do campo institucional estrito do Estado, outros trabalhos também já ofereceram contribuição relevante para a reflexão sobre a participação da sociedade civil no debate e/ou na condução da PEB. Para citarmos apenas alguns, lembramos a análise sobre a participação da sociedade civil organizada nos debates sobre as conferências sociais da ONU da década de 1990 (LIMA, 2009), bem como a investigação sobre a atuação de entidades da sociedade civil na produção de políticas relacionadas ao Mercosul (MESQUITA, 2012).

Assim, esses e outros tantos trabalhos sobre a PEB analisaram algumas das distintas dimensões hoje presentes na sua formulação. Por um lado, contemplaram a investigação sobre a atuação das agências diplomáticas em áreas que tradicionalmente fogem (ou fugiam) ao campo da política externa; por outro, refletiram sobre o modo pelo qual o conteúdo da política externa é influenciado (positiva ou negativamente) pela ação de outras agências estatais e não estatais. Da mesma forma, abriram a discussão sobre a dimensão subnacional e local da política externa, buscando compreender as iniciativas tomadas por estados federados e municípios brasileiros. E apontaram para os mecanismos formais e informais pelos quais o Legislativo manifesta seu interesse e influência sobre assuntos de política externa.

Apresentaram, assim, a discussão sobre a diversidade de temas e de atores que compõem as agendas da PEB contemporânea. E é com base neste quadro bastante amplo que podemos chegar a alguns denominadores comuns que nos ajudarão a pensar a configuração contemporânea da política externa, enfrentando os desafios políticos e analíticos daí decorrentes.

Uma convergência que nos parece transversal às pesquisas acima citadas é a necessidade de se considerar a política externa como política pública, ou seja, o Estado e o governo em ação no plano internacional. Isso implica considerar que o governo é uma instituição do Estado – sem dúvida, a principal delas – e que são os governos os produtores de políticas públicas (SOUZA, 2006). Não há dúvida de que, nessa produção, há também que se considerar a participação do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, outras instituições do Estado. Por fim, não negamos que, nessa produção, outros atores (confederações, empresas, organizações não governamentais, movimentos sociais) tenham participação relevante, podendo exercer forte influência sobre o conteúdo da política e que, portanto, sua presença deve ser problematizada e incorporada à investigação. No entanto, reafirmamos a premissa de que, em última instância, a responsabilidade pelas políticas públicas, entre elas a política externa, é do governo que as implementa.

Tal concepção permite, em primeiro lugar, diferenciar a política externa da ação internacional dos atores não estatais. Empresas, ONGs, movimentos sociais, entre outros, são atores das relações internacionais, desenvolvendo, com objetivos e metas por eles definidos, ações no plano internacional, porém não chamamos tais ações de "política externa". Em segundo lugar, leva-nos a reafirmar que, conceitualmente, é fundamental que à política externa seja associada a alguma forma de "autorização estatal". Os atores primários da política externa, nos termos dos artigos 21 e 84 da Constituição, devem dar-lhe chancela institucional, jurídica e política: as agências federais ou entidades subnacionais que busquem construir agendas de cooperação para o desenvolvimento, por exemplo, devem obter a chancela normativa de um ator primário que garanta o sentido de autoridade do Estado na condução dessa política externa, de acordo com as competências constitucionais do sistema federativo brasileiro. Não nos cabe definir, peremptoriamente, quem seria esse ator da chancela pública, mas os exemplos que elencamos acima acerca da pluralização das agendas revelam que, analiticamente, não seria mais possível defender, nesses termos, o monopólio do Ministério das Relações Exteriores.

De fato, há muita ação externa organizada pelo Estado brasileiro para além dos muros do Itamaraty. Cabe saber se podemos chamá-la de política externa, no sentido de uma política pública autorizada pelo Estado. Dito de outra forma, parece que as pesquisas acadêmicas reunidas em publicação sobre as práticas da política externa (PINHEIRO; MILANI, 2012) desnudaram empiricamente a pluralidade dinâmicaea constante evolução da ação externa do Estado brasileiro, muito embora ainda falte construir um arranjo político e jurídico que reflita essa realidade empírica e que assegure o caminho institucional mais democrático (sujeito, inclusive, a controles pela própria sociedade).

