Resumos
Da dupla perspectiva das "alianças" e do Modo de Reprodução Ampliada do Capital (MRAC), as alianças são vantajosas apenas quando os países que as fazem estão no mesmo grau de maturação do MRAC, ou contribuem para que novos associados atinjam o estágio dos mais desenvolvidos. O acordo do Mercosul igualou do mais forte aos mais fracos. Já o ingresso na Alca e um acordo com a União Européia são alianças em que o Brasil será a parte mais fraca.
capitalismo; relações internacionais; Mercosul
According to the double theories of "alliances" and the Amplified Capital Reproduction Mode (MRAC), alliances are advantageous only when their members enjoy the same level of MRAC development, or when they contribute to elevating new member nations to the same level as the most developed members. The Mercosul agreement brought the strongest member down to the level of the weakest. The FTAA, however, and the agreement with the European Union, are alliances in which Brazil would be the weakest member.
capitalism; international relations; Mercosul
ENTRE DOIS AMORES
OLIVEIROS S. FERREIRA
Resumo: Da dupla perspectiva das "alianças" e do Modo de Reprodução Ampliada do Capital (MRAC), as alianças são vantajosas apenas quando os países que as fazem estão no mesmo grau de maturação do MRAC, ou contribuem para que novos associados atinjam o estágio dos mais desenvolvidos. O acordo do Mercosul igualou do mais forte aos mais fracos. Já o ingresso na Alca e um acordo com a União Européia são alianças em que o Brasil será a parte mais fraca.
Palavras-chave: capitalismo; relações internacionais; Mercosul.
Abstract: According to the double theories of "alliances" and the Amplified Capital Reproduction Mode (MRAC), alliances are advantageous only when their members enjoy the same level of MRAC development, or when they contribute to elevating new member nations to the same level as the most developed members. The Mercosul agreement brought the strongest member down to the level of the weakest. The FTAA, however, and the agreement with the European Union, are alliances in which Brazil would be the weakest member.
Key words: capitalism; international relations; Mercosul.
"O Brasil e os blocos internacionais" é um tema que pode ser tratado de diferentes perspectivas. O que não impede que seja visto com a perspectiva das "alianças", já que a adesão a este ou aquele bloco econômico ¾ supõe-se que o que interessa discutir seja a pertença do Brasil a um qualquer deles ¾ tem todas as características de uma aliança e deva obedecer o mais possível às normas que regem a conduta de quantos se abalançam a fazer esse tipo de associação. Possivelmente por deformação intelectual, parte-se do princípio de que a associação só se dará entre Estados, malgrado todas as considerações que se possam tecer para diminuir sua importância em um cenário globalizado.
As relações entre as nações, quer as especificamente estatais, quer aquelas de que participam outros atores que não os Estados ¾ atualmente, este é o caso, quando as empresas transnacionais ocupam posição de relevo no comércio internacional e são objeto da preocupação intelectual de quantos as fazem protagonistas do jogo político e diplomático internacional a igual título que os Estados ¾ dão-se hoje em cenário planetário. Com isso, não se quer dizer que as relações econômicas entre a Inglaterra e seu Império e os demais países que comercializavam com a Ilha-mundo não cobrissem praticamente todo o mapa-múndi, embora não se pudesse dizer que o sistema produtivo fosse o mesmo em Calcutá e Manchester. Com esse "planetário", demonstra-se que o Modo de Reprodução Ampliada do Capital (MRAC) ¾ que define o sistema produtivo em quase todos os países representados nas Nações Unidas ¾, é hoje dominante no mundo, muito mais do que o era até a Primeira Guerra Mundial. Esse fato pode ser constatado sem grande dificuldade, sobretudo após a Perestroika e de tudo o que veio depois dela na Europa Centro-Oriental e na antiga União Soviética, das transformações que se estão processando no Sudeste Asiático (em especial na antiga Indochina, particularmente no Vietnã) e do progresso econômico da China e seu empenho em ingressar na Organização Mundial do Comércio. Mais do que isso, porém, o cenário planetário ¾ para não dizer a globalização ¾, faz que, nas relações entre as nações, o destino de cada Estado esteja sendo jogado, com paradas mais ou menos altas, em qualquer recanto do mundo por menor que seja a distância (em milhas marítimas ou terrestres) que separe esse terruño (como diria um espanhol) dos Estados hegemônicos ou que sejam pretendentes à hegemonia no sistema internacional. Esse fato não deve obliterar a consciência do outro. Neste cenário, se as principais ações diplomáticas objeto da maioria das análises dos estudiosos são aquelas desenvolvidas pelos Governos hegemônicos ou desejosos de ocupar essa posição tendo em vista seu poder e sua posição geopolítica, não se deve esquecer o papel que é representado por Estados menos importantes do ponto de vista de poder, inclusive militar, mas que ocupam posição de relevo no mapa que configura a chamada nova divisão internacional do trabalho. Em outras palavras, no estudo das associações ou dos blocos econômicos internacionais, interessa ver qual a relação que os países com menor poder (e neste momento interessa ter sempre presente não apenas o poder militar, mas também as potencialidades ou condições econômicas reais) têm com os hegemônicos.
Para uma mais correta compreensão do sistema em que o Brasil se insere e no qual deverá concertar suas alianças, pesando fatores de força e de fraqueza, é necessário tecer algumas considerações de ordem geral sobre o sistema econômico-financeiro internacional e fazer um pouco de história ¾ sem ser economista ou historiador. Toma-se como idéia geral, como se percebe, a classificação que Raymond Aron faz dos diferentes cenários: o europeu até 1917; o cenário internacional em que se dão as relações interestatais desde a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial até a rejeição da Sociedade das Nações pelo Congresso norte-americano e desse momento até 1941; e o planetário, que é atual desde o ataque japonês aos Estados Unidos. Dessa perspectiva, o que se classifica de cenário planetário pode ser apresentado como as "forças profundas" ¾ de que afirma Renouvier ¾, mas com uma ressalva. No pós-guerra 1939/45, há dois processos que não podem ser esquecidos: um, o predomínio incontestável dos Estados Unidos, que perdurou anos ¾ enquanto a Europa Ocidental e o Japão não se recuperavam ¾, cerca de 50% do PIB mundial e que, ainda que perdendo essa posição, continuam a maior potência econômica do planeta; outro, a continuação do processo de autonomia capitalista de algumas "nações atrasadas" (no sentido em que Rosa Luxemburgo define esse processo em A acumulação do capital). Não se deve esquecer que nesse período houve a ocorrência de fatos que constrangeram o triunfo global do MRAC em sua tipicidade. Fora do bloco socialista, assistiu-se em algumas décadas a volta ao protecionismo generalizado nas nações industrializadas e em via de desenvolvimento. Se, nas primeiras, as barreiras tarifárias e não-tarifárias criaram obstáculos ao comércio internacional, mas de um modo geral não deram origem a processos produtivos ineficientes da perspectiva do modo de produção (a negação desse fato é o atraso da indústria do aço nos Estados Unidos), nos países em via de desenvolvimento o protecionismo retardou a plena vigência do MRAC e o estabelecimento de relações sociais e políticas impregnadas de seu espírito racional. Ao mesmo tempo ¾ e para essa contradição é necessário atentar-se ¾ verificou-se o surgimento de outros obstáculos à difusão do MRAC, cada vez mais difíceis de serem transpostos, com a consolidação da União Soviética, a ocupação de parte da Alemanha e de toda a Europa Oriental pelos exércitos soviéticos, a vitória do Partido Comunista na China e o triunfo do processo de descolonização em muitos países da África e da Ásia. O bloco socialista, apesar dos contatos econômicos que manteve com o chamado Ocidente, de certo modo isolou-se de um processo que tende a ser global (como Marx já apontava no Manifesto), embora a economia no bloco continuasse, como querem alguns, presa à produção de mercadorias. Ainda que isso se desse, é preciso ter presente que o sistema político-econômico que vigorou em todo o Comecon, na China e