Alterações bioquímicas e morfológicas após anastomose porto-cava e hepatectomia parcial: estudo experimental em cães

Biochemical and morphological alterations after portocaval shunt and partial hepatectomy: experimental study in dogs

ARTIGO ORIGINAL

Alterações bioquímicas e morfológicas após anastomose porto-cava e hepatectomia parcial. Estudo experimental em cães¹

Biochemical and morphological alterations after portocaval shunt and partial hepatectomy: experimental study in dogs

Valdinaldo Aragão de Melo^I;Reginaldo Ceneviva^II; Álvaro Queiroz de Godoy^IV; José Ernesto dos Santos^V; Gustavo Barreto de Melo^VI

^IProfessor Adjunto do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Sergipe

^IIProfessor Titular do Departamento de Cirurgia e Anatomia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

^IIICirurgião do Hospital Evangélico de Londrina – PR

^IVProfessor Associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

^V Acadêmico de Medicina da Universidade Federal de Sergipe

^{Endereço para correspondência}

RESUMO

OBJETIVO: Estudar os efeitos da anastomose porto-cava sobre a morfologia e bioquímica do fígado de cães.

MÉTODOS: Vinte animais foram divididos em 2 grupos: o Grupo I foi submetido à hepatectomia parcial de 28,7% e o Grupo II, à hepatectomia parcial associada à derivação porto-cava. Os parâmetros analisados foram: peso corpóreo, colesterol e triglicérides plasmáticos, lipídios e glicogênio hepáticos e índice ponderal de regeneração hepática. Os dados foram analisados no pré-operatório e no 30° dia do pós-operatório.

RESULTADOS: No Grupo I, apenas os lipídios hepáticos estavam significativamente elevados 30 dias após a cirurgia. No Grupo II, o colesterol plasmático e o glicogênio hepático apresentaram redução no pós-operatório, enquanto os lipídios hepáticos estavam significativamente elevados. Comparando-se os 2 grupos, houve diferença estatisticamente significativa nos valores do colesterol plasmático, do glicogênio e do índice de regeneraçãohepática.

CONCLUSÃO: A anastomose porto-cava causa prejuízos morfológicos e bioquímicos significativos ao fígado, além de redução significativa do peso corpóreo.

Descritores: Anastomose porto-cava. Hepatectomia parcial. Morfologia. Bioquímica.

ABSTRACT

PURPOSE: The aim of this study was to assess the effect of portocaval shunt on liver biochemical and morphological aspects in dogs.

METHODS: Twenty animals were divided into 2 groups: Group I was submitted to 28.7% partial hepatectomy and Group II underwent partial hepatectomy associated with portocaval shunt. The data analyzed were: body weight, serum cholesterol and triglyceride, hepatic lipids and glycogen and liver regeneration index. All these data were measured preoperatively and 30 days after surgery.

RESULTS: In Group I, only hepatic lipids levels were statistically increased post-operatively. In Group II, serum cholesterol and hepatic glycogen values were reduced while hepatic lipids levels were increased 30 days after surgery. When both groups were compared to each other, serum cholesterol, hepatic glycogen and liver regeneration index showed statistically significant difference.

CONCLUSION: Portocaval shunt causes morphological and biochemical impairment of the liver as well as reduction of body weight.

Key words: Portocaval shunt. Partial hepatectomy. Biochemistry. Morphology.

Introdução

A anastomose porto-cava (APC) foi muito indicada como terapêutica efetiva na descompressão do sistema porta, reduzindo a ascite e controlando a hemorragia digestiva em pacientes com cirrose hepática^1,2. Sua indicação, no entanto, foi restringida em conseqüência de diversas complicações pós-operatórias e pelos bons resultados da terapêutica endoscópica das varizes esofágicas. As principais complicações da APC são: atrofia do parênquima hepático, transtornos no metabolismo de carboidratos, lipídios e proteínas, encefalopatia porto-sistêmica e diminuição da capacidade de regeneração hepática^3-7.

O parênquima hepático pode sofrer atrofia por redução do aporte de sangue portal⁸ ou pela perda dos fatores hepatotróficos conseqüente ao desvio do fluxo portal⁹. Entre outros fatores, os elevados níveis da amônia sangüínea, decorrentes da metabolização hepática reduzida, causam a encefalopatia hepática. Ela é tanto mais grave quanto mais intensa for a lesão prévia do fígado^2,5,10.

A necessidade de se compreender melhor as alterações causadas pela anastomose porto-cava justifica novas investigações. O objetivo deste trabalho é estudar os efeitos da APC sobre a morfologia e bioquímica do fígado de cães submetidos a esse procedimento.