Analiticamente, seria mais fácil reconhecer que, da expressiva quantidade de ações externas, decorreria, ipso facto, a pluralidade no campo da política externa. Embora mais fácil, não acreditamos, no entanto, ser este o caminho mais preciso e muito menos o mais democrático na construção de novos arranjos institucionais no campo da PEB. Desse reconhecimento simples e automático da pluralidade poderia resultar fragmentação das agendas de política externa e eventual ambiguidade ou inclusive inconsistência dessa política, mesmo para os casos em que o adensamento da presença de diversos órgãos da burocracia federal em temas internacionais vem acompanhado da busca de capacitação para executarem suas agendas por meio de assessorias internacionais cada vez mais especializadas e robustas (FRANÇA; SANCHEZ BADIN, 2010). A pluralidade convive com hierarquias, assimetrias e competências distintas dos atores, além de visões variáveis sobre o bem público. A coordenação e a convergência são fundamentais na concepção que propomos de política externa enquanto política pública, que é ao mesmo tempo conceitual e política.

Em terceiro lugar, como dissemos anteriormente, a abertura intelectual dos estudos de política externa demanda quebrar a associação da política externa com as versões mais cruas da escola teórica do realismo, isto é, com o pressuposto de que o comportamento do ator estatal somente pode ser entendido ou orientado em referência ao interesse nacional (HILL, 2003). É fato que o interesse nacional surge como ideia política em oposição à de interesse do príncipe, acompanhando a própria evolução do sentimento nacional e ganhando envergadura com o desenvolvimento das instituições estatais democráticas (RENOUVIN; DUROSELLE, 1995). A ambiguidade do interesse nacional diz respeito, porém, à tentativa de construir objetivos e atribuí-los à nação como um todo, como se não houvesse discrepâncias, no tempo e no espaço, entre distintos cidadãos nacionais que também são sujeitos de classe, de gênero, raça, etnia, crença ou religião. Como questionam os historiadores franceses, o interesse nacional ou os chamados "interesses superiores do Estado", tão frequentemente invocados por estadistas e diplomatas, não seriam, salvo raros casos, um meio para disfarçar interesses infinitamente menos nobres ou, pelo menos, interesses particulares?

Quando se falava em interesse nacional (BEARD, 1934), tratava-se de "defender a melhoria do bem-estar das populações em oposição aos interesses materiais das grandes empresas" (RENOUVIN; DUROSELLE, 1995, p. 314). Tal definição nos parece problemática porque pressupunha que seria possível separar o econômico (o interesse das empresas) do político-social (os interesses da sociedade).

Além disso, sem entrar no debate psicológico acerca das construções subjetivas pelos próprios estadistas de um "interesse nacional objetivo" ou ainda na dificuldade que seria separar a palavra dos estadistas, por mais sincera que fosse, do sentido dos interesses particulares que o cercam, não nos parece nada fácil defender essa noção de interesse nacional, que tende a simplificar a dialética das relações sociais e a complexidade das negociações entre interesses públicos e privados.

Em quarto lugar, ao assumirmos a política externa como uma política pública, estamos trazendo a política externa para o terreno da politics, ou seja, reconhecendo que sua formulação e implementação se inserem na dinâmica das escolhas de governo que, por sua vez, resultam de coalizões, barganhas, disputas, acordos entre representantes de interesses diversos, que expressam, enfim, a própria dinâmica da política. Em decorrência, estamos retirando a política externa de uma condição inercial associada a supostos interesses nacionais autoevidentes e/ou permanentes, protegidos das injunções conjunturais de natureza político-partidária. Estamos, portanto, despindo a política externa das características geralmente atribuídas ao que se chama de política de Estado, que nos levava a lhe imputar uma condição de extrema singularidade frente às demais políticas públicas do governo.