nos países ásio-africanos que aderiram ao modelo soviético (com as variações nacionais necessárias), reduziu o espaço geográfico necessário à expansão do MRAC ¾ presente o esquema de Luxemburgo ¾, o que levou a que sua expansão, sobretudo quando expressa nos fluxos monetários, fosse limitada ao espaço geográfico conhecido como "Mundo Livre". O mundo era "livre" do ponto de vista ideológico e para a condução da guerra fria. Na realidade, no espaço social em que, no "Mundo Livre", dava-se a produção de mercadorias e a realização do valor nelas contido, conviviam sistemas sociais inteiramente distintos e até antagônicos tomando como referência o que Schumpeter dizia ser próprio do capitalismo: um sistema econômico que produz, como tipo e no limite lógico de sua ação social, a democratização, a individualização e a racionalização dos comportamentos dos indivíduos. Em outras palavras, no chamado "Mundo Livre", podiam encontrar-se, como até hoje se encontram, sistemas sociais em que os indivíduos ainda estão presos a constrangimentos não-estatais ¾ para não falar de uma exacerbação da coação estatal ¾ e não agem como seres economicamente racionais. Para dizer de outro modo, conviviam, no espaço geográfico em que se dava a acumulação do capital no "Mundo Livre", sistemas produtivos típicos do MRAC e sistemas que ainda não tinham conseguido aproximar-se do que seria o tipo-ideal desse modo de produção: democracias e ditaduras; sistemas sociais em que a ação social era racional com relação a fins e valores econômicos; e outros em que a ações sociais eram irracionais com relação a fins e valores econômicos ¾ tomados uns e outros em sua tipicidade. Nota-se com isso, que havia países em que o MRAC tinha fixado raízes profundas, e países em que, por força de acordos não escritos entre as elites social e economicamente dominantes, conviviam, lado a lado, a produção segundo as normas não escritas do MRAC e aquela em que o espírito capitalista não havia penetrado por força do constrangimento a que as organizações sociais que sustentavam as classes dominantes submetiam a economia e a sociedade.
Contudo, não é possível esquecer que se realizaram e continuam sendo atuais as previsões de Marx quanto a superação das fronteiras nacionais, na forma de organizações supranacionais. A convergência, se assim se pode dizer, entre a previsão teórica e a realidade econômica deu-se, antes de mais nada, na Europa, onde o capitalismo moderno lançara suas raízes. Como se lê no Manifesto, ao ocupar a maior parte do espaço geográfico europeu, o MRAC "tornou cosmopolitas a produção e o consumo de todos os países. Para tristeza dos reacionários" ¾ continua Marx ¾ "ele fez que a indústria perdesse suas bases nacionais. (...) As antigas necessidades são substituídas por necessidades novas, que reclamam produtos de países e climas os mais longínquos para poder ser satisfeitas. Os produtos intelectuais das diferentes nações tornam-se propriedade comum a todos". Fosse por motivos de ordem política (a superação da rivalidade franco-alemã), fosse por considerações de ordem econômica (a economicidade das organizações supranacionais controlando primeiro a produção do aço e do carvão mediante a ação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço, depois estabelecendo regras para o funcionamento de um mercado quase-continental), fosse por força do idealismo de alguns políticos como Jean Monet, Robert Schumann, Konrad Adenauer e Alcide de Gasperi, fosse para contrabalançar a hegemonia norte-americana, o fato é que o MRAC conseguiu realizar seu tipo, superando fronteiras nacionais, primeiro num espaço geográfico quase-continental e numa organização econômica internacional, depois supranacional, na Europa.
O Nafta só aparece depois e como união aduaneira (note-se a distância política e organizatória entre Europa e América do Norte). Há entre os dois blocos diferenças que permitirão colocar o problema da participação de um país como o Brasil em blocos internacionais de uma perspectiva mais próxima da realidade. Com isso, pretende-se chamar atenção para o fato de que a União Européia, mesmo tendo que defender políticas de subsídios internos e para exportação e acordos tarifários com países africanos (acordos que se poderia dizer serem reminiscências do passado imperial e contrariarem a racionalidade interna do MRAC) e lance mão da imposição de barreiras tarifárias e não-tarifárias, só pôde unir-se porque os países que decidiram firmar o Tratado de Roma estavam praticamente no mesmo estágio de maturação do MRAC. Mais do que isso: como razões geopolíticas impuseram o ingresso de Portugal e Espanha na nova estrutura econômica (que depois se transformaria numa estrutura política em sua relação com o mundo exterior), a Comunidade Européia dedicou, durante alguns anos, uma boa soma de dinheiro para que as estruturas econômicas e os sistemas financeiros dos dois países chegassem a um estágio próximo da média da maturação do MRAC nos demais países-membros. Nada disso sucedeu na América do Norte com o Nafta, que é também um bloco internacional. Especificamente quanto ao México, que embora tenha tido durante alguns momentos, em especial do ponto de vista financeiro, vantagens com sua adesão à zona de livre-comércio, não recebeu auxílios para realizar transformações que lhe permitiriam evoluir estruturalmente e aproximar-se econômica e socialmente, em sua totalidade, dos padrões típico-ideais do MRAC vigentes em boa parte dos Estados Unidos.
Essas observações permitem concluir quanto ao raciocínio daqui para a frente: tal qual nas alianças, a participação em blocos internacionais só apresenta vantagens para um país quando ele se encontra no nível médio da maturação do Modo de Reprodução Ampliada do Capital dos outros membros do bloco ou quando recebe ¾ sem necessidade de abdicar de seu poder de decisão estatal ¾ auxílios suficientes como que para dar o salto que lhe permitirá ombrear com os mais desenvolvidos. Em outros termos, as alianças, para serem benéficas, devem ser feitas entre iguais.
Ao analisar a recuperação da Europa e do Japão, tem-se insistido em que o auxílio norte-americano obedeceu ao interesse egoísta de voltar a criar mercados para os bens produzidos pela indústria, pelo comércio e pelos serviços nos Estados Unidos, permitindo a realização de seu valor e a acumulação do capital no país produtor. Embora esse objetivo não fosse presente à consciência dos que idealizaram o Plano Marshall e o auxílio ao Japão, o resultado das operações acabou conduzindo a esse fim ¾ e a outro, sem dúvida não esperado, qual fosse a progressiva diminuição da participação dos Estados Unidos no PIB mundial. Essa redução em pontos percentuais não significou, em razão da magnitude do PIB e o poderio militar dos Estados Unidos, a diminuição do poder norte-americano. Convém, no entanto, atentar para um pormenor: esse tipo de análise só será completo se não se perder de vista que, para que se dê a acumulação do capital, é necessário que se realize o valor contido nos bens produzidos, vale dizer, eles sejam transformados em moeda. Ora, nas relações econômicas entre as nações, a transformação em moeda significa liquidez cambial de quem compra ¾ seja liquidez "material", em moeda forte sonante ou escritural possuída pelo comprador, seja obtida mediante créditos ou empréstimos. O Plano Marshall, afora ter sido inspirado pela percepção ¾ que depois se revelou ilusória ¾ da ameaça soviética aos governos da Europa Ocidental, teve um objetivo econômico-financeiro consciente e imediato, que foi a criação de liquidez nos países que aderiram à proposta do secretário de Estado, liquidez essa que permitisse a superação da crise cambial em que a Europa estava mergulhada. A crise cambial, antes de atingir as relações políticas, reflete-se antes de mais nada na economia, que pára, impossibilitado que se encontra o país de importar matérias-primas e peças de reposição; em seguida, ou quase imediatamente, a crise cambial ameaça a governabilidade. Em 1947 ¾ essa era a percepção que os planejadores da política externa norte-americana tinham do cenário, reforçada pelos temores das lideranças políticas européias ¾, estavam em jogo os governos e os sistemas políticos, especialmente na Grã-Bretanha, na França e na Itália. Ora, a manutenção da governabilidade nesses países era essencial ao êxito da política de containment que já se esboçara com a Doutrina Truman de auxílio à Grécia e Turquia.