Ética

O presente trabalho foi realizado de acordo com as recomendações da Declaração de Helsinque, com as Normas Internacionais de Proteção aos Animais e com o Colégio Brasileiro de Experimentação Animal.

Métodos

Foram utilizados 20 cães adultos, mestiços, do sexo masculino, pesando entre 13 e 20 kg, provenientes do Biotério Central da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Eles foram divididos em 2 grupos:

- Grupo I: constituído de 10 cães submetidos à hepatectomia parcial, em média de 28,7%, mediante ressecção do lobo lateral esquerdo. Este grupo serviu como controle.

- Grupo II: constituído de 10 cães submetidos à hepatectomia parcial, em média de 28,7%, mediante ressecção do lobo lateral esquerdo, e APC término-lateral.

No dia da cirurgia, os animais foram mantidos com água ad libitum. Nembutal sódico (etil-1 metil-butil-barbiturato sódico) na dose de 30 mg/kg de peso corpóreo foi aplicado endovenosamente e complementado quando se percebia superficialização da anestesia. A respiração foi controlada com respirador automático e cânula traqueal.

Após tricotomia e antissepsia da região abdominal anterior, realizou-se laparotomia com incisão mediana longitudinal xifo-umbilical. Posteriormente, ressecou-se, nos 2 grupos, o lobo lateral esquerdo depois de dissecção adequada dos ligamentos e do hilo hepático. No Grupo II, além do que foi descrito, foi feita APC término-lateral. Para tanto, a veia cava inferior foi dissecada desde a veia renal direita até o segmento retro-hepático. Os pequenos vasos lombares foram ligados. A veia porta também foi dissecada desde a esplênica até sua bifurcação. Após pinçamento de ambas as veias, a veia porta foi seccionada, com ligadura do coto distal, junto ao fígado, e o proximal, anastomosado à cava inferior. Finalizado esse procedimento, a cavidade abdominal foi fechada mediante sutura da parede por planos.

No primeiro dia pós-operatório, os animais receberam dieta líquida e, a partir do segundo, alimentos sólidos foram liberados. Trinta dias depois da cirurgia, os cães foram submetidos à retirada de sangue venoso após 12 horas de jejum. Posteriormente, foram sacrificados com o uso de nembutal sódico até parada cárdio-respiratória.

Os parâmetros utilizados foram os seguintes:

1. Peso corpóreo (kg): os animais foram pesados antes e 30 dias depois da cirurgia.

2. Dosagem de colesterol plasmático (mg/dl): foi determinado no período pré-operatório e no 30° dia do pós-operatório.

3. Dosagem dos triglicérides plasmáticos (mg/dl): foram analisados antes e 30 dias após a cirurgia.

4. Quantificação de lipídios no tecido hepático (g%): o fígado retirado na hepatectomia e no sacrifício após 30 dias foi utilizado para essa dosagem.

5. Quantificação do glicogênio hepático (g%): analisado com a amostra de fígado retirada na cirurgia e no sacrifício.

6. Índice ponderal de regeneração hepática (IR): a partir do lobo lateral esquerdo ressecado (LLE), equivalente a 28,7% do total, foi calculado o peso do fígado remanescente (FR). O fígado ressecado e pesado por ocasião do sacrifício correspondeu ao peso do fígado à necropsia (FN). O índice de regeneração hepática foi calculado pela formula de CHILD¹¹: IR = (FN – FR)/LLE x 100. Quando a diferença entre o peso do fígado à necropsia e o peso do fígado remanescente calculado era igual ao removido durante a cirurgia, o índice de regeneração correspondia a 100%.

Para a análise estatística dos resultados que envolveram até duas observações, como pré e pós-operatório, utilizou-se o teste de Wilcoxon e nos que envolveram mais de duas observações, o teste de Friedman. Para as comparações de dois grupos diferentes de procedimentos, foi utilizado o teste de Mann-Whitney. O nível de significância considerado foi de 0,05.

Resultados

Os resultados pré e pós-operatórios do peso corpóreo, colesterol plasmático, triglicérides, lipídios e glicogênios hepáticos dos Grupos I e II estão expressos, respectivamente nas tabelas 1 e 2.

Não houve diferença do peso corpóreo dos animais do Grupo I antes e 30 dias após o procedimento cirúrgico. Nos animais do Grupo II, houve perda de peso no pós-operatório estatisticamente significativa.

Entre os cães do grupo controle, o colesterol plasmático não estava alterado 30 dias após a cirurgia. Nos animais do grupo submetido à anastomose porto-cava, houve redução significativa no mesmo período. Diferença estatística também foi encontrada quando se compararam os dois grupos no período pós-operatório (p<0,01).