Não custa lembrar que mesmo as políticas consideradas como políticas de Estado não nasceram como tais. Ou seja, sua ontologia não está no Estado, mas nos governos e na sua interação, de intensidade e frequência variáveis a depender do compromisso da esfera política com a democracia, com as inúmeras instituições que compõem o governo e com os atores da sociedade. Em algum momento, portanto, as políticas de Estado foram, sem dúvida, políticas de governo. As variáveis que explicam a eventual transformação de uma política de governo em política de Estado são inúmeras, desde sua real ou alegada eficácia – mesmo que por construção retórica e ideológica – até sua esclerose, por ausência de alternativas. Nesse sentido, da mesma forma que políticas de governo se transformam em políticas de Estado em um determinado tempo e espaço, podem, igualmente, deixar de sê-lo. Estudar a política externa como política pública implica, teórica e metodologicamente, portanto, procurar "entender como e por que os governos optam por determinadas ações" (SOUZA, 2006, p. 22), concedendo-lhe deste modo a prerrogativa da efemeridade, da transitoriedade.

Não negamos, entretanto, que existem diferenças entre a política externa, pensada como política pública, e as demais políticas públicas implementadas prioritariamente no âmbito doméstico. Enquanto estas, até pouco tempo, tinham apenas o ambiente doméstico como sua origem e seu destino, a política externa, embora sempre tenha respondido a variáveis internas e externas, por definição foi sempre dirigida ao ambiente externo. No entanto, já está distante dos nossos dias a ideia de que as políticas públicas se originam ou mesmo se dirijam apenas ao plano interno. Da mesma forma, nada mais superado do que a ideia realista clássica de que a política externa nasce onde termina a política interna. Há, portanto, dois aspectos importantes a serem sublinhados: é preciso reconhecer e mesmo defender uma "relação cada vez mais estreita e íntima, em termos sinérgicos, entre a política externa e outras políticas públicas" (ARDISSONE, 2011, p. 31-32); e é preciso fazer referência à nova face das políticas públicas tal como o que vem sendo feito pelo Brasil nos últimos anos, num movimento de internacionalização de uma extensa pauta de suas políticas públicas.

Da educação à saúde, do desenvolvimento agrícola às políticas de reforma agrária e às políticas culturais, assistimos a um processo contínuo de internacionalização das políticas públicas que, em paralelo aos processos de globalização da economia, muito corrobora a mundialização da política e reproblematiza as hierarquias (por exemplo, entre a high e a low politics) da PEB. Os casos emblemáticos de abertura de escritórios internacionais da Embrapa (em Gana), da Fiocruz (em Moçambique) e do IPEA (na Venezuela) ilustram esse argumento compartilhado por várias pesquisas sobre o papel das potências emergentes na cooperação internacional para o desenvolvimento (AYLLÓN; SURASKY, 2011; MAWDSLEY, 2012; MILANI, 2012b).

Já no que se refere ao novo perfil da política externa e suas especificidades, vale notar que, mesmo reconhecendo sua ontologia no governo, ela é uma das políticas que, junto com a política de defesa e a política macroeconômica, mais se aproxima da tese de que o Estado desfruta de certo grau de autonomia. Tais políticas guardam, notoriamente, algum grau de distanciamento da politics, que varia em função de fatores exógenos e endógenos, estruturais e conjunturais. E que fatores são estes? Os efeitos do fim da Guerra Fria, da liberalização econômica, da intensificação do fenômeno da globalização e da redemocratização do regime político brasileiro sobre a formulação e conteúdo da política externa do país têm sido recorrentemente apontados como fatores que ajudam a explicar a quebra do insulamento da política externa.

Esses fenômenos foram responsáveis, respectivamente, pelo desencapsulamento dos temas globais (meio ambiente, direitos humanos etc.) da lógica da competição bipolar, nesse sentido, retirando-os do âmbito da segurança; pela introdução de efeitos distributivos nas decisões de política externa, produzindo ganhadores e perdedores a depender do rumo da política; foram responsáveis também pela galvanização da interação entre os planos interno e externo, algumas vezes até diluindo suas fronteiras e retirando a blindagem que a defesa da soberania em moldes westfalianos lhes impunha; e, finalmente, foram responsáveis pelo aumento exponencial dos atores participantes da PEB.