Se se chama atenção para esses fatos de conhecimento geral é para assinalar a necessidade de se ter sempre presente que o MRAC só pôde realizar-se, historicamente, antes da Primeira Guerra e depois da Segunda Guerra Mundial, porque houve liquidez cambial no sistema internacional. Sem ela, o MRAC não poderia tornar-se de fato global, como reclama sua racionalidade interna (nos termos em que Marx colocou a questão, já no Manifesto). Liquidez cambial ou ¾ negando os princípios do livre cambismo ¾, trocas internacionais pelo sistema de barter e/ou de compensação, sistema que, criando um Ersatz de liquidez monetária, enseja que a economia desenvolva-se como se deu na reconstrução alemã depois da Primeira Guerra Mundial (e o Brasil desempenhou, ainda que modestamente, seu papel no processo inicial da recuperação da economia do III Reich, dele se beneficiando).
O processo de globalização ¾ que, insiste-se, nada mais é do que o triunfo global do Modo de Reprodução Ampliada do Capital ¾ só foi possível em sua atual forma histórica1 pela existência de liquidez no sistema internacional depois da Segunda Guerra Mundial. (Diz-se "atual forma histórica" para não entrar na discussão sobre as diferentes formas e maneiras pelas quais se deu a "globalização" a partir do século XVI.) Ao dizer "Grande liquidez" significa que a quantidade de moeda em circulação (qualquer que seja a forma que aparece nos mercados, desde moeda papel, passando por moeda escritural até a moeda virtual nas transações por via eletrônica) é maior do que a necessária para permitir e garantir o "giro econômico". Em outras palavras, a movimentação financeira é maior do que a quantidade de capital necessária à produção de bens e serviços. Impõem-se duas observações: a primeira, é que foi nos anos 70 que se deu a conjunção da revolução da informática com os efeitos sensíveis do aumento da liquidez internacional; a segunda, é que a expressão "Grande liquidez" indica que em certo momento histórico, além da moeda estritamente necessária ao processo produtivo, os governos puderam "criar" moeda pela expansão do crédito e das quantidades das diferentes moedas M1...M4, mesmo que isso conduzisse à inflação, que por sua vez aumentaria a liquidez. A referência à revolução da informática é necessária porque foi ela que acelerou o processo de integração dos mercados e do Capital (agora com maiúscula) e permitiu um aumento extraordinário da produtividade. Além do aumento do crédito e da massa monetária (fatos que ocorrem nos mercados nacionais com repercussão externa maior ou menor) é necessário considerar que a liquidez internacional aumentou, fora de controle, pela entrada no mercado financeiro dos eurodólares, primeiro, e dos petrodólares, depois. Isso para não mencionar os efeitos inflacionários mundiais que teve a decisão do presidente Nixon, em 1971, de pôr fim à paridade do dólar com o ouro. O aumento da liquidez em decorrência desses fatores, facilitada cada dia mais pela informática, indica que não é mais o bem ou serviço produzido que se transforma em moeda, criando a possibilidade de realização do valor, do lucro, da poupança (em situações de normalidade econômica) e conseqüentemente da acumulação. Em outras palavras, à medida que essa moeda circula no circuito mundial, ela deixa de ser o resultado de um processo econômico em que o mercado valora os bens (mercadorias e serviços) e estabelece seu preço, e passa a ter, ela própria, seu "valor" ¾ estamos diante do que Mandel chama de "capital-moeda". Mais ainda. Mesmo com a informática, o "giro econômico" tem menor velocidade que o "giro financeiro", isto é, o tempo de maturação dos investimentos na cadeia produtiva é, de modo geral, maior do que o do investimento financeiro. O "tempo econômico", o tempo de maturação do investimento, é dado pela tecnologia que comanda o início da operação produtiva e pela demanda do mercado. Já o "tempo financeiro", vale dizer, o tempo em que o dinheiro aplicado deve render o esperado, é sempre estabelecido pelo investidor individual ou institucional que, como se fosse Monsieur Jordan, repete Gil Vicente sem saber: "Eu hei nome Todo Mundo/ e meu tempo todo inteiro/ sempre é buscar dinheiro/ e sempre nisso me fundo".
Quando se tem conhecimento do enorme volume de dinheiro que circula todos os dias pelo mundo, é preciso não esquecer que essa movimentação por via eletrônica (pois foram os progressos nas comunicações que permitiram tal circulação anormal de dinheiro pelo mundo) potencializou a intermediação bancária, à medida que esse dinheiro deve render, e a única maneira de fazê-lo "produtivo" é mediante empréstimos a empresas ou governos ou aplicação em mercados acionários ou de derivativos. O segundo fator a ser considerado é que, ao longo do tempo, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, os investimentos produtivos ou as aplicações em bolsas de valores e títulos governamentais e commercial papers passaram a ser institucionais (bancos privados, governamentais ou internacionais como o Bird, fundos de pensão), deixando de ser de pessoas físicas em sua maioria. Esse fato tolheu relativamente a liberdade de manobra dos mutuários, tendo em vista as teias de influência e comprometimento dos sistemas financeiros que aplicam e emprestam no exterior com os governos de seus respectivos países. O terceiro fator relevante é este ¾ embora as análises todas cuidem da globalização ¾, essa nova fase do MRAC assenta, na realidade, em economias nacionais nas quais os Estados nacionais, cuja morte tantos celebram ou carpem, têm relativo controle pela fixação de políticas cambiais (quando conseguem sustentar um tipo fixo de câmbio) e/ou monetárias. Ora, não foi no instante em que os Estados morreram ou perderam função, mas naquele em que os agentes econômicos conseguiram, intencionalmente ou não, fazer que aplicações de capital, financeiras em sua essência, contribuíssem para manter a governabilidade ou desestabilizar governos pela flutuação das taxas cambiais que se tomou consciência que alguma coisa havia mudado na economia mundial e que se estava diante de um novo cenário, denominado globalização. Esse novo cenário foi possível porque se tornou viável para as empresas e para os governos socorrerem-se, em volume antes impensável, de capitais (empréstimos ou créditos) em valor suficiente para levarem avante seus projetos e cimentar suas ambições de poder. Note-se que não se está diante de um mito grego, e que a massa de dinheiro que permitiu a globalização ¾ afinal, sem Moeda não é possível continuar o processo produtivo e realizar a acumulação ¾ não pode ser comparada a Palas Atena, a deusa grega que surgiu já pronta e já armada da cabeça de Zeus. Houve um momento em que o capital-moeda irrigou os mercados financeiros e, em conseqüência, econômicos. O aparecimento do eurodólar, moeda não sujeita ao controle dos bancos centrais europeus, marca o início desse processo. A partir da crise que se seguiu à alta dos preços do petróleo em decorrência da decisão da Opep, em 1973, ao eurodólar acrescentaram-se os petrodólares. Sua abundância, nos primeiros anos subseqüentes, permitiu o extraordinário aumento da dívida externa dos países em desenvolvimento (até mesmo dos que não tinham condições de lastrar em suas economias os empréstimos que faziam). O ciclo do petrodólar tem uma característica perversa: o dinheiro foi tomado em curto prazo dos produtores de petróleo pelos bancos que o emprestavam para projetos de longa maturação, como hidrelétricas ¾ e para que as operações financeiras de débito e crédito pudessem bater no final, um empréstimo suposto de longo prazo constituiu-se, a rigor, em n empréstimos de curto prazo, de seis meses pelo menos, com juros flutuantes. O caráter perverso e antieconômico dessas operações é responsável em grande parte pela crise da dívida externa dos países em desenvolvimento ¾ sem contar a cupidez dos empresários dos países desenvolvidos que procuravam vender não importa a que preço (pago pelos governos compradores) os seus produtos para projetos muitas vezes mirabolantes, e pela corrupção que grassou em muitos países, a qual ensejou a transferência para paraísos fiscais de boa parte dos empréstimos externos.