Em relação aos valores de triglicérides plasmáticos, não houve diferença estatisticamente significativa entre os períodos pós e pré-operatórios nos animais em cada grupo e entre os dois grupos.

Na quantificação dos lipídios, houve diferença estatística entre os períodos analisados em ambos os grupos de animais. Quanto ao glicogênio, foi constatada diferença entre o grupo controle e o com APC 30 dias após a cirurgia (p<0,001).

O índice ponderal de regeneração hepática apresentou diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos de cães, com um valor de 112,3 ± 54,7% para o Grupo I e de –21,2 ± 28,4% para o Grupo II.

Discussão

A derivação do sangue portal para a veia cava inferior foi idealizada no final do século XIX como opção terapêutica para descompressão do sistema porta em presença de hipertensão portal¹². Entretanto, após a descoberta de várias complicações pós-operatórias, esse procedimento passou a ser substituído pelas derivações seletivas e cirurgias não-derivativas^10,13.

Entre as complicações do desvio do sangue portal, cita-se a alteração do estado nutricional, avaliado na maioria dos casos pela modificação do peso corpóreo e taxas de proteínas plasmáticas^{14, 15}.

Em alguns trabalhos, foi relatado redução de 25% de peso corpóreo após um mês de observação e 28,3% depois de cinco meses^14,15. Os resultados obtidos neste trabalho foram concordantes com os descritos na literatura. Observou-se redução de 16,1% no peso corpóreo dos animais submetidos à derivação porto-cava, enquanto os submetidos apenas à hepatectomia parcial não apresentaram modificação.

A explicação mais adequada para essa alteração é que a exclusão do fígado do sangue portal altera significativamente o metabolismo protéico, conduzindo o animal a um estado de desnutrição protéica progressiva¹⁴.

Foi observada redução significativa do colesterol plasmático nos animais com APC, enquanto os triglicérides não apresentaram alterações significativas nos dois grupos.

Observando dados encontrados na literatura, pode-se notar que a APC diminui a massa hepática e síntese de colesterol^16,17. Esse tipo de derivação portal já foi utilizado para o tratamento de hipercolesterolemia familial no homem, promovendo redução do colesterol plasmático de 30 a 40%. Atualmente, no entanto, o transplante hepático é considerado a opção terapêutica mais adequada¹⁷.

A avaliação bioquímica do tecido hepático incluiu a dosagem dos lipídios totais e do glicogênio. Os primeiros aumentaram significativamente após hepatectomia parcial isolada ou com anastomose porto-cava, tendo nesta o efeito mais acentuado. Uma explicação para esse acúmulo de gordura seria a redução de lipoproteínas pelo fígado ou a diminuição de sua capacidade de oxidação dos ácidos graxos¹⁸.

As dosagens de glicogênio hepático foram feitas após 12 horas de jejum e houve uma redução para um décimo do valor inicial nos animais submetidos à derivação do sangue portal. O mecanismo pelo qual isso ocorre é desconhecido.

Bismuth e col.¹⁹ observaram o aumento da concentração periférica da insulina após a anastomose porto-cava, promovendo maior utilização periférica de glicose. Esse aumento parece ser o responsável pela correção da glicemia e tolerância ao jejum no paciente com glicogenose após APC. A glicose não seria captada e estocada no fígado sob a forma de glicogênio não utilizável.

O índice de regeneração hepática demonstrou uma recuperação ponderal total da massa hepática após a hepatectomia parcial em observação de um mês. O sangue portal tem grande importância na regeneração hepática, por carrear fatores hepatotróficos importantes para a adequada regeneração^8,9.

A regeneração hepática, tendo como parâmetro a massa hepática, estava reduzida nos animais com derivação porto-cava após um mês de observação.

Sabe-se que o desvio do sangue portal diminui o débito sangüíneo hepático total, privando-o do oxigênio e fatores hepatotróficos provenientes da veia porta e necessários aos processos metabólicos do fígado²⁰. A restauração desse fluxo previne a atrofia hepática²¹.

Conclusão

A anastomose porto-cava causa prejuízos morfológicos e bioquímicos significativos ao fígado, além de redução significativa do peso corpóreo.

Data do recebimento: 19/12/2002

Data da revisão: 28/12/2002

Data da aprovação: 07/01/2003

Conflito de interesse: nenhum

Fonte de financiamento: nenhuma

1. Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  08 Out 2003
• Data do Fascículo
  Jun 2003

Histórico

• Aceito
  07 Jan 2003
• Revisado
  28 Dez 2002
• Recebido
  19 Dez 2002