A despeito de todos esses efeitos, e mesmo levando em conta que o grau de autonomia do Itamaraty depende da autorização presidencial (LIMA, 2000), nota-se, se não o protagonismo, ao menos a permanência de uma destacada centralidade dessa agência na PEB, que procura evitar eventuais distorções com o programa de governo e/ou excessos que comprometam a manutenção de parcerias estratégicas global e regionalmente. Ou seja, em vista das características institucionais que historicamente concederam ao Itamaraty um lugar de relevo na definição dos assuntos de política externa (CHEIBUB, 1985), os efeitos acima listados abalaram, mas não retiraram desta instituição, o poder de concentrar em seu interior algum grau de coordenação dos assuntos de política externa do país. Dito de outra forma, a condução dos assuntos de política externa permaneceu fortemente concentrada no âmbito das instituições do Estado, em particular – embora não mais exclusivamente – no Itamaraty.

Longe de nós, entretanto, afirmar, que atores sociais não tenham mudado seu padrão de participação na formulação da política externa. Até porque postulamos que, se outrora as fontes de legitimidade da autoridade institucional do Itamaraty que por sua vez impactavam na sua capacidade de definição dos rumos da política externa se encontravam no patrimonialismo, no carisma e na racionalidade burocrática (CHEIBUB, 1985), hoje sua autoridade tem como nova fonte de legitimidade o pressuposto do exercício da democracia. É preciso sublinhar que a crescente e relevante presença de atores não estatais nos fóruns de formulação e debate das posições internacionais do país não os tornou, automaticamente, tomadores de decisão em última instância da PEB. Outrossim, isso não lhes retira a competência e efetiva contribuição para a definição das escolhas políticas do país nos debates internacionais.

Entretanto, ao fim e ao cabo, é no âmbito do Estado que as decisões são finalmente tomadas. O que mudou é que, se antes era possível falar de uma concentração desses assuntos na agenda do Itamaraty, hoje os temas de política externa, por serem mais diversificados, povoam as atividades de outros ministérios e agências de governo, em um novo arranjo institucional (FRANÇA; SANCHEZ BADIN, 2010; SILVA et al., 2010). Talvez por isso mesmo se registre no âmbito do Itamaraty a preocupação de responder a essa diversificação com a criação de divisões temáticas dentro da sua estrutura administrativa (FIGUEIRA, 2010; RIVAROLA PUNTIGLIANO, 2008) e não mais – ou não somente – como antes, em que se priorizava a geografia como critério de organização administrativa. No entanto, ainda que essa resposta do Itamaraty tenha sido importante para fazer face às novas demandas da atuação internacional do Brasil, para não mencionar outras já existentes, não sustou – nem poderia – o movimento de going international por parte dos próprios ministérios domésticos.

Nesse sentido, os diversos temas que hoje chegam à agenda de política externa o fazem não apenas por intermédio do Itamaraty, mas também por meio de outras pastas e órgãos do governo (saúde, educação, cultura, meio ambiente, agricultura etc.) ou ainda por intermédio das unidades subnacionais. Não menos relevantes são as demandas de movimentos sociais e redes de ativismo político no sentido de se abrirem os debates sobre a PEB, a exemplo da defesa de criação de um conselho nacional de política externa Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip). A política externa é uma política pública, haja vista que atores institucionais, sociais e econômicos a tratam nessa perspectiva; falta-lhe, porém, arcabouço institucional que reflita politicamente essa nova configuração.

Por conseguinte, não são poucas as variáveis a explicarem a reconfiguração da PEB. As pesquisas já realizadas sobre o tema demonstram que os fatores explicativos dessa multiplicação de atores e dessa descentralização do poder de agência variam de acordo com os contextos, tanto no plano sistêmico quanto no âmbito doméstico. Tal variabilidade decorre dos processos históricos de institucionalização e do grau de relevância sistêmica e nacional dos diferentes problemas de política externa (saúde e comércio internacional, direitos humanos, regulação internacional em matéria de educação e cultura, ação internacional dos estados federados e municípios na cooperação para o desenvolvimento etc.).