A essas considerações acrescenta-se outra ¾ igualmente relevante, embora nem sempre levada em conta no raciocínio sobre relações econômicas internacionais e internas, e que de uma maneira ou de outra obriga os governos a valerem-se da intermediação bancária internacional para garantir a governabilidade interna ¾, o crescimento demográfico, associado ao envelhecimento das populações. Quando se observa o problema econômico dessa perspectiva, o dado mais importante, por ser o que tem efeitos mais imediatos sobre a economia e a vida social, é o aumento da população. O crescimento populacional é relevante por um fato simples: conforme sua taxa, a economia nacional deverá ser sólida o suficiente para permitir a criação de empregos e serviços (geralmente públicos, como educação, saúde e transportes) capazes de atender às novas gerações que chegam ao mercado de trabalho. No pós-guerra 1939/45, o custo da criação de empregos industriais só tendeu a aumentar, fosse por causa da inflação, fosse porque a tecnologia que começava a ser introduzida no processo produtivo exigia investimentos cada vez maiores. Conforme as características do sistema político, esses investimentos deverão ser feitos pelas empresas, ou seja, pela combinação da poupança privada (empresarial ou individual) com o esforço dos Governos ou apenas pelos Governos. Entre esses, aqueles cuja economia não tem condições estruturais ou político-sociais (sobretudo um sistema fiscal razoavelmente "democrático", isto é, em que todos pagam) capazes de assegurar superávites fiscais que permitam a um tempo a acumulação privada e a expansão dos serviços públicos, recorrem a empréstimos externos para atender a essas necessidades. Empréstimos, note-se, que têm de ser pagos de uma maneira ou de outra. Essa "maneira ou outra" resume-se simplesmente em saldos na balança comercial ou rolagem dos empréstimos vincendos. Ou então, se não se pretende recorrer a capitais externos, pelo aumento da carga tributária, que pode ser democraticamente distribuída entre todos ou onerar as camadas mais pobres da população ¾ como tem sido a norma em praticamente todos os países, considerando-se a relação social de forças. Afinal, é preciso não esquecer que, assim como a inflação, a carga tributária é, antes de mais nada, um fato político, pois implica a transferência de renda de uma parte da população para outra, menor. A má distribuição da carga tributária é, igualmente, um fato político resultante da relação de forças entre o Governo e a Sociedade, como Rousseau apresentou a questão com enorme lucidez no primeiro parágrafo do Livro III, capítulo X, do Contrato Social: "Assim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, o Governo despende um esforço contínuo contra a soberania. Quanto mais esse esforço aumenta, tanto mais se altera a constituição e, como não há outra vontade de corpo que, resistindo à do príncipe, estabeleça equilíbrio com ela, cedo ou tarde acontece que o príncipe oprime, afinal, o soberano e rompe o tratado social. Reside aí o vício inerente e inevitável que, desde o nascimento do corpo político, tende sem cessar a destruí-lo, assim como a velhice e a morte destroem, por fim, o corpo do homem".
A avaliação dos fatores de força e fraqueza de um país quando se vê diante do desafio de fazer ou não alianças econômicas depende muito da idéia que o observador tenha das estruturas sociais e da organização política da nação que está estudando. No fundo, o modo pelo qual as elites dominantes dirigirão o processo econômico, político e cultural (permitindo ou não que a racionalidade do MRAC seja dominante na economia e informe as condutas sociais) está sempre relacionado com a inter-relação entre as estruturas sociais, a organização política e o ethos predominante em toda a sociedade, vale dizer, aquela que é juridicamente delimitada pelo Estado em determinado território. É para essa inter-relação que se deve atentar para poder verificar em que condições os governos brasileiros fizeram as alianças econômicas que, hoje, constrangem a ação estatal e as forças privadas da sociedade.
Não é esta a ocasião para analisar a fundo como se deu historicamente, no Brasil, a relação entre a Agricultura, a Indústria e o Sistema Financeiro, sobretudo a partir de 1930, e para procurar estabelecer qual o ethos que predominou no processo político e econômico, decorrência dessa relação.2 Basta, para o fim que se tem em vista, deixar claro que a organização sindical e o sistema político permitiram a longa duração, no plano do Estado, do condomínio entre grupos com interesses econômicos e sociais (presumidamente determinados pela adequação das condutas econômicas ao MRAC) não convergentes e até mesmo antagônicos, em muitos casos. Esse condomínio entre os diferentes setores produtivos é o resultado de um longo processo que se consolidou a partir de 1930; é nesse momento que se verifica que a revolução que deitou abaixo a República Velha e veio cercada das maiores esperanças, foi gestada, exatamente, no Brasil que não havia atingido um estágio de desenvolvimento que se pudesse chamar de capitalista.3 Esse condomínio, que se chamou de "Sistema", respondeu e responde pela persistência no conjunto da sociedade brasileira de muitos aspectos de um ethos que se diria não moderno ¾ por moderno, entendendo-se um comportamento econômico de acordo com a racionalidade implícita no MRAC. A predomínio desse ethos verifica-se, hoje, pelo maior peso que os aspectos financeiros e fiscais têm sobre os econômicos na formulação das políticas não apenas governamentais, mas igualmente de amplos setores produtivos, e nas condutas individuais de integrantes de vastas camadas da população. O condomínio dos interesses econômico-políticos da Indústria e da Finança com os interesses sociais e políticos (igualmente, se não sobretudo econômicos) das camadas dominantes de regiões em que ainda não se verificou a plena maturidade do MRAC, determinou uma peculiaridade do desenvolvimento brasileiro: o desinteresse da Indústria e da Finança do Sul pela alteração das estruturas econômicas das demais regiões, confiantes em que o processo evolutivo da economia permitiria que tudo viesse a se igualar no final dos tempos. O síndico desse condomínio foi o Estado até o governo Collor, quando a abertura das alfândegas deu início a um processo em que a Indústria e a Finança viram-se forçadas a enfrentar a concorrência estrangeira. Duas atitudes eram possíveis, então: enfrentar a concorrência (se houvesse capital suficiente para realizar a modernização dos processos produtivos) ou simplesmente vender empresas para gozar dos rendimentos do principal auferido, ou então iniciar em novo patamar tecnológico um novo empreendimento. É essa questão ¾ "velho" (o tradicional condomínio de interesses contraditórios) e "novo" (a entrada do capital estrangeiro com velocidade e força insuspeitadas de início) ¾ que explica as diversas alianças feitas no plano internacional.
O que se pretende esclarecer quando se fala em "condomínio", é que por força dos interesses que se criaram e da solidariedade objetiva que passou a existir entre integrantes dos diferentes setores produtivos, ninguém pretendendo abalar a dominação local ou regional de ninguém, os que militavam na Indústria e na Finança ¾ setores que na teoria teriam interesse econômico em romper as estruturas sociais das regiões mais atrasadas do País ¾, em especial seus representantes nas chamadas entidades de classe, conformaram-se simplesmente com auferir algum lucro nas operações realizadas nas regiões mais atrasadas do ponto de vista socioeconômico. Essa aceitação do condomínio pelo País moderno apresenta, contudo, um aspecto negativo do ponto de vista mais geral: é que o valor realizado nas regiões em que o MRAC ainda não se implantou solidamente não é bastante para atender às exigências impostas pela reprodução do Capital. Isso significa dizer que o espaço geográfico do mercado interno do Capital é menor do que o espaço geográfico definido pelo Estado brasileiro, e que o acordo tácito entre os diferentes setores produtivos impede que o MRAC altere, ainda que pela violência ("parteira da História"), as organizações sociais que impedem a racionalização, a individualização e a democratização dos comportamentos, como estabelecia Schumpeter. Em outras palavras, o mercado externo do Capital (ainda pensando no esquema de Luxemburgo) é geográfica e socialmente mais amplo do que seu mercado interno,4 o que obriga a que a acumulação se dê fora das fronteiras estatais nacionais ¾ por menor que seja o retorno do valor transformado em moeda de troca internacional. É nesse ponto que o Estado e a Economia fundem-se num projeto de aliança internacional que nem sempre respeita o princípio de que ninguém deve aliar-se ao mais fraco em condições de igualdade.
O poder está na razão inversa da distância. Por mais que se pretenda que a Geopolítica está em desuso, o homem de Estado que pretender realizar uma política externa sem considerar os aspectos geográficos do mundo em que seu país se insere está, de antemão, condenado a ver essa política malograr ¾ isto é, a não se realizar malgrado quantos tratados tiverem sido assinados. A afirmação de Spykman sobre a relação entre distância e poder pode ser analisada desde que o país que pretende projetar ou afirmar poder tenha uma dominância econômico-financeira, de tal ordem no cenário regional ou mundial, que não necessite obrigatoriamente recorrer ao uso da expressão militar de seu poder nacional para afirmar-se perante os mais fracos economicamente. Vale dizer, havendo esse predomínio, a distância geográfica não é fator impeditivo do exercício do poder, expresso nas relações econômicas. Assim, as considerações de ordem política que são feitas antes da tomada das decisões capitais que conduzem à formação de blocos econômicos devem considerar as condicionantes impostas pela formação histórica do país, pela relação de forças no plano internacional e pela Geografia, isto é, pelas relações mais ou menos próximas de vizinhança ¾ a maior ou menor proximidade sendo determinada não tanto pela cercania imediata, mas também pela existência ou não de Estados adversos entre um país e outro. Houve momentos, na história brasileira, em que a distância entre Brasil e Chile era maior do que a medida em quilômetros dada a rivalidade entre Brasil e Argentina.
No caso do Brasil, que fatores impuseram sua orientação com a finalidade de estreitamento de relações com seus vizinhos, como se vê hoje, e sua participação em blocos econômicos? A crise cambial foi um deles, no passado. Como já foi assinalado, o País beneficiou-se do sistema de barter na década de 30 ¾ formando, então, um bloco econômico, ainda que não formalmente constituído. Dele faziam parte países cujas moedas eram inconversíveis, como a Alemanha e países da Europa Oriental e da América Latina. Para fazer face ao protecionismo das nações industrializadas e à crise que se estabelecera no sistema financeiro internacional, a qual diminuiu sensivelmente sua capacidade de acumular moedas fortes com que pagar importações e o serviço da dívida externa, esses países foram obrigados a recorrer a esse sistema de compensação que era a negação do livre cambismo que vigorara até 1914.5 No final da Segunda Guerra Mundial, não houve, da parte dos Estados Unidos nem dos países da Europa Ocidental, a preocupação de integrar o vasto mercado brasileiro ¾ então potencial ¾ num bloco amplo, nem que fosse numa zona de livre-comércio. De parte da Europa, o desinteresse explica-se pelas preocupações econômicas e políticas com a reconstrução e também porque se reconheciam os constrangimentos políticos impostos pelo Plano Marshall e a realidade geoeconômica do Hemisfério Ocidental. De parte dos Estados Unidos, o desinteresse decorria do fato de que tinha como assegurados os mercados da América Latina, especialmente dos países da América Central e das Antilhas, não temendo a concorrência inglesa ou francesa, muito menos a alemã. A isso é preciso acrescentar que, no caso brasileiro, o protecionismo da Indústria e da Finança até certo ponto isolava o País, impedindo que participasse efetivamente de esforços tendentes à constituição de blocos econômicos que exigem reciprocidade de tratamento tarifário. Outro bloco a que o País se ligou, desta vez formalmente, foi a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc). O malogro dessa tentativa de fazer uma zona de livre-comércio e caminhar para um bloco econômico no sentido estrito do termo, e os parcos resultados obtidos por sua sucessora, a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), em boa medida se explicam pela resistência ¾ aliás não apenas do Brasil ¾ em fazer concessões tarifárias, dada a vigência do princípio de "nação mais favorecida"6 que balizava esses esforços de integração econômica ou, se quiser, de formação de um bloco na América Latina.
O primeiro "bloco" de fato ¾ pode-se chamá-lo de "energético" ¾ de que o Brasil participou foi com o Paraguai, ao constituir a binacional de Itaipu. Pode-se afirmar que é o primeiro bloco de fato, porque o tratado que permitiu a construção e a operação da hidrelétrica impôs obrigações a ambos os parceiros e sinalizou, geometricamente falando, pontos de fuga da diplomacia brasileira que iriam marcar, depois, sua associação com a Argentina e em seguida a constituição do Mercosul. Não se discute mais se teria sido conveniente ao Brasil, para assegurar sua liberdade de manobra, ter construído Itaipu valendo-se do projeto do eng. Marcondes Ferraz, que previa que a represa fosse erguida apenas em território brasileiro. As complicações diplomáticas que adviriam do desvio de parte das águas do rio Paraná conduziram a que se preferisse o projeto binacional. Qualquer que tenha sido a razão que levou a operar a hidrelétrica de Itaipu onde foi construída ¾ projeção de poder (portanto, motivos geopolíticos) sobre o Paraguai, necessidade de resolver litígios territoriais de forma pacífica ou decisão de não criar atritos com Assunção ¾, o fato é que o Brasil fez uma aliança em que ele e o Paraguai detêm igual parcela de poder decisório. Não se afirma que o peso específico do Brasil faz do governo de Assunção um aliado fácil de manobrar. A história das relações entre os dois países ¾ marcada pela Guerra da Tríplice Aliança da qual o Brasil paga, até hoje, o preço, como se tivesse sido o único país a combater o governo de Solano Lopez ¾ faz que o Paraguai não seja esse aliado frágil uma vez que está viva na memória o que foi a última fase da campanha militar. Por esse fator ¾ pela capacidade que os sucessivos governos paraguaios tiveram (até o fim do governo militar na Argentina) de jogar com a rivalidade entre Brasília e Buenos Aires, mesmo sendo a parte objetivamente mais fraca na aliança e embora estivesse num estágio de desenvolvimento econômico em que não se poderia falar em triunfo do MRAC ¾, o Paraguai tem condições de impor, se e quando julgar conveniente suas condições ao Brasil, já que pode sempre jogar com a carta argentina que nunca é de se desprezar. É preciso não esquecer que o Brasil é, do ponto de vista das necessidades, a parte mais fraca, já que depende da energia gerada em Itaipu para sustentar o ritmo de crescimento de sua economia. Até hoje, esse conflito entre os dois parceiros não aconteceu ¾ mas chegará em breve o dia em que Assunção pedirá a revisão do tratado para exigir melhor preço pelo quilowatt-hora que o Paraguai cede ao Brasil.