No entanto, podemos buscar convergências entre tais variáveis a fim de localizar alguns fatores que talvez sejam mais regulares, tais como o tipo de regime internacional e sua densidade ou relevância no âmbito regional sul-americano; a atuação de organizações intergovernamentais, empresas e redes transnacionais; a construção de espaços de regulação e integração social em meio à anarquia entre os Estados; a necessidade de lidar com a sobrevivência humana e a proteção dos bens públicos globais (mudanças climáticas, biodiversidade, mares) apesar da contradição potencial com os interesses nacionais; a importância de cada agenda temática no conjunto das políticas públicas domésticas; a existência de uma opinião pública e a pressão da mídia sobre o tema; e o número de atores domésticos envolvidos, bem como sua forma de participação (consulta, parceria, protesto, resistência).

Assim, quando se trata da participação de outros órgãos do Poder Executivo federal, estadual ou municipal, os quais, não há como negar, são mais permeáveis às injunções da política, isso alcança o plano da definição do conteúdo da política externa. De fato, ao contrário do que ocorre com o Itamaraty, cuja chefia poucas vezes foi objeto de disputa política, nesses órgãos e unidades os líderes, assim como seus liderados e respectivas linhas de atuação, tendem a refletir as coalizões políticas que formam e dão sustentação ao governo. É assim, de fora para dentro, que a política externa vai se politizando, o que, podemos dizer, é próprio da democracia.

Cabe aqui, entretanto, uma ressalva importante com relação a essa referência a um novo momento da PEB, caracterizado por forte politização. Compartilhamos da tese que postula a intensificação do componente político na política externa em grande parte devido ao aumento dos impactos distributivos internos decorrentes da assimetria de resultados da ação externa para os diferentes segmentos sociais (LIMA, 2000, p. 289). No entanto, ao identificarmos o tempo presente como politizado em comparação ao passado, corremos o risco de despolitizar a política externa pretérita, o que seria o mesmo que conferir correção à tese da separação estanque entre burocracia e política ao tempo passado, com a qual, tal como Loureiro et al. (2010, p. 11), não concordamos. Mais que isso, é preciso esclarecer que, para nós, politização significa a intensificação do debate de ideias, valores e interesses sobre escolhas políticas, como também et pour cause, de disputas inter e intraburocráticas, debates entre atores sociais distintos quanto à melhor forma de contemplar suas demandas.

Enfim, ao adotarmos o termo politização, pretendemos reforçar o fim da crença de que o campo da política externa, por sua natureza supostamente particular, mereceria um tratamento que o retirasse da arena do embate político. Existe uma agenda sobre como o Brasil deveria se inserir internacionalmente, fazendo opções que podem, em última instância, revelar projetos políticos distintos sobre o lugar do Brasil no mundo. O Estado, em sua complexidade e multiplicidade, gera relações externas de várias naturezas, corroborando para a politização das agendas de política externa (SMITH, 1998, p. 77). Os distintos atores trazem para o campo da política externa uma política plural, constituída de linguagem, ideais, valores, símbolos e demandas materiais diferenciadas. A intensificação da politização das agendas de política externa é decorrência da maior pluralidade dos atores e de suas visões, das ideias e princípios que, assim, alcançam o espaço público – ainda que sua discussão não envolva todo o espectro da comunidade política, seja esta a cidade, o Estado ou a nação. O fato é que, nessa nova configuração, à medida que os ministérios domésticos expandem sua área de interesse para assuntos de natureza externa, mais se politiza a política externa.

Lembremos ainda que o sistema político brasileiro é caracterizado pelo chamado presidencialismo de coalizão (ABRANCHES, 1988), no qual o presidente da República, para manter a governabilidade, precisa construir uma base de apoio entre os partidos e montar o ministério a partir dessa mesma base. Assim sendo, a dinâmica político-partidária alcança indiretamente a política externa quando assuntos de natureza externa passam a fazer parte da agenda dos ministérios domésticos, por sua vez não só fomentando o diálogo entre instituições como também ampliando o espaço de captação de demandas da sociedade (FIGUEIRA, 2010, p. 16). O que enfim postulamos é que, em vista do fato de que temas da vida pública chegam à agenda de política externa por outros caminhos, a politização da política externa se realiza em grande parte pela via do alargamento da participação ministerial. Nesse sentido, mesmo que ainda fosse possível falar de um relativo insulamento da agência diplomática, certamente não se pode falar de um insulamento da política externa.