Tem-se, assim, que o Brasil participou do bloco dos países que faziam barter por falta de moeda forte que sustentasse suas importações; do bloco com o Paraguai em Itaipu porque seu desenvolvimento econômico exigia energia que já não podia gerar com seus próprios recursos hídricos. O que permite concluir que, nesses dois casos, as alianças se fizeram para compensar fraquezas ¾ ainda que conjunturais ¾ do Brasil, as quais impediam o seu desenvolvimento ao ritmo que os governos das diferentes épocas julgavam possível e necessário.
A criação do Mercosul é o caso da adesão do Brasil a um bloco econômico que visa atingir objetivos ambiciosos. O grande empenho das autoridades brasileiras para que o Mercosul não seja apenas uma zona de livre-comércio, mas mantenha sua característica de união aduaneira,7 indica que não são apenas objetivos econômicos imediatos que acabaram conduzindo à criação do bloco. É importante ver que as políticas que os governos Itamar Franco (do qual o senador Fernando Henrique Cardoso foi chanceler antes de ser ministro da Fazenda) e o atual governo mantêm com relação à Argentina difere radicalmente daquelas sustentadas durante os governos Médici e Geisel. Especialmente durante o governo Geisel, a política foi de nítida hostilidade a Buenos Aires, bem como foi de agressiva afirmação das posições brasileiras. Se é possível dizer que, Médici consule, o governo brasileiro reagia à pretensão argentina de que a cota de Itaipu fosse menor (o que diminuiria a capacidade geradora da usina) para permitir a construção da usina argentina de Corpus. Durante todo o período Geisel, o governo brasileiro manteve uma atitude de hostilidade quase declarada, a qual foi qualificada por muitos observadores de "política chauvinista de grande potência" ¾ numa referência à crítica que a China de Mao Tsé-tung fazia à política norte-americana. Possivelmente para não serem comparados a um presidente militar, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso realizaram (e até hoje se mantém essa atitude) uma política passiva, o que tem permitido à diplomacia argentina sustentar com razoável atrevimento, para não dizer insolência em alguns casos, uma posição de intransigente defesa dos interesses nacionais argentinos ¾ o que é apenas compreensível. Essa hipótese ¾ a de que os governos Itamar e Fernando Henrique Cardoso não querem ser comparados aos governos militares ¾ não tem sido aventada quando se procura explicar as razões que levam o Itamaraty, mais basicamente o Planalto, a concordar com tudo em nome da solidariedade sul-americana ou das futuras vantagens econômicas para o Brasil. Há quem sustente que o objetivo de não aceitar a ruptura, insistindo na manutenção do status quo, é fortalecer a economia brasileira no confronto com a economia mundial, e permitir que se sustente uma posição mais firme no momento em que se discutir a sério a criação da Alca. Há outra hipótese, que se perfila ¾ ainda que sem atentar para a forma que assumiu a acumulação do Capital no Brasil, nem tendo presente as condições que presidiram a formação e desenvolvimento da indústria e da agroindústria brasileiras (o condomínio mencionado anteriormente, em especial o fato de que a cumulação do Capital realiza-se de maneira mais favorável fora das fronteiras) ¾, as autoridades brasileiras apresentam consciência de que é indispensável manter os mercados argentino, uruguaio e paraguaio abertos não apenas para a venda de mercadorias e serviços, mas também para investimentos. Sem remontar ao apoio disfarçado que se deu à expansão da fronteira agrícola para o Paraguai, já no primeiro governo Vargas, esse empenho em projetar poder ¾ sem permitir que se diga que disso se trata ¾ começou com a sustentação diplomática e financeira à pretensão de empreiteiras brasileiras de participar, ainda que fosse em associação com empresas locais, da execução de obras governamentais na América Latina. O procedimento de Brasília nas relações com Buenos Aires teve como modelo, é evidente, a relação Estados Unidos-Canadá. Vale dizer, no relacionamento com a Argentina, pensou-se que o Brasil desempenharia o papel do país mais adiantado e de maior mercado, mas que teria, no de menor desenvolvimento, um mercado certo, para não dizer cativo, para as indústrias e serviços (sem mencionar as finanças) brasileiros. O ingresso, no Brasil, de empresas do bloco, de qualquer setor de atividade, seria bem-vindo, uma vez que significaria aporte de capitais a auxiliar o fechamento das contas correntes do balanço de pagamentos. É preciso observar, porém, que o Mercosul segue o modelo de Itaipu. Seja por que razão, seja quem tivesse proposto, o fato é que os quatro países que integram o Mercosul ¾ e quantos a ele vierem juntar-se ¾ têm o mesmo peso, embora um deles seja o parceiro mais forte. A aceitação do princípio do consenso foi, sem dúvida, necessária, pelo fato de se tratar da união de Estados soberanos e de o Brasil ter sido sempre defensor da igualdade jurídica das nações, independentemente de seu peso específico no cenário internacional. O respeito a essa política tradicional, porém, tem como conseqüência a redução, de fato, da liberdade de manobra do Brasil, que pode a qualquer momento defrontar-se com situações como as que a Argentina (para resolver os problemas de suas contas externas), o Uruguai e o Paraguai (para enfrentar a situação criada pela decisão da Argentina), criaram para o bloco. Uma vez que os sócios do Mercosul são Estados soberanos, podem adotar decisões de política cambial e tarifária que vão contra os tratados assinados. Ao proceder dessa maneira, colocam o Brasil na desagradável situação de ou romper definitivamente os acordos celebrados com tanto júbilo e pompa, ou aceitar passivamente que a pretendida união aduaneira seja transformada ao longo do tempo numa mera zona de livre-comércio. Embora nenhum dos países que eliminaram a Tarifa Externa Comum para bens de capital ou reduziram as tarifas alfandegárias para muitos produtos tenham invocado razões jurídicas para fundamentar suas atitudes, poderiam fazê-lo, como em 1914 pensadores alemães fizeram, para legitimar a violação do tratado que assegurava a neutralidade da Bélgica: os tratados devem ser observados até quando se modificam as circunstâncias que levaram a sua assinatura: Pacta sunt servanda, sem dúvida alguma, mas deve respeitar-se a cláusula rebus sic stantibus.
A crise do Mercosul decorre da associação de um forte com mais fracos, todos tendo o mesmo voto nas decisões cruciais. Isso para não dizer que, nesse bloco, o Brasil é um e os países de origem hispânica são até agora três. Mais ainda. Não se deve nunca esquecer que o Império brasileiro entrou em guerra com todos os três ¾ a célebre Questão do Prata, Oribe, Rosas e Lopez. Se os brasileiros não têm memória das relações belicosas do Império e da animosidade republicana com os países do Prata, os platenses têm. Isso não deve ser esquecido, jamais.
A crise do Mercosul poderia ser resolvida politicamente se o Brasil tivesse a audácia de propor aos outros três membros efetivos a constituição de uma Confederação. Como não terá essa coragem, manterá sempre a mesma posição de equilíbrio instável, que não o favorece, podendo prejudicá-lo, inclusive nos preparativos para enfrentar o problema que se apresenta pela frente, que é a Alca.
"Entre os dois, meu coração balança." Esse é, desde algum tempo, o dilema em que vive a diplomacia brasileira ¾ para não falar nas chamadas classes produtoras reunidas nas associações de classe das quais as empresas estrangeiras guardam razoável distância. Colocado diante da proposta de criação da Associação de Livre Comércio das Américas, o governo considera a necessidade de uma escolha entre União Européia e Estados Unidos, ou então o cortejo à União Européia para reduzir a pressão norte-americana. Desde que não se trate de mero jogo de cena ¾ e a menos que o que de fato esteja em jogo seja a manutenção da política de afastamento dos Estados Unidos, a qual se consagrou no governo Ernesto Geisel ¾ o dilema não existe do ponto de vista estritamente econômico. A rigor, os negociadores brasileiros deverão se empenhar para demonstrar que a eliminação de tarifas alfandegárias para produtos europeus causará menos prejuízos à "indústria instalada" no Brasil (prefiro essa expressão àquela outra, de "indústria nacional") do que um acordo celebrado nos mesmos termos com os Estados Unidos. Ninguém negará que a potencialidade norte-americana é maior do que a européia, e que, assim sendo, o choque tecnológico que o livre-comércio com os Estados Unidos provocará no Brasil terá efeitos sísmicos maiores do que o choque europeu. Não se deve, contudo, apesar desse fato ser verdadeiro e reconhecido, supor que um acordo com a União Européia possa ser uma tábua de salvação para a economia brasileira e impeça a submissão do Brasil aos Estados Unidos.
Fatores de fraqueza e de força do Brasil nessa negociação:
- a política de incorporação de equipamentos militares realizada ultimamente pelo Exército e pela Marinha ¾ tanques e navios que, da perspectiva tecnológica norte-americana, são obsoletos ¾ aponta para a dependência em setor estratégico. Essas incorporações seguem-se à ratificação do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e à daquele que inviabilizou a pesquisa de ponta no setor balístico, direcionando o Brasil a entrar no rol das nações "confiáveis", mas sem perspectiva de avanços tecnológicos realmente significativos nessas áreas;
- o Brasil está sozinho. Insistir nas negociações 4+1 (Mercosul em bloco com qualquer outro país) é linguagem diplomática ad usum Delphini. Diplomatas experimentados não devem esperar que esse princípio seja considerado pelos demais membros do Mercosul depois do que a Argentina e o Uruguai fizeram nessas últimas semanas para desatrelar-se dos tratados constitutivos do bloco;
- a situação de crise cambial permanente (atual ou previsível em médio prazo) em que está a maioria dos governos latino-americanos não favorece a adoção, por eles, de uma política de "não passarão" diante dos Estados Unidos. Pelo contrário, coloca cada governo diante da disjuntiva: abrir mercados com algum prejuízo para setores socialmente dominantes ¾ que poderão encontrar, residindo no Exterior e lá fazendo aplicações financeiras, o remédio para seus males ¾ ou se isolar da comunidade financeira internacional. Nos anos 20 e 30, Haya de la Torre tinha conhecimento do que significava a expansão do capital norte-americano na América Latina, "Indoamérica, Nossa América"; por isso, preconizava a Federação (não a Confederação, sempre a Federação) da América Índia, ou Latina, pois apenas a Federação impediria que o Capital entrasse em Indoamérica por meio de qualquer país que ficasse fora da Anfictionia bolivariana;
- a fragilidade das contas externas é fato que obriga a que se saiba, de antemão, até que ponto vão as ligações da comunidade financeira norte-americana e do próprio Fundo Monetário Internacional (em que os EUA têm, se quiser, controle) com a política de segurança norte-americana. É preciso não esquecer que os Estados Unidos fixaram como sendo de seu interesse nacional a globalização da "democracia econômica de mercado", e que esse objetivo configura parte de sua política de segurança.
Uma pesquisa mais demorada poderia acrescentar outros fatores de fraqueza a esses apontados. Contudo, caberia registrar, agora, que a insistência em que a União Européia e os Estados Unidos modifiquem suas políticas de subsídio à Agricultura pode traduzir o mesmo espírito de "chauvinismo de grande potência" assinalado no governo Geisel, só que agora com sinal trocado: "chauvinismo de grande mercado potencial". Isso, além de não reconhecer que um dos pilares de sustentação dos governos europeus e norte-americano é a Agricultura subsidiada. Há outro elemento, desta feita interno, que não pode ser esquecido nesse tipo de consideração: uma vez que a Europa (e os Estados Unidos, igualmente) precisa vender produtos de alta tecnologia, a mudança na política agrícola (se fosse possível fazê-la, dada as circunstâncias políticas internas de cada país europeu) poderia significar que as exportações brasileiras de commodities aumentariam, mas não as de produtos manufaturados com alta tecnologia, o que poderia fazer que perdurasse por mais tempo o condomínio a que se referiu.
Quais são os fatores de força?
O Mercado ¾ Deve levar-se em conta que, rigorosamente, ele deve ser tido como potencial por causa da má distribuição de renda. O mercado efetivo não pode ser medido pelo dado bruto do total da população, mas pelo rendimento das classes sociais (critérios exclusivamente econômicos, de rendimento). Embora o mercado efetivo seja menor do que o potencial, o Brasil é o maior mercado da América do Sul, e poderá crescer desde que haja políticas de incorporação da grande massa de despossuídos à economia de mercado. Do ponto de vista do interesse brasileiro, o importante é saber que porção do mercado efetivo absorverá bens que incorporem tecnologia de primeira geração ¾ para não falar da possibilidade da economia absorver bens de capital com alta tecnologia que possa ser incorporada e reproduzida, e que parte do mercado será, por assim dizer, tomada por produtos acabados de fino gosto e que parte dele absorverá bens acabados de consumo de massa.
O mercado do Mercosul ¾ Esse fator de força poderá transformar-se, para o Brasil, em fator de fraqueza se porventura realizar-se uma das duas seguintes hipóteses: a primeira é que a negociação 4+1 seja levada a cabo com êxito; a segunda, é que malogre, mas um dos membros do Mercosul faça o acordo com a UE ou com os EUA. Nos dois casos, coloca-se interessante questão, que poderá ter solução desfavorável ao Brasil, especialmente se, no segundo caso, o país do Mercosul que fizer o acordo não romper juridicamente os acordos constitutivos do bloco. Nessa hipótese, ausente o Brasil de um acordo com a UE ou os EUA, e tendo um membro do Mercosul aderido a uma zona de livre-comércio ¾ e os precedentes indicando que pode aumentar ou reduzir a TEC ¾, como se faria a importação dos produtos europeus ou norte-americanos pelo Brasil, via país do Mercosul?
No que se refere à Alca, o fato de o presidente da República haver declarado no Canadá que o Brasil só aderirá à Alca se lhe for conveniente (o que soa como óbvio) tem levado muitos a considerar que sem o Brasil a Alca não será constituída. Se essa postura orientar as negociações, a posição do Brasil poderá deixar de ser de força para transformar-se em fraqueza ¾ pois o futuro do desenvolvimento industrial e financeiro ficará na dependência do que decidirem Argentina, Uruguai e Paraguai, que têm menos poder de barganha que o governo de Brasília e poderão ser levados, por legítimo interesse nacional ou de suas classes dominantes, a aderir à Alca. O problema, aliás, é o mesmo quando se fala das negociações com a União Européia.