É importante ressaltar o enfraquecimento dos efeitos positivos – estabilidade e continuidade – decorrentes de uma política externa caracterizada por forte componente institucional garantido, até então, pelo papel preponderante do Itamaraty em sua formulação e implementação. Ou seja, até que ponto a relativização desse componente institucional singular representado até pouco tempo pelo relativo monopólio do Itamaraty que ajudou a criar no imaginário das elites "o modelo do Estado autônomo no discurso diplomático considerando a política externa como uma questão de Estado, desvinculada e acima da política doméstica, lugar dos conflitos e das facções" (LIMA, 2005, p. 2), pode afetar a credibilidade do país no sistema internacional? Novamente, aqui gostaríamos de nos referir ao que consideramos como uma nova fonte de legitimidade da autoridade institucional do Itamaraty que, tal como as anteriores, impacta não apenas o conteúdo substantivo da política externa, mas igualmente sobre a natureza da sua avaliação por parte dos demais Estados. Ou seja, se por um lado a maior participação de atores no processo de definição das escolhas do país no plano internacional desloca o Itamaraty do centro exclusivo das decisões com efeitos deletérios sobre sua capacidade de coordenação, por outro, essa pluralidade renova as credenciais de inserção internacional do país ao qualificar a política externa como representativa dos interesses mais amplos da nação.

Paralelamente a essa nova configuração da arena decisória que revela uma multiplicação das capacidades de agência de diferentes atores, surgem algumas perguntas: quem toma as decisões em matéria de política externa e onde tais decisões são tomadas? Quais são os atores responsáveis pela decisão e pela implementação da PEB? Como as decisões são tomadas e em nome de quem? Em relação a quem os agentes são considerados responsáveis? As respostas a tais perguntas não são unânimes. De nossa parte, entretanto, acreditamos na superação de, pelo menos, dois paradigmas: o monopólio da ação diplomática do Itamaraty e a tese da continuidade da PEB. Afinal de contas, abrindo-se a "caixa" do processo de tomada de decisão e de implementação da política externa, tornam-se múltiplas as possibilidades de influência e compartilhamento da decisão, as disputas entre agências burocráticas, a necessidade de informação e transparência junto a um público mais abrangente, bem como a relevância de se desenharem novos arranjos institucionais que logrem dar conta das demandas sociais e políticas.

Considerações Finais

As implicações da nova configuração do processo de formulação da política externa são inúmeras. Por um lado, essa configuração atual potencializa o diálogo político sobre os modelos de inserção regional e global do Brasil, seja por meio da consagrada distribuição constitucional das competências (SILVA et al., 2010), seja por meio da criação de mecanismos de coordenação de preferências para lidar com assuntos de natureza transversal (FIGUEIRA, 2010). Da mesma forma, porém, enseja disputas intra e, principalmente, interburocráticas, na medida em que as questões de política externa não cabem mais em uma rígida categorização por temas (issue areas), assumindo cada vez mais uma natureza transversal. Além disso, é preciso levar em conta que uma das razões para que diferentes temáticas se reúnam transversalmente é o enfraquecimento da rígida dicotomia entre alta e baixa política.

Não há dúvida de que o aumento do número de órgãos do governo envolvidos com temas de política externa não é feito unicamente de disputas e conflito de interesses. A própria inserção do conjunto dessas agências em um mesmo governo suscita a expectativa de que haja mais convergências do que propriamente divergências entre os integrantes. Isso, por exemplo, é o que se evidencia nas investigações sobre a chamada "diplomacia da saúde" (BUSS; FERREIRA, 2012; MELLO E SOUZA, 2012) e sobre a educação na agenda da política externa (PINHEIRO; BESHARA, 2012). Além disso, vale notar que a entrada dessas agências pode ocorrer em momentos distintos do processo, o que significa que poderão ser igualmente distintos seus graus de participação, influência, controle, assim como a demanda por accountability tanto horizontal (entre os Poderes) quanto vertical (Estado e sociedade) de sua atuação. Afinal, se admitimos que as práticas da política externa estão hoje mais próximas do cotidiano, que as escolhas estão relacionadas a interesses diversos e muitas vezes dispersos, que a política externa enfim não expressa um interesse nacional autoevidente, mas é resultado da competição, estamos por extensão trazendo para esse terreno a necessária discussão sobre a submissão da política externa aos controles e regras do regime democrático. Ao fazê-lo, no entanto, não podemos deixar de concordar com aqueles que sublinham a necessidade de maior rigor na utilização dos conceitos que constituem essa agenda de reflexão, uma vez que tais conceitos trazem, implicitamente, uma não desprezível carga política (FARIAS; RAMANZINI JÚNIOR, 2010).