É interessante analisar os fatos e o discurso dos partidários do acordo do Mercosul com a União Européia para ver como a posição do Brasil é menos forte do que se supõe. Essa suposição, é bom ficar claro, vem da circunstância de ter-se estabelecido que o Brasil pode escolher entre a Alca e a União Européia ¾ entre dois mercados-continente em que o Modo de Reprodução Ampliada do Capital atingiu seu pleno desenvolvimento e no qual a produtividade aumenta especialmente pelos progressos tecnológicos. Os fatos são de conhecimento geral: na última reunião entre o Mercosul e a UE, o comissário europeu para o Comércio, Pascal Lamy, jogou sobre a mesa o que a Europa pode e quer fazer, obrigando o Mercosul a apressar-se para responder à provocação européia. É que, no fundo, permitindo que seu coração balance entre dois amores ¾ o Mercosul e o Brasil, em particular ¾, procedem como se, pelo fato de ser uma cobiçada donzela, os aventureiros que dela se querem apossar sejam obrigados a proceder com tato e cortesia. Ledo e perigoso engano. O discurso revela tudo, e mostra porque ¾ tendo-se em conta os fatos criados pela Argentina, pelo Uruguai e pelo Paraguai ¾ a posição do Brasil não é tão forte como se quer que seja.
O discurso é revelador. Antes da reunião com o Mercosul, falando em Genebra, Lamy foi claro: "Vamos ficar um ano à frente da negociação da Alca" ¾, com isso fica explícito dizer que a Europa espera concluir as negociações sobre a zona de livre-comércio com o Mercosul em 2004. Na seqüência da entrevista, desvenda a razão da pressa em firmar o acordo: "A Europa tem interesse estratégico na consolidação e solidez do Mercosul e é nesse contexto que vemos o acordo de livre-comércio bi-regional". E mais adiante: "Não estamos preocupados com questões táticas ou mercantilistas. Um Mercosul forte é uma prioridade para nós" (Gazeta Mercantil, 5/7/2001:7). Que se concluiu dessa oferta generosa? Que o importante para a Europa é o Mercosul ¾ e essa importância existe ainda que se saiba que o bloco está cindido.
A posição européia fica mais clara quando se lê o artigo que Alain Touraine publicou no jornal Folha de S.Paulo, de 23/07/2001. O brilhante sociólogo, um dos membros do establishment acadêmico francês e, nessa condição, capaz de refletir ou influenciar o pensamento do establishment político, é conhecido como amigo do presidente Fernando Henrique Cardoso e do Brasil, onde lecionou e fez discípulos. Que diz ele, no artigo? Primeiramente, deixa claro que o acordo com o Mercosul é uma questão ¾ eu diria que, para ele, vital ¾ de tempo. As razões estratégicas não referidas por Lamy, ele as deixa claras: a Europa está agindo em três direções para consolidar sua economia, abrindo maiores mercados: Leste europeu, Mediterrâneo Sul (desde Turquia a Marrocos e Mauritânia) e América Latina.
O Leste europeu não apresenta problemas, dado o volume de capitais que auxiliam a reconstrução econômica dos antigos membros do Comecon. O Mediterrâneo é extremamente problemático por causa da situação argelina. A crise de Estado que se delineia na Argélia, retratada pela rebelião na Cabila, que é berbere e não quer se sujeitar a um governo árabe, impedirá por algum tempo a penetração européia. É na América Latina que o tempo urge, pois ou a Europa age com rapidez e consegue bons frutos, ou se verá excluída da área pela Alca.
Touraine sabe que as ações do ministro Cavallo foram um golpe no bloco do Cone Sul. Por isso, escreve que o Mercosul não existe mais, e que uma Argentina refeita de sua crise ¾ ele admite os fatos em sua crueza ¾ poderá negociar diretamente com os Estados Unidos. Nesse quadro, apenas o Brasil quer conservar a unidade do Mercosul. No interesse estratégico da Europa, a Argentina precisa ser salva, hoje, para que o Mercosul reerga-se amanhã e o acordo com a Europa faça-se até 2004, como quer o comissário Lamy.
Pela amizade que nutre pelos países do Mercosul, ou atendendo aos interesses europeus, Touraine passa por cima dos dados da Geografia e faz sua opção, que deve ser a do establishment europeu: "A Europa, que precisa vender produtos de alta tecnologia e que também precisa contratar profissionais qualificados, tem muito mais interesse em desenvolver a América Latina do que um mundo árabe ainda fraco e dividido". A lógica dos mercados praticamente derrotou a da Geopolítica de Spykman, que fazia o poder residir na razão inversa das distâncias. E Touraine avança, sem ambages, a linha mestra da estratégia européia; "Ao ajudar a Argentina a se reencontrar, tornamos possível ao Brasil conservar ou retomar uma liberdade de iniciativa e de escolha que apenas ele pode exercer para o conjunto do continente e que, hoje, corre o grave risco de desaparecer". Não se poderia ter colocação mais clara de uma política de ocupação de mercados e de tentativa de fazer, no campo político, aquilo que Canning realizou em 1823, levando Monroe a proclamar sua famosa "Doutrina": o então secretário do Foreign Office gabava-se de haver restabelecido o equilíbrio europeu, incorporando, sob influência inglesa, o Novo Mundo ao Velho. O que se pretende, agora, é a mesma coisa, sabendo-se que não mais existe a esquadra inglesa para assegurar a integridade dos países sul-americanos diante de qualquer pretensão espanhola ou francesa. Existem, porém, para Touraine, Espanha e Itália, que têm profundas raízes ¾ e, especialmente a primeira, enormes capitais aplicados na América hispânica ¾ que podem auxiliar na aliança com o Mercosul, partindo de um ponto de apoio, que é a reconstrução argentina (o que faz do Brasil, como se tem e como o atual governo de Brasília parece fazer, um ator de segunda importância no jogo europeu). Para o Brasil, depois de a Argentina estar recuperada, está reservado um papel de relevo: despreocupado com as crises de seu vizinho, ajudará a restabelecer o equilíbrio de poder entre a Europa e os Estados Unidos, exercendo sua influência sobre o conjunto do continente sul-americano. É este que interessa à Europa ¾ as Américas do Norte e Central são dadas, desde já, como sob a influência norte-americana via México.
Se se estendeu nessa exposição da estratégia européia ¾ aliás posta a nu sem nenhum pudor ¾ foi para que não se faça da opção européia a salvação, a única possibilidade de independência do País. Não que as intenções dos Estados Unidos sejam melhores. São iguais e têm a apoiá-las não os capitais de Espanha e Itália, mas o poder financeiro e militar. Um moço que tenha por objetivo, em suas relações com o mundo, garantir a qualquer preço sua segurança, manter sempre abertas as oportunidades de negócio e procurando impor sua visão de mundo sobre a dos demais, é tão perigoso quanto aquele guapo rapaz que persegue a donzela com juras de amor e promessas de casamento, mas mantém segredo de que isso só se dará depois que uma outra, rival dela, estiver em condições de também com ele se casar.
Assim, pode-se voltar ao início e dizer que, da perspectiva das alianças, a conclusão de um acordo para a constituição de uma zona de livre-comércio entre o Brasil e, tanto faz, a União Européia ou os Estados Unidos será, para aquele que chegou a um ponto de maturação superior do MRAC, uma mésalliance. Mestre Aurélio registra este galicismo como um "casamento de alguém com pessoa de condição inferior à sua". Condição inferior, mas capaz, ainda assim, de proporcionar não apenas pingues lucros, mas gozosas aventuras, que não lhe impedirão o flerte com uma vizinha rival, que sempre quis casar-se com alguém que seja forte.
NOTAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OLIVEIROS S. FERREIRA: Professor do Departamento de Política da PUC-SP e do Departamento de Ciência Política da USP.
Referências bibliográficas
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Out 2002 -
Data do Fascículo
Jan 2002