A título de sugestão para futuras pesquisas, gostaríamos de propor alguns caminhos analíticos. Em primeiro lugar, consideramos imperativo avançar no debate sociológico, organizacional e institucional sobre o papel do Itamaraty e a necessidade de estabelecimento de novos arranjos institucionais de diálogo com outras instituições políticas e também com atores não estatais. Para tanto, a discussão sobre a sociologia das organizações, o processo de aprendizado e transformação da instituição e seu impacto sobre a definição do perfil internacional do país é tema de grande importância. Para citarmos um exemplo, o Itamaraty deve ser estudado como um dos lócus fundamentais de formação do pensamento social brasileiro, seu papel na construção da identidade nacional do país, seu diálogo com a produção acadêmica stricto sensu (PINHEIRO; VEDOVELI, 2012) e as consequências de um legado de política externa que também produz interesses no seio da burocracia, dessa forma reforçando e sendo fortalecida pela ideia de continuidade.

Em segundo, é imperativo repensar o lugar do Itamaraty na administração pública brasileira e nas suas relações com a sociedade civil. Levando-se em conta a profissionalização da máquina pública, o quadro atual revela que o Itamaraty não pode mais ser considerado a única ilha de profissionalismo e competência, nem ignorar que existe muita expertise a ser mobilizada fora dos muros institucionais. Em linha com essa nova realidade, a presença de uma agenda internacional nas diferentes burocracias (novidade em alguns casos e fortalecimento em outros) não pode ser dissociada de uma realidade contemporânea em que a cooperação internacional para o desenvolvimento, em particular a cooperação técnica, científica e tecnológica, ganhou enorme visibilidade e importância, neste sentido politizando, como entendido acima, as relações de troca entre os países, assim como a própria concepção sobre valores e interesses públicos, na ótica de atores institucionais e não estatais.

Um terceiro ponto a se sublinhar é que a investigação sobre essa temática não deve se restringir nem ao período que nos é contemporâneo (embora ele certamente seja particularmente rico), nem ao plano exclusivo da realidade brasileira. A investigação sobre experiências pretéritas quando não havia os vetores da globalização e suas consequências sobre a dicotomia doméstico/internacional, tampouco distinções claras entre as políticas públicas e seus responsáveis, poderá nos ajudar a compreender melhor os caminhos traçados pela política externa do país. Da mesma forma, a incorporação da perspectiva comparativa entre a realidade da PEB e a de outras potências emergentes poderá alargar nossa capacidade analítica acerca desses contextos e tensões no campo da política externa. Não se trata aqui de propor uma retomada dos projetos desenvolvidos nos anos 1960, mais interessados em metodologias quantitativas e em definir correlações entre fatores entre um número expressivo de países.

A pesquisa comparativa, no sentido que aqui estimulamos, poderia buscar entender como se envolvem, nos distintos contextos nacionais, os múltiplos atores, estatais e não estatais, domésticos e inter/transnacionais, nas agendas de política externa. Essa comparação pode ensejar novos sentidos e compreensões para como se dão os processos de politização da política externa (MILANI, 2012a). Como salientou Hill (2003, p. 10, tradução nossa), a análise de política externa deveria ser "aberta, comparativa, conceitual, interdisciplinar e atravessar as fronteiras entre o nacional, o internacional e o global". O reconhecimento dessas características permite não apenas expandir o escopo de compreensão analítica da política externa, mas igualmente as possibilidades de participação democrática na sua formulação.

Artigo recebido em 2 de julho de 2013 e aceito para publicação em 25 de outubro de 2013.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2013
  • Aceito
    25 Out 2013
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